O desafio da organização do Sistema Único de Saúde universal e resolutivo no pacto federativo brasileiro

Resumo

Desde a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), persistem importantes desafios para garantia do direito à saúde no país. Esta reflexão teórica acerca da organização do SUS foi elaborada a partir da realização de entrevistas com atores da política social e de saúde do país, da análise de indicadores referentes aos municípios, população, rede assistencial e financiamento do sistema de saúde e de uma fundamentação teórica crítica, porém não sistemática, orientada pelo marco conceitual da universalização, do controle social, do financiamento das necessidades e da descentralização do SUS. Os sistemas de saúde universais são considerados os que melhor respondem às necessidades da população. Entretanto, o subfinanciamento desafia sua consolidação, com um percentual quase inalterado dos gastos federais como proporção do produto interno bruto (PIB), apesar do crescimento real dos gastos totais com o setor da saúde entre 2000 e 2012, reflexo do crescimento econômico. Trata-se de uma estabilidade que não responde às necessidades crescentes do sistema de saúde. No Brasil, o pacto federativo e a organização do SUS com base no município, na sua maioria com menos de 30 mil habitantes, dificulta a organização das redes de saúde e compromete a resolutividade do sistema, entendimento que reforça a necessidade de conformação de territórios de base populacional. Esses são desafios que precisam ser enfrentados e que exigem o resgate dos ideais do Movimento Sanitário Brasileiro. O momento exige uma ação de resistência, em defesa do SUS, para assegurar a garantia da universalidade, indiscutivelmente a maior conquista social da população brasileira.

Palavras-chave:
Sistema Único de Saúde; Regionalização; Financiamento Governamental

Introdução

As questões relacionadas à reforma do Estado e à seguridade social não faziam parte dos debates da esquerda do país até à década de 1970, quando a luta pela redemocratização e pelos direitos dos cidadãos tornou-se o centro dos debates políticos. Nesse contexto, os esforços direcionaram-se para o fortalecimento das políticas públicas sociais e para construção de um Estado do bem-estar social (Fleury, 2009FLEURY, S. Reforma sanitária brasileira: dilemas entre o instituinte e o instituído. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 3, p. 743-752, 2009.).

Para os defensores do movimento sanitário brasileiro, o sistema de saúde vigente privilegiava, nessa época, a medicalização, a privatização e a ação centrada no médico, desprezando a saúde pública e as questões sociais, aprofundando as desigualdades e fortalecendo a fragmentação do sistema de saúde (Pêgo; Almeida, 2002PÊGO, R. A.; ALMEIDA, C. Teoría y práctica de las reformas en los sistemas de salud: los casos de Brasil y México. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 18, n. 4, p. 971-989, 2002.).

Fruto desse movimento, o Sistema Único de Saúde (SUS) foi implantado como um sistema federativo com a participação das três esferas de governo, mediante a realização de serviços universais e gratuitos em todo território nacional, tendo a descentralização como diretriz básica e com o mecanismo constitucional do controle público, por meio do controle social (Mendes, 2002MENDES, E. V. Sistema Nacional de Saúde no Brasil - SUS e Sistema Complementar. Sanare, Sobral, v. 3, n. 1, p. 97-103, 2002. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/jW0iCD >. Acesso em: 18 set. 2014.
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).

Com a sua implantação, o Brasil passou a ser o único país da América Latina com um sistema universal de saúde, aproximando-se da experiência de países como “Reino Unido, Suécia, Espanha, Itália, Alemanha, França, Canadá e Austrália” (Marques; Mendes, 2012MARQUES, R. M.; MENDES, A. A problemática do financiamento da saúde pública brasileira: de 1985 a 2008. Economia e Sociedade, Campinas, v. 21, n. 2, p. 345-362, 2012., p. 346). Tratava-se da maior política de inclusão social da história, rompendo uma divisão injusta, ao tornar a saúde um direito de todo cidadão e um dever do Estado (Mendes, 2013MENDES, E. V. 25 anos do Sistema Único de Saúde: resultados e desafios. Estudos Avançados, São Paulo, v. 27, n. 78, p. 27-34, 2013.).

Entretanto, diante de sua complexidade e da dificuldade de construção de um sistema universal de saúde em um país heterogêneo como o Brasil, assiste-se à persistência de desafios relacionados a questões como a organização e a fragmentação das políticas, o insuficiente financiamento, as complexas relações entre a esfera pública e o mercado, as fragilidades nos processos regulatórios e as desigualdades em saúde que permanecem e que marcam a sociedade brasileira (Machado; Baptista; Nogueira, 2011MACHADO, C. V.; BAPTISTA, T. W. F.; NOGUEIRA, C. O. Políticas de saúde no Brasil nos anos 2000: a agenda federal de prioridades. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 27, n. 3, p. 521-532, 2011.).

O desafio reside, portanto, na garantia de um direito social que deve ser assegurado pelo Estado e que, com as iniquidades que caracterizam o país, precisa ser gerido sob a responsabilidade dos municípios, estados e União, esferas autônomas de governo (Viegas; Penna, 2013VIEGAS, S. M. F.; PENNA, C. M. M. O SUS é universal, mas vivemos de cotas. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 18, n. 1, p. 181-190, 2013.).

Este estudo se propõe a analisar a organização do SUS no pacto federativo brasileiro, apontando para possíveis caminhos que assegurem os princípios e as diretrizes que o norteiam.

Caminho percorrido

A necessidade de refletir sobre a organização do sistema de saúde no país surgiu do estudo realizado em tese de doutorado que apresentou como principal objetivo a análise da relação entre a assistência pública à saúde e as mudanças demográficas, epidemiológicas e sociais no Brasil no período de 1995 a 2010.

Para subsidiar a reflexão teórica sobre os principais desafios para consolidação do SUS, foram entrevistados oito atores que ocuparam funções relevantes na gestão da saúde (ex-ministro da saúde do país, ex-secretários do Ministério da Saúde, ex-secretários estaduais e municipais de saúde) e no poder legislativo, além de intelectuais da saúde e planejadores.

A análise das entrevistas foi realizada por meio da técnica de condensação dos significados, proposta por Kvale (1996KVALE, S. InterViews: an introduction to qualitative research interviewing. Thousand Oaks: Sage, 1996.), que orienta a definição de temas centrais e, por fim, a realização de uma síntese, por meio de uma descrição essencial que compreende os temas identificados na entrevista e relacionados aos objetivos pesquisados.

A descrição essencial das percepções apresentadas pelos participantes possibilitou a sistematização deste ensaio, contribuindo para a reflexão sobre o pacto federativo e a organização do sistema de saúde.

A partir de uma fundamentação teórica crítica, porém não sistemática, orientada pelo marco conceitual da universalização, do controle social, do financiamento das necessidades e da descentralização do SUS, o ensaio foi direcionado a fim de compreender a complexidade do sistema de saúde brasileiro.

Assim, para contextualizar as discussões, foram analisados indicadores referentes aos municípios, à população, à rede assistencial e ao financiamento do sistema de saúde do país.

Dessa forma, reconhecendo a incompletude e a incerteza da realidade, bem como as múltiplas conexões entre seus componentes (Tôrres, 2009TÔRRES, J. J. M. Teoria da complexidade: uma nova visão de mundo para a estratégia. Revista Integra Educativa, La Paz, v. 2, n. 2, p. 189-202, 2009.), foi realizada a combinação dos diferentes pontos de vista, resultando em uma triangulação de dados - fenômeno que amplia a percepção dos movimentos, das estruturas, da ação dos sujeitos, de indicadores e de relações entre micro e macro realidades (Minayo, 2005MINAYO, M. C. S. (Org.). Avaliação por triangulação de métodos: abordagem de programas sociais. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005.).

Este ensaio não pretendeu esgotar a reflexão acerca da complexa organização do SUS, por mais que tenha debatido questões fundamentais para a consolidação do sistema de saúde. Portanto, em virtude da profundidade do tema, não é conclusivo, embora contribua para a compreensão da política de saúde do país.

Pretende-se fortalecer o debate acerca dos desafios que se impõem ao SUS e a necessidade de resgatar a saúde como prioridade política, reorientando o planejamento e direcionando políticas específicas que visem à melhoria da qualidade da assistência à saúde ofertada à população.

A organização do SUS no pacto federativo brasileiro

Solidariedade, universalidade e equidade são princípios que guardam uma estreita relação com a igualdade de acesso a ações e a serviços de saúde (Sojo, 2011SOJO, A. Condiciones para el acceso universal a la salud en América Latina: derechos sociales, protección social y restricciones financieras y políticas. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 6, p. 2673-2685, 2011.). Conquista do movimento sanitário brasileiro, o SUS foi implantado na Constituição Federal de 1988, assegurando a saúde como um direito do cidadão e um dever do Estado, com os princípios da universalidade, equidade e integralidade da atenção à saúde (Paim et al., 2011PAIM, J. S. et al. The Brazilian health system: history, advances, and challenges. Lancet, London, v. 377, n. 9779, p. 1778-1797, 2011.; Teixeira, 2011TEIXEIRA, C. Os princípios do Sistema Único de Saúde. Salvador, 2011. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/ET1GSC >. Acesso em: 4 jul. 2016.
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).

Ao longo dos anos, como resposta às necessidades atuais e crescentes e ao desenvolvimento tecnológico e científico, os sistemas de saúde universais têm sido considerados como aqueles que melhor respondem às necessidades da população, bem como os que mais contribuem para o desenvolvimento econômico de um país.

A garantia da universalidade representou, na história do Brasil, o resgate de uma dívida social e o início da implantação da reforma do setor saúde. O dever do Estado foi assegurado pela primeira vez em uma Constituição, sendo representado pela responsabilidade para com a organização de um sistema de saúde único, nacional, público e universal. Mas, passados quase 30 anos, o sistema e seus defensores enfrentam importantes desafios.

São questões que existem desde a implantação do sistema e que, em momentos de crise política e econômica, agravam as ameaças impostas para sua implementação.

A organização tríplice, com a autonomia das esferas de governo, tornou complexa a construção do sistema de saúde, pois municípios, estados e União não apresentam relação de hierarquia entre si (Almeida-Filho, 2009ALMEIDA-FILHO, N. A problemática teórica da determinação social da saúde (nota breve sobre desigualdades em saúde como objeto de conhecimento). Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 33, n. 83, p. 349-370, 2009.; Dourado; Elias, 2011DOURADO, D. A.; ELIAS, P. E. M. Regionalização e dinâmica política do federalismo sanitário brasileiro. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 45, n. 1, p. 204-211, 2011.).

Os munícipios, antes agentes, tornaram-se principais atores do sistema. E essa organização, tendo como esfera principal o município, dificulta a oferta, resolutiva e em tempo oportuno, de ações e de serviços de saúde. Único país do mundo com esse nível de descentralização, a não diferenciação entre os entes federativos coloca-se como um elemento complicador da organização das redes de saúde no Brasil.

Segundo Campos (2014CAMPOS, G. W. S. Regionalização é o futuro do SUS. Informe ENSP, Rio de Janeiro, 2 jul. 2014. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/gu7ZHt >. Acesso em: 4 jul. 2016.
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), entre os países com sistemas universais de saúde somente o Brasil tem organização com a autonomia dos três entes federados. Nos países, o planejamento e a gestão do sistema de saúde são regionais, não havendo nenhuma descentralização em nível municipal. Na Espanha, por exemplo, atinge o nível estadual, e na Itália, em regiões.

Um país de dimensão continental e que tem, em sua maioria, municípios de pequeno porte, quase 80% das cidades brasileiras têm menos de 30 mil habitantes. Quando somados aos municípios com até 100 mil habitantes, representavam menos de 45% da população brasileira em 2015 (IBGE, 2016IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Produto Interno Bruto dos Municípios 2012. [S.l.], 2016. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/Wxa7bO >. Acesso em: 2 maio 2017.
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).

Juntos, esses municípios concentravam apenas 25% dos médicos com vínculo com o SUS. A maior proporção (35,2%) estava nos municípios com mais de um milhão de habitantes, apenas 17 cidades do país, que possuíam uma relação entre o número de médicos e habitantes três vezes maior que aqueles municípios com menos de 30 mil habitantes (Brasil, 2016BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde. Procedimentos hospitalares do SUS por local de internação a partir de 2008: notas técnicas. Brasília, DF, 2016. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/Nyjvvg >. Acesso em: 4 jul. 2016.
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).

De acordo com Rodrigues (2014RODRIGUES, P. H. A. Desafios políticos para consolidação do Sistema Único de Saúde: uma abordagem histórica. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 37-59, 2014.), durante a descentralização, essa diversidade dos municípios brasileiros não foi considerada. Muitas cidades não possuíam população suficiente para implantar um sistema de saúde propriamente dito, com diferentes níveis de complexidade da atenção.

Os pequenos municípios, em maioria, dependem dos repasses do governo federal para sustentar sua estrutura de saúde. Quase todos já atingiram ou superaram o limite constitucional de gastos definidos pela Emenda Constitucional nº 29. Em 2015, os municípios gastaram em média 22%11BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Departamento de Economia da Saúde e Desenvolvimento. Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos. 2016. Disponível em: <https://goo.gl/kYkQZ4>. Acesso em: 4 jul. 2016. de seu orçamento próprio, acima do valor definido pela Emenda Constitucional.

Em valores ajustados conforme o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) em 31 de dezembro de 2012, o gasto público total com saúde por habitante apresentou tendência crescente, com um aumento médio anual de R$ 40,76, passando de R$ 438,00 em 2000 para R$ 903,52 em 2012. A menor variação proporcional foi observada nos valores federais gastos por habitante, que cresceu 61,2% no período estudado, quando os gastos municipais per capita aumentaram em mais de 180%.22BRASIL. Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde. Indicadores e Dados Básicos: Brasil: 2012. 2014. Disponível em:<http://bit.ly/2sjN1iS>. Acesso em: 4 jul. 2016.

Houve um crescimento dos gastos totais com saúde em 106,5% em valores atualizados entre 2000 e 2012, com uma maior participação dos estados e municípios no seu financiamento. Os valores ultrapassaram a inflação acumulada do período, graças ao forte crescimento econômico do país, identificado pelo aumento real do PIB de 74,4%.33BRASIL. Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde. Indicadores e Dados Básicos: Brasil: 2012. 2014. Disponível em:<http://bit.ly/2sjN1iS>. Acesso em: 4 jul. 2016.

Entretanto, apesar de ser o maior ente financiador do sistema, a proporção dos gastos federais com saúde oriundos do percentual do PIB apresentou-se constante, encontrando-se em 1,82% em 2012.44BRASIL. Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde. Indicadores e Dados Básicos: Brasil: 2012. 2014. Disponível em:<http://bit.ly/2sjN1iS>. Acesso em: 4 jul. 2016.

Trata-se de uma estabilidade que não responde às necessidades crescentes do sistema de saúde. As dificuldades relativas ao financiamento estão presentes desde a implantação do SUS, quando o país enfrentava uma crise econômica que, associada à postura liberal do Estado, reduzia a atuação estatal nas políticas públicas.

O fato de estados e municípios em sua maioria já terem atingido ou superado o limite constitucional de gastos com a saúde (Saiani; Galvão, 2011SAIANI, C. C. S.; GALVÃO, G. C. Evolução das desigualdades regionais do déficit de acesso a serviços de saneamento básico no Brasil: evidências de um incentivo adverso dos objetivos de desenvolvimento do milênio? In: ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA, 39., 2011, Foz do Iguaçu. Anais… Foz do Iguaçu: Anpec, 2011. 20 p. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/NB3U1F >. Acesso em: 4 jul. 2016.
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) reforça o desafio do financiamento do sistema público de saúde, em virtude da complexificação da assistência diante das atuais e futuras demandas de saúde da população e da descentralização das responsabilidades.

O financiamento tem sido, portanto, desde o início do SUS, em um contexto de endividamento do Estado e de sua reduzida capacidade de atuação, um dos principais desafios para que o sistema de saúde assegure o acesso universal, integral e equânime a ações e a serviços de saúde.

Como a Constituição de 1988 não esclareceu as regras de financiamento, surgiram desde 1993 Propostas de Emendas Constitucionais que conferiam responsabilidades e recursos para a saúde. No entanto, foi em somente em 2011 que a Emenda Constitucional nº 29 foi regulamentada (Fortes, 2012FORTES, F. B. A Emenda Constitucional nº 29 de 2000 e os governos estaduais. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo, v. 87, p. 167-202, 2012.), e até hoje não se definiu a participação federal no financiamento da saúde, apresentando uma média de 1,70% do PIB entre 2000 e 2012.

Segundo Soares e Santos (2014SOARES, A.; SANTOS, N. R. Financiamento do Sistema Único de Saúde nos governos FHC, Lula e Dilma. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 38, n. 100, p. 18-25, 2014.), países como a Espanha, o Canadá, a França e o Reino Unido, que também têm sistema universal de saúde, gastam entre 7% e 8% do seu PIB com ações e serviços públicos de saúde. No Brasil, por sua vez, esse gasto alcançou 3,99% do PIB do país em 2012, um percentual inferior ao investimento realizado pelos países com sistemas universais.55BRASIL. Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde. Indicadores e Dados Básicos: Brasil: 2012. 2014. Disponível em:<http://bit.ly/2sjN1iS>. Acesso em: 4 jul. 2016.

Além da insuficiência, somam-se novas ameaças, como a aprovação do orçamento impositivo, que consolida o subfinanciamento do sistema, a permissão do capital estrangeiro na assistência à saúde (Bahia, 2015BAHIA, L. Tiro ao alvo no SUS: a mercantilização da saúde pavimenta o caminho para os gastos catastróficos com saúde de indivíduos e famílias: a solução não é a privatização. Carta Maior, Porto Alegre, 15 abr. 2015. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/IZlgz2 >. Acesso em: 25 abr. 2015.
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) e a aprovação da Emenda Constitucional nº 55, que congela por 20 anos os gastos públicos e que põe em risco as conquistas alcançadas no período, representando um retrocesso para consolidação do próprio sistema de saúde e desconsiderando a necessidade de investimento público para responder às dificuldades geradas pelas transições demográfica e epdeimiológica brasileiras, não aproveitando a janela de oportunidade vivenciada pelo país - momento de oportunidade (Miranda; Mendes; Silva, 2016MIRANDA, G. M. D.; MENDES, A. C. G.; SILVA, A. L. A. O envelhecimento populacional brasileiro: desafios e consequências sociais atuais e futuras. Revista Brasileira de Geriatria e Gerontologia, Rio de Janeiro, v. 19, n. 3, p. 507-519, 2016.) que, se aproveitado com os devidos e necessários investimentos, pode potencializar as oportunidades demográficas e contribuir para redução das profundas desigualdades.

Mais atual do que nunca, busca-se uma resposta para questão: “quanto a sociedade está disposta a pagar para o SUS?”. A segurança do sistema pede a politização da população e a defesa da universalidade (Meniccuci, 2009MENICUCCI, T. M. G. O Sistema Único de Saúde, 20 anos: balanço e perspectivas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 25, n. 7, p. 1620-1625, 2009., p. 1625).

A esse conjunto de desafios somam-se as dificuldades de tornar o espaço correspondente ao território e à população, assim como a organização po­lítico-administrativa de um município equivalente a uma rede regionalizada e resolutiva de serviços (Aciole, 2012ACIOLE, G. G. Falta um pacto na saúde: elementos para a construção de um pacto ético-político entre gestores e trabalhadores do SUS. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 684-694, 2012.).

Nesse contexto, a conformação de territórios de base populacional e o fortalecimento das redes de saúde, diante da consolidação dos pactos e da mediação dos conflitos políticos entre as esferas de governo, tornam-se ações essenciais para a organização do sistema e para o atendimento às demandas de saúde.

Esse entendimento reforça a importância das redes de saúde para organizar, de forma integrada e sob a coordenação da atenção primária em saúde, os pontos de atenção, os sistemas de apoio, os sistemas logísticos e o sistema de governança (Mendes, 2013MENDES, E. V. 25 anos do Sistema Único de Saúde: resultados e desafios. Estudos Avançados, São Paulo, v. 27, n. 78, p. 27-34, 2013.).

O limite imposto por essa fragmentação foi reconhecido pela gestão pública desde 2002, que tem proposto pactos para superação da fragilidade na organização política do SUS, mas que, no entanto, não têm sido suficientes para enfrentar o problema. A disparidade existente entre a capacidade de governança dos municípios tem repercutido negativamente na organização do sistema de saúde.

Nas últimas décadas, o Ministério da Saúde tem adotado mecanismos para superar as tensões impostas por essa fragmentação, mediante pactos firmados entre as esferas de governo. Trata-se de mudanças que representam avanços na política de pactuação do SUS, mas que isoladamente não garantem o alcance dos resultados esperados (Guerreiro; Branco, 2011GUERREIRO, J. V.; BRANCO, M. A. F. Dos pactos políticos à política dos pactos na saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 3, p. 1689-1698, 2011.; Lima et al., 2012LIMA, L. D. et al. Descentralização e regionalização: dinâmica e condicionantes da implantação do Pacto pela Saúde no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 7, p. 1903-1914, 2012.).

É preciso, por isso, que se criem instrumentos para organização de um sistema de saúde resolutivo, integral e equânime, bem como espaços que estimulem debates e que fomentem a reformulação das responsabilidades sanitárias, redesenhando o modelo assistencial e consolidando campos permanentes de diálogo e construção do sistema de saúde, no sentido de ampliar a regionalização e a busca da equidade, mediante a organização de sistemas de saúde funcionais em todos os níveis de atenção, não necessariamente resumidos aos territórios municipais (Aciole, 2012ACIOLE, G. G. Falta um pacto na saúde: elementos para a construção de um pacto ético-político entre gestores e trabalhadores do SUS. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 684-694, 2012.).

Esse é cenário que aponta para a necessidade urgente de reforma e construção de políticas que superem o modelo de organização do sistema de saúde baseado no município, consolidando a regionalização, mediante conformação das redes de saúde.

Santos e Campos (2015SANTOS, L.; CAMPOS, G. W. S. SUS Brasil: a região de saúde como caminho. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 24, n. 2, p. 438-446, 2015.) despertam para a necessidade premente de debate sobre a institucionalidade do sistema de saúde do país. Propondo mudanças na organização do SUS, os autores centralizam a discussão em torno da conformação de robustas regiões de saúde, capazes de responder por pelo menos 95% das necessi­dades de saúde do território regional e de assegurar a autonomia sanitária.

Considerações finais

É preciso criar espaços de discussão dos principais aspectos que dificultam a consolidação do SUS, estudando as responsabilidades sanitárias e o papel das esferas de governo. Passados quase 30 anos, percebe-se que os debates devem apontar os caminhos necessários para o planejamento de políticas que superem os desafios atuais e futuros, mas que assegurem o direito social do cidadão de acesso universal à saúde.

Além disso, é fundamental superar o caráter formal das normas e das diretrizes instituídas desde a implantação do SUS, promovendo a articulação entre as três esferas de governo para que atuem em um coletivo capaz de consolidar as redes de saúde e de reduzir as desigualdades que marcam a sociedade brasileira.

Enfrentar o desafio do subfinanciamento do sistema de saúde, em um cenário de crise política e financeira, exige o resgate dos ideais que legitimaram o Movimento Sanitário Brasileiro. O momento exige uma ação de resistência, em defesa do SUS, para assegurar a garantia da universalidade, indiscutivelmente a maior conquista social da população brasileira.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2017

Histórico

  • Recebido
    24 Ago 2016
  • Revisado
    29 Nov 2016
  • Aceito
    06 Abr 2017
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br