É com um misto de orgulho e prazer que apresentamos o resultado deste dossiê voltado para a sociologia da saúde, em especial aquela de língua ou raiz francesa e brasileira. Este dossiê espelha as colaborações já antigas entre Miguel Montagner e Marie Jaisson, baseadas no interesse original (e sempre presente) na teoria de Pierre Bourdieu. O primeiro como um discípulo tardio que vasculhou as obras do autor em busca do tema da saúde (Montagner, 2008aMONTAGNER, M. Â. Pierre Bourdieu e a saúde: uma sociologia em Actes de la recherche en sciences sociales. Cadernos de Saude Pública, Rio de Janeiro, v. 24, n. 7, p. 1588-1598. 2008a., 2008bMONTAGNER, M. Â. Sociologia médica, sociologia da saúde ou medicina social? Um escorço comparativo entre França e Brasil. Saude e Sociedade, São Paulo, v. 17, n. 2, p. 193-210, 2008b.); a segunda como orientanda direta e que se aprofundou no tema da saúde via medicina e a forma como ela era exercida em uma vila específica da França (Jaisson, 1995JAISSON, M. Les Lieux de l’art: études sur la structure sociale du milieu médical dans une ville universitaire de province. 1995. Tese (Doutorado em Sociologia) - Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris, 1995., 2011JAISSON, M. Entrevista com Marie Jaisson. Tempus Actas de Saúde Coletiva, Brasília, DF, v. 5, n. 2, p. 13-21, 2011.).
Coroando este esforço, imaginou-se organizar um dossiê que apresentasse pesquisas referentes à sociologia da saúde na França, com paralelos em temas e questões atuais no Brasil.
Um primeiro tema refere-se às origens dessa sociologia da saúde, descendente da sociologia médica. Esta, por sua vez, foi fortemente marcada pela análise das profissões, tema caro a Marx e a Durkheim. A sociologia da medicina é estruturada sobre o modelo da sociologia das profissões das primeiras décadas do século XX nos Estados Unidos. A professora Marie Jaisson mostra em seu artigo “L’étude des pratiques médicales : l’écran de la sociologie des professions” que, desde então, passando por Parsons, este pecado original permanece nas hordas do pensamento social em saúde, seja na forma das relações entre Estado e Saúde, seja nas relações entre as profissões da área da saúde. Ao discorrer sobre a sociologia das profissões nos dois lados do Atlântico, Jaisson deslinda as intersecções e entrelaçamentos entre estas duas correntes e mostra como a sociologia médica, e posteriormente a da saúde, continuam a repercutir suas origens. Vale lembrar que, no Brasil, Donnangelo (1975DONNANGELO, M. C. F. Medicina e sociedade: o médico e seu mercado de trabalho. São Paulo: Pioneira, 1975.) abre sua obra justamente analisando a relação entre o trabalho médico e o modo de produção capitalista brasileiro ou, dito de outra forma, o papel do trabalho e da profissão médica no sistema de produção e a importância da saúde na reprodução do capital.
Nesse sentido, Nicolas Belorgey vai justamente explorar, no texto “Nouvelle gestion publique et professions hospitalières”, o esforço que vem sendo feito para “introduzir” no setor público de saúde francês um novo tipo de gestão, importado do setor privado e do modelo neoliberal. Esse esforço de redefinir as políticas públicas e o setor de saúde afeta mais diretamente os hospitais e, neste espaço, as profissões mais sujeitas ao controle e menos capazes ou com menos autonomia para se defender do processo, por exemplo, enfermeiros e paramédicos. Esta análise se utiliza também da sociologia das profissões, tanto interna como externa ao campo da saúde, e de autores “modernos” da sociologia da saúde, aqui em um contexto atual e de resistência ao pensamento neoliberal na França.
Em uma tessitura paralela à sociologia das profissões, cuja fonte é a Escola de Chicago, no artigo “La guérison en cancérologie : une improbable ambition” Marie Ménoret lança mão do instrumental do interacionismo simbólico, na vertente de Anselm Strauss e sua teoria fundamentada (grounded theory). Nesse diálogo, mostra as relações entre a incerteza médica e a gestão do adoecimento. De modo subliminar, o que se discute é a ambição da medicina de atingir a cura, e as dificuldades em lidar com os adoecimentos crônicos, tanto na forma de episteme incompleta do ponto de vista biomédico como de prática social complexa e custosa social e emocionalmente.
Um terceiro autor vai lidar com a profissão médica, com a técnica da análise documental, no artigo “Enquête sur une politique manquée : l’État français et la démographie médicale (1960-2015)”. Imergindo nos documentos estatais e oficiais, Marc-Olivier Déplaude parte da instituição do numerus clausus na França, primeira medida regulatória da profissão, para traçar o histórico de idas e vindas dos esforços do Estado para suprir de forma equilibrada a oferta de saúde no país. Este processo é complexo tanto em relação ao número absoluto dos médicos quanto às especializações, e mais, o equilíbrio entre médicos especialistas e generalistas é difícil de obter. No balanço concorrencial deste sistema de quotas se encaixarão os médicos estrangeiros, estes também regulados em relação ao número dos formados na França e com nacionalidade francesa. O autor tece uma renda fina, em que situa a demografia médica de forma bourdieusiana, como objeto de disputa dento da profissão.
Por fim, quase como um exemplo prático do resultado das mudanças sociais e do aparato de Estado voltado à saúde, Jérémy Geeraert se debruça, no artigo “La prise en charge par l’hôpital des populations à la marge du système de santé : l’exemple des Permanences d’accès aux soins de santé”, sobre aqueles que estão à margem do sistema oficial de saúde, a saber, os “precarizados ou excluídos” que buscam o atendimento de apelo assistencial, caso a caso, desse modo incerta e estigmatizante. O autor deslinda o papel profissional e o papel dos profissionais em contato direto com essa saúde assistencial, papéis centrais para definir o grau de adoecimento meritório e de necessidade social que franquia a entrada das pessoas necessitadas no sistema e quais devem ser excluídos. Ele clarifica os “critérios” de acesso, misto de biodireito e moral. Esse recorte aponta uma distinção entre “bons imigrantes/pobres” que obtêm acesso (ainda que limitado na qualidade e quantidade dos cuidados médicos) e os “imigrantes/pobres ruins”. Nesse caso, a questão se desabre em todos os seus matizes, refletidas nas luzes da política assistencial.
Visto o panorama geral do dossiê que aqui apresentamos, podemos perceber grandes solidariedades entre os objetos e temas da sociologia da saúde em ambos os países, ainda que os graus de nudez da vida, no sentido de Agamben, nos dois casos não sejam equivalentes, embora parecidos. O que dizer da questão da precariedade dos profissionais estrangeiros, patente no Brasil com o Programa Mais Médicos e na França com políticas específicas de cotas para médicos estrangeiros?
As origens comuns desses campos intelectuais, com fortes raízes na sociologia das profissões e do trabalho - na perspectiva marxista -, ficaram explícitas, haja vista as metodologias análogas com a linha evolutiva da Escola de Chicago e os temas muito confluentes em ambas as sociedades. Parece que o destino comum das sociedades modernas atingiu igualmente ambas as correntes.
Referências
- DONNANGELO, M. C. F. Medicina e sociedade: o médico e seu mercado de trabalho. São Paulo: Pioneira, 1975.
- JAISSON, M. Les Lieux de l’art: études sur la structure sociale du milieu médical dans une ville universitaire de province. 1995. Tese (Doutorado em Sociologia) - Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris, 1995.
- JAISSON, M. Entrevista com Marie Jaisson. Tempus Actas de Saúde Coletiva, Brasília, DF, v. 5, n. 2, p. 13-21, 2011.
- MONTAGNER, M. Â. Pierre Bourdieu e a saúde: uma sociologia em Actes de la recherche en sciences sociales. Cadernos de Saude Pública, Rio de Janeiro, v. 24, n. 7, p. 1588-1598. 2008a.
- MONTAGNER, M. Â. Sociologia médica, sociologia da saúde ou medicina social? Um escorço comparativo entre França e Brasil. Saude e Sociedade, São Paulo, v. 17, n. 2, p. 193-210, 2008b.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Jul-Sep 2018
Histórico
- Recebido
30 Ago 2018 - Aceito
03 Set 2018