A gestão da menoridade sob o Serviço Social de Assistência e Proteção aos Menores de São Paulo (1930-1940): encruzilhada de saberes11Este artigo é versão ampliada de paper produzido para o 11º Fazendo Gênero, realizado em Florianópolis de 30 de julho a 4 de agosto de 2017. Resulta em parte da pesquisa Tempo presente e instituições de isolamento social em Santa Catarina: perscrutando histórias marginais, desenvolvida de 2014 a 2017, que contou com recursos financeiros do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Ministério da Ciência e Tecnologia (Número: 443433/2014-3). Resulta também da pesquisa A gestão das crianças abandonadas e dos jovens infratores na formação da metrópole de São Paulo (1935-1964), que integra o projeto temático Gestão do conflito na produção da cidade contemporânea: a experiência paulista, que contou com recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Os prontuários usados na pesquisa foram acessados pelo Centro de Pesquisa e Documentação da Escola de Formação e Capacitação Profissional da Fundação Casa.

Viviane Borges Fernando Salla Sobre os autores

Resumo

Este artigo apresenta alguns resultados de uma pesquisa realizada a partir dos prontuários dos menores inseridos no Serviço Social de Assistência e Proteção aos Menores de São Paulo entre os anos 1930 e 1940. Este serviço era o responsável pela gestão tanto de crianças e adolescentes abandonados como daqueles considerados infratores. As tarefas de tutela do abandono e da infração proporcionaram a intervenção de vários profissionais, como médicos, psiquiatras, assistentes sociais e psicólogos, que acionaram um variado repertório de saberes. O principal objetivo da pesquisa foi investigar de que forma a documentação institucional categorizava os menores a partir de uma perspectiva marcada pelo ideário jurídico, pela criminologia e pela concepção de higiene mental presentes nas primeiras décadas do século XX no Brasil. A partir da análise dessa documentação foi possível identificar os saberes (jurídicos, médicos, psiquiátricos, criminológicos) que atuavam no governo dos menores, além da fundamentação que proporcionavam para as intervenções estatais em relação aos menores e, ainda, em relação aos seus familiares ou responsáveis.

Palavras-chave:
Serviço Social de Assistência e Proteção aos Menores de São Paulo; Menores; Criminalidade; Higiene Mental; Brasil

Introdução

Em 1935, o governo paulista criou o Departamento de Assistência Social, que previa diversos serviços destinados à assistência e proteção a famílias, desvalidos, trabalhadores e egressos de reformatórios, estabelecimentos penais, correcionais e hospitalares. Foi no âmbito dessa iniciativa que o Departamento criou também o Serviço Social de Assistência e Proteção aos Menores de São Paulo, de quem uma das principais atribuições era distribuir por instituições públicas e privadas menores que eram confiados ao Estado. Para a gestão desse movimento de menores pelas instituições, o Serviço Social de Menores abria prontuários, que constituem a principal fonte para a presente reflexão. Apresentamos alguns resultados de pesquisa realizada nesses prontuários do Serviço Social de Menores. Um de seus objetivos foi investigar de que forma a documentação institucional categorizava os menores a partir de uma perspectiva marcada pelo ideário jurídico, pela criminologia e pela concepção de higiene mental presentes nas primeiras décadas do século XX no Brasil. As informações produzidas sobre crianças e adolescentes inseridos na rede de instituições de controle social recorriam a aspectos sociais, econômicos, educacionais e afetivos - que se somavam às razões constitucionais e orgânicas - para classificá-los como menores abandonados, delinquentes, pervertidos, degenerados. Tais classificações mesclavam categorias dos campos jurídico e psiquiátrico e atuavam diretamente sobre o tratamento conferido a meninos e meninas em conflito com a lei, abandonados ou considerados degenerados.22Para uma reflexão mais detalhada sobre o uso dos prontuários de instituições de confinamento em pesquisas nas ciências humanas, ver Salla e Borges (2017).

Inicialmente trataremos da institucionalização do Serviço Social destinado aos menores no Brasil, analisando a confluência de preocupações de caráter jurídico, moral e psiquiátrico que se alinhavam à progressiva montagem de um aparato jurídico e institucional para o governo da menoridade em São Paulo. Nesse processo, identificaremos uma série de percepções ligadas à degeneração e ao controle dos menores infratores e/ou abandonados.

Em um segundo momento, analisaremos o papel do Instituto de Pesquisas Juvenis (IPJ), previsto no artigo 74 da Lei nº 2.497 (São Paulo, 1935SÃO PAULO. Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Lei nº 2.497, de 24 de dezembro de 1935. Organiza o Departamento de Assistência Social do Estado. Diário Oficial do Estado de São Paulo, São Paulo, 25 dez. 1935, p. 1. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/C6e7T6 >. Acesso em: 12 fev. 2014.
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), como posto de observação a respeito dos menores que fornecia informações e diagnósticos essenciais para os juízes e mesmo para os administradores dos institutos.

Por fim, examinaremos alguns casos pontuais que exemplificam a atuação dessa teia institucional e o papel do IPJ na constituição de características conferidas aos menores tidos como desviantes. Problematizaremos casos de meninos e meninas que passaram pelo Instituto, com foco na maneira como foram descritos, esquadrinhados e classificados, dando destaque aos casos envolvendo meninas, à ausência de estudos a esse respeito e indicando, no encerramento, possibilidades para uma nova agenda de pesquisa.

O Serviço Social de Menores

A preocupação do Estado com o gerenciamento da infância e da juventude consideradas abandonadas, perigosas e pervertidas teve início no Brasil no final do século XIX e início do XX, encabeçada por médicos e juristas que apontavam a necessidade da criação de um aparato jurídico e institucional voltado a esse segmento da sociedade.33A respeito da história da infância e da adolescência, ver Vianna (1999), Brites (1999), Marcón (2008), Arend (2011), Alvarez (1989) e Rizzini (2011).

Antes mesmo de o Código de Menores (Brasil, 1927BRASIL. Presidência da República. Decreto nº 17.943-A, de 12 de outubro de 1927. Consolida as leis de assistência e proteção aos menores. Coleção de Leis do Brasil, Rio de Janeiro, 31 dez. 1927, p. 476. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2cwIPoa >. Acesso em: 20 jan. 2014.
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) entrar em vigor, houve a criação de juizados de menores em duas cidades brasileiras, Rio de Janeiro e São Paulo, que de certa forma deram início ao processo de judicialização das questões relativas ao abandono e à delinquência de crianças e adolescentes. A promulgação do Código de Menores de 1927 foi um marco na história da infância e da juventude no Brasil. Logo em seguida, com a criação de legislação específica e de uma rede de instituições de internação para cumpri-la, o Estado assumia a função de cuidar da infância abandonada e desviante, estabelecendo uma série de práticas institucionais que visavam inserção social, sobretudo pelo trabalho. A preocupação maior era afastar os menores da desordem, da perversão, dos maus hábitos, para torná-los cidadãos úteis, pois se passou a reconhecer na figura desses sujeitos a potência do criminoso futuro, do mau cidadão, do mau trabalhador. Nesse sentido, mesmo antes dos anos 1920, os patronatos agrícolas, criados em 1918 e pertencentes ao Ministério da Agricultura, tinham a clara intenção de acolher e preparar os menores que para lá eram enviados (muitas vezes pela polícia) para o trabalho agrícola e dentro de uma lógica de povoamento do país (Vianna, 1999VIANNA, A. R. B. O mal que se adivinha: polícia e menoridade no Rio de Janeiro, 1910-1920. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1999.).

Os cuidados com a infância aparecem também nas atividades da Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM), criada em 1923. Entre os membros da Liga podemos citar médicos e juristas atentos à questão da infância, ligados ao governo ou a instituições públicas, como Lemos Britto (advogado, jornalista e diretor da Escola 15 de Novembro entre 1926 e 1930), Mello Mattos (juiz de menores, autor do projeto que deu origem ao Código de Menores) e Moncorvo Filho (vice-presidente da LBHM, diretor do Instituto de Proteção e Assistência à Infância, criador e diretor do Departamento da Criança no Brasil, em 1919, além de ser o organizador do primeiro Congresso Brasileiro de Proteção à Infância, em 1922). O “consultório gratuito de psicanálise”, que funcionou com regularidade até os primeiros meses de 1927, foi uma tentativa da LBHM de atuar junto às escolas e ao Juizado de Menores, visando a correção da infância em conflito com a lei.

A confluência de tais preocupações e a progressiva montagem de um aparato jurídico e institucional para o governo da menoridade tomam corpo, portanto, nos anos 1920, tendo como elemento estruturante o Código de Menores. Em São Paulo, em 1935, ocorre uma expressiva alteração nos padrões de intervenção do Estado em relação à menoridade com a organização do serviço social estatal proporcionada pela Lei nº 2.497, de 24 de dezembro daquele ano (São Paulo, 1935SÃO PAULO. Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Lei nº 2.497, de 24 de dezembro de 1935. Organiza o Departamento de Assistência Social do Estado. Diário Oficial do Estado de São Paulo, São Paulo, 25 dez. 1935, p. 1. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/C6e7T6 >. Acesso em: 12 fev. 2014.
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). Por essa lei foi criado o Serviço Social de Assistência e Proteção a Menores, que pertencia ao Departamento de Assistência Social do Estado de São Paulo. O Serviço articulava-se à rede institucional que envolvia o Juízo de Menores e os locais para onde crianças e adolescentes eram encaminhados devido a abandono ou infração. Entre esses locais estavam o Instituto Disciplinar da Capital, o Instituto Disciplinar de Mogi-Mirim, o Reformatório Profissional de Taubaté e um vasto conjunto de instituições religiosas de abrigamento de crianças órfãs e abandonadas mediado pela Liga das Senhoras Católicas (Alvarez; Salla; Lourenço, 2016ALVAREZ, M. C.; SALLA, F.; LOURENÇO, L. C. Projeto Fundação CASA: prontuários 1925-1934. São Paulo: Núcleo de Estudos da Violência, 2016. (Relatório de pesquisa).).44A Liga das Senhoras Católicas, criada em 1923, “servia de intermediária entre o Juízo de Menores, o Serviço Social de Menores [SSM] e as instituições religiosas que mantinham abrigos e orfanatos na capital e no interior. A Liga das Senhoras Católica mantinha a Casa da Infância e o Educandário Dom Duarte (EDD), mas fazia a colocação de menores abandonados a pedido do juiz ou do diretor do SSM em diversas instituições: Abrigo Santa Maria; Abrigo ou Casa Santa Marta; Asilo da Divina Providência; Asilo do Bom Pastor; Asilo São José do Belém; Assistência Vicentina aos Mendigos – Sanatório de Tuberculosos Pobres; Casa Pia de S. Vicente de Paula; Asilo dos Expostos; Lar São Paulo; Colégio Patrocínio de São José (de Lorena); Asilo de Vila Mascote (que era mantido pela Assistência Vicentina aos Mendigos da Sociedade de S. Vicente de Paulo)” (Alvarez; Salla; Lourenço, 2016, p. 6). Essas instituições tinham caráter disciplinar, buscando no trabalho e na educação os elementos que proporcionariam a inserção e regeneração social desses menores.

De acordo com o artigo 10 da Lei nº 2.497 (São Paulo, 1935SÃO PAULO. Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Lei nº 2.497, de 24 de dezembro de 1935. Organiza o Departamento de Assistência Social do Estado. Diário Oficial do Estado de São Paulo, São Paulo, 25 dez. 1935, p. 1. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/C6e7T6 >. Acesso em: 12 fev. 2014.
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), o Serviço de Assistência aos Menores teria a seguinte composição:

  1. o Juízo de Menores;

  2. os Abrigos Provisórios de Menores, na Capital e no Interior;

  3. o Instituto de Pesquizas Juvenis, annexo ao Abrigo da Capital;

  4. o Commissariado de Menores;

  5. os estabelecimentos officiaes e auxiliares de reeducação, preservação e reforma.

De particular interesse para esta discussão é a criação do IPJ (alínea c), que viria a funcionar ao lado do Abrigo Provisório de Menores e tinha a atribuição de realizar os exames médicos e os diagnósticos dos menores para seu encaminhamento às instituições de internação. O IPJ teve papel fundamental na orientação das decisões dos juízes de menores e mesmo naquelas administrativas por parte dos diretores dos institutos que abrigavam as crianças e os adolescentes.55É certo que o IPJ não fazia laudos para todos os menores que davam entrada no Serviço. A pesquisa nos prontuários indica que o IPJ fazia seus pareceres a pedido específico do juiz ou quando havia dúvida por parte dos administradores com relação ao destino a ser dado a um jovem. Eram comuns os casos de laudos para menores que apresentavam problemas disciplinares nas instituições de internação, para aqueles que eram internados por conta de infrações reiteradas, praticadas nas cidades em que residiam, para aqueles que eram considerados dementes, para avaliação da idade daqueles que não tinham registro de nascimento e, ainda, para as meninas em caso de verificação de integridade física quando havia suspeita de estupro. Trata-se de uma instância técnica, na qual atuavam diversos profissionais, e se constitui um locus para a observação de concepções da criminologia, da psiquiatria e da higiene mental daquela época.

Além de no Instituto, que praticamente só se estruturou na capital de São Paulo (apesar de terem sido cogitadas unidades semelhantes também no interior do estado), nas instituições criadas (denominadas, então, de reformatórios, escolas de reforma, institutos disciplinares) houve também a presença crescente de profissionais (psicólogos, assistentes sociais e educadores) que passaram a ter papel importante na produção de informações sobre os antecedentes legais dos menores, seu passado familiar, suas características psicológicas, sua sociabilidade, suas potencialidades para o trabalho. Esses profissionais contribuíram não só para a conformação das instituições como também para organizar a própria dinâmica interna desses espaços e, ainda, a circulação dos menores por elas.

O Instituto de Pesquisas Juvenis

Como observamos antes, o Juízo de Menores de São Paulo integrava o Serviço Social de Menores, que possuía um laboratório de investigação, o IPJ, criado também em 1935, com a finalidade de realizar pesquisas e análises referentes a problemas pedagógicos e de reeducação da criança e do adolescente, envolvendo aspectos biológicos e sociais.66Nesse mesmo ano foi criado no Rio de Janeiro o Laboratório de Biologia Infantil, visando o cuidado de crianças classificadas como abandonadas e delinquentes (Silva, 2011). De acordo com o artigo 75 da Lei nº 2.497, o IPJ tinha as seguintes atribuições:

a) o exame médico-pedagógico do menor (estado físico e mental), no momento da admissão, psicobiograma, história clínica complementar, anexos ao psicobiograma, investigação social (levada a efeito por intermédio do Comissariado de Menores) e estudo psiquiátrico complementar eventual;

[…]

c) orientar e auxiliar as atividades do Serviço, referentes à reeducação dos menores, acompanhando o desenvolvimento das medidas corretivas, em prática nos estabelecimentos do Serviço e, eventualmente, nos particulares que isso solicitem;

[…]

f) lavrar pareceres sobre assuntos médico-pedagógicos. (Brasil, 1935)

O IPJ funcionava junto ao Abrigo Provisório de Menores, para onde todos os menores eram enviados e ficavam à disposição do juiz. Era o posto de observação que fornecia as principais informações e os diagnósticos para os juízes e mesmo para os administradores dos institutos. Inicialmente, era composto por um gabinete de exame clínico, um gabinete de psicologia, um serviço de investigação social e um “serviço de biogenética” (conforme artigo 76). Mas quando o Serviço Social foi remodelado pelo Decreto nº 9.744 (São Paulo, 1938SÃO PAULO. Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo Decreto nº 9.744, de 19 de novembro de 1938. Reorganiza o Serviço Social dos Menores, do Departamento de Serviço Social, e dá outras providências. Diário Oficial do Estado de São Paulo, São Paulo, 23 nov. 1938, p. 2. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/WcRFcu >. Acesso em: 16 jan. 2014.
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), sua estrutura diversificou-se ainda mais. Embora as atribuições do IPJ não tenham se alargado tanto com a reorganização, o Instituto passou a ter, pelo parágrafo único do artigo 6º, os seguintes serviços:

  1. Serviço de Psicopatologia;

  2. Serviço de Neuropediatria;

  3. Serviço de Biotipologia e Patologia constitucional;

  4. Serviço de Psicopedagogia;

  5. Serviço de Psicologia experimental;

  6. Serviço de Pesquisas;

  7. Serviço de Arquivo e Estatística;

  8. Serviço de Tradução e Biblioteconomia;

  9. Serviço de Desenho;

  10. Serviço de Identificação. (São Paulo, 1938SÃO PAULO. Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo Decreto nº 9.744, de 19 de novembro de 1938. Reorganiza o Serviço Social dos Menores, do Departamento de Serviço Social, e dá outras providências. Diário Oficial do Estado de São Paulo, São Paulo, 23 nov. 1938, p. 2. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/WcRFcu >. Acesso em: 16 jan. 2014.
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    )

O Código de Menores de 1927, ao mesmo tempo que procurava amparar os menores, também contribuía para fomentar estereótipos em relação a eles: vadios, mendigos, libertinos, capoeiras, pervertidos, delinquentes são categorias presentes na legislação e que perpassam também os registros institucionais. Nesse sentido, um documento fundamental, que integrava a maioria dos prontuários pesquisados, era denominado “síntese médico-psicopedagógica”. Trazia resultados de exames realizados, tanto em meninos como em meninas, pelo médico-chefe do IPJ, por solicitação do diretor do Serviço Social de Menores. Nessa avaliação é possível observar os mecanismos utilizados pela instituição para a produção de informações sobre os menores.

O documento possuía os seguintes campos: (1) antecedentes hereditários; (2) condições sociais (item subdividido em “família” e “ambiente”); (3) antecedentes pessoais (com subcampos denominados “instintos”, “atitude social”, “temperamento e caráter”); (4) estado atual (abrangendo constituição, “índices antropométricos sintéticos”, sensibilidade sensorial, “dados clínicos”, “dados psicológicos” - inteligência, “velocidade dos processos mentais” -, “temperamento e caráter”); (5) atitude social; (6) aptidão e vocação; (7) escolaridade; (8) dados psiquiátricos; (9) diagnóstico; (10) imputabilidade; (11) periculosidade; e (12) indicações.

O exame do IPJ atuava de forma relacional com todos os demais documentos presentes nos prontuários. Muitas decisões tomadas pelos juízes quanto à permanência ou não de um(a) adolescente numa unidade, sua colocação ou não sob soldada, sua desinternação, estavam fundamentadas nos exames realizados pelo IPJ e determinavam o destino dos menores na rede institucional. A ideia de degeneração ganhou destaque nesses registros. As discussões a respeito da loucura têm papel fundamental no desenvolvimento da noção de degeneração e das teorias a ela ligadas, contudo é importante ressaltar que tal noção adentrou em outros campos. Para além de uma doutrina, a noção de degeneração pode ser entendida como uma justificativa que possibilita a adaptação a variadas situações, além de corroborar formas de controle e condicionar comportamentos (Vianna, 1999VIANNA, A. R. B. O mal que se adivinha: polícia e menoridade no Rio de Janeiro, 1910-1920. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1999.).

Os menores eram entendidos nesse período como crianças e adolescentes pobres ou abandonados que perambulavam pelas cidades, cabendo às instituições retirá-los ou livrá-los da delinquência, do conflito com a lei, evitando que viesse a “infância abandonada a se contaminar pelo ambiente das ruas ou pelo convívio com pessoas de índole criminosa” (Motta, 1897, p. 23 apud Fonseca, 2008FONSECA, S. C. A regeneração pelo trabalho: o caso do Instituto Disciplinar em São Paulo (1903-1927). Histórica: Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, São Paulo, n. 33, p. 1-9, out. 2008. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2s5wKfj >. Acesso em: 12 mar. 2014.
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, p. 2).

O perigo do meio no qual o sujeito se desenvolve, perpassando as ideias de médicos e juristas do final do século XIX e início do século XX, constitui elemento fundamental para a avaliação da presença ou da ausência de doenças (Engel, 1999ENGEL, M. G. As fronteiras da anormalidade: psiquiatria e controle social. História, Ciências, Saúde: Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 3, p. 547-563, 1999.). Conforme Engel (1999ENGEL, M. G. As fronteiras da anormalidade: psiquiatria e controle social. História, Ciências, Saúde: Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 3, p. 547-563, 1999., p. 4), de modo geral, “a partir de meados do século XIX, as degenerescências e os desvios passaram a ser vistos não apenas como produto da hereditariedade, mas também como resultado da desordem social”. Esses dois aspectos, hereditariedade e desordem social, aparecem como preocupação central nos prontuários analisados.

Maria Aparecida,77Prontuário 7078. Todos os nomes de menores apresentados neste trabalho são fictícios; fazemos apenas referência ao número de seu prontuário, obtido em pesquisas na documentação do Serviço Social de Menores (ver nota 3). de 17 anos, foi recolhida ao Reformatório Modelo em São Paulo por quatro anos por ter assassinado o marido com a ajuda da mãe, envenenando-o com “bolinhos de farinha de trigo em mistura com uma substância arsenical”. A sentença do juiz, totalmente fundamentada nos exames realizados pelo IPJ, reforça que sua regeneração só se daria quando esta fosse afastada do meio em que vivia:

A punição de [Aparecida] não interessa à coletividade; o que consulta os interesses da sociedade é sua regeneração, a sua formação moral, fora do ambiente mesquinho e confinado onde cresceu e criou-se, sem instrução alguma, sem nunca ter frequentado uma escola, entregue aos seus instintos e sem força para dominá-los. [Aparecida] necessita de reeducação, para que, livre da ignorância e do meio em que viveu, possa um dia, conscientemente, distinguir entre o lícito e o ilícito e ser útil a si e aos seus. (Prontuário 7078, 1938)

A preocupação com os antecedentes hereditários e com as condições sociais é uma constante nas avaliações do IPJ, apontando aspectos como “influência maléfica devido a uma tendência moral duvidosa, abandono moral e desarmonia entre pais e filhos”. “Presença do álcool à mesa é comum”, como registra o prontuário 3883, de Ana Carolina. No documento “síntese médico-psicopedagógica”, o item 3 elenca “instintos”, trazendo caracterizações como “mentirosa”, “dissimuladora”, “indisciplinada”, “rebelde”, “impulsiva”. E que deveria “aprender a controlar os impulsos” como parte do seu processo de regeneração.

Identificar a degeneração era um exercício de observação e registro de traços nem sempre claros e evidentes. Tratava-se de buscar não apenas os abandonados e os pervertidos, mas também os “passíveis de o ser”, conforme estabelecia o Código de Menores (Brasil, 1927BRASIL. Presidência da República. Decreto nº 17.943-A, de 12 de outubro de 1927. Consolida as leis de assistência e proteção aos menores. Coleção de Leis do Brasil, Rio de Janeiro, 31 dez. 1927, p. 476. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2cwIPoa >. Acesso em: 20 jan. 2014.
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).

De acordo com Cândido Motta (1909MOTTA, C. N. N. Os menores delinquentes e seu tratamento no estado de São Paulo. São Paulo: Diário Oficial, 1909.), idealizador do Instituto Disciplinar de São Paulo, nem mesmo o crime cometido poderia ser entendido como critério suficiente para a classificação dos menores, pois esta deveria se basear em uma observação individual, constante e cuidadosa. E indicava que todos os menores deveriam ser enviados às mesmas instituições, sem distinção de delito ou condenação, e que, então internados, poderiam ser classificados a partir de um diagnóstico preciso. A regeneração dependeria dessa classificação, era preciso “classificar as crianças, mas não sob o ponto de vista legal, porque corria-se o risco de ver um mendigo mais degenerado que tal assassino. Era preciso classificar segundo o grau de degenerescência” (Motta, 1909MOTTA, C. N. N. Os menores delinquentes e seu tratamento no estado de São Paulo. São Paulo: Diário Oficial, 1909., p. 70-71). Os responsáveis por esse diagnóstico eram os médicos e os pedagogos, sendo que o médico “supriria a necessária competência que faltaria aos juízes, incapazes de fazer um estudo acurado de cada criança” (Zuquim, 2001ZUQUIM, J. Infância e crime na história da psicologia no Brasil: um estudo de categorias psicológicas na construção histórica da infância criminalizada na primeira república. 2001. Tese (Doutorado em Psicologia) - Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001., p. 116).

Causas morais como “maus costumes” e “enfraquecimento da autoridade familiar” somam-se a “distúrbios físicos e psíquicos e hereditariedade”. Documentos assinados por assistentes sociais, pedagogos, psicólogos corroboravam teorias médicas da época que amalgamavam tais concepções. Nesse sentido, é possível encontrar classificações e diagnósticos que apontam, por exemplo, meninas e meninos sob o rótulo de “débil mental”, “histérica”, “tarada(o)”, “pervertida(o) sexual” etc. Conforme observou Vianna (1999VIANNA, A. R. B. O mal que se adivinha: polícia e menoridade no Rio de Janeiro, 1910-1920. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1999., p. 142), “mais do que atuar no sentido de um diagnóstico preciso de alguma situação […] essas noções transformavam-se em princípios explicativos exportáveis para diversos campos de conhecimento”.

Em consonância com o pensamento médico e jurídico da época, o alcoolismo e a sífilis eram tidos como fatores predominantes na hereditariedade da degeneração. Isso pode ser verificado na sentença do menor Aroldo, 17 anos (Prontuário 085), condenado por furto: “apesar do exame de sanidade o dar como fisicamente normal, pode ser um tarado, descendente de pai alcóolatra que suicidou-se ingerindo creolina”.

Ao lado do alcoolismo, havia a preocupação com a sífilis. O pedido de exame de heredolues é uma constante nos prontuários. Ainda que não tenhamos encontrado os exames anexados, havia sempre a recomendação do IPJ para que fossem realizados. Os heredossifilíticos teriam um aspecto físico que mesclaria involução e degradação, alcançando características físicas e morais. Assim, os “doentes da vontade, os preguiçosos, os perversos sexuais começam a ser considerados frutos da sífilis” (Carrara, 1996CARRARA, S. Tributo a vênus: a luta contra a sífilis no Brasil, da passagem do século aos anos 40. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1996. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2J1nIdO >. Acesso em: 12 mar. 2014.
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, p. 65).

A ideia de “regenerar pelo trabalho”, conforme sugeria o Código de Menores, é constante na documentação. No item 5, “atitude social”, do exame realizado pelo IPJ, são apresentadas informações sobre o fato de o menor gostar ou não de trabalhar, sobre seu comportamento nas ruas, sua preferência ao ócio e ao divertimento em detrimento do trabalho e da disciplina. Ainda na citada “síntese médico-psicopedagógica” consta outro item: “aptidão e vocação”. Embora houvesse toda uma retórica da regeneração pelo trabalho, o que os institutos de internação ofereciam, de fato, era uma educação extremamente básica, acompanhada de preparação para o trabalho, voltada para tarefas simples, de pouca qualificação, sobretudo vinculadas às atividades agrícolas e, no caso das meninas, ao trabalho doméstico. Os diagnósticos elaborados pelo IPJ, nesse sentido, tão somente reforçavam o destino dos menores para atividades previamente identificadas como adequadas para esses sujeitos, que seriam, em geral, procedentes das camadas pobres da população e de famílias cujos membros teriam baixa qualificação profissional.

Um recorte

O campo dos estudos sobre a história da infância vem se consolidando no Brasil desde a década de 1990, com trabalhos dedicados a entender os mecanismos criados pelo Estado para assegurar a “regeneração” dos menores. Esses estudos permitem vislumbrar as práticas institucionais e suas interpelações em relação à legislação. No entanto, é fácil constatar que há uma carência de estudos ligados à presença das meninas, tanto por abandono como por infração, nos espaços de internação e aprisionamento. Somente a partir dos anos 1990 podemos observar trabalhos de influência feminista, focados nas meninas em conflito com a lei, ainda que se mantenham as dificuldades de acessar questões como o tratamento e a intervenção na análise desses casos (Burman; Batchelor; Brown, 2001BURMAN, M. J.; BATCHELOR, S. A.; BROWN, J. A. Researching girls and violence: facing the dilemmas of fieldwork. The British Journal of Criminology, Oxford, v. 41, n. 3, p. 443-459, 2001.; Chesney-Lind, 1997CHESNEY-LIND, M. The female offender. Thousand Oaks: Sage Publication, 1997.; Chesney-Lind; Shelden, 1992CHESNEY-LIND, M.; SHELDEN, R. Girls delinquency and juvenile justice. Pacific Grove: Brooks-Cole Publishing Company, 1992.; Miller, 2001MILLER, J. One of the guys: girls, gangs and gender. New York: Oxford University Press, 2001.; Steffensmeier; Allan, 1996STEFFENSMEIER, D.; ALLAN, E. Gender and crime: toward a gendered theory of female offending. Annual Review of Sociology, Palo Alto, v. 22, p. 459-487, 1996.).

Diante da escassez de estudos sobre as menores, alguns trabalhos acabaram reforçando estereótipos que conferem à mulher uma “inabilidade” delituosa, colocando mulheres e meninas apenas como vítimas de seu meio social, de seu passado e de sua condição feminina, repetindo o pensamento defendido por médicos e juristas da época. Esse olhar não parece levar em conta a complexidade do sistema de justiça e das trajetórias individuais e sua relação com o social, perpassadas por questões de gênero (Duarte, 2012DUARTE, V. M. Discursos e percursos na delinquência juvenil feminina. Vila Nova de Famalicão: Húmus, 2012.; Duarte; Cunha, 2014DUARTE, V. M.; CUNHA, M. I. P. Violências e delinquências juvenis femininas: aproximações à questão. In: DUARTE, V. M.; CUNHA, M. I. P. (Ed.). Violências e delinquências juvenis femininas: género e (in)visibilidades. Vila Nova de Famalicão: Húmus , 2014. p. 9-24.). Inserir essas meninas na história permite ressignificações do que é tradicionalmente estudado quando o assunto são as instituições de aprisionamento, espaço predominantemente masculino, possibilitando tangenciar a complexidade que envolve fenômenos sociais e históricos.

Uma das dificuldades em se ampliar o conhecimento sobre as condições de vida das meninas, no período aqui tratado, e o seu percurso de internação nas instituições deve-se em parte à própria documentação. A pesquisa dos registros de 1925 a 1934 do Serviço Social de Menores (Alvarez; Salla; Lourenço, 2016ALVAREZ, M. C.; SALLA, F.; LOURENÇO, L. C. Projeto Fundação CASA: prontuários 1925-1934. São Paulo: Núcleo de Estudos da Violência, 2016. (Relatório de pesquisa).), por exemplo, indicava a existência de 299 prontuários no primeiro volume do Inventário de Prontuários de ex-internos 1925-1934, produzido pelo Centro de Pesquisa e Documentação da Escola de Formação e Capacitação Profissional da Fundação Casa. Naquela pesquisa apurou-se que os prontuários de meninos totalizavam 259 (86,6%) e de meninas, 40 (13,4%). No entanto, a inconstância na produção dessa massa documental, suas descontinuidades, não permite que se avalie devidamente a dimensão do confinamento das meninas nas instituições entre os anos 1920 e 1940 em São Paulo.

De todo modo, em relação às meninas internadas, os laudos presentes nos prontuários entre os anos 1930 e 1940 tinham especial cuidado em abordar as questões relacionadas aos comportamentos sexuais que envolviam os circuitos de prostituição. As observações elaboradas por médicos ou mesmo outros profissionais eram em geral sintéticas, mas suficientes para determinar o destino dessas meninas.

Neusa (Prontuário 14153), por exemplo, havia sido internada a pedido de um comissário de menores em 1944, que solicitava seu recolhimento a um hospital por estar com “moléstia venérea”. Uma médica faz um laudo sobre ela no hospital do Serviço de Abrigo e Triagem: tinha sífilis. Diagnóstico: “Lues adquirida. Suficiente intelectual. Retardada escolar e social. Emotiva, acusando certa instabilidade psicomotora e tendências psicastênicas e depressivas. Vontade débil e tendências à prostituição”. Recomendava-se “educação moral e social intensivas. Laborterapia no Instituto Modelo Feminino”. Mas ela não chega a ser enviada para nenhum instituto pois foge em fevereiro de 1945.

Muitas vezes, o destino dessas meninas, que traziam histórico de ligação com a prostituição ou que eram rotuladas como portadoras de tendências à prostituição, era o encaminhamento para o Asilo do Bom Pastor, instituição dirigida por freiras católicas de uma ordem que ficou marcada pela atuação na “correção” de meninas e adultas que apresentavam desvios de comportamento ou efetivamente haviam praticado crimes.88Em São Paulo, Rio de Janeiro e outras capitais, a ordem religiosa Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor de Angers ficou com a responsabilidade desde os anos 1940 dos primeiros presídios de mulheres no Brasil (Angotti, 2012; Artur, 2016).

Outro caso é o de Iolanda (Prontuário 5860), “parda”, com 16 anos. Aqui há combinação de categorias morais e jurídicas que são corroboradas pelos médicos do IPJ e que significaram um intenso controle sobre ela. O juiz de Botucatu, desde novembro de 1937, pedia ao diretor do Serviço Social de Menores a internação de Iolanda, recorrendo às “especiais condições da abandonada” e por tratar-se de pessoa que não era normal. Na sentença, constava que o pai era falecido e a mãe com rumo ignorado. Mencionava também que ela havia sido “vítima de um crime de estupro”, teria morado em casas de tolerância, engravidado e tido um filho natimorto. Ainda, segundo o juiz, ela era abandonada, no sentido legal, e estava no “limiar da perdição moral”. Ela veio para São Paulo, para o Abrigo Provisório de Menores, onde foi feito um laudo pelo IPJ. Nesse laudo constava que a mãe seria de má conduta e negligente. “Houve ainda influência perniciosa de más companhias e do cinema”. Uma das indicações, ao final do laudo, é de “Laborterapia em estabelecimento de Reforma do Estado”. No entanto, foi conduzida para o Asilo do Bom Pastor. Ali havia a possibilidade de Iolanda ser encaminhada para trabalhar em casa de família como pajem ou doméstica “sob soldada”, ou seja, mediante uma pequena remuneração. Tal procedimento envolvia a autorização do juiz de Botucatu, responsável pela sua internação. Este não autorizou a entrega dela para soldada, alegando tratar-se de pervertida sexual e apresentar um “índice positivo de periculosidade”.

Em março de 1941, o Asilo do Bom Pastor devolveu a moça para o Serviço Social de Menores “por dar a mesma sinais de ser anormal”. Ela ficou no Serviço de Abrigo e Triagem e teve novamente o pedido de encaminhamento para casas de família negado pelo juiz. O responsável pelo IPJ reitera os termos do laudo anterior (de 1938) e ainda adiciona que ela constituía um sério “perigo de contágio moral” para as outras internas. Aproveitava para manifestar seu desejo de ser construído um pavilhão para as “anormais”, obviamente referindo-se às meninas e moças que eram consideradas pervertidas sexualmente. Mesmo tendo mais de 20 anos, em maio de 1941, o juiz de Botucatu reitera que deveria ficar internada em “escola de preservação ou de reforma”. Em novembro daquele ano, ela fugiu do Serviço de Abrigo e Triagem onde estava internada.

O caso de Doralina (Prontuário 5035) exemplifica também a condição a que eram submetidas as meninas quando se tratava de prostituição. Não são apresentados na sua guia de internação (de novembro de 1937) os motivos de seu recolhimento (se abandono ou cometimento de alguma infração). Segundo esse documento, ela era parda e declarou ter 18 anos, mas ao longo de sua permanência sob custódia do Serviço Social de Menores a sua idade seria motivo de investigação. Ao que tudo indica, sua internação estava associada à questão da prostituição. Seguem trechos da sentença, prolatada pelo juiz da Capital, que ilustram a condição da menor, bem como os argumentos mobilizados para sua internação:

hei por bem declará-la em estado de abandono no conceito legal. A referida menor como consta do processo não tem pessoa alguma que cuide de si e ignora o paradeiro de seus pais conforme declarou. Trata-se, no caso, de uma menor que devido ao seu estado e passado constante dos autos não pode permanecer no convívio de outras internadas [estava então no Abrigo Provisório de Menores]. A menor, fichada como prostituta em Barretos, exerceu o meretrício em vários lugares conforme declara. Pelo seu proceder e pelo contato que a miséria naturalmente teve pode-se avaliar o seu moral. Oferece o caso perigo para as companheiras de casa. […] O seu moral chegou ao ponto de noção [sic] seu próprio nome e interrogada vem com evasivas ou ignorância. Hábito muito comum entre mulheres do quilate a que pertence a menor. Não sabemos se ainda conserva o seu estado de espírito em parte, pois que a modificação que deverá se operar será custosa e árdua. Sob a proteção do Estado e nos termos do art. 26 n. I, V, VI, interne-se a menor referida em caráter definitivo, por intermédio do DASPM [Departamento de Assistência Social e Proteção aos Menores] que designará o lugar conveniente para sua pessoa. (Prontuário 5035)

Pode-se inferir que a penalidade imposta visava os hábitos e costumes da menor. A miséria em que vivia aparece como responsável por sua moral, apontada como perigosa para as outras internas, pois sua má conduta poderia influenciar as demais, visto seu envolvimento com a prostituição. O fato de ela mentir sobre o nome (em seu prontuário constam dois nomes diferentes, informados pela própria jovem) é apontado pejorativamente como “hábito comum em mulheres do seu quilate”. Certamente essa avaliação referia-se aos indícios de a menor ter “prontuário de prostituta na Polícia de Barretos”.

Em dezembro de 1937, foi para o Asilo do Bom Pastor. Mas em maio de 1940 um grupo de sete moças desse Asilo foi devolvido para o Serviço Social de Menores, pois não poderiam “continuar internadas naquele asilo por não se adaptarem ao regime”.

No caso de Doralina, a rebeldia também se fez no interior do Hospital-Sanatório Leonor Mendes de Barros (então no Mandaqui), para onde foi enviada depois de apresentar um problema de saúde. Um ofício de agosto de 1940, do diretor do Hospital para o diretor do Comissariado do Juízo de Menores, informava que a sua permanência ali estava se “tornando inconveniente pela absoluta falta de respeito à ordem do Hospital-Sanatório Leonor Mendes de Barros. Não desejando aqui ficar, a mesma se convenceu de que, pelo desrespeito e inobservância dos regulamentos conseguiria seu intento”. O diretor informou ainda que muitas providências haviam sido tomadas sem sucesso. O problema é levado ao conhecimento do juiz de menores para encaminhamento. O diretor do Serviço Social de Menores dirige-se ao diretor do Hospital-Sanatório informando que não dispunha de “estabelecimento adequado” para a menor e que ele poderia “agir com a maior severidade para com as menores aí recolhidas, quando não sigam a disciplina desse estabelecimento”. Consta que ela faleceu em 9 de janeiro de 1941, ali no Hospital.99A ausência de um lugar considerado adequado para as meninas também aparece nos registros de outros prontuários. Para uma menina condenada a quatro anos de internação no Reformatório Modelo, o próprio juiz de menores afirmava que “Reformatório Modelo é destinado aos menores abandonados e delinquentes de mais de 10 até 14 anos completos e que não existe, no Estado, nenhum estabelecimento para delinquentes menores do sexo feminino”. No Código de Menores estava prevista a criação de “uma escola de preservação para menores do sexo feminino, que ficarem sob a proteção da autoridade pública” (Brasil, 1927, art. 198), contudo, no caso de São Paulo, os locais para internação de meninas eram improvisados, alas de outras instituições, como se pode observar na ausência de referência a qualquer instituto exclusivamente destinado às meninas na reforma administrativa do Serviço Social de Menores empreendida em 1938, com o Decreto nº 9.744 (São Paulo, 1938).

Outro aspecto que era consensual no meio médico, jurídico e, por extensão, criminológico era a leitura do lugar social destinado à inserção das meninas, fossem elas abandonadas ou infratoras. Isso se refletia na proposta de organização dos locais de internação que o Código de Menores previa para as meninas: “Às menores serão ensinados os seguintes ofícios: costura e trabalhos de agulha; lavagem de roupa; engomagem; cozinha; manufatura de chapéus; datilografia; jardinagem, horticultura, pomicultura e criação de aves” (Brasil, 1927BRASIL. Presidência da República. Decreto nº 17.943-A, de 12 de outubro de 1927. Consolida as leis de assistência e proteção aos menores. Coleção de Leis do Brasil, Rio de Janeiro, 31 dez. 1927, p. 476. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2cwIPoa >. Acesso em: 20 jan. 2014.
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art. 202).

Essa perspectiva de inserir socialmente as meninas nas tarefas domésticas revelava-se não só na organização interna dos institutos que abrigavam as meninas, mas também na colocação delas sob soldada em casas de família. No laudo do IPJ, quando se tratava de meninas, o campo das aptidões quase sempre não era preenchido, ou se registrava que a menor não possuía “vocação profissional”, indicando ao mesmo tempo que era adaptável aos “serviços domésticos”. Em apenas um prontuário entre os pesquisados foi apontada a aptidão de “arrumadeira”.

A colocação de uma menina sob soldada em casas de família significava que ela ficava sob a responsabilidade de uma pessoa dessa família, faria trabalhos domésticos e receberia uma quantia em dinheiro, uma parte para ela e outra parte depositada em uma conta administrada pelo Serviço Social de Menores. A colocação da menina numa casa de família era em geral amparada pela assinatura de um termo de responsabilidade. O juiz de menores, em princípio, deveria ser sempre informado e autorizar esses procedimentos, pois implicava a colocação da menina fora de uma instituição (pública) que havia sido o destino dado pelo juiz. Vários registros indicam atritos entre as meninas e as famílias, que muitas vezes as “devolviam”. Essa devolução nem sempre era justificada pelos responsáveis, constando muitas vezes simplesmente “não se adaptarem ao regime” de soldada. Em suma, a colocação das meninas em casas de família para o trabalho doméstico era o destino único dado a elas. Mesmo quando não se adaptavam a essas tarefas, depois de várias tentativas, a medida adotada pelas instituições de internação era sempre a mesma: confiar a menina a uma família sob soldada.

Considerações finais

A partir da apresentação de alguns resultados preliminares das pesquisas, busca-se contribuir para uma compreensão mais alargada sobre os controles sociais de menores infratores ou abandonados desde o advento do Código de Menores de 1927. A forma de organização dos serviços voltados para a gestão da menoridade desde 1935 em São Paulo indica que, além dos saberes jurídicos, os saberes especializados de médicos, psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais compunham um quadro complexo de referências para diagnosticar as condições sociais dos menores, seu perfil de personalidade, suas patologias, deficiências de toda natureza, inferências sobre suas famílias, e as trajetórias daqueles menores no abandono, nas infrações. Diagnósticos e classificações que acabavam por ser determinantes na forma de inserção dos menores na vida institucional, bem como nos ensaios de vida no trabalho, mesmo antes do desligamento das instituições. As orientações morais e percepções punitivas que atravessavam esses saberes explicam muitas das prescrições determinadas para a tutela do Estado sobre os menores e o tipo de tratamento a eles imposto.

Nesse sentido, buscou-se enfatizar os casos que envolviam meninas e a presunção de comportamentos desviantes, sobretudo aqueles que envolviam a prostituição, bem como aspectos da inserção social dos menores por meio do trabalho. Nessas duas vertentes, ficam claras as diretrizes morais que davam suporte para as sentenças judiciais, para os laudos do IPJ, para as prescrições de tratamento dos menores, fossem abandonados ou infratores.

É necessário reconhecer que há muito a ser descoberto sobre a gestão da menoridade no período aqui trabalhado. Apesar dos avanços consideráveis na literatura específica sobre a menoridade nas últimas décadas, são escassos ainda os trabalhos destinados às práticas voltadas para a gestão das meninas. O intento foi trazer alguma reflexão sobre esses mecanismos de controle e gestão da menoridade e delinear algumas pistas, a serem aprofundadas, sobre as representações sociais disponíveis no período sobre a condição das meninas em abandono e das infratoras e como as tratavam as instituições públicas e privadas nas quais eram inseridas. A documentação aqui utilizada, formada pelos prontuários do Serviço Social de Assistência e Proteção aos Menores, pode inclusive proporcionar avanços ainda mais significativos para a compreensão desse capítulo da história da infância e juventude no Brasil.

Referências

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  • 1
    Este artigo é versão ampliada de paper produzido para o 11º Fazendo Gênero, realizado em Florianópolis de 30 de julho a 4 de agosto de 2017. Resulta em parte da pesquisa Tempo presente e instituições de isolamento social em Santa Catarina: perscrutando histórias marginais, desenvolvida de 2014 a 2017, que contou com recursos financeiros do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Ministério da Ciência e Tecnologia (Número: 443433/2014-3). Resulta também da pesquisa A gestão das crianças abandonadas e dos jovens infratores na formação da metrópole de São Paulo (1935-1964), que integra o projeto temático Gestão do conflito na produção da cidade contemporânea: a experiência paulista, que contou com recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Os prontuários usados na pesquisa foram acessados pelo Centro de Pesquisa e Documentação da Escola de Formação e Capacitação Profissional da Fundação Casa.

  • 2
    Para uma reflexão mais detalhada sobre o uso dos prontuários de instituições de confinamento em pesquisas nas ciências humanas, ver Salla e Borges (2017SALLA, F.; BORGES, V. Prontuários de instituições de confinamento. In: RODRIGUES, R. R. (Org.). Possibilidades de pesquisa em História. São Paulo: Contexto, 2017. p. 115-136.).

  • 3
    A respeito da história da infância e da adolescência, ver Vianna (1999VIANNA, A. R. B. O mal que se adivinha: polícia e menoridade no Rio de Janeiro, 1910-1920. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1999.), Brites (1999BRITES, O. Imagens da infância: São Paulo e Rio de Janeiro, 1930/1950. Projeto História, São Paulo, v. 19, p. 251-264, 1999.), Marcón (2008MARCÓN, O. A. La responsabilidad del niño que delinque. Revista Katáysis, Florianópolis, v. 11, n. 2, p. 237-247, 2008.), Arend (2011AREND, S. M. F. Histórias de abandono: infância e justiça no Brasil (década de 1930). Florianópolis: Mulheres, 2011.), Alvarez (1989ALVAREZ, M. C. A emergência do código de menores de 1927: uma análise do discurso jurídico e institucional da assistência e proteção aos menores. 1989. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, 1989.) e Rizzini (2011RIZZINI, I. O século perdido: raízes históricas das políticas públicas para a infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 2011.).

  • 4
    A Liga das Senhoras Católicas, criada em 1923, “servia de intermediária entre o Juízo de Menores, o Serviço Social de Menores [SSM] e as instituições religiosas que mantinham abrigos e orfanatos na capital e no interior. A Liga das Senhoras Católica mantinha a Casa da Infância e o Educandário Dom Duarte (EDD), mas fazia a colocação de menores abandonados a pedido do juiz ou do diretor do SSM em diversas instituições: Abrigo Santa Maria; Abrigo ou Casa Santa Marta; Asilo da Divina Providência; Asilo do Bom Pastor; Asilo São José do Belém; Assistência Vicentina aos Mendigos – Sanatório de Tuberculosos Pobres; Casa Pia de S. Vicente de Paula; Asilo dos Expostos; Lar São Paulo; Colégio Patrocínio de São José (de Lorena); Asilo de Vila Mascote (que era mantido pela Assistência Vicentina aos Mendigos da Sociedade de S. Vicente de Paulo)” (Alvarez; Salla; Lourenço, 2016ALVAREZ, M. C.; SALLA, F.; LOURENÇO, L. C. Projeto Fundação CASA: prontuários 1925-1934. São Paulo: Núcleo de Estudos da Violência, 2016. (Relatório de pesquisa)., p. 6).

  • 5
    É certo que o IPJ não fazia laudos para todos os menores que davam entrada no Serviço. A pesquisa nos prontuários indica que o IPJ fazia seus pareceres a pedido específico do juiz ou quando havia dúvida por parte dos administradores com relação ao destino a ser dado a um jovem. Eram comuns os casos de laudos para menores que apresentavam problemas disciplinares nas instituições de internação, para aqueles que eram internados por conta de infrações reiteradas, praticadas nas cidades em que residiam, para aqueles que eram considerados dementes, para avaliação da idade daqueles que não tinham registro de nascimento e, ainda, para as meninas em caso de verificação de integridade física quando havia suspeita de estupro.

  • 6
    Nesse mesmo ano foi criado no Rio de Janeiro o Laboratório de Biologia Infantil, visando o cuidado de crianças classificadas como abandonadas e delinquentes (Silva, 2011SILVA, R. O laboratório de biologia infantil, 1935-1941: da medicina legal à assistência social. História, Ciências, Saúde: Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 18, n. 4, p. 1111-1130, 2011.).

  • 7
    Prontuário 7078. Todos os nomes de menores apresentados neste trabalho são fictícios; fazemos apenas referência ao número de seu prontuário, obtido em pesquisas na documentação do Serviço Social de Menores (ver nota 3).

  • 8
    Em São Paulo, Rio de Janeiro e outras capitais, a ordem religiosa Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor de Angers ficou com a responsabilidade desde os anos 1940 dos primeiros presídios de mulheres no Brasil (Angotti, 2012ANGOTTI, B. Entre as leis da ciência, do Estado e de Deus. São Paulo: IBCCRIM, 2012. (Coleção Monografias, v. 62).; Artur, 2016ARTUR, A. T. Institucionalizando a punição: origens do Presídio de Mulheres do Estado de São Paulo. São Paulo: Humanitas, 2016.).

  • 9
    A ausência de um lugar considerado adequado para as meninas também aparece nos registros de outros prontuários. Para uma menina condenada a quatro anos de internação no Reformatório Modelo, o próprio juiz de menores afirmava que “Reformatório Modelo é destinado aos menores abandonados e delinquentes de mais de 10 até 14 anos completos e que não existe, no Estado, nenhum estabelecimento para delinquentes menores do sexo feminino”. No Código de Menores estava prevista a criação de “uma escola de preservação para menores do sexo feminino, que ficarem sob a proteção da autoridade pública” (Brasil, 1927BRASIL. Presidência da República. Decreto nº 17.943-A, de 12 de outubro de 1927. Consolida as leis de assistência e proteção aos menores. Coleção de Leis do Brasil, Rio de Janeiro, 31 dez. 1927, p. 476. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2cwIPoa >. Acesso em: 20 jan. 2014.
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    , art. 198), contudo, no caso de São Paulo, os locais para internação de meninas eram improvisados, alas de outras instituições, como se pode observar na ausência de referência a qualquer instituto exclusivamente destinado às meninas na reforma administrativa do Serviço Social de Menores empreendida em 1938, com o Decreto nº 9.744 (São Paulo, 1938SÃO PAULO. Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo Decreto nº 9.744, de 19 de novembro de 1938. Reorganiza o Serviço Social dos Menores, do Departamento de Serviço Social, e dá outras providências. Diário Oficial do Estado de São Paulo, São Paulo, 23 nov. 1938, p. 2. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/WcRFcu >. Acesso em: 16 jan. 2014.
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    ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2018

Histórico

  • Recebido
    16 Fev 2018
  • Aceito
    26 Mar 2018
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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