Entrevista com José Ricardo Ayres

Interview with José Ricardo Ayres

José Ricardo Ayres Marcelo Eduardo Pfeiffer Castellanos Tatiana Wargas de Faria Baptista Sobre os autores

Resumo

Nesta entrevista à revista Saúde e Sociedade, José Ricardo Ayres conta como se aproximou do conceito de vulnerabilidade, das vantagens e perigos presentes em seu emprego, situando-o na saúde coletiva e na conjuntura científica, sanitária e política brasileira. Pensando nos estudos sobre a epidemia de aids, ele destaca diferenças nas ênfases dadas ao conceito no Brasil e nos Estados Unidos da América (EUA). Enquanto nos EUA a ênfase recaiu sobre o eixo da ética e do direito, fomentando ações jurídicas reivindicatórias perante o Estado, no Brasil enfatizou-se uma perspectiva crítica sobre o caráter tecnocrático das políticas públicas e sobre o autoritarismo dos saberes operados pela saúde pública, buscando relações mais dialógicas com os movimentos sociais em um contexto de lutas pela (re)construção de um Estado de direito democrático, em pleno processo de reabertura política no Brasil. A articulação entre vulnerabilidade e aportes específicos da teoria do reconhecimento, segundo Ayres, reforça a análise das relações entre intersubjetividades e contextos sociais, diálogos e conflitos, ações e estruturas sociais. Para ele, devemos considerar a dialética das representações, das interações e do trabalho como forma de construção do mundo de relações em que nos inscrevemos, rompendo assim com a ideia de que o indivíduo é uma “mônada” que atua sobre o mundo como algo meramente externo ou que age segundo imperativos sociais sem possibilidade de transformação da realidade. Desse modo, evitamos a naturalização da vulnerabilidade, quando tomada como característica intrínseca dos sujeitos, o que neutralizaria o interesse analítico e político desse conceito.

Palavras-chave:
Vulnerabilidade; Teoria do Reconhecimento; Saúde Coletiva; Aids

Abstract

In this interview to the magazine Health and Society, José Ricardo Ayres explains how he approached the concept of vulnerability and of the advantages and dangers present in its application, situating it amidst the public health and in the academic, sanitary and political contexts. Taking the studies on the AIDS epidemic into consideration, he highlights differences in the emphasis given to the concept in Brazil and in the United States of America (USA). While in the U.S. the emphasis fell on the axis of ethics and law, fostering legal actions before the State, Brazil emphasized on a critical perspective of the technocratic aspect of public policies and on the authoritarianism of knowledge possessed in public health, seeking more dialogical relations with social movements in a context of struggles for the (re)construction of a democratic constitutional State, while occurred a process of reopening politics in Brazil. The relationship between vulnerability and specific contributions of recognition theory, according to Ayres, strengthens analysis of relations between intersubjectivities and social contexts, dialogue and conflict, actions and social structures. For him, we must consider the dialectic of representations, of interactions and of work as a way of construction of the world of relationships where we found ourselves, thus rupturing from the idea that the individual is a “Monad” that acts upon the world as something merely external or that acts according to social imperatives without possibility of transformation of reality. In this way, we avoid the naturalization of vulnerability when considering it as an intrinsic characteristic of the subjects, which would neutralize the analytical and political interest of this concept.

Keywords:
Vulnerability; Recognition Theory; Public Health; AIDS

Marcelo Castellanos: O mundo e particularmente o Brasil estão em um processo de transformação com clara tendência conservadora e de acentuação das desigualdades sociais e das desigualdades em saúde. Você tem trabalhado com o conceito de vulnerabilidade a partir de uma perspectiva teórica que surgiu nos estudos sobre HIV/aids de maneira bastante sensível ao contexto dos direitos humanos. Que contribuições tal perspectiva traz para a compreensão dos processos de vulnerabilização e seus impactos para a saúde, particularmente em contextos marcados por fortes desigualdades sociais, como aqueles presentes no Brasil?

José Ricardo Ayres: A discussão da vulnerabilidade, quando ela surgiu, especialmente por conta da epidemia de HIV, trouxe uma coisa muito interessante, que talvez seja mesmo resultado de um momento, de uma época e também dos grupos que foram primeiro afetados pela epidemia, o que propiciou uma perspectiva crítica bastante forte. Ao mesmo tempo em que a aids se configurava como um problema de saúde pública, uma parte da população que estava sendo atingida por aquele problema inicialmente, a comunidade gay organizada, muito mobilizada, pôde ter uma interação com a área técnica e científica da saúde relativamente inédita, porque fazia tempo que a gente não tinha uma interação tão estreita entre um grupo populacional afetado por um problema de saúde e técnicos tentando buscar juntos uma solução para ele. E acho que isso foi um diferencial importante.

O organismo das Nações Unidas que conduz o programa mundial de aids nasceu de uma coalizão que foi exatamente a expressão disso: acadêmicos, ativistas, gestores de todas as partes do mundo, tentando discutir o que estava acontecendo e buscar juntos uma solução. Acho que isso fez toda a diferença. No caso do Brasil, quando a aids chegou aqui, nós estávamos em pleno processo de redemocratização, num ambiente bastante sensível à questão social, sensível aos direitos e já encontrando um movimento dentro da academia que pensava criticamente os conceitos de saúde. Então, por exemplo, foi bastante facilitador o fato de que havia no Brasil o movimento que Naomar11Naomar de Almeida Filho é professor titular de Epidemiologia no Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia. Foi reitor da UFBA de 2002 a 2010 e presidente da Comissão de Implantação e Reitor pro-tempore da Universidade Federal do Sul da Bahia. chama de teoria crítica da Epidemiologia, que tornou possível, como na minha própria experiência, fazer um link muito rápido entre o que a gente estava identificando como limites da Epidemiologia na sua relação com as práticas de saúde pública, mais tradicionais, e as possibilidades de reconstrução que essa discussão da vulnerabilidade vinha trazendo. Então, a gente pôde muito rapidamente transitar de um aparato técnico-científico mais tradicional para responder à epidemia de aids para um novo aparato conceitual, incorporando a vulnerabilidade, trazendo junto com ela a questão da importância do contexto, da voz das pessoas envolvidas, acometidas por um problema, e, muito particularmente, a importância de um pensar junto, de forma não segmentada, não separada, o modo como os serviços e os instrumentos do processo de trabalho em saúde estavam sendo efetivamente operados. Porque isso costumava se dar de forma separada, você fazia o diagnóstico da situação de saúde e depois você fazia a encomenda para as políticas, para os serviços. Mas com a vulnerabilidade se pensava que as políticas e os serviços eram parte da questão, parte do contexto a ser considerado e que poderiam, inclusive, não só produzir respostas positivas, mas eventualmente serem obstáculos a essas respostas se não fossem reconstruídos, se não fossem repensados. Isso foi tão forte no Brasil que chegou a surpreender o grupo da Universidade de Harvard, mais envolvido na primeira formulação do quadro da vulnerabilidade, no princípio dos anos 1990, porque justamente nossa tradição crítica dentro do campo da saúde coletiva, nossos impulsos reconstrutivos e o cenário que a gente vivia aqui, de redemocratização, de ampla mobilização social, tudo isso permitiu que investíssemos no aspecto conceitual do quadro da vulnerabilidade de um modo que não ocorreu por lá. Nos Estados Unidos, a vulnerabilidade virou uma espécie de horizonte ético para se avaliar as políticas de saúde, especialmente na sua relação com os direitos das pessoas. Mas eles não se detiveram na questão de quais eram os recursos conceituais e tecnológicos que estavam sendo utilizados nessas práticas e seus efeitos. Então, a Epidemiologia, por exemplo, ficava lá meio que intocada, no seu lugar habitual. Quando eles conheceram essa nossa perspectiva de rever criticamente os próprios conceitos epidemiológicos no modo como eram efetivamente postos em prática na saúde pública, reconheceram se tratar de uma novidade. Eu lembro que quando começamos a dialogar com professores de lá, como a Sofia Gruskin, o Daniel Tarantola, a ênfase do recurso ao quadro da vulnerabilidade era a relação com os direitos […] no sentido de garantir que as pessoas pudessem acionar o Estado quando algum direito não estivesse sendo protegido ou promovido e, portanto, tornando as pessoas mais vulneráveis ao HIV. Eles tinham dificuldade, por exemplo, de entender que para a gente os direitos eram também a construção de bandeiras de luta política, inclusive dentro da academia e dos serviços. Levou um certo tempo para que a gente conseguisse se entender mais claramente, porque isso não fazia muito sentido para eles. No começo havia até um certo ceticismo por parte deles: “Será que vocês não vão esvaziar o que há de mais importante na questão do direito, que é a cobrança do compromisso do Estado?”. Mas se tratava naquele contexto de reconstruir o próprio Estado brasileiro! Quando a gente pensa no contexto atual, em que a gente está vivendo justamente um inverso daquele momento, quer dizer, um retrocesso político, a perda de direitos, uma série de voltas para trás, é que se torna mais importante a gente retomar a perspectiva crítica, porque nós precisamos organizar reações, nós precisamos organizar resistências, e aí, a partir da academia, embora a gente saiba dos seus limites, buscar quadros conceituais sólidos capazes de favorecer o diálogo entre o movimento social, o movimento político e a questão da construção do conhecimento e a construção de propostas técnicas para o campo da saúde. Acho que isso é um papel fundamental dos profissionais da saúde, nos serviços e na academia, e que o quadro da vulnerabilidade pode favorecer.

Tatiana Wargas: Nesse âmbito, que você está trazendo a discussão, dá para a gente também se perguntar quais são essas possibilidades, o que a gente tem feito nesse sentido. Você fala de a academia trazer esses quadros conceituais entre movimento social, movimento político e as técnicas, de todo um conjunto de práticas que foram possíveis a partir desse conceito de vulnerabilidade, mudanças concretas no mundo das práticas, o que extrapolou inclusive esse âmbito de atuação do que seria a política de aids, isso foi para outras políticas, extrapolou para outras políticas. Como você está vendo esse movimento, voltando a essa questão de contexto, que é absolutamente importante, desses diferentes grupos, movimentos e situações que se apresentam? Como vocês vêm trabalhando com isso para atualizações do conceito? O conceito de vulnerabilidade vem sofrendo modificações. Como ele se atualiza?

José Ricardo Ayres: Eu acho que uma das características constitutivas do quadro conceitual da vulnerabilidade é justamente ser dinâmico, não ser uma estrutura conceitual que cristaliza a realidade, mas basear-se no pressuposto de que a ciência e a técnica só podem ser entendidas como parte de processos de trabalho em saúde concretamente operados e, enquanto tal, parte do movimento social e político, com todas as suas forças atuando, inclusive, muitas vezes, [de formas] contraditórias.

O quadro da vulnerabilidade tem […] que estar permeável a essa sensibilidade de perceber quais são, a cada momento, os instrumentos de que se dispõe, do ponto de vista da ciência e da técnica, para intervir sobre a saúde, e o que eles, ao serem examinados criticamente, demostram de perspectivas conservadoras e, ao contrário, também, de perspectivas que nos permitam pensar em reconstrução, em transformação social. Eu estou bastante impressionado de perceber como o quadro foi sendo apropriado e está efetivamente permitindo processos críticos e construtivos em diversas áreas para além da aids. Houve um momento em que até eu fiquei meio desanimado, achei que fosse uma aposta conceitual que estivesse se esvaziando, que estivesse perdendo o seu sentido, mas de repente eu vejo que não, que talvez tenha sido um momento mesmo de lenta incorporação, em que a gente não percebia tanto o movimento, mas que agora está amadurecendo. Um exemplo disso foi o recente lançamento de um número temático da revista Ciência & Saúde Coletiva, na Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, no Rio de Janeiro, em evento marcado por um debate sobre o quadro conceitual da vulnerabilidade. A ideia era exatamente resgatar o potencial da perspectiva da vulnerabilidade para mobilizar esforços na saúde pública, em diversas áreas. Esse número surgiu dentro da área de ciência política, das ciências sociais lá da ENSP, e foi muito legal ver que alguns artigos, mesmo sem citar o termo vulnerabilidade, trabalham sob a mesma lógica. E quando você vai conversar e apresenta o quadro de uma forma mais estruturada, as pessoas falam: “Olha, é isso mesmo! Se a gente usar isso na nossa pesquisa vai ser muito interessante porque vai otimizar uma série de protocolos, vai ajudar a pensar uma série de questões”. Esse foi o feedback que eu tive da minha participação nesse encontro na Fiocruz. Então, eu acho que a coisa vai amadurecendo. Eu vejo basicamente dois grandes movimentos nesse amadurecimento. Um que vai se dando mesmo pela prática, ou seja, sem muita preocupação em dar uma densidade conceitual, mas assumindo alguns pressupostos da vulnerabilidade, trazendo de volta a ideia de que é preciso pensar as ações de saúde na perspectiva coletiva, e não no coletivo como simplesmente um conjunto de pessoas, uma certa população alvo, digamos assim, mas um conjunto de relações sociais; coisas que têm que ser modificadas nas relações raciais, nas relações de gênero, nas relações entre cidadãos e imigrantes… Eu acho que isso é uma coisa muito rica, muito interessante. E outro movimento do ponto de vista conceitual. Também há movimento aí. Eu próprio tenho procurado estabelecer alguma interlocução da vulnerabilidade com o quadro do Axel Honneth, da teoria do reconhecimento, da “luta pelo reconhecimento”. Cheguei a ensaiar uma definição de vulnerabilidade nos termos dessa luta, buscando compreender vulnerabilidade como situações sistemáticas de desrespeito que levam a maior exposição a danos à saúde e, em sentido inverso, o reconhecimento recíproco entre os sujeitos como capacidade de resposta social diante dos agravos de saúde. Honneth criticou Habermas por ver na teoria da ação comunicativa o que ele chamou de um “déficit sociológico”, isto é, de partir do suposto do caminho comunicacional para a construção da coesão social, mas sem problematizar como esses sujeitos chegam a poder interagir para esta construção. De forma análoga, eu também tinha a impressão de que o quadro de vulnerabilidade precisava trabalhar mais de perto o modo como concretamente, na vida cotidiana, opera o desrespeito aos direitos, como se estabelecem vulnerabilidades em saúde nas relações sociais e de que forma se poderia identificar possibilidades para sua superação.

Me parece que a discussão do Honneth abre um caminho para isso, porque mostra como é que os conflitos se estabelecem na produção intersubjetiva das nossas identidades. E uma coisa que me parece muito interessante nesse quadro do Honneth, especialmente para nós, da saúde coletiva, no momento em que a gente está hoje, que é não cair na armadilha de separar muito radicalmente a questão da estrutura social da questão das subjetividades e da ação dos sujeitos. Quando ele coloca a questão da individuação, da construção da subjetividade, em diversos planos, seja no plano afetivo, dos direitos ou da estima social, ele já está sempre colocando imediatamente a questão intersubjetiva, e isso me parece fantástico para a gente da saúde coletiva, porque um dos problemas, talvez herdado de certas leituras marxistas, foi essa cisão: ou eu estou lá na estrutura e esqueço do sujeito ou eu estou com o sujeito e esqueço da estrutura. Mas a gente tem que tentar juntar essas duas coisas para que o projeto da saúde coletiva dê certo.

Marcelo Castellanos: A teoria do reconhecimento vem trabalhando com a política identitária, algo que participa de um jogo de forças que atravessa diferentes lugares. Não só os lugares tradicionais da Política com “P” maiúsculo. Já o enfoque de vulnerabilidade chama atenção para a relação entre os sujeitos e o contexto, numa via de mão dupla. Ele não trabalha na determinação externa aos sujeitos tampouco adere a um voluntarismo. Ele procura entender diferenças contextuais importantes, mas também olhar com atenção para as práticas sociais, para a atuação dos sujeitos e até entender como é que eles estão referenciando, interpretando esses contextos em que eles mesmos procuram atuar. Esse é o ponto de articulação [entre essas teorias]?

José Ricardo Ayres: Eu acho que é exatamente por aí. O meu primeiro encantamento com o quadro teórico de Honneth e seu potencial de enriquecimento do quadro da vulnerabilidade foi o seu pensar as questões sociais sem desconsiderar a perspectiva da subjetividade, e da subjetividade entendida também como algo que passa pelo indivíduo. Ele nos ajuda em uma leitura do indivíduo que não o reduza a uma mônada, algo isolado, a partir do qual se dá as relações sociais, mas já pensá-lo como parte das relações sociais. Ao mesmo tempo, entender as relações sociais sem desconsiderar que elas são feitas de pessoas de carne e osso, que nascem, crescem, se alimentam, amam, desejam, sofrem… tudo isso me encantou. De certa maneira, eu já encontrava esse caminho nas construções da hermenêutica contemporânea; tanto em Gadamer, como Habermas, quanto Ricoeur. Todos esses autores já colocam muito claramente essa perspectiva relacional e muito concreta para a gente pensar o humano. E, claro, também com base em outros autores, nem sempre diretamente, mas que também me ajudaram a construir isso, como Dewey, Piaget, Mead, enfim uma série de outros autores. Na nossa cultura acadêmica nem se tinha tanto acesso a alguns desses autores que eram considerados “malditos”, porque americanos, individualistas, utilitaristas… E aí, quando a gente começa a lê-los com atenção, começa a ver que não é bem assim, que tem coisa muito mais rica do que esses rótulos. Mas, na hermenêutica contemporânea, nesses três grandes quadros, Habermas era o que mais me aproximava da questão da ação social. Até porque ele, como herdeiro dos frankfurtianos, parte da proposta de pensar a questão da ação social articulando a reflexão filosófica com a ciência empírica. E dá um passo importante quando recorre não só a autores que pensam a ação social no seu sentido macro, como os clássicos, Marx, Weber, mas também a autores que pensam a dimensão social mais no micro, como Piaget, Mead, Kohlberg, por exemplo. Mas ainda assim tinha aquela questão que me parecia relevante, que eu vi também Honneth criticar, que era a pergunta pelo conflito. Cadê o conflito? Habermas tematiza muito o encontro, a perspectiva normativa da razão dialógica como aposta emancipatória, mas qual é a relação disso com o conflito? Claro que Habermas nunca negou o conflito, e ele sempre repudiou drasticamente a leitura da obra dele como se fosse a apologia da construção de um grande consenso dialógico. Ele sempre deixou muito claro que a comunicação livre de distorção é uma ideia reguladora para se contrapor filosoficamente, eticamente e cientificamente à barbárie, quer dizer, ao “cada um por si”. Ele nunca achou que as pessoas pudessem “resolver” a vida social assim. Esse é um caminho de aposta. Ele não nega o conflito, mas ele nunca parte do conflito. E Honneth coloca isso, quando resgata a ideia de reconhecimento como um processo de luta. Honneth mostra justamente que se constrói a partir do encontro, mas do encontro que não necessariamente é harmônico, que muitas vezes é bastante conflituoso. É verdade que Paul Ricoeur, num dos últimos textos que ele escreveu, “Percursos do reconhecimento”, faz, por outro lado, também uma certa crítica a Honneth, defendendo que o reconhecimento mútuo não se dá só pela luta. Ele recupera Mauss e sua teoria da dádiva para mostrar que há também processos de reconhecimento mútuo, socialmente relevantes, que se dão de forma não conflituosa. Eu achei isso interessante também, o que não diminui a importância desse outro aspecto, mais conflituoso, que o Honneth traz e que para nós no campo da saúde é muito importante. E especialmente quando a gente se coloca ao lado dos oprimidos, daqueles que estão sofrendo, é superimportante a gente perceber quais são as formas de identificar essas opressões e reagir a elas, dentro dos valores que nos orientam, de fazer isso pela via de uma construção conjunta, democrática, onde o diálogo seja o caminho; mas percebendo quais são as condições para se gerar esse diálogo. Isso para a saúde pública é fundamental, para pensar esses grupos, identificando vulnerabilidades, como as questões raciais, as questões de gênero e mais recentemente essas questões, vamos dizer assim, do estatuto em relação à cidadania, entre o cidadão pleno e o imigrante, aquele que vai buscar sua vida num novo espaço de relação, e outras pessoas socialmente excluídas. Eu acho que isso pode trazer contribuições importantíssimas, porque é aí que a gente vai identificar as experiências concretas de vida dos sujeitos, o que lhes diz respeito, e é com base nesse viver que lhes diz respeito que se vai poder elaborar mais conceitualmente e processualmente a questão do reconhecimento (ou, no caso, do não reconhecimento). O que não está sendo reconhecido? E por que está causando sofrimento? O que está causando o desrespeito, essa experiência de desrespeito?

Também é importante não só a gente não desvincular o individual do intersubjetivo, do social e do estrutural, não desvincular o dialógico do conflito, mas também não desvincular e não perder de vista as diferentes possibilidades hermenêuticas que nos permitem compreender a socialidade. Porque, tanto Habermas como Honneth, eles trabalham predominantemente por razões que podemos compreender sócio-historicamente no plano do que Hegel chamaria da dialética das interações. Mas eles próprios lembram que Hegel apontava, na sua filosofia do espírito, a interconexão entre a dialética das interações, a dialética das representações e a dialética do trabalho - esta que ficou meio “na moda” jogar fora, como se a categoria trabalho não servisse mais para nos levar a compreender nossa vida social. Um equívoco! É preciso não perder de vista a nossa relação produtiva com o mundo, como indissociável das questões relacionais e representacionais, isso é muito importante. Não à toa, eu fui atrás, junto com a Liliana Santos22Liliana Santos é professora ajunta do Instituto de Saúde Coletiva (ISC/UFBA) e coorganizadora, com José Ricardo Ayres, do livro Saúde, sociedade e história: uma revisita às contribuições de Ricardo Bruno Mendes-Gonçalves, recentemente publicado pela Hucitec e Rede Unida. e com a colaboração de outros professores da saúde coletiva, de reeditar Ricardo Bruno33Ricardo Bruno Mendes Gonçalves foi professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, participou da construção do campo da saúde coletiva brasileira nas décadas de 1970 a 1990. e sua Teoria do Processo de Trabalho em Saúde, porque acho que isso nos ajuda a pensar a dimensão produtiva, da nossa ciência, da nossa técnica e o sentido criador de mundos que o trabalho tem, sim. Embora possa ter uma fecundidade e um sentido diferente do período em que Marx produziu sua filosofia social para explicar as relações sociais, o trabalho continua sendo uma via para a nossa autocompreensão, porque nós somos seres “poiéticos”, a gente produz, a gente trabalha no mundo, trabalha o mundo, e, nisso, nos revelamos para nós mesmos e para o outro. Então, devemos tentar também essa articulação: entre nossas representações (linguísticas, simbólicas), nossas interações (interpessoais, culturais, institucionais) e nossos trabalhos (nossa instrumentalidade, nossas tecnologias).

Tatiana Wargas: Esse me parece ser o grande desafio, que se coloca desde o início do projeto de saúde coletiva, que tem essa intencionalidade de construção de práticas de saúde que são comprometidas, que são implicadas com a realidade social e não apenas no entendimento do processo saúde-doença estritamente biomédico. Parece que você está falando disso quando traz essas questões, de como a vulnerabilidade se tornou um conceito e uma construção para uma geração, de outras formas de relações com os profissionais de saúde, com os serviços, com os movimentos sociais, que extrapolam um ambiente. Mas como traduzir e operar esse modo de pensar junto com os profissionais de saúde e com os alunos em formação, quando há no cotidiano dos serviços de saúde um “sofrer” e “condições” que enrijecem e dificultam a capacidade de mudar as práticas? Há uma rotinização e reprodução de modos de cuidar das pessoas produtoras de sofrimento e medicalizantes. Como se lida com isso? Como esse referencial pode ajudar? Como percebe essa questão no contexto em que estamos?

José Ricardo Ayres: O primeiro texto que eu escrevi para sistematizar o conceito de vulnerabilidade foi em 1996, quando fui convidado para fazer um protocolo de avaliação de um grande projeto em São Paulo, chamado “Prevenção também se ensina”. [Um projeto] de prevenção de DST/aids, abuso de álcool e drogas e de gravidez não planejada na adolescência, em escolas do estado todo. Era um projeto enorme, tinha verba do Banco Mundial, tinha verba do Ministério da Saúde, da Educação e se queria um protocolo de avaliação das ações que seriam desenvolvidas. Me chamaram pela minha experiência de avaliar programas no Centro de Saúde Escola, onde eu trabalhava com adolescentes. Os coordenadores do projeto ficaram encantados com o quadro da vulnerabilidade e, antes mesmo de fazer o protocolo de avaliação, eu ajudei a pensar o modelo de atuação, com base na questão das vulnerabilidades. Eles me pediram para escrever um texto dirigido para professores da rede pública tentando traduzir o conceito de vulnerabilidade e como isso poderia ajudar a manejar e avaliar suas ações. Esse talvez tenha sido um dos textos mais felizes e bem-sucedidos da minha carreira, porque de fato ele foi muito divulgado e até hoje está no site da Fundação Mario Covas, da Educação aqui de São Paulo. Eu inventei uma personagem, a professora Ava Lia, que precisava planejar e avaliar um trabalho de prevenção em sua escola. Mas toda essa volta para contar que, quando eu comecei a colocar a discussão da vulnerabilidade no papel - e eu costumo sempre falar para os meus alunos que não tem melhor coisa para você pensar do que você escrever, [afinal] Leibniz já dizia que o órgão do pensamento é a mão e não o cérebro - eu percebi que não adiantava eu falar de vulnerabilidade, pensar em vulnerabilidade se na outra ponta - ou seja, na ponta da intervenção - eu não tivesse modificação dos modos mais habituais de se trabalhar com saúde. Foi aí que eu comecei a trabalhar com o conceito de cuidado. E por quê? Porque era preciso reconstruir também o modo como se ia pensar a interação entre os profissionais e as pessoas às quais se queria dirigir as ações. Se você não muda a forma de interação entre as pessoas nas práticas de saúde, você vai ficar muito preso a um processo de trabalho enrijecido, preso a determinados meios e resultados que você precisa, no mínimo, tornar mais efetivos, reais e concretos, senão transformar mesmo. Então, na perspectiva do cuidado se coloca muito claramente essa ideia de que o objeto do cuidado deve ser construído intersubjetivamente. Quer dizer, o meu saber técnico-científico produz um certo recorte objetivo que, junto com o saber prático e a partir de uma interação que produz a sabedoria prática, tornam possível fazer a intervenção mais adequada para as pessoas evolvidas, o que inclui os próprios profissionais de saúde, porque eles também se sentem oprimidos por uma prática que está engessada por saberes técnico-científicos que eles percebem muitas vezes quase ingênuos perto da realidade que enfrentamos. Então, essa ideia de que nosso saber objetivo produz, junto com o saber prático das pessoas, um certo recorte que baliza nossa intervenção, [ela] é fundamental para reduzir vulnerabilidades, para, de fato, criarmos nos nossos serviços, nas nossas diversas áreas de ação em saúde (e elas devem, cada vez mais, não se limitar aos serviços, mas também atingir outros espaços de sociabilidade, como escolas, associações de bairro), locais onde de alguma forma se discuta a natureza social. [Criarmos] espaços para ouvir mais o outro, valorizar esse saber do outro e tentar construir juntos alguma coisa.

Acho que uma questão fundamental, que eu aprendi muito lendo sobre hermenêutica, estudando Gadamer, é que, especialmente no campo da saúde, é muito importante se sentir ouvido, acolhido, mesmo que seja apenas para mostrar ao outro que você tem limites para responder às suas necessidades. Acho que parte importante dos conflitos, que cada vez mais se tornam rotina nos serviços de saúde, e vemos isso aqui também no Centro de Saúde Escola do Butantã, vem do fato de que nós estamos com problemas estruturais de comunicação, em parte por características tecnológicas constitutivas dos processos de trabalho, tais como predominantemente configurados; mas, ao menos no caso brasileiro, também pelas carências objetivas de financiamento, de apoio político, de estrutura física, de material, de pessoal. Ao mesmo tempo, criamos com o SUS, felizmente, a percepção de que saúde é uma questão de cidadania, que é uma questão de viver. E as pessoas cada vez mais cobram isso. Às vezes as pessoas estão na minha porta cobrando algo que eu não posso dar, eu me recolho lá na minha técnica, na minha ciência, no meu nicho. Isso só gera angústia e agressividade no outro. Então, quando de alguma forma eu consigo acolher, não é uma garantia, evidentemente, mas eu tento melhorar o diálogo, portanto diminuir o grau de violência. Porque a violência vai ocorrer como resposta a esse vazio de diálogo, a essa resposta autoritária. Desse vazio de resposta surge uma experiência de desrespeito que pode produzir reações mais positivas, organizadas, transformadoras; mas também negativas, como o medo, o desânimo ou a violência.

Tatiana Wargas: Você traz a importância de uma perspectiva dialógica e de um olhar que as ciências sociais têm possibilitado no nosso campo há muito tempo, dentro dos espaços de produção, não só das práticas de saúde, mas das práticas educativas e de formação. [Aponta] como o papel das ciências sociais é importante nessa formulação de resistência de práticas que tenham como referência o cuidado e o direito à saúde.

Marcelo Castellanos: Uma questão que se relaciona a esses exemplos diz respeito ao possível esvaziamento do conceito de vulnerabilidade ou aos perigos da sua utilização. Alguns autores, críticos a esse conceito, apontam dois perigos. Um de enveredarmos numa deriva de neologismos [conceituais] que acabem por esvaziar uma discussão claramente posta sobre as desigualdades sociais e sobre os determinantes sociais de saúde. Outro perigo é o de uma certa naturalização das vulnerabilidades (tudo aquilo que o próprio conceito está tentando fragilizar e combater, quando identifica nas pessoas e populações vulneráveis uma característica naturalmente presente nelas (nos velhos, nas crianças, nas mulheres), como se estivesse escrito na pele, no DNA, no corpo. Eu gostaria que você falasse sobre essas críticas e perigos. Como é que você tem se defrontado com esse tipo de discussão?

José Ricardo Ayres: É, isso é importante. E eu sou bastante sensível a essa primeira crítica. Eu também acho que excessivos neologismos acabam esvaziando a possibilidade de coesão de diferentes grupos e atores sociais que poderiam se congregar e ter uma certa identidade discursiva. Acho que isso é um risco efetivo. Acaba que cada grupo adota uma terminologia e elas dificultam o diálogo de um grupo com outro. É um cuidado que a gente tem que ter mesmo. Agora, por outro lado, elencando aquelas três dialéticas interligadas, da interação, trabalho e representação, a gente não pode esquecer que a linguagem, esse modo como a gente constrói nossas representações do mundo, está muito ligada às possibilidades de interação e de transformação efetiva do real, pelo trabalho. Algumas construções conceituais nos permitem agregar e muitas vezes dar mais sentido a certas preocupações ou propostas. Por isso, sem desconsiderar a preocupação de não multiplicar neologismos de efeito desagregador, temos que lembrar que, às vezes, os neologismos produzem efeito contrário. Eu acho que a vulnerabilidade é um desses casos. A linguagem da vulnerabilidade foi capaz de resgatar uma ligação entre territórios individuais e de saúde pública, entre Epidemiologia e Ciências Sociais, entre saberes científicos e não científicos, de modo bastante positivo [e] forte, do ponto de vista prático. Por isso que eu tenho chamado esse quadro de um saber mediador. Eu acho que ele não se propõe a substituir nenhum dos saberes que já estavam constituídos no campo da saúde e das práticas de saúde, mas de alguma forma conseguiu colocá-los em contato de modo mais produtivo E isso eu percebi discutindo com as pessoas nos serviços. Falando nos termos da vulnerabilidade, eu tenho conseguido discutir mais facilmente sobre aspectos sociais e culturais dos processos de saúde-doença e cuidado com públicos antes mais refratários. As pessoas dizem: “nossa, caiu a ficha”. E eu tenho certeza que, se eu fosse falar para elas nos termos mais tradicionais de determinação social da saúde e da doença, não ia conseguir. A gente tem que conhecer as raízes discursivas e práticas da nossa linguagem, a gente tem que estar atento para isso, para o seu sentido pragmático; ou, usando um termo da teoria da linguagem, temos que estar atentos à força ilocucionária das expressões que a gente usa. Dependendo desses efeitos ilocucionários, daquilo que a gente faz ao dizer, a gente vai investir mais ou menos em uma terminologia. Eu acho que o quadro da vulnerabilidade se constituiu em uma terminologia que tem potente efeito ilocucionário, agregador e capaz de fazer mediações importantes para o projeto da saúde coletiva, por isso eu o defendo.

O outro risco para o qual você chama a atenção é importantíssimo também, e eu tenho discutido bastante, que é a naturalização da vulnerabilidade. Eu acho que a gente tem que fazer, eu costumo brincar, uma “vigilância epistemológica”, em analogia à vigilância epidemiológica, porque a questão passa também por um cuidado linguístico, discursivo que se tem que ter. Então, eu sempre falo para meus alunos, a primeira coisa para se pensar em vulnerabilidade é se perguntar: “vulnerabilidade a que?”. Não existe vulnerabilidade em geral. É possível pensar em sinergias entre vulnerabilidades, como já escreveram Richard Parker e Kenneth Camargo, mas a gente tem sempre que se perguntar vulnerabilidades “de quem?”, “a que?”, “quando?”, “onde?”, para que a gente não naturalize a questão. A vulnerabilidade é sempre relacional. Então, na verdade, seria mais adequado a gente pensar em relações de vulnerabilização do que em populações vulneráveis. A população vulnerabilizada tem que dizer para gente o caminho para as relações de vulnerabilização que estão em questão; e aí, trabalharmos sobre essas relações. Fica difícil usar esse termo, “relações de vulnerabilização”, as pessoas gaguejam, se enrolam, acabam falando de pessoas vulneráveis. E a gente sabe que existem pessoas que estão em situações mais desfavoráveis (e elas têm que ser consideradas especialmente), mas devemos considerar que a partir do sofrimento delas, a partir do desrespeito a que estão submetidas, a gente deve identificar o que não está sendo reconhecido ali, o que está provocando aquela situação e que precisa ser transformado nas nossas relações. Em geral, quando a gente faz isso, quem se beneficia não são só aquelas pessoas que estão sofrendo mais, é todo mundo, é a nossa humanidade que se enriquece.

Agora, há ainda um terceiro, aliás um terceiro não, há ainda mais dois, mais duas armadilhas que precisam ser consideradas. Uma delas eu acho que é mais fácil de lidar, a gente já está avançando bastante em relação a isso: é não transformar risco em vulnerabilidade, do ponto de vista epidemiológico. Então, eu uso o termo vulnerabilidade, que é mais “moderninho”, mais bacana, politicamente correto; mas eu faço mesmo uma análise de risco, do ponto de vista da estrutura lógica. Isso não faz bem nem para o “risco”, nem para a “vulnerabilidade”. As análises de risco são fundamentais para a saúde pública, como as da vulnerabilidade. Se a gente confunde a análise de risco com a de vulnerabilidade, a gente perde de vista o que cada um desses quadros conceituais tem de mais produtivo.

E outra armadilha, que é bastante importante também, diretamente relacionada à da naturalização, de que eu falava antes, é o uso da expressão “populações vulneráveis” para rotular determinados grupos populacionais como base para focalização de políticas sociais numa perspectiva de tutela e, nesse sentido, de uma diferenciação depreciativa de suas capacidades e estatuto social, uma discriminação só aparentemente positiva. Ana Amuchástegui, da Universidade Autônoma Metropolitana de Xochimilco, no México, é uma das que escreveu sobre isso, se referindo a políticas para mulheres (e vamos publicar esse texto em uma coletânea sobre vulnerabilidade que será publicada na Argentina, agora em 2018). O quadro da vulnerabilidade, tal como utilizamos no Brasil, tem se alinhado a movimentos que vão no sentido inverso dessa tutela. O que se espera com as estratégias de redução de vulnerabilidade é emancipação, é reconhecimento mútuo.

Marcelo Castellanos: Pois é, [uma rotulação] que acaba por vitimizar as pessoas e diminuir a própria capacidade de ação delas, as encapsula no lugar da não ação, como sujeitos que simplesmente estão sofrendo determinações externas que não podem ser contrapostas.

José Ricardo Ayres: Exatamente. E eu vou lembrar ainda mais uma discussão, que surgiu no Rio de Janeiro, quando eu fui fazer a palestra do lançamento do número especial da Ciência & Saúde Coletiva, que já mencionei. Trata-se do argumento de que vulneráveis somos todos nós, porque faz parte da condição humana ser vulnerável. A reserva em se trabalhar vulnerabilidade como conceito, tal como proposto, era em relação ao risco de se fazer tábula rasa dessa experiência constitutiva do humano, que é ser vulnerável. Eu entendo esse receio. Entre as várias raízes discursivas da vulnerabilidade (e são várias mesmo!), tem uma vulnerabilidade que vem da ecologia, uma que vem da psicologia e uma que vem da bioética e que é focada mesmo nessa questão, da vulnerabilidade de todo indivíduo justamente pelo fato de estar vivo, sujeito a todas as incertezas dessa condição. Nessa concepção, a vulnerabilidade é justamente aquilo que, a partir dessa posição singular do indivíduo, o expõe a essas possíveis agressões e desrespeito. Mas o que eu argumentei lá é que se eu estou pensando em termos de saúde pública, saúde coletiva, eu não posso prescindir de examinar algumas situações compartilhadas socialmente, que eu tenho que transformar. Não é desconhecer que há um grau de vulnerabilidade do estar vivo de qualquer ser humano. A questão é: qual é a vulnerabilidade que nos interpela como sanitaristas, como profissionais de saúde? E aí a gente tem que pensar no grau de compartilhamento de certas vulnerabilidades, no modo como ela se constitui e distribui nas relações sociais que estamos sempre construindo, para que a gente possa ajudar a melhorar a vida de todo mundo.

Marcelo Castellanos: Afinal, se trata de uma relação social, são seres vivos, com toda sua história de vida, mas que não existem no vácuo, têm sempre relações históricas, e se a gente não as levar em consideração (e com força!), não só na análise, mas [também] nos posicionamentos, estaremos fazendo qualquer coisa, menos saúde coletiva.

Tatiana Wargas: Obrigada, José Ricardo! Acho que cumprimos o que havíamos colocado como proposta de conversa.

Referências

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  • PAIVA, V.; AYRES, J. R.; BUCHALLA, C. M. (Org.). Vulnerabilidade e direitos humanos: prevenção e promoção da saúde. Curitiba: Juruá , 2012.

  • 1
    Naomar de Almeida Filho é professor titular de Epidemiologia no Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia. Foi reitor da UFBA de 2002 a 2010 e presidente da Comissão de Implantação e Reitor pro-tempore da Universidade Federal do Sul da Bahia.
  • 2
    Liliana Santos é professora ajunta do Instituto de Saúde Coletiva (ISC/UFBA) e coorganizadora, com José Ricardo Ayres, do livro AYRES, J. R.; SANTOS, L. (Org.). Saúde, sociedade e história: uma revista às contribuições de Ricardo Bruno Mendes-Gonçalves. Porto Alegre: Rede Unida: Hucitec, 2017. v. 1., recentemente publicado pela Hucitec e Rede Unida.
  • 3
    Ricardo Bruno Mendes Gonçalves foi professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, participou da construção do campo da saúde coletiva brasileira nas décadas de 1970 a 1990.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2018

Histórico

  • Recebido
    28 Nov 2017
  • Aceito
    19 Jan 2018
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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