O quesito raça/cor nos estudos de caracterização de usuários de Centro de Atenção Psicossocial11Trabalho apresentado no I Seminário Internacional sobre avaliação da qualidade da atenção em saúde de populações vulneráveis: pessoas com transtorno mental, usuário de álcool e outras drogas e população negra. São Paulo, 12 e 13 de novembro de 2015.

Resumo

Este trabalho teve como objetivo apresentar, por meio de revisão narrativa da literatura científica, o perfil dos usuários atendidos em Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), para verificar a inclusão do quesito raça/cor nessa produção. O levantamento bibliográfico foi realizado de maio a agosto de 2015 no Google Acadêmico e em bases que compõem a Biblioteca Virtual de Saúde: Medline, BDENF, Paho, Index Psicologia e Lilacs. As estratégias de busca foram: (1) “mental health services”/“serviços de saúde mental” AND “epidemiological profile”/“perfil epidemiológico” e (2) “mental health services”/“serviços de saúde mental” AND “health profile”/“perfil de saúde”. Dois revisores avaliaram títulos e resumos dos 452 artigos recuperados. A partir disso, foram excluídos os artigos repetidos e os que não tratam do perfil de usuários de CAPS, restando então 17 artigos. Desses, apenas três apresentaram dados de raça/cor, mas nenhum discutiu esses dados. Verificou-se que dois CAPS têm proporcionalmente mais negros em tratamento do que a população em geral, e evidenciou-se que o uso da variável raça/cor para caracterizar usuários dos serviços de CAPS ainda é reduzido, mesmo que seja importante marcador de cunho social - isso vai ao encontro da maneira como as desigualdades raciais no Brasil são tratadas pela sociedade: como inexistentes, o que reforça as iniquidades. Essas desigualdades têm se revelado persistentes e requerem que a política de saúde mental e a academia iniciem discussão que vá além de recomendações de conferências, para que se definam estratégias para esse enfrentamento e se produzam e reproduzam conhecimentos que possam ajudar na elaboração e implementação dessas estratégias.

Palavras-chave:
Grupo com Ancestrais do Continente Africano; Serviços de Saúde Mental; Perfil Epidemiológico

Introdução

Em 2010, a população brasileira era 47,7% (91.051.647) composta por brancos; 43,1% (82.277.333) por pardos; 7,6% (14.517.961) por pretos; 1,1% (2.084.288) por amarelos; 0,4% (817.963) por indígenas; e 0,003% (6.608) por habitantes cuja cor não havia sido declarada (IBGE, 2012IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo demográfico 2010: características gerais da população, religião e pessoas com deficiência. Rio de Janeiro, 2012. Disponível em: <Disponível em: http://bit.ly/1RCBs7H >. Acesso em: 28 jun. 2015.
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). Identificando-se que 50,7% da população é composta por pretos e pardos, consistindo na população negra, evidencia-se que o Brasil é um país de maioria negra. Apesar disso, essa população possui menor escolaridade e mais baixa renda quando comparada com a população de cor de pele branca. Em breve panorama dessa disparidade, os dados do IBGE mostram que 27,4% dos negros acima de 15 anos são analfabetos, que só 13,1% dos jovens negros entre 15 e 24 anos frequentam ensino superior e que 24% dos negros são empregados sem carteira assinada (IBGE, 2012IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo demográfico 2010: características gerais da população, religião e pessoas com deficiência. Rio de Janeiro, 2012. Disponível em: <Disponível em: http://bit.ly/1RCBs7H >. Acesso em: 28 jun. 2015.
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); além disso, o rendimento médio mensal dos negros é de apenas R$ 847,70 (IBGE, 2009IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Indicadores de cor ou raça, segundo a Pesquisa Mensal de Emprego março de 2009. Brasília, DF, 2009. Disponível em: <Disponível em: http://bit.ly/2jbSXpB >. Acesso em: 28 jun. 2015.
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). Na população branca, nas mesmas faixas etárias, só 5,9% são analfabetos e 31,1% frequentam o ensino superior; a proporção de brancos empregados sem carteira assinada é de 16,3%, (IBGE, 2012IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo demográfico 2010: características gerais da população, religião e pessoas com deficiência. Rio de Janeiro, 2012. Disponível em: <Disponível em: http://bit.ly/1RCBs7H >. Acesso em: 28 jun. 2015.
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), e o rendimento médio da população branca é de R$ 1.663,90 (IBGE, 2009IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Indicadores de cor ou raça, segundo a Pesquisa Mensal de Emprego março de 2009. Brasília, DF, 2009. Disponível em: <Disponível em: http://bit.ly/2jbSXpB >. Acesso em: 28 jun. 2015.
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).

As desvantagens primordiais criadas pela escravidão, pela natureza da abolição, pela subsequente ausência de políticas públicas de inserção na educação e na força de trabalho, pela miséria material, pelo isolamento social e pela restrição à participação política dos negros no Brasil contribuíram e contribuem para a formação e a manutenção desse cenário (Araújo et al., 2009ARAÚJO, E. M. et al. A utilização da variável raça/cor em Saúde Pública: possibilidades e limites. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 13, n. 31, p. 383-394, 2009.). Esse processo de inclusão social desqualificada e de restrição ao acesso a bens e serviços sociais, vivenciado por negros no Brasil, se chama racismo.

A interface entre racismo, saúde e populações em situação de vulnerabilidade tem ganhado espaço na literatura científica. O impacto do racismo no processo saúde, doença e morte tem sido discutido por diversos autores, dos quais destacamos Araújo et al. (2009ARAÚJO, E. M. et al. A utilização da variável raça/cor em Saúde Pública: possibilidades e limites. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 13, n. 31, p. 383-394, 2009.); Araújo et al. (2012)ARAÚJO, N. B. et al. Perfil clínico e sociodemográfico de adolescentes que permaneceram e não permaneceram no tratamento em um CAPSad de Cuiabá/MT. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, Rio de Janeiro, v. 61, n. 4, p. 227-234, 2012.; Barbosa (1998)BARBOSA, M. I. S. Racismo e saúde. 1988. Tese (Doutorado em Saúde Materno-Infantil) - Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998.; Batista; Escuder; Pereira (2004BATISTA, L. E.; ESCUDER, M. M. L.; PEREIRA, J. C. R. A cor da morte: causas de óbito segundo características de raça no Estado de São Paulo, 1999 a 2001. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 38, n. 5, p. 630-636, 2004.) e Lopes, 2005LOPES, F. Para além da barreira dos números: desigualdades raciais e saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 21, n. 5, p. 1595-1601, 2005..

A promoção da atenção à saúde, considerando as diferenças individuais e de grupos populacionais, por meio da adequação da oferta às necessidades de saúde e ampliação do acesso do usuário às políticas, especialmente aquelas voltadas para populações em situação de desigualdade por fatores genéticos, por condicionantes de exclusão social e por desigualdades étnicas e raciais, deve ser discutida no contexto do Sistema Único de Saúde (SUS) (Barros; Campos; Fernandes, 2014BARROS, S.; CAMPOS, P. F. de S.; FERNANDES, J. J. (Org.). Atenção à saúde de populações vulneráveis. São Paulo: Manole, 2014.). A vulnerabilidade em função de relação social, cultural, política e econômica desigual e como consequência de relação de desigualdade pode manifestar-se de modo individual ou coletivo, entre indivíduos, entre diferentes grupos, culturas ou etnias em relação a um grupo mais amplo, ou mesmo entre países. Na área de saúde mental, a interface entre racismo, racismo científico, vulnerabilidades e implantação de mecanismos sutis de controle social na história da psiquiatria brasileira foi discutida, entre outros, por Barros et al. (2014BARROS, S. et al. Censo psicossocial dos moradores em hospitais psiquiátricos do estado de São Paulo: um olhar sob a perspectiva racial. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 23, n. 4, p. 1235-1247, 2014., p. 1238).

Entre os temas privilegiados pelos alienistas e psiquiatras brasileiros na construção de atos, atitudes, hábitos, comportamentos, crenças e valores “desviantes”, figuravam, por exemplo, a civilização, a raça/cor, a sexualidade, o trabalho, o alcoolismo, a delinquência/criminalidade, o fanatismo religioso e a contestação política (Engel, 1999). Colocando “sob suspeita indivíduos e setores sociais incômodos”, o saber psiquiátrico fundamentava a elaboração de uma estratégia que se pretendia eficaz no sentido de enquadrar os “comportamentos pessoais e sociais que se afastavam das normas da moral ou da disciplina” (Cunha, 1986, p. 47 apud Engel, 1999). De acordo com Engel, 1999 o vínculo entre raça/cor e doença mental indica outra pista importante para se avaliar as dimensões políticas e sociais assumidas pelo saber e pela prática alienista na sociedade brasileira das últimas décadas do século XIX. Sempre ciosos de resguardar a vastidão e a imprecisão dos limites definidores da doença mental, os psiquiatras partiam do princípio de que a loucura não escolhia cor, o que não os impediu de construir, sub-repticiamente, relações bastante próximas entre a doença mental e as “raças” consideradas inferiores. Para tanto lançaram mão, por exemplo, da ideia de que os negros e, sobretudo, os mestiços predispunham-se à loucura por serem povos degenerados por definição. Entretanto, mesmo quando não eram classificados a princípio como degenerados, os indivíduos pretos e pardos eram vistos como intelectualmente inferiores e, por isto, menos capazes de enfrentar e/ou adaptar-se às contingências do meio social, sendo assim ‘mais propensos’ à degeneração. […] Os efeitos psicossociais do racismo é uma linha de interpretação recente da questão da saúde mental no Brasil. Todavia, há que se perguntar o quanto do pensamento eugênico ainda impregna a formação na área da saúde contribuindo na representação social dos profissionais, sobre o louco e a loucura.

No contexto da reforma psiquiátrica brasileira, os serviços comunitários são a principal estratégia de atenção à população que sofre de transtornos mentais. No marco da desinstitucionalização, o hospital psiquiátrico não é mais o lugar de tratamento, e o acesso aos serviços no território, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), pressupõe compreensão psicossocial do sujeito. No entanto, os efeitos psicossociais do racismo têm sido pouco estudados, no contexto da reforma ou dos serviços. Todavia, essa temática se coloca como importante na assistência e na perspectiva da compreensão de agravos no processo de saúde e doença mental, mas também na da reabilitação psicossocial e da inclusão, metas do cuidado na saúde mental.

Kwate e Goodman (2015KWATE, N. O.; GOODMAN, M. S. Cross-sectional and longitudinal effects of racism on mental health among residents of black neighborhoods in New York City. American Journal of Public Health, Newark, v. 105, n. 4, p. 711-718, 2015.) alertam para a dificuldade metodológica de comprovar a associação entre exposição ao racismo e desenvolvimento de doenças mentais por meio de estudos de cortes não longitudinais, o que torna tais estudos onerosos. Entretanto, a experiência de racismo tem associação comprovada com sentimentos de solidão entre os jovens (Priest et al., 2014PRIEST, N. et al. Experiences of racism, racial/ethnic attitudes, motivated fairness and mental health outcomes among primary and secondary school students. Journal of youth and adolescence, New York, v. 43, n. 10, p. 1672-1687, 2014.), com dias de saúde mental mais precária (Kwate; Goodman, 2015KWATE, N. O.; GOODMAN, M. S. Cross-sectional and longitudinal effects of racism on mental health among residents of black neighborhoods in New York City. American Journal of Public Health, Newark, v. 105, n. 4, p. 711-718, 2015.) e com sintomas de ansiedade e depressão (Pieterse et al., 2012PIETERSE, A. L. et al. Perceived racism and mental health among black american adults: a meta-analytic review. Journal of Counseling Psychology, Columbus, v. 59, n. 1, p. 1-9, 2012.).

Em levantamento realizado a partir dos registros de óbito da população residente no estado de São Paulo para os anos de 1999, 2000 e 2001, os transtornos mentais como causas características dos óbitos foram, entre os pretos, a quarta causa de morte em importância e a terceira entre os pardos, e não foi listada entre as causas características dos óbitos em ordem de importância entre os brancos (Batista; Escuder; Pereira, 2004BATISTA, L. E.; ESCUDER, M. M. L.; PEREIRA, J. C. R. A cor da morte: causas de óbito segundo características de raça no Estado de São Paulo, 1999 a 2001. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 38, n. 5, p. 630-636, 2004.).

Barros et al. (2014BARROS, S. et al. Censo psicossocial dos moradores em hospitais psiquiátricos do estado de São Paulo: um olhar sob a perspectiva racial. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 23, n. 4, p. 1235-1247, 2014.) evidenciaram que, entre as pessoas internadas em hospitais psiquiátricos há mais de um ano, os negros com transtornos mentais são em maior percentual que os brancos, proporcionalmente à população de São Paulo. Todavia, esses estudos não foram suficientes para sensibilizar os gestores a incluir o racismo nos planos e estratégias de gestão.

Sob a hipótese de que há na sociedade brasileira processos ininterruptos de preconceito, abandono e apartamento social sobre populações em situação de vulnerabilidade, Barros et al. (2014BARROS, S. et al. Censo psicossocial dos moradores em hospitais psiquiátricos do estado de São Paulo: um olhar sob a perspectiva racial. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 23, n. 4, p. 1235-1247, 2014.) revisitaram o banco de dados do Censo Psicossocial do Estado de São Paulo (Barros; Bichaff, 2008BARROS, S.; BICHAFF, R. (Org.). Desafios para a desinstitucionalização: censo psicossocial dos moradores em hospitais psiquiátricos do Estado de São Paulo. São Paulo: Fundap, 2008.) para descrever o perfil dos moradores dos hospitais psiquiátricos e caracterizar o perfil clínico dos moradores segundo raça/cor, e concluíram que:

  1. os dados do Censo Psicossocial de moradores em hospitais psiquiátricos do estado de São Paulo revelam que à população negra cabe a injusta posição de prioritária no ranking da exclusão social; a faixa etária dos moradores pretos e pardos internados era de 35 a 49 anos. Esse dado levanta a hipótese de que pretos e pardos são internados mais jovens e permanecem hospitalizados;

  2. há maior proporção de negros que estão internados porque não têm renda, família ou lugar para morar e porque têm rede social frágil. Essa precariedade social se associa a transtorno mental ou doenças clínicas.

  3. a população negra sofre, historicamente, processos ininterruptos de abandono e apartamento social. O lugar por excelência de abandono e exclusão é o manicômio, além de outras instituições totais.

Rosa e Vilhena (2012ROSA, C. M.; VILHENA, J. Do manicômio ao CAPS da contenção (im)piedosa à responsabilidade. Barbarói, Santa Cruz do Sul, n. 37, p. 154-176, 2012.) chamam a atenção para o enfrentamento do tema “diversidade” nas discussões na área da saúde mental, reforçando a necessidade do fortalecimento das políticas de promoção de igualdade, bem como o combate às desigualdades, os estigmas e os estereótipos. Nesse sentido, os autores destacam as recomendações nos relatórios finais da III Conferência Nacional de Saúde Mental - de se enfatizar o desenvolvimento de pesquisas que investiguem o impacto do racismo na saúde mental da população negra e indígena - e da IV Conferência Nacional de Saúde Mental Intersetorial - sobre o combate das desigualdades, os estigmas e os estereótipos, bem como sobre o desenvolvimento de recortes específicos de raça e etnia na elaboração, implantação e execução de políticas públicas no campo da saúde mental.

Em oposição ao hospital psiquiátrico, os CAPS têm como finalidade a inclusão social das pessoas com transtornos mentais (Brasil, 2004BRASIL. Ministério da Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Saúde mental no SUS: os centros de atenção psicossocial. Brasília: Ministério da Saúde, 2004.). Atualmente não são encontrados estudos que abordem o acesso da população negra aos serviços oferecidos pelo CAPS, evidenciando que o uso da variável raça/cor, que carrega o peso das construções históricas e culturais do Brasil, ainda é escasso na área da saúde (Araújo et al., 2009ARAÚJO, E. M. et al. A utilização da variável raça/cor em Saúde Pública: possibilidades e limites. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 13, n. 31, p. 383-394, 2009.). Assim, é importante verificar se a inclusão da população negra nos serviços comunitários de saúde mental tem sido objeto de estudos da comunidade científica.

Com essas considerações, o objetivo deste artigo foi apresentar descritivamente, por meio de revisão da literatura científica, o perfil dos usuários atendidos em CAPS no Brasil para verificar a inclusão do quesito raça/cor nessa produção.

Metodologia

Realizou-se revisão da literatura do tipo narrativa, de abordagem qualiquantitativa. Esse tipo de revisão tem sido utilizado para estudar características de determinadas populações, como perfil de morbidade de pilotos na aviação comercial (Melo; Silvany Neto, 2012MELO, M. F. S.; SILVANY NETO, A. M. Perfil de morbidade, aspectos ergonômicos e psicossociais, fadiga e perturbação do ciclo circadiano de pilotos de aviação comercial: uma revisão narrativa. Revista Baiana de Saúde Pública, Salvador, v. 36, n. 3, p. 683-698, 2012.), características físicas e mensuração de desempenho de militares (MacDonald; Pope; Orr, 2016MACDONALD, D.; POPE, R.; ORR, R. M. Differences in physical characteristics and performance measures of part-time and fulltime tactical personnel: a critical narrative review. Journal of Military and Veterans’ Health, Hobart, v. 24, n. 1, p. 45-55, 2016.), e redes de saúde (Trapé; Campos; Gama, 2015TRAPÉ, T. L.; CAMPOS, R. O.; GAMA, C. A. P. Mental health network: a narrative review study of the integration assistance mechanisms at the Brazilian National Health System. International Journal of Health Sciences, New Delhi, v. 3, n. 3, p. 45-53, 2015.). A opção por essa metodologia se deu considerando que nesse tipo de estudo a produção bibliográfica é analisada fornecendo o estado da arte sobre determinado objeto, bem como evidenciando subtemas que têm recebido maior ou menor ênfase na literatura selecionada (Noronha; Ferreira, 2000NORONHA, D. P.; FERREIRA, S. M. S. P. Revisões de literatura. In: CAMPELLO, B. S. V. C.; CENDÓN, B. V.; KREMER, J. M. (Org.). Fontes de informação para pesquisadores e profissionais. Belo Horizonte: UFMG, 2000.).

O levantamento bibliográfico foi realizado entre maio e agosto de 2015 no Google Acadêmico e em bases que compõem a Biblioteca Virtual de Saúde: Medline, BDENF, Paho, Index Psicologia e Lilacs. Optou-se por essas bases de dados por considerar que elas incluem maior número de publicações em periódicos nacionais, o que vai ao encontro do recorte por perfil/caracterização de usuários de CAPS, serviço específico do contexto brasileiro. As estratégias de busca utilizadas foram compostas pelos seguintes descritores em ciências da saúde (DeCs): (1) “mental health services”/“serviços de saúde mental” AND “epidemiological profile”/“perfil epidemiológico” e (2) “mental health services”/“serviços de saúde mental” AND “health profile”/“perfil de saúde”.

Extração e análise dos dados

Dois revisores avaliaram de forma independente os títulos, resumos e informações de indexação dos 452 artigos científicos recuperados. A versão na íntegra do artigo só era obtida se apresentasse os seguintes critérios de inclusão: sujeitos da pesquisa usuários de CAPS; formato de publicação de artigo científico; característica metodológica não experimental e dados epidemiológicos da população atendida em CAPS; idiomas de escrita em português, inglês ou espanhol. Não houve restrição de data de publicação.

A partir da leitura dos resumos e da exclusão dos artigos repetidos foram selecionados 17 deles, conforme apresentado na Figura 1.

Figura 1
Organograma de seleção dos artigos, São Paulo, 2015

Após a leitura na íntegra do material, os dados sobre o perfil epidemiológico dos usuários foram digitados no programa Excel, permitindo comparação e análise. A opção pelo uso da “categoria negra”, que engloba pretos e pardos, se deu como alternativa à não padronização dos artigos em relação ao uso da terminologia “cor da pele”, como preto e pardo. A discussão dos dados foi realizada considerando a ausência e a presença das informações.

Resultados

O corpus deste estudo foi constituído por 17 artigos, publicados entre 2005 e 2014, que apresentam características/perfil de 7.609 usuários dos CAPS. Os locais de estudo dessas publicações foram quatro CAPS Álcool e Drogas (CAPSad), dois CAPS Infanto-Juvenil (CAPSi) e 10 CAPS Adulto I, II ou III, sendo que um desses Foi local de pesquisa de dois estudos. Os estudos apresentam dados de usuários de CAPS de cidades de quatro regiões do país, a saber: (1) Sudeste - Barbacena, Contagem, Uberlândia e Uberaba, em Minas Gerais; Lorena, Sorocaba e Campinas, em São Paulo; (2) Centro-Oeste - Cuiabá, no Mato Grosso; (3) Nordeste - Maceió, em Alagoas; Fortaleza, Iguatu e Sobral, no Ceará; Recife, em Pernambuco; Jequié e Ilhéus, na Bahia; João Pessoa, na Paraíba; e (4) Sul - Orleans, em Santa Catarina; Cambé e Londrina, no Paraná; Alegrete, Bagé, Caxias do Sul, Porto Alegre, Viamão e Osório, no Rio Grande do Sul.

Os dados foram coletados por meio de análise do prontuário, entrevista e análise do Sistema de Informação Ambulatorial (SIA), e a amostra variou entre 35 e 2.470 usuários ou prontuários. Entre os 17 artigos, 11 deles apresentaram a prevalência de usuários CAPS do sexo masculino; o grau de escolaridade dos usuários, descrito em 7 artigos, foi ensino fundamental incompleto; em relação ao uso de substâncias psicoativas, o álcool e o tabaco foram as drogas mais usadas, segundo os estudos (Quadro 1).

Quadro 1
Artigos incluídos segundo autores, ano de publicação, revista, filiação, local de estudo, tamanho da amostra, material empírico e síntese do perfil, São Paulo, 2015

A prevalência dos resultados obtidos nos estudos foi de esquizofrenia/transtornos esquizotípicos e delirantes (19%), seguida de transtornos de humor (15%) e transtornos de comportamentos e emocionais (10%). Entre os usuários dos CAPS, 56% são do sexo masculino e 57% são solteiros, e a idade média foi de 34,2 anos. No que tange à escolaridade dos usuários, 9% são analfabetos ou não têm grau de instrução, 55% frequentaram fundamental incompleto ou completo, 19% têm ensino médio incompleto ou completo, e apenas 4% apresentam ensino superior incompleto ou completo. Quanto à situação de trabalho, a maioria (36%) encontra-se desempregada ou sem ocupação, 7% recebem algum tipo de beneficio e 7% são aposentados, sendo que as variáveis “aposentados” e “recebe algum tipo de beneficio” são calculadas juntas em 2 artigos (artigo 5 e 11) e equivalem a 2% da situação de trabalho desses usuários; 24% encontram-se na situação de assalariado, autônomo ou trabalho informal.

A maior parte das variáveis clínicas e de atendimento era comum aos artigos, independente da especificidade do CAPS de estudo; no entanto, algumas especificidades foram observadas, principalmente nos estudos com usuários de CAPSad e CAPSi - por exemplo, nos estudos que tiveram como população-alvo usuários de CAPSi, essas especificidades foram o relatório escolar e a situação de trabalho dos responsáveis (Nascimento et al., 2014NASCIMENTO, Y. C. M. L. et al. Perfil de crianças e adolescentes acompanhados por um centro de atenção psicossocial infanto-juvenil. Revista de Enfermagem UFPE Online, Recife, v. 8, n. 5, p. 1261-1272, 2014.); nos CAPSad foram acrescentados a frequência e tempo de uso de substância psicoativa e os prejuízos associados a ela, além de envolvimento com a justiça, considerando a especificidade de cada serviço (Almeida et al., 2014ALMEIDA, R. A. et al. Perfil dos usuários de substâncias psicoativas de João Pessoa. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 38, n. 102, p. 526-538, 2014.; Araújo et al., 2012ARAÚJO, N. B. et al. Perfil clínico e sociodemográfico de adolescentes que permaneceram e não permaneceram no tratamento em um CAPSad de Cuiabá/MT. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, Rio de Janeiro, v. 61, n. 4, p. 227-234, 2012.; Oliveira et al., 2013OLIVEIRA, E. N. et al. Caracterização da clientela atendida em Centro de Atenção Psicossocial - álcool e drogas. Revista Rene, Fortaleza, v. 14, n. 4, p. 748-756, 2013.; Rodrigues et al., 2013RODRIGUES, L. S. A. et al. Perfil dos usuários atendidos em um Centro de Atenção Psicossocial: Álcool e drogas. Revista de Enfermagem UFPE Online, Recife, v. 7, n. 8, p. 5191-5197, 2013.).

Apenas três dos 17 artigos utilizaram a variável raça/cor na descrição dos usuários do serviço, e neles a proporção de negros era de 77,5% (Almeida et al., 2014ALMEIDA, R. A. et al. Perfil dos usuários de substâncias psicoativas de João Pessoa. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 38, n. 102, p. 526-538, 2014.), 27,4% (Pereira et al., 2012PEREIRA, M. O. et al. Perfil dos usuários de Serviços de Saúde Mental do município de Lorena - São Paulo. Acta Paulista de Enfermagem, São Paulo, v. 25, n. 1, p. 48-54, 2012.) e 29,1% (Rodrigues et al., 2012RODRIGUES, C. G. S. S. et al. Perfil sociodemográfico, diagnóstico e internação psiquiátrica de usuários da Rede de Atenção Psicossocial do Rio Grande do Sul. Journal Nursing Health, Pelotas, v. 2, suplemento de saúde mental, p. 141-150, 2012.), abrangendo os estados da Paraíba, de São Paulo e do Rio Grande do Sul, respectivamente, enquanto no mesmo período a proporção de negros nesses estados era de 58,4%, 34,6% e 16,2% (IBGE, 2012IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo demográfico 2010: características gerais da população, religião e pessoas com deficiência. Rio de Janeiro, 2012. Disponível em: <Disponível em: http://bit.ly/1RCBs7H >. Acesso em: 28 jun. 2015.
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), conforme o Gráfico 1. Apesar de apresentarem dados acerca dessa variável, nenhum dos três artigos discutiu os achados, ou seja, raça/cor não foi considerada na discussão apresentada nos artigos.

Gráfico 1
Caracterização raça/cor dos usuários dos CAPS segundo artigos analisados, São Paulo, 2015

Gráfico 2
Caracterização raça/cor dos usuários dos CAPS segundo artigos analisados e a população negra de seus respectivos estados, São Paulo, 2015

Discussão

Segundo a literatura, a predominância do sexo masculino entre os usuários do CAPS pode decorrer dos estereótipos sexuais impostos pela sociedade, que determinam limites e comportamentos diferentes entre os sexos, permitindo assim diferentes experiências entre ambos (Almeida et al., 2014ALMEIDA, R. A. et al. Perfil dos usuários de substâncias psicoativas de João Pessoa. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 38, n. 102, p. 526-538, 2014.), o que favorece que homens sejam acometidos por transtornos mentais e de comportamento decorrentes do uso de álcool e drogas e por quadros de esquizofrenia (Miranda; Tarasconi; Scortegagna, 2008MIRANDA, C. A.; TARASCONI, C. V.; SCORTEGAGNA, S. A. Estudo epidêmico dos transtornos mentais. Avaliação Psicológica, Itatiba, v. 7, n. 2, p. 249-257, 2008.). Além disso, a baixa prevalência da população feminina, principalmente nos CAPSad, pode ser explicada pelo preconceito que atinge as mulheres dependentes de álcool e/ou drogas, além do sentimento de culpa, vergonha e medo e da baixa autonomia (Araújo et al., 2012ARAÚJO, N. B. et al. Perfil clínico e sociodemográfico de adolescentes que permaneceram e não permaneceram no tratamento em um CAPSad de Cuiabá/MT. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, Rio de Janeiro, v. 61, n. 4, p. 227-234, 2012.).

Contrariando esses dados, observou-se que em 6 dos 17 artigos predominam o sexo feminino e os transtornos de humor (superior a 30%). Essas peculiaridades, quanto ao sexo e ao diagnóstico, que prevalecem em alguns CAPS, pelos artigos analisados, decorrem de instituições que, apesar de configuradas como CAPS, acabam atendendo os transtornos mentais comuns, da população em geral, que deveria ser demanda atendida pela Unidade Básica de Saúde (UBS). Segundo um dos artigos estudados, esse atendimento “mais amplo” advém do trajeto histórico do CAPS estudado, já que, antes da reforma psiquiátrica, essa instituição era um serviço ambulatorial que atendia pacientes menos graves, os casos mais severos sendo encaminhados para internação nos hospitais psiquiátricos (Pelisoli; Moreira, 2007PELISOLI, C. L.; MOREIRA, A. K. Avaliação de um centro de atenção psicossocial por meio do perfil de seus usuários. Mental, Barbacena, v. 5, n. 8, p. 61-75, 2007.). Ressalta-se que, segundo o Ministério da Saúde, os CAPS devem acolher os indivíduos com intenso sofrimento psíquico, ou seja, pessoas com transtornos mentais severos e persistentes ou com transtornos causados pelo uso de substâncias psicoativas, que, devido a esse comprometimento psíquico, não conseguem realizar seus projetos de vida, impedindo-se de viver de maneira plena (Brasil, 2004BRASIL. Ministério da Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Saúde mental no SUS: os centros de atenção psicossocial. Brasília: Ministério da Saúde, 2004.).

Os usuários dos CAPS, pelos artigos analisados, apresentam baixo grau de escolaridade e alto índice de desemprego, o que evidencia a vulnerabilidade dessa população e em parte o pouco investimento desses serviços no trabalho como eixo reabilitador. A educação é um qualificador para as ocupações profissionais e, consequentemente, determina a renda desses indivíduos; logo, a baixa escolaridade reflete diretamente nas circunstâncias sociais e materiais, proporcionando diferentes condições de vida e de moradia para os indivíduos (Ludermir; Melo Filho, 2002LUDERMIR, A. B.; MELO FILHO, D. A. M. Condições de vida e estrutura ocupacional associadas a transtornos mentais comuns. Revista Saúde Pública, São Paulo, v. 36, n. 2, p. 213-221, 2002.). A não qualificação profissional dos usuários de CAPS os leva a trabalhos com mão de obra de fácil substituição, o que, em mercado altamente competitivo, justifica a alta taxa de desemprego.

O tripé educação-trabalho-moradia, eixo da reabilitação psicossocial (Saraceno, 2012SARACENO, B. Reabilitação psicossocial: uma estratégia para a passagem do milênio. In: PITTA, A. (Org.). Reabilitação Psicossocial no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2012. p. 13-18.), torna-se fator de inclusão ou exclusão dos indivíduos na sociedade; dessa forma, considerando que os usuários de CAPS estão em desvantagem no que diz respeito a essas três questões, cabe ao serviço promover recursos do próprio usuário e do contexto dele, aumentando sua participação social e seu poder de contratualidade perante a sociedade. Quando se faz recorte da população negra usuária de CAPS, infere-se que essa desvantagem é ainda mais acentuada, pois, como se apresentou na introdução deste artigo, os negros no Brasil têm menor acesso ao ensino superior e maior taxa de desemprego, quando comparados aos brancos.

Esta revisão de literatura evidenciou que, no Brasil, nos estudos relacionados à área da saúde mental, o uso da variável raça/cor para caracterizar os usuários dos serviços de saúde ainda é reduzido - o que é confirmado por Araújo et al. (2009ARAÚJO, E. M. et al. A utilização da variável raça/cor em Saúde Pública: possibilidades e limites. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 13, n. 31, p. 383-394, 2009.) -, mesmo que esse seja um importante marcador de desigualdade social.

“O Brasil tem preconceito de ter preconceito”, dizia Florestan Fernandes, e esse preconceito é a matriz de uma justificativa utilizada durante muitos anos:

a justificativa equivocada de que a inclusão do quesito cor poderia ser interpretada como uma ação discriminatória e/ou racista; essa afirmativa foi utilizada pelas autoridades sanitárias do país para se furtar de incluir esse dado nos instrumentos do SUS e nas estatísticas produzidas pelo sistema de saúde (Giovanetti et al., 2007GIOVANETTI, M. R. et al. A implantação do quesito cor/raça nos serviços de DST/Aids no Estado de São Paulo. Saúde e Sociedade, São Paulo, v.16, n. 2, p. 163-170, 2007.).

Por outro lado, vivenciamos cotidianamente cenas/expressões do racismo, quando um profissional sente receio e/ou desconforto de perguntar a raça/cor de uma pessoa; quando um grupo de amigos está junto e apenas o negro é abordado pela polícia; quando um negro entra em restaurantes e hotéis de luxo e depara com olhares entrecruzados; na pouca participação de modelos negros na publicidade em um país predominantemente negro.

A existência das desigualdades raciais também é negada por parte da sociedade, quando se propõem ações de discriminação positiva e ou de promoção da equidade. Nas redes sociais e na própria academia, as ações de promoção de equidade de acesso dessa população aos serviços de saúde e educação são por vezes percebidas negativamente, por tratar de forma socialmente “diferente” a população negra - é nesse momento que entra em cena o argumento de que somos todos iguais “biologicamente”, enquanto membros da “raça humana”. O não reconhecimento das desigualdades raciais no acesso aos direitos e a não compreensão por parte da sociedade em relação às ações de equidade acabam por aprofundar as iniquidades.

Outro aspecto que pode estar associado ao uso limitado da variável raça/cor em investigações quando referida a saúde é o das definições de etnia, raça e cor (Laguardia, 2004LAGUARDIA, J. O uso da variável “raça” na pesquisa em saúde. Physis - Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 2, p. 197-234, 2004.). Há percepções e pontos de vista contraditórios e paradoxais sobre o significado e o uso do termo “raça”, ocorrendo ausência de rigor científico em sua definição. Por vezes, as variáveis “etnicidade” e “raça” são utilizadas como fatores de risco no campo das pesquisas epidemiológicas; em outra corrente - a do campo das pesquisas sociais - essas variáveis são parte do processo de determinação social da doença. Essas divergências de definições sobre raça disponíveis na literatura são causadas por posições sociopolíticas, conceitos, métodos de análise e instrumentos utilizados que os autores assumem em seus estudos, e essas diferenças limitam o uso da variável raça/cor (Laguardia, 2004LAGUARDIA, J. O uso da variável “raça” na pesquisa em saúde. Physis - Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 2, p. 197-234, 2004.). Na literatura científica brasileira não é usual adotar o termo “etnia” para se referir a grupos sociais, como ocorre em outros países, sendo o termo “raça” mais utilizado aqui (Faro; Pereira, 2011FARO, A.; PEREIRA, M. E. Raça, racismo e saúde: a desigualdade social da distribuição do estresse. Estudos de Psicologia (Natal), Natal, v. 16, n. 3, p. 271-278, 2011.).

Há dificuldade por parte dos pesquisadores do campo da saúde, que não se apropriam do conhecimento produzido pelo campo das pesquisas sociais, em usar a variável raça/cor. A hipótese que se levanta aqui é a de que nesse campo há desconhecimento sobre a importância da variável raça/cor para compreensão da determinação social do processo saúde/doença mental e de que não se reconhece a centralidade da dimensão étnico-racial na configuração e reprodução das iniquidades sociais.

Pereira et al. (2012PEREIRA, M. O. et al. Perfil dos usuários de Serviços de Saúde Mental do município de Lorena - São Paulo. Acta Paulista de Enfermagem, São Paulo, v. 25, n. 1, p. 48-54, 2012.) e Rodrigues et al. (2012RODRIGUES, C. G. S. S. et al. Perfil sociodemográfico, diagnóstico e internação psiquiátrica de usuários da Rede de Atenção Psicossocial do Rio Grande do Sul. Journal Nursing Health, Pelotas, v. 2, suplemento de saúde mental, p. 141-150, 2012.) mostraram que a maioria dos usuários dos CAPS é branca. Quando se comparam os dados apresentados com a proporção de negros por estado, a parcela de usuários negros atendidos nos CAPS estudados por Almeida et al. (2014ALMEIDA, R. A. et al. Perfil dos usuários de substâncias psicoativas de João Pessoa. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 38, n. 102, p. 526-538, 2014.) e Rodrigues et al. (2012)RODRIGUES, C. G. S. S. et al. Perfil sociodemográfico, diagnóstico e internação psiquiátrica de usuários da Rede de Atenção Psicossocial do Rio Grande do Sul. Journal Nursing Health, Pelotas, v. 2, suplemento de saúde mental, p. 141-150, 2012. é maior do que a população negra em seus respectivos estados; em Pereira et al. (2012)PEREIRA, M. O. et al. Perfil dos usuários de Serviços de Saúde Mental do município de Lorena - São Paulo. Acta Paulista de Enfermagem, São Paulo, v. 25, n. 1, p. 48-54, 2012., essa proporção é inferior à população negra geral, o que permite reflexão sobre a inclusão da população negra nos serviços de saúde como os CAPS (IBGE, 2014IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa nacional por amostra de domicílios: Tabela 262, população residente, por cor ou raça, situação e sexo. 2014. Disponível em: <Disponível em: http://bit.ly/2niajUK >. Acesso em: 13 dez. 2015.
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).

O estudo realizado por Batista, Escuder e Pereira (2004BATISTA, L. E.; ESCUDER, M. M. L.; PEREIRA, J. C. R. A cor da morte: causas de óbito segundo características de raça no Estado de São Paulo, 1999 a 2001. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 38, n. 5, p. 630-636, 2004.) constatou que, no estado de São Paulo, proporcionalmente, pretos e pardos morrem mais que brancos por transtornos mentais. Barros et al. (2014BARROS, S. et al. Censo psicossocial dos moradores em hospitais psiquiátricos do estado de São Paulo: um olhar sob a perspectiva racial. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 23, n. 4, p. 1235-1247, 2014.) identificaram maior proporção de negros (pretos e pardos) internados nos hospitais psiquiátricos do estado de São Paulo. Esse panorama levanta algumas questões: em que serviços eles eram atendidos, antes de serem internados ou falecerem? Será que os negros adoecem e morrem sem ter acessado o CAPS ou a UBS?

Segundo Lopes (2004LOPES, F. Experiências desiguais ao nascer, viver, adoecer e morrer: tópicos em saúde da população negra no Brasil. In: SEMINÁRIO SAÚDE DA POPULAÇÃO NEGRA, 1., 2004, Brasília, DF. Anais… Disponível em: <Disponível em: http://bit.ly/1zS4biy >. Acesso em: 26 jun. 2015.
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), brancos e negros têm as mesmas doenças, mas a intensidade em que ela ocorre e a forma como o cuidado é ofertado são diferentes - a população negra possui formas de nascer, viver, adoecer e morrer desiguais quando são comparadas com a branca. O povo negro, apesar de não conviver mais com o martírio da escravidão, ainda sofre com o estigma da exclusão e a segregação social, sendo ainda os mais pobres e possuindo remuneração inferior e acesso restrito e precário aos serviços de infraestrutura e de saúde de boa qualidade, quando comparados com a população branca (Araújo et al., 2009ARAÚJO, E. M. et al. A utilização da variável raça/cor em Saúde Pública: possibilidades e limites. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 13, n. 31, p. 383-394, 2009.). Essa exclusão nas redes de saúde e a precarização de seu atendimento no que se relaciona aos negros revela que o preconceito racial influencia a relação entre o profissional de saúde e o usuário do serviço (Domingues et al., 2013DOMINGUES, P. M. L. et al. Discriminação racial no cuidado em saúde reprodutiva na percepção de mulheres. Texto & Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 22, n. 2, p. 285-292, 2013.).

Esse tratamento desigual é justificado pela ideologia de que o negro é inferior ao branco, devido a um significado social imputado a algumas características fenotípicas e genéticas, que atribuem valores negativos aos grupos que fogem a esse padrão - pensamento característico do racismo, que é reproduzido consciente ou inconscientemente pelas pessoas ao longo do tempo e mantido, mesmo com a evolução das sociedades, das conjunturas históricas e dos interesses grupais, assim fabricando e multiplicando as vulnerabilidades dessa população (Lopes, 2004LOPES, F. Experiências desiguais ao nascer, viver, adoecer e morrer: tópicos em saúde da população negra no Brasil. In: SEMINÁRIO SAÚDE DA POPULAÇÃO NEGRA, 1., 2004, Brasília, DF. Anais… Disponível em: <Disponível em: http://bit.ly/1zS4biy >. Acesso em: 26 jun. 2015.
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). Em vista disso, é notório que a não reprodução do preconceito racial é altamente ímproba e incerta, já que intrínseca à sociedade. Todavia, as ações de promoção da igualdade racial previstas na Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010, instituídas no Estatuto da Igualdade Racial, garantem à população negra acesso universal e igualitário a todo e qualquer tipo de serviço de saúde (Brasil, 2010BRASIL. Presidência da República. Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui o Estatuto da Igualdade Racial; altera as Leis nos 7.716, de 5 de janeiro de 1989, 9.029, de 13 de abril de 1995, 7.347, de 24 de julho de 1985, e 10.778, de 24 de novembro de 2003. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 21 set. 2010.), visando, assim, diminuir essas desigualdades que são observadas ao longo da história.

Faro e Pereira (2011FARO, A.; PEREIRA, M. E. Raça, racismo e saúde: a desigualdade social da distribuição do estresse. Estudos de Psicologia (Natal), Natal, v. 16, n. 3, p. 271-278, 2011.) fizeram revisão bibliográfica sobre a relação do racismo com o estresse e não encontraram textos brasileiros sobre a temática; considerando os textos internacionais, os autores concluíram que as minorias raciais tendem a ser mais expostas a estressores específicos, como os relacionados a discriminação, preconceito e segregação social, reforçando a noção de desigualdade na distribuição social do estresse. Kwate e Goodman (2015KWATE, N. O.; GOODMAN, M. S. Cross-sectional and longitudinal effects of racism on mental health among residents of black neighborhoods in New York City. American Journal of Public Health, Newark, v. 105, n. 4, p. 711-718, 2015.) chamam atenção para a dor emocional que as pessoas expostas ao racismo sentem e para os prejuízos à saúde mental que a exposição ao racismo pode trazer. Williams e Williams-Morris (2000WILLIAMS, D. R.; WILLIAMS-MORRIS, R. Racism and mental health: the African American experience. Ethnicity and Health, Abingdon, v. 5, n. 3-4, p. 243-268, 2000.) sugerem que racismo pode afetar negativamente o estado de saúde mental das pessoas ao menos de três modos: (1) o racismo nas instituições sociais pode levar a não mobilidade socioeconômica, além de a acesso diferenciado aos recursos desejáveis e a más condições de vida, o que pode afetar negativamente a saúde mental; (2) as experiências de discriminação podem induzir reações fisiológicas e psicológicas que podem levar a mudanças adversas no estado de saúde mental; e (3) nas sociedades rae-conscious, a aceitação de estereótipos culturais negativos pode levar a autoavaliações desfavoráveis, que têm efeitos deletérios sobre o bem-estar psicológico.

Considerações finais

Recentemente, o interesse pelos efeitos psicossociais do racismo tem se tornado linha de interpretação da questão da saúde mental no Brasil, mas não há volume de publicações científicas brasileiras consistente sobre esse objeto de estudo.

A revisão de literatura possibilitou evidenciar, nos estudos relacionados ao campo de pesquisa da saúde mental no Brasil, que o uso da variável raça/cor para caracterizar os usuários dos serviços de CAPS ainda é reduzido, mesmo que seja um importante marcador de cunho social. Isso vai ao encontro da maneira como as desigualdades raciais no Brasil são tratadas pela sociedade: como inexistentes, o que reforça as iniquidades. Essas desigualdades têm se revelado persistentes e requerem ações e políticas públicas que alterem a situação de adversidade vivida pela população negra.

Qualificar a informação raça/cor nos instrumentos de saúde é importante para monitorar e avaliar as ações de promoção da igualdade racial previstas no Estatuto da Igualdade Racial, em que é garantida à população negra acesso universal e igualitário a todo e qualquer tipo de serviço de saúde.

A utilização do quesito cor, nos estudos e instrumentos de saúde, é indicador importante; tanto movimentos sociais quanto estudos com essa variável contribuem para a elaboração e promoção de políticas públicas que visam diminuir as desigualdades raciais em saúde. Sendo assim, recomenda-se a inclusão da variável raça/cor nas pesquisas do campo da saúde mental; e, quando da análise dos dados, recomenda-se utilizá-la como categoria de análise.

O uso da variável raça/cor e a sua utilização como categoria de análise podem gerar evidências científicas sobre o racismo como produtor de sofrimento psíquico e podem contribuir com a atuação dos serviços, da gestão e da sociedade civil/controle social. Faz-se necessário que a política de saúde mental inicie discussão que vá além de recomendações de conferências, para que se definam estratégias para esse enfrentamento e para que a academia produza e reproduza conhecimentos que desvelem mais detalhadamente esse fenômeno e possa ajudar na elaboração e na implementação dessas estratégias.

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  • 1
    Trabalho apresentado no I Seminário Internacional sobre avaliação da qualidade da atenção em saúde de populações vulneráveis: pessoas com transtorno mental, usuário de álcool e outras drogas e população negra. São Paulo, 12 e 13 de novembro de 2015.

  • 1
    Study presented at I Seminário Internacional sobre avaliação da qualidade da atenção em saúde de populações vulneráveis: pessoas com transtorno mental, usuário de álcool e outras drogas e população negra [1st International Conference on Quality of Health Care provided to vulnerable populations: people with mental disorders, alcoholics, drug users and the black population]. São Paulo, Brazil, November 12

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2017

Histórico

  • Recebido
    07 Jun 2016
  • Aceito
    17 Nov 2016
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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