A Política Nacional de Urgência e Emergência sob a Coordenação Federativa em Municípios Paraenses

National Policy of Urgency and Emergency under the Federal Coordination in Pará Municipalities, Brazil

Resumo

A Política Nacional de Atenção à Urgência e Emergência (PNAU) tem como objetivo intermediar a atenção básica e os serviços de média e alta complexidade. A pesquisa relatada neste artigo é sobre este panorama. Seu objetivo foi identificar as principais dificuldades de gestão pactuada da PNAU em dois principais municípios da Região Metropolitana de Belém-PA. Trata-se de pesquisa qualitativa básica com uso de documentos e entrevistas semiestruturadas com os principais gestores da política e das instituições de controle e fiscalização. Os resultados indicam dificuldades de coordenação federativa que impõem à política quatro condicionantes para que tenha eficiência: centralização, cooperação, financiamento, pactuação. Tais resultados revelam que seus objetivos como política ainda não foram alcançados. Conclui-se que a descentralização na área de saúde ainda não é eficiente quando se trata da política nacional de urgência e emergência. Isso se deve às dificuldades que os entes federativos enfrentam com a pactuação exigida e por questões políticas presentes no planejamento e gestão.

Palavras-chave:
Federalismo; Coordenação; Política de Saúde; Urgência e Emergência

Abstract

The National Policy of the Emergency Department (PNAU) aims to mediate primary care and medium and high complexity services. Which is the theme of this article’s research, that aimed to identify the main difficulties of PNAU agreed management in two main cities of the metropolitan region of Belém, Pará, Brazil. This is a basic qualitative research, which used documents and semi-structured interviews with the main managers of both the policy and control and supervision institutions. The results indicate federative coordination difficulties that impose four constraints to the policy to be efficient: centralization, cooperation, financing, and agreement. We conclude that decentralization in the health area is still not efficient when it comes to the national policy of urgency and emergency, due to the difficulties that federal entities face with the required pacts and political issues present in planning and management.

Keywords:
Federalism; Coordination; Health policy; Urgency and emergency

Introdução

Os sistemas públicos de caráter universalista têm como principal função garantir direitos; a saúde é um destes sistemas. No Brasil, consiste um dos grandes desafios aos formuladores e gestores das políticas públicas. A ineficiência dos serviços oferecidos dificulta a garantia dos direitos previstos constitucionalmente, entre outros fatores, pelas grandes disparidades entre as regiões do país (econômicas, sociais e logísticas).

No intuito de reduzir os vazios assistenciais e servir como interface entre a atenção básica e a média e alta complexidade, em 2003, foi criada a Política Nacional de Atenção às Urgências - PNAU (Brasil, 2003bBRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.863, de 29 de setembro de 2003. Institui a Política Nacional de Atenção às Urgências e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 6 out. 2003b. Disponível em: <Disponível em: http://bit.ly/2vbfGVz >. Acesso em: 18 set. 2017.
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). Esta também busca atender outras necessidades, como implantação dos sistemas de regulação e estruturação de uma rede regionalizada e hierarquizada. Tal regulamentação visa garantir atendimento integral aos pacientes, desde atenção básica até serviços de maior complexidade e meios adicionais de atenção, como o atendimento domiciliar (Granja et al., 2013GRANJA, G. F. et al. Análise da Política Nacional de Atenção às Urgências no SUS: avanços e desafios na efetivação das redes de atenção à saúde. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE POLÍTICA, PLANEJAMENTO E GESTÃO EM SAÚDE, 2., 2013, Belo Horizonte. Anais… São Paulo: Abrasco, 2013, p. 116.; Uchimura et al., 2015UCHIMURA, L. Y. T. et al. Unidades de Pronto Atendimento (UPAs): características da gestão às redes de atenção no Paraná. Saúde Debate, Rio de Janeiro, v. 39, n. 107, p. 972-983, 2015.).

Trabalho recente sobre política de urgência comparou o que foi planejado e o que foi executado, as características estruturais, o planejamento das unidades de pronto atendimento, o perfil dos usuários, a demanda, a capacidade de atendimento e os tipos de encaminhamento para a retaguarda hospitalar (Uchimura et al., 2015UCHIMURA, L. Y. T. et al. Unidades de Pronto Atendimento (UPAs): características da gestão às redes de atenção no Paraná. Saúde Debate, Rio de Janeiro, v. 39, n. 107, p. 972-983, 2015.). Os resultados indicaram que a falta de integração das Unidades de Pronto Atendimento 24 horas (UPA) com a rede de urgência estadual afeta diretamente a resolutividade das mesmas.

A estruturação da rede de atenção às urgências tem se mostrado organizada, como previsto nas normas da PNAU, porém as unidades de urgência estão sobrecarregadas em suas atividades (Granja et al., 2013GRANJA, G. F. et al. Análise da Política Nacional de Atenção às Urgências no SUS: avanços e desafios na efetivação das redes de atenção à saúde. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE POLÍTICA, PLANEJAMENTO E GESTÃO EM SAÚDE, 2., 2013, Belo Horizonte. Anais… São Paulo: Abrasco, 2013, p. 116.). A PNAU exige ação coordenada, pactuada e com a presença de comissões intergestores. No entanto, alguns estudos vêm indicando as discrepâncias na condução da política entre os estados que compõem as regiões brasileiras (Albuquerque; Sá; Araújo Júnior, 2016ALBUQUERQUE, T. I. P.; SÁ, R. M. P. F.; ARAÚJO JÚNIOR, J. A. C. Perspectivas e desafios da “nova” Política Nacional de Promoção da Saúde: para qual arena política aponta a gestão? Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 6, p. 1695-1705, 2016.; Machado et al., 2014MACHADO, C. V. et al. Federalismo e política de saúde: comissões intergovernamentais no Brasil. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 48, n. 4, p. 642-650, 2014.). Os estados do Norte e Nordeste do país foram apontados como os de menor capacidade de gestão.

Outros estudos têm mostrado que a abrangência e o alcance do planejamento não coincidem necessariamente com os limites do município (Albuquerque; Sá; Araújo Júnior, 2016ALBUQUERQUE, T. I. P.; SÁ, R. M. P. F.; ARAÚJO JÚNIOR, J. A. C. Perspectivas e desafios da “nova” Política Nacional de Promoção da Saúde: para qual arena política aponta a gestão? Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 6, p. 1695-1705, 2016.; Duarte et al., 2015DUARTE, L. S. et al. Regionalização da saúde no Brasil: uma perspectiva de análise. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 24, n. 2, p. 472-485, 2015.), o que envolve questões de federalismo, cuja base é a cooperação entre entes federados (Arretche, 2010ARRETCHE, M. Federalismo e igualdade territorial: uma contradição em termos? Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 53, n. 3, p. 587-620, 2010.).

No federalismo brasileiro, os municípios tiveram aumento de suas funções a partir da Constituição de 1988 (Arretche, 2010ARRETCHE, M. Federalismo e igualdade territorial: uma contradição em termos? Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 53, n. 3, p. 587-620, 2010.). Entretanto, o que se manifestou foi uma eficiência técnica abaixo do necessário para os novos papéis assumidos, tanto na gestão dos serviços quanto na capacidade de financiamento, continuando dependentes das transferências federais (Arretche; Marques, 2014ARRETCHE, M.; MARQUES, E. C. Condicionantes locais da descentralização das políticas de saúde. In: HOCHMAN, G.; ARRETCHE, M.; MARQUES, E. C. Políticas públicas no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2014. p. 173-204.).

A PNAU foi criada de forma regionalizada em regime de cogestão (pacto entre os três entes da federação). A baixa capacidade de gestão dos municípios e a pouca cooperação entre as três esferas de governo têm comprometido os resultados dessa política (Duarte et al., 2015DUARTE, L. S. et al. Regionalização da saúde no Brasil: uma perspectiva de análise. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 24, n. 2, p. 472-485, 2015.). Isto dificulta o alcance dos objetivos, que é atender aos princípios da universalidade e da equidade.

A baixa capacidade técnica e financeira dos municípios tem gerado comportamentos de maximização de benefícios individuais (município), mesmo em arenas decisórias que discutem e decidem sobre bens públicos e coletivos. Tal comportamento pode revelar um modelo federalista com influência negativa nos resultados da política pública. É um modelo que ao mesmo tempo em que transfere responsabilidades aos entes subnacionais, com autonomia para gestão de suas políticas, centraliza as principais decisões na esfera federal (Abrucio, 2005ABRUCIO, F. L. A cooperação federativa no Brasil: a experiência do período FHC e os desafios do governo Lula. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 24, p. 41-67, 2005.; Almeida, 2005ALMEIDA, M. H. T. Recentralizando a federação? Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 24, p. 29-40, 2005.; Arretche, 2010ARRETCHE, M. Federalismo e igualdade territorial: uma contradição em termos? Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 53, n. 3, p. 587-620, 2010.). Isso pode apontar para a maior presença de conflitos do que de cooperação federativa nas relações entre os entes federados.

A PNAU é uma política baseada em serviços descentralizados, em regime de gestão pactuada entre as três esferas de governo, tendo os municípios autonomia relativa (Granja et al., 2013GRANJA, G. F. et al. Análise da Política Nacional de Atenção às Urgências no SUS: avanços e desafios na efetivação das redes de atenção à saúde. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE POLÍTICA, PLANEJAMENTO E GESTÃO EM SAÚDE, 2., 2013, Belo Horizonte. Anais… São Paulo: Abrasco, 2013, p. 116.; Uchimura et al., 2015UCHIMURA, L. Y. T. et al. Unidades de Pronto Atendimento (UPAs): características da gestão às redes de atenção no Paraná. Saúde Debate, Rio de Janeiro, v. 39, n. 107, p. 972-983, 2015.). Nesse contexto, surge a questão que direcionou a pesquisa: quais as principais dificuldades de coordenação federativa na gestão da PNAU em municípios da Região Metropolitana de Belém-PA?

Parte da literatura que trata sobre política pública de saúde (Duarte et al., 2015DUARTE, L. S. et al. Regionalização da saúde no Brasil: uma perspectiva de análise. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 24, n. 2, p. 472-485, 2015.; Gomes et al., 2014GOMES, F. F. C. A. et al. Acesso aos procedimentos de média e alta complexidade no Sistema Único de Saúde: uma questão de judicialização. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 30, n. 1, p. 31-43, 2014.), especialmente sobre a PNAU, tem voltado atenção para seus principais entraves e desconsidera tanto a influência das decisões tomadas nas arenas políticas quanto as perspectivas de gestores e executores desta política, nas três esferas (Albuquerque; Sá; Arruda Junior, 2016ALBUQUERQUE, T. I. P.; SÁ, R. M. P. F.; ARAÚJO JÚNIOR, J. A. C. Perspectivas e desafios da “nova” Política Nacional de Promoção da Saúde: para qual arena política aponta a gestão? Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 6, p. 1695-1705, 2016.). A relevância da pesquisa é buscar revelar papéis e funções dos gestores, nas três esferas responsáveis pela gestão da política, além das dificuldades do formato dessa gestão (pactuação) e os conflitos políticos em seu interior. Estes são fatores a que a literatura nacional ainda tem dado pouca atenção.

Neste cenário de divisão de responsabilidades em relações permeadas por interesses políticos, nem sempre diretamente associados aos objetivos da política, é que se situa o objetivo da pesquisa, qual seja, identificar e descrever as principais dificuldades de gestão da PNAU nos maiores municípios da Região Metropolitana de Belém-PA.

Método e procedimento

Trata-se de pesquisa qualitativa básica, do tipo descritiva, sustentada em entrevistas com gestores dos serviços de saúde, nas três esferas de governo (municipal, estadual e federal). As entrevistas foram realizadas com representantes do Ministério da Saúde (em Brasília, DF), da Secretaria Estadual de Saúde e Secretarias Municipais de Saúde dos municípios de Belém e Ananindeua (nas sedes destes municípios).

Os municípios de Belém e Ananindeua foram selecionados por terem as maiores populações e densidades demográficas de seu estado. Também está concentrado nesses locais o maior número de equipamentos e serviços de saúde. Os dois integram a Região Metropolitana de Belém, a maior da Amazônia brasileira.

Quanto ao Ministério da Saúde, foi selecionado por ser o responsável pela elaboração da PNAU, e a Secretaria Estadual de Saúde por ser responsável pela coordenação e pelo pacto na gestão dos serviços, além de prestar o serviço de média e alta complexidade.

Os procedimentos de pesquisa desenvolveram-se em etapas, sendo: (1) levantamento bibliográfico e documental, elaboração dos instrumentos (roteiros de entrevistas e formulários), seleção e definição das pessoas a serem entrevistadas, unidades de pronto atendimento a serem estudadas; (2) entrevistas semiestruturadas e participação em reuniões e seminários relacionados ao tema; (3) organização dos resultados em matriz de análise específica para análise de informações qualitativas (Farias Filho; Arruda Filho, 2015FARIAS FILHO, M. C.; ARRUDA FILHO, E. J. M. Planejamento da pesquisa científica. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015.). O Quadro 1 mostra as instituições e seus responsáveis entrevistados, por função exercida, nas três esferas de governo pesquisadas.

Quadro 1
Entrevistados por esfera de governo, cargos e funções

Os conteúdos das entrevistas foram gravados e transcritos. Após isso, foram interpretados por meio da análise de conteúdo (Bardin, 2011BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.), cujas categorizações temáticas foram: (1) centralização das decisões pelo governo federal; (2) descentralização dos serviços de saúde; (3) cooperação entre esferas de governo; (4) pactuação da PNAU. Em seguida, os trechos mais representativos das entrevistas foram selecionados e apresentados para interpretação e confrontação com dados secundários.

Resultados e discussão

A implementação da PNAU revelou que existem, pelo menos, quatro condicionantes para que a política atinja os resultados estabelecidos em sua concepção. Estes são representados nos resultados pelas categorizações temáticas (centralização, cooperação, financiamento, pactuação) e apontam alguns fatores oriundos da diversidade da política no território nacional.

Na categoria centralização das decisões pelo governo federal, as informações sobre a tomada de decisão mostram que, embora a política seja concebida pelo Governo Federal, cabe aos municípios a decisão na implantação ou não das UPA.

Os municípios, ao implementar as unidades, são responsáveis pela definição do local e seu funcionamento. Os entrevistados revelaram que todas as decisões se deram nas arenas de pactuação das políticas de saúde: Comissão Intergestores Regionais - CIR, Comissão Intergestores Bipartite - CIB, e Comissão Intergestores Tripartite - CIT. No entanto, destacam que os critérios populacionais do Ministério da Saúde não atendem as necessidades dos municípios:

A princípio, dentro dos critérios populacionais, sim […]. Só que na prática hoje Ananindeua é dividida em cinco polos […]. Isso atende em partes a tua demanda, mesmo com essas quatro UPA seria necessário mais uma no polo três, que é o PAAR […], mas uma UPA ali para aquela população seria importante. Então fugiria do critério populacional? Sim. Mas justificaria por conta da demanda que hoje a unidade recebe (Secretário de Saúde de Ananindeua, Ananindeua-PA, julho/2015).

A eficiência de coordenação fica comprometida se levar em consideração estritamente os critérios estabelecidos pela União. Estes nem sempre atendem as necessidades das populações dos municípios. Neste caso, a PNAU mostra uma limitação. Locais com maiores necessidades ficam desassistidos por não atenderem ao critério populacional. Neste quesito, a resolutividade é limitada (Uchimura et al., 2015UCHIMURA, L. Y. T. et al. Unidades de Pronto Atendimento (UPAs): características da gestão às redes de atenção no Paraná. Saúde Debate, Rio de Janeiro, v. 39, n. 107, p. 972-983, 2015.), o que confirma a ideia de comprometimento na gestão, apontada em outros trabalhos e em outras regiões (Albuquerque; Sá; Araújo Júnior, 2016ALBUQUERQUE, T. I. P.; SÁ, R. M. P. F.; ARAÚJO JÚNIOR, J. A. C. Perspectivas e desafios da “nova” Política Nacional de Promoção da Saúde: para qual arena política aponta a gestão? Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 6, p. 1695-1705, 2016.; Machado et al., 2014MACHADO, C. V. et al. Federalismo e política de saúde: comissões intergovernamentais no Brasil. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 48, n. 4, p. 642-650, 2014.), sugerindo que os fatores negativos de concepção da PNAU refletem em qualquer região do país.

Quanto à descentralização dos serviços de saúde, os representantes da União e da esfera estadual enfatizam que os municípios são responsáveis pela organização. Ao Ministério da Saúde cabe o papel das contrapartidas financeiras e treinamento em alguns casos e, principalmente, expedir decretos e portarias para normatizar o serviço.

Os representantes dos municípios afirmam que os atos normativos que ditam as regras do serviço “engessam” os gestores, deixando-os com pouca mobilidade para implantar o serviço de acordo com a realidade local. Logo, adequar os instrumentos fornecidos pela União às demandas dos municípios se torna algo muito difícil, pelas limitações que a própria política impõe. Tal fato confirma o argumento de que a centralização na esfera federal (Abrucio, 2005ABRUCIO, F. L. A cooperação federativa no Brasil: a experiência do período FHC e os desafios do governo Lula. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 24, p. 41-67, 2005.; Almeida, 2005ALMEIDA, M. H. T. Recentralizando a federação? Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 24, p. 29-40, 2005.; Arretche, 2010ARRETCHE, M. Federalismo e igualdade territorial: uma contradição em termos? Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 53, n. 3, p. 587-620, 2010.) compromete, de alguma forma, a autonomia dos municípios na gestão de políticas públicas, e a PNAU se enquadra nessa categoria de autonomia relativa dos municípios na gestão de políticas de caráter descentralizado.

Outro destaque dado pelo representante de Belém é sobre a capacidade instalada do município que atende a maior parte de outros municípios do estado do Pará. Ele argumenta que a estrutura física não é suficiente para comportar os instrumentos da Rede de Urgência e Emergência, de maneira a atender satisfatoriamente a população:

Então teoricamente eu tenho a política contemplada em todos os níveis de atenção, o problema é que eu não tenho estrutura física, e a capacidade instalada fala muito contra o atendimento, porque a demanda para a urgência e emergência é muito grande (Diretor do DEUE/SESMA. Belém-PA, outubro/2015).

A situação exposta pelo entrevistado revela o que Arretche e Marques (2014)ARRETCHE, M.; MARQUES, E. C. Condicionantes locais da descentralização das políticas de saúde. In: HOCHMAN, G.; ARRETCHE, M.; MARQUES, E. C. Políticas públicas no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2014. p. 173-204. sustentam sobre a dependência dos municípios em relação aos demais entes federativos, sobretudo financeiramente. Como ente federado, o município tem o mesmo status jurídico da União e dos estados (Abrucio, 2005ABRUCIO, F. L. A cooperação federativa no Brasil: a experiência do período FHC e os desafios do governo Lula. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 24, p. 41-67, 2005.), porém é a parte mais frágil em políticas como a PNAU. Assim, o embate nas arenas de decisão política, princípio da democracia e do federalismo, vem se mostrando um desafio para a gestão da PNAU.

Na categoria cooperação entre esferas de governo, os resultados revelam que a esfera federal tem cumprido seu papel de financiador do sistema. Já a esfera estadual cumpre parcialmente os acordos: tem oferecido os treinamentos para os funcionários das unidades de pronto atendimento, porém com histórico de longos atrasos dos repasses para os municípios.

As decisões tomadas nas arenas decisórias (CIB, CIR e CIT) não têm sido respeitadas, sobrecarregando o município de Belém. Muitos outros que não participam do pacto encaminham pacientes para as unidades de saúde de Belém. Por outro lado, alguns municípios que fazem parte da pactuação encaminham pacientes para estas unidades sem os requisitos necessários. Isto tem culminado em ações judiciais contra os gestores e profissionais de outros municípios, como relata o representante da Secretaria Municipal de Saúde de Belém:

Nós temos passado para um outro nível que é o de notificar os Ministérios Públicos estaduais e municipais por encaminhamentos irresponsáveis que nós recebemos de pacientes. O município (de origem do paciente) não dá nenhuma resolutividade, não dá nenhuma estabilização (Diretor do Departamento de Urgência e Emergência da SESMA, Belém-PA, outubro/2015).

Os problemas de não cooperação entre as esferas de governo têm acentuado a entrada da esfera judicial na gestão de políticas, como destaca o representante do Ministério Público Estadual:

Quando o paciente vem para Belém, principalmente quando ele não vem regulado, ele tem acesso ao atendimento através das unidades de saúde, principalmente prontos-socorros e UPA. Quando acontece algum problema, é dito que o problema está em Belém, mas, na verdade, muitos pacientes vêm sem que o município tenha pactuado a saúde com Belém. Ele [município] não presta atendimento, não faz a sua parte. Os municípios infelizmente preferem comprar ambulância do que prestar a Atenção Básica (Promotora de Assuntos Constitucionais do Ministério Público do Pará, Belém-PA, julho/2015).

Quanto à cooperação para a gestão da Rede foram identificados quatro tipos de relações: (1) entre os componentes da Rede de Urgência Emergência - RUE; (2) entre os municípios; (3) entre município a esfera estadual; (4) entre esfera estadual e União.

Entre os componentes da RUE, falta articulação. Na União, a atenção básica e na RUE são departamentos distintos, e isto configura um distanciamento no planejamento de ambos. Isso também é percebido entre os componentes da RUE no âmbito do município. A esfera municipal não conta com sistema de informações que integrem os componentes da Rede com informações sobre histórico e encaminhamento de pacientes.

Entre os municípios, a relação vem se mostrando não cooperativa, conforme demonstrado pelo entrevistado. Tal fato evidencia o que autores vêm sustentando como característica do federalismo brasileiro, qual seja, pouca cooperação entre os entes (Abrucio, 2005ABRUCIO, F. L. A cooperação federativa no Brasil: a experiência do período FHC e os desafios do governo Lula. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 24, p. 41-67, 2005.), o que tem acirrado o jogo nas arenas decisórias que discutem bens públicos (Abrucio, 2005ABRUCIO, F. L. A cooperação federativa no Brasil: a experiência do período FHC e os desafios do governo Lula. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 24, p. 41-67, 2005.; Almeida, 2005ALMEIDA, M. H. T. Recentralizando a federação? Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 24, p. 29-40, 2005.; Arretche; Marques, 2014ARRETCHE, M.; MARQUES, E. C. Condicionantes locais da descentralização das políticas de saúde. In: HOCHMAN, G.; ARRETCHE, M.; MARQUES, E. C. Políticas públicas no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2014. p. 173-204.). Embora, em alguns casos, os serviços sejam pactuados, os municípios não cumprem as condições estabelecidas durante as negociações prévias. Isso compromete ainda mais a oferta dos serviços em quantidade e qualidade projetadas.

No que diz respeito à relação entre municípios e esfera estadual, a segunda vem cooperando com os primeiros quando se trata do suporte de treinamento dos funcionários da Rede. Contudo são constantes os relatos de atraso de recursos financeiros.

Já entre esfera estadual e União, não houve relato de problemas de coordenação, o que revela maior entrosamento entre as esferas federal e estadual e menor entre federal e municipal, conforme afirmativa do representante do Ministério da Saúde:

Eu acho que o grande problema hoje na implementação da Rede são principalmente os municípios, porque o Estado, a gente tem todo o apoio pra qualquer componente. Acho que o problema ainda são as gestões municipais (Analista Técnica do SAMU 192 do MS, Brasília-DF, junho/2015).

Então você tem municípios grandes no estado, municípios com peso, quando você vê a área estadual bem organizada e quando você parte para área que é do município você já vê essa certa dificuldade neles de conseguirem se organizar […]. Você vê uma gestão estadual já mais qualificada, mas uma gestão municipal ainda com dificuldades para conseguir fazer essa organização. E é uma coisa que não é de hoje e não é de um dia para o outro que você vai conseguir modificar (Analista Técnica do SAMU 192 do MS, Brasília-DF, junho/2015).

Entre os municípios, a falta de cooperação é sentida nas arenas decisórias quanto ao não cumprimento das pactuações. Tal fato demonstra as dificuldades das relações intergovernamentais e uma relação predatória em torno dos recursos federais, como sugerido por Machado et al. (2014)MACHADO, C. V. et al. Federalismo e política de saúde: comissões intergovernamentais no Brasil. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 48, n. 4, p. 642-650, 2014., o que reflete a baixa capacidade de gestão em regiões como Norte e Nordeste (Albuquerque; Sá; Araújo Júnior, 2016ALBUQUERQUE, T. I. P.; SÁ, R. M. P. F.; ARAÚJO JÚNIOR, J. A. C. Perspectivas e desafios da “nova” Política Nacional de Promoção da Saúde: para qual arena política aponta a gestão? Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 6, p. 1695-1705, 2016.).

Quanto aos entraves nas três esferas de gestão (federal, estadual e municipal), eles aparecem tanto na concepção da política, quanto no financiamento e gestão das Unidades de Pronto Atendimento. Isto influencia diretamente nos resultados da política, ocasionando, muitas vezes, a judicialização do serviço de saúde pela não prestação de atendimentos por parte do estado e dos municípios, conforme já relatado por Gomes et al. (2014)GOMES, F. F. C. A. et al. Acesso aos procedimentos de média e alta complexidade no Sistema Único de Saúde: uma questão de judicialização. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 30, n. 1, p. 31-43, 2014..

Este fato foi revelado por outra instituição envolvida na política, o Conselho Municipal de Saúde (CMS). Segundo seu representante, as demandas do município são superiores à capacidade de envolvimento do Conselho, que, ainda assim, tem feito seu papel na fiscalização, e todas as ações da Secretaria Municipal de Saúde passam pelo Pleno do Conselho:

Nós encontramos muita dificuldade com a judicialização da saúde, um dos pontos. O outro ponto é que todos os conselheiros, independente de trabalhador, usuário ou gestor, eles não têm uma remuneração por serem conselheiros de saúde […]. A nossa participação é de 95% [frequência nas reuniões]. Os conselheiros quase não faltam pela responsabilidade que têm com a saúde no município (Presidente do Conselho Municipal de Saúde de Belém, Belém-PA, agosto/2015).

Depois que nós assumimos, toda e qualquer ação da Secretaria de Saúde tem que passar neste Pleno […]. Nós temos um cronograma de fiscalização, a cada dois meses sai uma equipe de conselheiros de saúde para fiscalizar (Presidente do Conselho Municipal de Saúde de Belém, Belém-PA, agosto/2015).

No tocante à judicialização da saúde, o que exige mais cooperação e articulação dos participantes na gestão, a Promotora de Assuntos Constitucionais relata a ineficiência do Conselho nos casos envolvendo reclamações da população quanto ao acesso aos serviços de saúde no município:

Eu recebi aqui no gabinete a presença de dois conselheiros do Conselho Municipal de Saúde e eu coloquei a eles que o Conselho não tem feito muito esse papel, mas o que nós temos feito: quando vem uma reclamação, em termos de unidade de saúde, nós temos solicitado que o Conselho Municipal de Saúde faça essa fiscalização (Promotora de Assuntos Constitucionais, Saúde e Educação do Ministério Público do Pará, julho/2015).

A concepção da política foi destacada pelos representantes da Secretaria de Saúde do Estado, Secretarias de Saúde dos municípios de Belém e Ananindeua como entrave que compromete toda a Rede. A elaboração da PNAU não considerou a estrutura pré-existente do município, sobretudo a Atenção Básica, que é a porta do sistema de saúde:

Então, teoricamente eu tenho a política contemplada em todos os níveis de atenção, o problema é que eu não tenho a estrutura física e a capacidade instalada, porque a demanda de serviços de urgência e emergência é muito grande, 70% dos casos de internação hospitalar deviam ser evitados se tivessem sido retidos na Atenção Primária (Diretor do DEUE/SESMA, Belém-PA, outubro/2015).

A categoria financiamento foi outro aspecto abordado pelos entrevistados. Os diretores das UPA de Ananindeua que recebem a contrapartida do estado comentaram:

O estado está com o repasse atrasado e, pela grande demanda de atendimento que nós temos, isto vira uma bola de neve. Se não tem o repasse, não tem como comprar. Se fosse repassado pelo menos o que foi previsto talvez a gente tivesse uma boa solução para os problemas que a gente encontra dentro da unidade (Diretora da UPA, Ananindeua, PA, julho/2015).

O município de Ananindeua conta com a coparticipação da esfera estadual para o custeio das UPA. No entanto, Belém não tem esta contrapartida, apenas o apoio no treinamento e capacitação de recursos humanos. Outros estados sequer contam com esses tipos de participação, como é o caso do Paraná, em que a esfera estadual não participa do financiamento das unidades nem presta qualquer tipo de suporte de treinamento (Uchimura et al., 2015UCHIMURA, L. Y. T. et al. Unidades de Pronto Atendimento (UPAs): características da gestão às redes de atenção no Paraná. Saúde Debate, Rio de Janeiro, v. 39, n. 107, p. 972-983, 2015.).

Em se tratando de regras formais, os entrevistados do Ministério da Saúde destacam que, quanto ao papel da esfera estadual, a falta de previsibilidade dificulta o entendimento sobre suas reais competências (indução, financiamento ou execução). Isso é refletido nos municípios, que, com a descentralização dos serviços de saúde, ficaram sobrecarregados de responsabilidades.

Embora não haja previsão do papel da esfera estadual na política de urgência, a presença desta é necessária para estabelecer os critérios de localização. Argumentos favoráveis (Uchimura et al., 2015UCHIMURA, L. Y. T. et al. Unidades de Pronto Atendimento (UPAs): características da gestão às redes de atenção no Paraná. Saúde Debate, Rio de Janeiro, v. 39, n. 107, p. 972-983, 2015.) sugerem que a política de urgência é pensada de forma regionalizada, o que faz da esfera estadual um participante para dar suporte à média e alta complexidade.

De acordo com a Portaria nº 342/2003 (Brasil, 2003aBRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 342, de 4 de março de 2003. Redefine as diretrizes para implantação do Componente Unidade de Pronto Atendimento (UPA 24h) em conformidade com a Política Nacional de Atenção às Urgências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 4 mar. 2003a. Seção 1, p. 182.), o custeio das UPA novas e ampliadas é feito entre União, estados e municípios. Os recursos repassados pelo Ministério da Saúde devem ser complementados pelos estados e municípios, porém condicionados às pactuações estabelecidas em CIB, sem a fixação de participação financeira da esfera estadual.

As UPA de Ananindeua têm pactuado esta contrapartida com a esfera estadual. O município de Belém não tem dado contrapartida integral da forma como prevista na política, mas feito apenas a complementação dos recursos federais para subsidiar as UPA, e ainda de forma parcial.

Na gestão financeira, foram apontados os três maiores entraves para o melhor funcionamento da rede de serviço da PNAU:

  1. defasagem da tabela do SUS: representantes das três esferas confirmam a necessidade de atualização da tabela de procedimentos do SUS, defasada há dez anos. A situação é agravada pelo aumento da população neste período;

  2. atraso nos repasses da esfera estadual para os municípios: a arrecadação do estado não acompanha os repasses e, embora as responsabilidades da União e do estado tenham sido cumpridas, não são suficientes em virtude do alto custo;

  3. dependência dos municípios dos recursos federais: inviabiliza a implantação da rede de urgência e a manutenção dos serviços de saúde.

Entretanto há outra dificuldade da política na categoria financiamento: a contratação e retenção de profissionais da saúde, sobretudo médicos. O principal motivo é financeiro, porque a baixa remuneração é um limite para contratação e retenção de profissionais qualificados, o que revela a desatualização dos valores pagos por procedimentos realizados pelo SUS como outro entrave de gestão financeira.

Quanto à categoria pactuação, as políticas de saúde estabelecidas nas CIB, CIR e CIT poderiam reduzir as limitações de contrapartidas. No entanto, nos municípios pesquisados, as decisões tomadas nessas instâncias não são cumpridas pelos gestores que participam delas. Adicionado a isso, entraves administrativos (baixa qualificação profissional, carência de insumos, baixa capacidade instalada) afetam decisivamente a coordenação da política nacional. Tais evidências contrariam, em parte, os argumentos de Granja et al. (2013)GRANJA, G. F. et al. Análise da Política Nacional de Atenção às Urgências no SUS: avanços e desafios na efetivação das redes de atenção à saúde. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE POLÍTICA, PLANEJAMENTO E GESTÃO EM SAÚDE, 2., 2013, Belo Horizonte. Anais… São Paulo: Abrasco, 2013, p. 116. de avanços apontados na PNAU. Para estes autores, a política é bem sucedida e tem recebido os investimentos de infraestrutura e em recursos humanos. É possível que isso ocorra em regiões mais desenvolvidas do país, mas não é o caso da região estudada.

O fortalecimento dos instrumentos que buscam reduzir os entraves das políticas ocorreria, para Machado et al. (2014)MACHADO, C. V. et al. Federalismo e política de saúde: comissões intergovernamentais no Brasil. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 48, n. 4, p. 642-650, 2014.: pela expansão de novas tecnologias em estados, principalmente aqueles com barreiras geográficas; pelo apoio às instâncias técnicas permanentes de negociação; pela reformulação da representatividade das CIB e o fortalecimento das instâncias regionais de articulação. Granja et al. (2013)GRANJA, G. F. et al. Análise da Política Nacional de Atenção às Urgências no SUS: avanços e desafios na efetivação das redes de atenção à saúde. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE POLÍTICA, PLANEJAMENTO E GESTÃO EM SAÚDE, 2., 2013, Belo Horizonte. Anais… São Paulo: Abrasco, 2013, p. 116. também reforçam a ideia de fortalecer o sistema com mecanismo de regulação, de organizar a governança regional e a decisão conjunta e cooperativa entre os três entes.

As ações de treinamento e capacitação dos integrantes da RUE são feitas tanto por meio de ações do Ministério da Saúde quanto pelo Governo do estado do Pará, pela Escola de Governança Pública. Contudo a maior dificuldade neste quesito é convencer os servidores a se qualificarem para trabalhar no novo arranjo da RUE, como afirmam os representantes do Ministério da Saúde e da Secretaria de Estado de Saúde:

Não é fácil trabalhar com gestão e trabalhar com profissionais que estão com aquela ideia arraigada de que “eu me formei há muito tempo e continuo”. Não, as coisas vão mudando. Sensibilizar o profissional é muito difícil (Analista Técnica das “Portas de Entrada” do MS, Brasília-DF, junho/2015).

O que nós temos oferecido são as capacitações, mas eles [municípios] não têm manifestado muito interesse com relação a isso. Eu acho uma coisa importante porque os profissionais médicos que trabalham nas UPA são pessoas que nãom muito traquejo com urgência e emergência (Representante da SESPA, Belém-PA, agosto/2015).

A falta de interesse de alguns gestores dos municípios para aderirem aos treinamentos é fator limitador da qualificação dos participantes da Rede e gera, consequentemente, falhas de coordenação das ações em saúde, como já argumentado por Arretche e Marques (2014)ARRETCHE, M.; MARQUES, E. C. Condicionantes locais da descentralização das políticas de saúde. In: HOCHMAN, G.; ARRETCHE, M.; MARQUES, E. C. Políticas públicas no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2014. p. 173-204.. Isto é agravado pelo fato de grande parte dos médicos das urgências ser oriunda da Atenção Básica, faltando adequação para atuarem no atendimento das urgências. O resultado: muitos encaminhamentos errados e baixa resolutividade de casos que poderiam ser sanados nas próprias urgências.

A infraestrutura dos componentes relacionados à política não tem acompanhado o que tem sido planejado. As principais dificuldades são atenção básica (número de leitos de retaguarda e leitos de especialidades). Estas são demonstradas na situação dos equipamentos hospitalares (Tabela 1).

Tabela 1
Equipamentos hospitalares de Belém e Ananindeua - 2012 a 2014*

Embora a PNAU contemple todos os níveis de atenção, a estrutura física da Rede e a capacidade instalada não são suficientes para atender a demanda. Como solução para o problema entre o planejamento e a capacidade de atendimento da capital, alguns dos entrevistados destacaram a necessidade de revisão da pactuação no nível estadual, descentralizando alguns atendimentos que são feitos exclusivamente na capital, como aponta o representante da Secretaria de Saúde de Belém:

A PPI [Programação Pactuada Integrada] que está sendo discutida e que vai ser revista não contemplou aquilo que Belém tem capacidade de atender […]. O fato é que quando você fecha a pactuação dessas com todos os municípios você não consegue atender em pleno as necessidades das pessoas. Então a PPI além do recurso não ser correspondente ao nosso custo com os outros municípios, ela não reflete a capacidade instalada que o município tem para a prestação de todos esses serviços (Diretor da DEUE/SESMA, Belém-PA, outubro/2015).

Na Atenção Básica ficou evidente que este é um dos pontos de maior influência nos resultados das UPA. Ao habilitar-se para receber as unidades, o gestor municipal atesta que tem, no mínimo, 50% de cobertura da atenção básica em seu município, conforme exigência da Portaria nº 2.820/2011 (Brasil, 2011BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.820, de 28 de novembro de 2011. Dispõe sobre o incentivo financeiro de investimento para o Componente Unidade de Pronto Atendimento (UPA 24h). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 30 nov. 2011. Seção I, p. 113.).

Os dados do Ministério da Saúde sobre a atenção básica confirmam que, entre 2012 a 2014, o município de Belém tinha cobertura de atenção básica (agentes comunitários de saúde e equipes de saúde da família) inferior ao exigido, enquanto o município de Ananindeua cumpriu a exigência.

A relação entre atenção básica e unidade de urgência apresenta diversas dificuldades, especialmente baixa resolutividade, que leva ao agravamento do quadro dos pacientes que procuram atendimento de urgência. Isto sobrecarrega as UPA com atendimentos fora do perfil de urgência. Em trabalho recente, Uchimura et al. (2015)UCHIMURA, L. Y. T. et al. Unidades de Pronto Atendimento (UPAs): características da gestão às redes de atenção no Paraná. Saúde Debate, Rio de Janeiro, v. 39, n. 107, p. 972-983, 2015. mostraram resultados semelhantes, o que indica que a atenção básica não tem atendido sua demanda, não somente nos municípios pesquisados.

Outro problema para a gestão da PNAU é a insuficiência de leitos. Os municípios de Belém e Ananindeua, os maiores do estado, concentram o maior número de leitos do Pará (Tabela 2). Considerando o total de leitos existentes e de habitantes, no período de 2012 a 2014, o estado do Pará manteve uma média de 1 leito para um grupo de 509 habitantes. No município de Ananindeua, a média foi de 1 leito para um grupo de 498 habitantes e, em Belém, de 1 leito para um grupo de 317 habitantes.22BRASIL. Ministério da Saúde. Departamento de Informática do SUS. Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), 2016. Disponível em: <http://cnes.datasus.gov.br>. Acesso em: 18 set. 2017.

Tabela 2
Leitos hospitalares em Belém, Ananindeua e Pará - 2012 a 2014

A carência de leitos influencia diretamente no tempo de permanência dos pacientes na observação das UPA, que deveria ser de 24 horas. As diretoras das UPA afirmam que muitos pacientes, sobretudo os que aguardam leitos especializados, chegam a ficar até trinta dias nas unidades. Isso confirma o que foi encontrado por Uchimura et al. (2015)UCHIMURA, L. Y. T. et al. Unidades de Pronto Atendimento (UPAs): características da gestão às redes de atenção no Paraná. Saúde Debate, Rio de Janeiro, v. 39, n. 107, p. 972-983, 2015., que apresentam a deficiência de leitos e a dificuldade de gestão do sistema de regulação do tempo de permanência nas unidades, pela não liberação de leitos, sobretudo leitos com especialidades.

O Ministério da Saúde informa que, embora ainda haja déficit de leitos especializados no estado do Pará, houve melhora significativa com a estruturação da regulação estadual:

Com essa implantação da regulação, o estado [Pará] tem ciência dos leitos. Isso para nós foi um avanço extremamente importante. Então o desenho hoje é o da necessidade de leito especializado (Analista técnico das Portas de Entrada do CGUE/MS, Brasília/DF, junho/2015).

Os entrevistados no Ministério da Saúde afirmam que a política de urgência não se apresenta de forma uniforme em todos os estados da federação. Para estes, embora o Pará conviva com subjetividades como, por exemplo, grande extensão territorial, tem colaborado com o governo federal buscando articular os municípios para implementação das políticas de saúde.

Os resultados sobre falhas de coordenação na relação federalista, no contexto da PNAU, indicam a baixa autonomia dos municípios na gestão da política e a falta de coordenação entre os componentes da rede. Os entraves encontrados na articulação entre os três níveis de governo se mostraram como o grande desafio para a PNAU atingir seus objetivos.

Conclusão

A descentralização política e financeira transferiu responsabilidades e poderes para outras esferas, tornando-as aparentemente mais importantes. Tal fato não conseguiu reduzir as desigualdades regionais no que se refere à PNAU.

A elaboração de políticas universais que alcancem grande parte da população e atinjam os objetivos almejados encontra, pelo menos, dois limitadores: dificuldades de gestão pactuada e ineficiente coordenação entre as esferas de governo envolvidas.

Buscando maximizar resultados de seus municípios, alguns gestores optam por não cumprir os pactos preestabelecidos para a política. Assim, encaminham pacientes sem prévia pactuação ou transferem para a capital, em razão da melhor estrutura de atendimento.

As regras formais segundo as quais as políticas são elaboradas não têm sido suficientes para diminuir a distância entre o planejamento e a execução do serviço. Isto porque o caminho é permeado por regras informais ignoradas no planejamento inicial. Questões políticas e interesses individuais têm influenciado negativamente o atendimento na rede de urgência.

O resultado é a ineficiente coordenação das políticas de saúde nos três níveis de governo. Mesmo tendo a oportunidade de pactuar e coordenar suas ações, elas ainda não conseguem minimizar as grandes dificuldades de coordenação.

O direito a saúde tem sido representado como um sistema com “muros”, muitos deles quase que intransponíveis para o cidadão comum. O desafio é garantir direitos fundamentais a toda a população por meio de políticas mais eficientes, a partir de sua gestão.

Mais evidências sobre estes problemas podem ser geradas a partir de novos estudos que tratem especificamente do jogo político presente nas arenas decisórias, especialmente na distribuição dos recursos, buscando com isso identificar as principais influências negativas nos resultados das políticas públicas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2017

Histórico

  • Recebido
    28 Jan 2017
  • Revisado
    12 Maio 2017
  • Aceito
    17 Ago 2017
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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