Resumo
Apesar do crescente reconhecimento público da sua incompletude e da necessidade de a fazer dialogar com outros saberes, a biomedicina continua a figurar como metanarrativa, como modelo médico epistemologicamente superior, definidor e regulador do que se entende por “saber médico”. É na persistência dessa representação de superioridade que reside um dos grandes obstáculos - senão mesmo o maior - à criação de uma efetiva ecologia de saberes no campo dos cuidados de saúde. Com base numa revisão da literatura sobre o tema, este artigo toma justamente por objetivo a desconstrução da versão essencialista da superioridade biomédica, evidenciando o modo como essa suposta superioridade é, na verdade, decorrente de um complexo quadro sociocultural de produção histórica. Assim, revisitando a literatura existente, o artigo desenvolve perspectiva condensada em torno dos principais pilares da construção do poder hegemónico da biomedicina no contexto da modernidade ocidental, a saber: (1) a ligação umbilical da biomedicina à ciência moderna e à sua trajetória de colonização; (2) o processo de anatomoclínica e o modo como, por esse processo, a biomedicina se estabeleceu como poder normativo/regulador, passando a auferir legitimidade e proteção por parte dos Estados; (3) a suposta maior eficácia da biomedicina no quadro de sua maior compatibilidade com os novos imperativos capitalistas; e (4) a constituição de forte movimento profissional biomédico e suas estratégias de fechamento na construção de sua hegemonia.
Palavras-chave:
Biomedicina; Metanarrativa; Poder Hegemónico; Desconstrução Sociológica; Ecologia de Saberes
Abstract
Despite the growing public recognition of its incompleteness and its need to make it dialog with other knowledges, biomedicine continues to figure as a metanarrative, as an epistemologically superior medical model, defining and regulating what is meant by “medical knowledge”. One of the great obstacles - if not the greatest - to the creation of an effective ecology of knowledges in the field of health care lies in the persistence of this representation of superiority. Based on a review of the literature about the subject, this article aims precisely at deconstructing the essentialist version of biomedicine’s superiority, showing how this supposed superiority results, in fact, from a complex sociocultural framework of historical production. In this sense, revisiting the existing literature, the article develops a condensed perspective around the main pillars of the construction of the hegemonic power of biomedicine in the context of Western modernity: (1) the umbilical connection of biomedicine to modern science and its colonization trajectory; (2) the anatomical-clinical process and how biomedicine established itself, through this process, as a normative/regulatory power, gaining legitimacy and protection by the States; (3) the alleged greater effectiveness of biomedicine in the context of its greater compatibility with the new capitalist imperatives; and (4) the constitution of a strong biomedical professional movement and its closing strategies in the construction of its hegemony.
Keywords:
Biomedicine; Metanarrative; Hegemonic Power; Sociological Deconstruction; Ecology of Knowledges
Introdução
Firmada sob a crença de representar um metasaber, uma verdade única, universal e globalizante, a biomedicina exibe-se nas modernas sociedades ocidentais como metanarrativa22Lyotard (2003) utiliza o termo “metanarrativa” para designar toda a forma discursiva de saber que, num dado momento, tem capacidade de agregar um nível superior de consenso em relação a uma multiplicidade de jogos de linguagem, passando a representar um discurso superior de legitimação, ao qual são atribuídos poderes diversos, como o de descrever e prescrever a realidade humana com base numa ideia de progresso. (Lyotard, 2003LYOTARD, J.-F. A condição pós-moderna. Lisboa: Gradiva, 2003.). Carreando uma inevitável “distorção da construção do conhecimento histórico” (Gomes; Meneses, 2011GOMES, C.; MENESES, M. P. História e colonialismo: por uma inter-historicidade. Recueil Alexandries, [S.l.], À Traduire, déc. 2011. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2PYg2cC >. Acesso em: 4 maio 2018.
https://bit.ly/2PYg2cC... ) - no caso, uma distorção sobre os modos de construção do saber médico -, tal aspiração hegemónica ressoa nos discursos do senso comum, traduzindo aquilo que podemos designar como um dos grandes ecos de sua gigantesca capacidade de afirmação regulatória. Com efeito, diariamente, de forma inconsciente e automática, todas/os nós - incluindo cientistas sociais - a veiculamos simplesmente como “a medicina”, reservando as especificações terminológicas para as práticas terapêuticas ou sistemas de cura que não são tidos como reais ou legítimos (Hahn; Kleinman, 1983HAHN, R.; KLEINMAN, A. Biomedical practice and anthropological theory: frameworks and directions. Annual Review of Anthropology, Palo Alto, v. 12, n. 117, p. 305-333, 1983.), como é o caso, entre outras, da medicina tradicional chinesa, medicina ayurvédica, medicina antroposófica ou homeopatia.
No campo do crescente reconhecimento, em âmbito internacional, da importância de se edificar um novo paradigma de cuidados de saúde que atenda à integralidade humana, é imperativo que se resgate do plano da “inferioridade” ou da “não existência” a multiplicidade de sistemas terapêuticos33Atendendo à limitação de espaço e ao objetivo do artigo, opta-se por não desenvolver esses sistemas terapêuticos, referenciando-os de forma lata e superficial, que não traduz, obviamente, sua complexidade. Ainda assim, há um aspecto que devemos realçar, respeitando sua diversidade e heterogeneidade. De facto, o universo desses sistemas terapêuticos está longe de poder ser tratado em “bloco”, como um universo homogéneo. A título de exemplo, muitos deles têm em comum uma visão integral e sistémica do ser humano, no entanto importa não esquecer que essa não é necessariamente uma visão inerente ou efetivamente praticada por todos os sistemas, de forma inequívoca e universal - consulte-se, a propósito, Capra (1982, p. 296-297) a respeito da prática de alguns terapeutas da medicina tradicional chinesa, nem sempre caracterizada por verdadeiro holismo. Esta nota de rodapé serve, portanto, para alertar à necessidade de se atender a essa diversidade sempre que, ao longo do texto, nos referimos a esses sistemas terapêuticos, o que acontece, aliás, já a seguir, no mesmo parágrafo desta nota, quando nos referimos à visão holística de muitos desses sistemas, em contraponto à visão fragmentada da biomedicina. Sublinhe-se: referimo-nos a “muitos”, mas não a todos. silenciados e desperdiçados pelas sociedades modernas ocidentais (Santos, 1995SANTOS, B. S. Toward a new common sense. New York: Routledge, 1995.; Santos; Meneses; Nunes, 2004SANTOS, B. S.; MENESES, M. P.; NUNES, J. A. Introdução: para ampliar o cânone da ciência: a diversidade epistemológica do mundo. In: SANTOS, B. S. Semear outras soluções: os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais. Porto: Afrontamento, 2004. p. 19-101.) quando do processo de hegemoneização da biomedicina. Sob a ótica de uma “ecologia de saberes” (Santos, 2007SANTOS, B. S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 78, p. 3-46, 2007.), tais sistemas revelam-se, de facto, de valiosíssima importância, ainda mais quando se atenta ao facto de - no âmbito daquele que é um campo de saberes e práticas “extremamente múltiplo e sincrético” (Andrade; Costa, 2010ANDRADE, J. T.; COSTA, L. F. A. Medicina complementar no SUS: práticas integrativas sob a luz da antropologia médica.Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 19, n. 3, p. 497-508, 2010., p. 499) - muitos deles irem ao encontro de uma visão integral e sistémica, em contraponto à perspectiva dualista e fragmentada da biomedicina (Capra, 1982CAPRA, F. Ponto de mutação. São Paulo: Cultrix, 1982.; Luz, 2005LUZ, M. T. Cultura contemporânea e medicinas alternativas: novos paradigmas em saúde no fim do século XX. Physis, Rio de Janeiro, v. 7, n. 15, p. 145-176, 2005.; 2014LUZ, M. T. A arte de curar versus a ciência das doenças: história social da homeopatia no Brasil. Porto Alegre: Rede Unida, 2014.). Ora, o estabelecimento de verdadeiro diálogo entre saberes no campo da saúde implica, necessariamente, a construção de efetiva equidade entre a diversidade desses saberes mediante o reconhecimento de igual valor epistémico. Pensamento ecológico, segundo Santos (2007)SANTOS, B. S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 78, p. 3-46, 2007., é aquele que dissolve hierarquias, não aceitando a imposição de um saber sobre outros. Um pensamento ecológico aplicado ao campo da saúde será, então, aquele que, não rejeitando ou subestimando o papel da biomedicina, lhe reconhece, todavia, a incompletude, considerando a urgente necessidade de a colocar em interação e diálogo horizontal com outras formas de saber. Posto isso, um passo fundamental na edificação de uma ecologia de saberes na área da saúde residirá, antes de tudo, na desconstrução do “privilégio epistémico” da biomedicina. Partindo dessa premissa, este artigo toma como objetivo essa desconstrução mediante revisão da literatura sobre o tema.
Desconstruir o pretenso privilégio epistémico da biomedicina passa por inscrevê-la em seu complexo quadro de produção histórica, entendendo-a como um sistema terapêutico entre muitos outros, construído num contexto social e cultural determinado e, portanto, fundado sobre um conjunto específico de valores, premissas, crenças e problemáticas (Hahn; Kleinman, 1983HAHN, R.; KLEINMAN, A. Biomedical practice and anthropological theory: frameworks and directions. Annual Review of Anthropology, Palo Alto, v. 12, n. 117, p. 305-333, 1983.; Kleinman, 1980KLEINMAN, A. Patients and healers in the context of culture. Berkeley: University of California Press, 1980.; Lock; Nguyen, 2010LOCK, M.; NGUYEN, V.-K. An anthropology of biomedicine. Chichester: Wiley-Blackwell, 2010.). A biomedicina é, então, no âmbito deste artigo, objeto de compreensão sociológica a partir do contexto histórico da modernidade ocidental - conjuntura sociocultural da qual emergiu e se desenvolveu até os nossos dias.44É desse modo que, no âmbito deste artigo, se utiliza o termo “medicina científica moderna” em alternância com o termo “biomedicina”. Ambos os conceitos se referem ao mesmo modelo médico. A desconstrução que aqui se propõe ocorre mediante quatro pontos, que correspondem àquilo que aqui se entende serem os principais pilares de construção do poder hegemónico da biomedicina. A eles se chegou por meio de revisão da literatura sobre o tema, aliada a um esforço individual de síntese, articulação e condensação das várias abordagens identificadas. O primeiro ponto dedica-se à compreensão do suposto privilégio epistémico da biomedicina pela sua “ligação umbilical” à ciência moderna e à sua trajetória de colonização. O segundo ponto dedica-se ao modo como a biomedicina foi ao encontro dos ideais modernos e se estabeleceu como poder normativo. O terceiro ponto questiona o reconhecimento público da (suposta) maior eficácia do modelo biomédico, granjeado a partir de meados do século XIX, relativizando-o no quadro da sua compatibilidade com os novos imperativos capitalistas. Finalmente, o quarto ponto dedica-se à importância da constituição de um forte movimento profissional biomédico e suas estratégias de fechamento, ativadas no sentido da monopolização dos cuidados oficiais de saúde.
A ligação umbilical à ciência moderna e à sua trajetória de colonização
O gigantesco capital simbólico granjeado pela biomedicina melhor se compreende se atentarmos no seu contexto sociocultural de produção - a modernidade ocidental -, mais especificamente no culto exacerbado ao cientificismo, que se constitui, por assim dizer, como a grande marca ideológica que perpassa todo o projeto da modernidade. De facto, não é sem motivo que a modernidade é também conhecida por Era da Razão ou Era da Ciência. Inaugurada com a revolução científica cartesiana/newtoniana dos séculos XVI-XVII, a modernidade ocidental fez assentar seu projeto de emancipação numa hipercientificização da realidade, ou seja, num verdadeiro monopólio da racionalidade cognitivo-instrumental da ciência (Santos, 2000SANTOS, B. S. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. Porto: Afrontamento, 2000.), da qual fez derivar todas as suas audaciosas promessas de abundância e prosperidade. Alicerçada nos princípios materialistas, dualistas e deterministas de Descartes e Newton, a ciência moderna teve capacidade de se naturalizar como única explicação possível do real, ao ponto de “não o podermos conceber senão nos termos por ela propostos” (Santos, 2000SANTOS, B. S. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. Porto: Afrontamento, 2000., p. 79).
A afirmação da ciência como única forma de conhecimento válido tem em sua origem não apenas razões de ordem epistemológica, mas também razões de ordem económica, social e política (Foucault, 1992FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1992., 1999FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1999.; Mignolo, 2003MIGNOLO, W. Os esplendores e as misérias da ciência: colonialidade, geopolítica do conhecimento e pluriversalidade epistémica. In: SANTOS, B. S. Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências revisitado. Porto: Afrontamento, 2003. p. 667-709.; Santos, 2000SANTOS, B. S. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. Porto: Afrontamento, 2000.; Santos; Meneses; Nunes, 2004SANTOS, B. S.; MENESES, M. P.; NUNES, J. A. Introdução: para ampliar o cânone da ciência: a diversidade epistemológica do mundo. In: SANTOS, B. S. Semear outras soluções: os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais. Porto: Afrontamento, 2004. p. 19-101.). Com efeito, traduzindo-se facilmente em desenvolvimento técnico, a ciência moderna não tardou a se associar ao capitalismo nascente, passando a representar um sem fim de potencialidades de prosperidade material e social, em ruptura com tudo aquilo que se pretendia superar do passado. Desde então, e no mesmo passo em que foi capaz de transformar “os critérios de validade do conhecimento em critérios de cientificidade do conhecimento”, a ciência moderna “conquistou o privilégio de definir não só o que é ciência, mas, muito mais do que isso, o que é conhecimento válido” (Santos; Meneses; Nunes, 2004SANTOS, B. S.; MENESES, M. P.; NUNES, J. A. Introdução: para ampliar o cânone da ciência: a diversidade epistemológica do mundo. In: SANTOS, B. S. Semear outras soluções: os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais. Porto: Afrontamento, 2004. p. 19-101., p. 19). Paralelamente, a consolidação dessa soberania epistémica inscreve-se num processo bem mais amplo e bem mais complexo, que se situa para lá das fronteiras histórias e culturais que o viram nascer. Apresentando-se-lhe a negatividade de outros saberes como espelho refletor de sua tão almejada positividade, a ciência moderna empreende verdadeiro projeto de asfixia da validade dessas “epistemologias outras” (Meneses, 2008MENESES, M. P. Epistemologias do Sul. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 80, p. 5-10, 2008., p. 6), expedindo-as para posições de inferioridade (Mignolo, 2003MIGNOLO, W. Os esplendores e as misérias da ciência: colonialidade, geopolítica do conhecimento e pluriversalidade epistémica. In: SANTOS, B. S. Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências revisitado. Porto: Afrontamento, 2003. p. 667-709.; Santos, 2007SANTOS, B. S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 78, p. 3-46, 2007.; Santos; Meneses; Nunes, 2004SANTOS, B. S.; MENESES, M. P.; NUNES, J. A. Introdução: para ampliar o cânone da ciência: a diversidade epistemológica do mundo. In: SANTOS, B. S. Semear outras soluções: os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais. Porto: Afrontamento, 2004. p. 19-101.); a partir daí, elas passam a ser declaradas como “não existentes ou descritas como reminiscências do passado” (Meneses, 2008MENESES, M. P. Epistemologias do Sul. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 80, p. 5-10, 2008., p. 6). Cumpre-se esse projeto por via do acoplamento à expansão colonial - outro grande projeto da modernidade -, numa simbiose perfeita que serve aos audaciosos intentos de ambos os empreendimentos, ciência e colonialismo.
De facto, conforme aponta a teoria crítica implicada com o pensamento pós-colonial, a deslegitimação dos saberes dos povos conquistados - os chamados povos do “Sul” - constituiu-se como uma das mais ardilosas estratégias de sucesso da constituição daquilo que Mignolo (2005MIGNOLO, W. A colonialidade de cabo a rabo: o hemisfério ocidental no horizonte conceitual da modernidade. In: LANDER, E. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais: perspetivas latino-americanas. Buenos Aires: Clasco, 2005. p. 71-103.) - numa adaptação da terminologia de Wallerstein (1974WALLERSTEIN, I. The modern world-system: capitalist agriculture and the origins of the European world-economy in the sixteenth century. New York: Academic Press, 1974.) - designa por “sistema mundo/moderno colonial”. Ao reduzirem a imensa diversidade de saberes dos povos conquistados a meras manifestações de irracionalidade que necessariamente devem ser submetidas à única fonte de saber verdadeiro - o conhecimento científico -, os agentes colonizadores veem facilmente chanceladas suas práticas de subordinação e “domesticação”, proclamando-as em nome de supostos “projetos ‘civilizadores’, libertadores ou emancipatórios” (Santos; Meneses; Nunes, 2004SANTOS, B. S.; MENESES, M. P.; NUNES, J. A. Introdução: para ampliar o cânone da ciência: a diversidade epistemológica do mundo. In: SANTOS, B. S. Semear outras soluções: os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais. Porto: Afrontamento, 2004. p. 19-101., p. 23). No mesmo passo em que se expande à custa desse verdadeiro “epistemicídio”, como lhe chama Santos (2007)SANTOS, B. S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 78, p. 3-46, 2007., o projeto imperialista robustece globalmente o poder hegemónico do conhecimento científico moderno, transformando-o num “regime de verdade” (Foucault, 1992FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1992.).
O percurso da biomedicina inscreve-se e funde-se, portanto, nesse mesmo percurso sócio-histórico da ciência moderna, porquanto é justamente no seio dessa racionalidade que ela nasce e se consolida conforme hoje a conhecemos. É, portanto, na medida em que se encontra tão visceralmente vinculada à racionalidade científica moderna que a emergente biomedicina se consolida, ela própria, como “regime de verdade” (Foucault, 1992FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1992.) ou “metanarrativa” (Lyotard, 2003LYOTARD, J.-F. A condição pós-moderna. Lisboa: Gradiva, 2003.), colonizando e deslegitimando todos os outros saberes terapêuticos ou sistemas de cura, tenham eles sido produzidos nas modernas sociedades ocidentais, nos países do oriente ou nos chamados países do Sul.
Essa não é, todavia, uma transformação automática. Durante praticamente todo o século XVIII, conhecimentos e práticas terapêuticas de carácter não científico - designadamente, a teoria humoral desenvolvida por Galeno e determinadas práticas da medicina tradicional chinesa - ocupam lugar em círculos médicos de muitas sociedades ocidentais, a tal ponto que a acupuntura chega mesmo, por esta altura, a ser praticada em hospitais públicos da França e da Inglaterra (Bivins, 1997BIVINS, R. The body in balance. In: PORTER, R. Medicine: a history of healing: ancient traditions to modern practices. New York: Barnes & Noble, 1997. p. 94-117.). Um marco histórico se dá, todavia, em meados do século XVIII, encarreirando a emergente medicina moderna numa trajetória cientificista que vem minar, por completo, sua possibilidade de aproximação a outros sistemas de cura ou formas de conhecimento terapêutico. Trata-se da publicação, em 1761, da obra De sedibus et causis morborum, na qual Morgagni apresenta relação entre as lesões dos cadáveres e as manifestações das doenças. É a partir daqui, com efeito, que se inicia consistentemente aquilo que Foucault (1977)FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1977. designa por anatomoclínica, um processo que marca o início da medicina científica moderna.
É colossal a mudança de perspectiva que então se opera. A partir do momento em que se admite que os sintomas são manifestações de lesões, todo um novo campo epistemológico se descerra, incompatível com “explicações outras” que não sejam as que se fundamentem em critérios de positividade, próprios da racionalidade científica moderna. Com a nova visão da anatomoclínica, estabelece-se uma ligação visceral entre lesão e doença que vem autorizar a redução de todo o processo de adoecimento a fatores biológicos. Subsumindo todo o processo de adoecimento à lesão, a nascente biomedicina “ganha poder absoluto sobre a doença, na medida em que nada do que ocorre escapa aos seus domínios” (Camargo Junior, 1992CAMARGO JUNIOR, K. R. (Ir)racionalidade médica: os paradoxos da clínica. Physis, Rio de Janeiro, v. 2, n. 1, p. 203-230, 1992., p. 212).
O nascimento da clínica, a cumplicidade com os ideais modernos e a conquista do poder normativo
As conquistas anteriormente descritas só se tornam possíveis graças a correlatas transformações no espaço hospitalar, onde são criadas as condições para a realização das observações necessárias ao estabelecimento das descrições anatomopatológicas. De facto, a movimentação epistemológica que instaura uma nova racionalidade médica - a científica - acontece a par de profundas alterações nos papéis e modos de funcionamento da instituição hospitalar. É nessa reconfigurada instituição que a emergente biomedicina fermenta o poder hegemónico, que, entretanto, extravasa para a esfera social e política.
Segundo Foucault (1977)FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1977., a partir de finais do século XVIII, o hospital deixa de ser um local de “assistência aos pobres” para se transformar numa escola, num espaço privilegiado de exercitação científica, onde “a verdade se ensina por si mesma” (Foucault, 1977FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1977., p. 77). “A verdade” erigida pela racionalidade anatomoclínica torna-se dispositivo primordial na configuração de modelos de suposta inteligibilidade humana, retroalimentando, assim, ainda mais, o privilégio epistémico diante de outras racionalidades. O propósito maior da clínica deixa de estar na singela busca pela cura dos indivíduos - na antiga “arte de curar” (Luz, 2005LUZ, M. T. Cultura contemporânea e medicinas alternativas: novos paradigmas em saúde no fim do século XX. Physis, Rio de Janeiro, v. 7, n. 15, p. 145-176, 2005.) - para residir na transformação de casos individuais em modelos descritivos e explicativos das doenças, a partir dos quais são construídos sistemas classificatórios de diagnósticos. É assim que, na viragem do século XVIII para o século XIX, como descreve Foucault (1977)FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1977., se descobre uma prática médica não mais regida pela saúde, mas pela “norma” e sua incessante reprodução.
Justamente pela capacidade de prescrever a norma, a emergente biomedicina integra-se habilmente no complexo modelo de tecnologias disciplinares das modernas sociedades ocidentais (Foucault, 1977FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1977., 1992FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1992.) -, afiançando, desse modo, sem qualquer dificuldade, a hegemonia política e social diante de outros saberes terapêuticos. Tal capacidade decorre, em grande medida, da estreita cumplicidade com a lógica capitalista moderna. Ao visar a máxima rentabilidade económica, a lógica de mercado capitalista faz com que o organismo humano passe a ser visto como espécie de prolongamento da maquinaria industrial, daí decorrendo, a respeito dele, uma conceção instrumental e mecanicista que se acha em perfeita sintonia com a nova visão médica reducionista, fortemente influenciada por Descartes e Newton. Com o capitalismo emergente, o corpo é, então, transformado numa “realidade biopolítica”, no mesmo passo em que a medicina científica moderna é convertida na sua estratégia primordial (Foucault, 1992FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1992.).
Sob a égide da racionalidade moderna ocidental, a biomedicina é, pois, autorizada a erigir uma nova metáfora sobre o corpo, sendo-lhe concedido o direito de patologizá-lo e restaurá-lo em nome de uma norma corporal instituída. Estamos perante aquilo que Foucault (1999FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1999., p. 131) designa por biopoder: um poder que age sobre os corpos, definindo-os como apropriados ou inapropriados, e cuja mais alta função não é matar, mas “investir a vida de cima a baixo”. O biopoder, esclarece Foucault (1999)FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1999., desenvolveu-se mediante a articulação dos fenómenos da vida com a autoridade política, tendo assumido duas formas principais, relacionadas entre si. A primeira tem início no século XVII e diz respeito a uma “anatomopolítica do corpo humano”, ou seja, um conjunto de procedimentos disciplinares que concebem o corpo como máquina, reclamando o seu adestramento, a ampliação das suas aptidões, a extorsão das suas forças e sua docilidade, com o objetivo de maior utilidade, aproveitamento económico e integração em sistemas de controlo (Foucault, 1980FOUCAULT, M. Power/knowledge: selected interviews & other writings, 1972-1977. New York: Pantheon, 1980., 1999FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1999.). A segunda forma desenvolve-se a partir de meados do século XVIII e centra-se numa “biopolítica da população”, isto é, num conjunto de intervenções e controlos reguladores do “corpo-espécie” - a saúde, a natalidade, a longevidade, a mortalidade etc. -, com base na ideia de que a “população” constitui uma questão económica e política (Foucault, 1999FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1999.). O biopoder trata, em síntese, de distribuir os seres humanos em termos de valor e utilidade - qualificando-os, medindo-os, avaliando-os e hierarquizando-os -, operando pela norma (Foucault, 1999FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1999.). A norma emerge, pois, nesse contexto, como princípio orientador “que tanto pode aplicar-se a um corpo que se quer disciplinar como a uma população que se deseja regularizar” (Foucault, 2005FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005., p. 302), residindo na biomedicina o lócus privilegiado da sua construção e emanação (Foucault, 1977FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1977., 1992FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1992.). É assim que, a partir do século XIX, a emergente medicina científica deixa de constituir apenas o corpus de técnicas de cura e do saber que elas requerem, passando igualmente a envolver conhecimento e definição do ser humano modelo, assumindo uma postura normativa que a legitima “a reger as relações físicas e morais do indivíduo e da sociedade em que vive” (Foucault, 1977FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1977., p. 39).
A biomedicina - que pode, então, ser interpretada como tecnologia de poder centrada na vida (Foucault, 1999FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1999.) - introduz uma inteligibilidade sobre o corpo que o situa na bipolaridade do normal e patológico, do normal e anormal, do puro e impuro (Douglas, 1991DOUGLAS, M. Pureza e perigo: ensaio sobre as noções de poluição e tabu. Lisboa: Edições 70, 1991.; Foucault, 1977FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1977.). Um ideal de saúde, perfeição e pureza corporal passa a balizar o modus operandi das práticas biomédicas, servindo de roteiro à definição da necessidade de correção dos corpos marcados pelo signo do desvio. No mesmo passo em que se instala a hegemonia da normalidade, científica e politicamente avalizada, instala-se a “função soteriológica” (de “salvação”) da biomedicina (Good, 1994GOOD, B. J. Medicine, rationality and experience: an anthropological perspective. Cambridge: Cambridge University Press, 1994.). Essa promessa salvífica revela-se tanto mais eficaz quanto vai ao encontro de uma nova narrativa da existência, a saber, a moderna ideologia individualista, cuja emergência se articula com o florescimento e desenvolvimento do sistema capitalista. Com base na aceitação de referenciais de normalidade, o corpo transforma-se na sede da “soberania do ego” (Le Breton, 2002LE BRETON, D. Antropologia del cuerpo y modernidad. Buenos Aires: Nueva Visión, 2002., p. 8), símbolo de poder, independência e sucesso, submetido permanentemente à luz dos holofotes da sociedade. Indo para lá da dimensão estritamente individual, o carácter regulatório da biomedicina revela-se, em última análise, no modo como se globaliza enquanto “vocabulário social”, por via da imposição dos “seus modelos etiológicos, nosológicos, profiláticos e terapêuticos” (Cruz, 2007CRUZ, A. Metáforas que constroem, metáforas que destroem: a biomedicina como vocabulário social. O Cabo dos Trabalhos, Coimbra, n. 2, p. 1-33, 2007., p. 21). Restituindo a ordem ao corpo individual, a biomedicina contribui para a tão desejada ordem do corpo social, passando assim a auferir, da parte dos Estados, o “testemunho de validade e a proteção legal” (Foucault, 1977FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1977., p. 21).
A eficácia comparativa da biomedicina e sua articulação com o capitalismo
Articulando-se com o poder regulatório antes descrito, a institucionalização da biomedicina no espaço público como “medicina oficial”, a partir da segunda metade do século XIX, aparece obviamente ligada ao reconhecimento público de sua eficácia terapêutica. Ainda que, em certa medida, tal reconhecimento se associe aos seus efetivos resultados terapêuticos, importa ir além dessa leitura imediatista, buscando as razões sócio-históricas menos óbvias - e, por isso, menos visibilizadas -, desse mesmo reconhecimento público que, paulatinamente, faz eclipsar o reconhecimento da eficácia de modalidades terapêuticas tradicionais ou não científicas (Bakx, 1991BAKX, K. The “eclipse” of folk medicine in Western society. Sociology of Health & Illness, Hoboken, v. 13, n. 1, p. 20-38, 1991.; Cant; Sharma, 1999CANT, S.; SHARMA, U. A new medical pluralism? Alternative medicine, doctors, patients and the state. London: Routledge, 1999.).
Atente-se, nesse sentido, ao movimento de forte adesão dos setores operários ao modelo biomédico a partir de finais do século XIX; nele se verifica estreita articulação entre as difíceis condições de vida e salubridade desses grupos, suas necessidades de sobrevivência e os novos e intransigentes imperativos capitalistas de produtividade. Com efeito, dadas as condições laborais extremamente difíceis e precárias, os acidentes de trabalho eram, por essa altura, muito frequentes e muito graves, sendo que era justamente nesse campo que a biomedicina revelava maior eficácia (Menéndez, 2005MENÉNDEZ, E. L. El modelo médico y la salud de los trabajadores. Salud Colectiva, Lanús, v. 1, n. 1, p. 9-32, 2005.). Por outro lado, nesse mesmo período, eram igualmente os setores operários aquelas que mais sofriam as consequências negativas das doenças infecciosas - registadas, nesse final de século, como uma das principais causas de morte das populações urbanas. Iniciada a reversão desse quadro, eleva-se a perceção positiva desses grupos ao redor da biomedicina, atribuindo-lhe papel fundamental na redução dessas doenças - mesmo quando essa redução se devia a outros fatores55Importa assinalar, a propósito, o estudo realizado pelo epidemiologista McKeown (1976 apud Capra, 1982, p. 117-118), que veio mostrar, relativamente à realidade inglesa, que o declínio da mortalidade a partir da segunda metade do século XIX se deveu muito mais à melhoria global das condições de vida do que às novas práticas biomédicas. O autor concluiu que até mesmo o controlo das doenças infecciosas resultou, sobretudo, de um incremento nas condições de vida (nutrição, higiene e salubridade) e só secundariamente da ação dos novos medicamentos. - e passando a aderir, cada vez mais, às suas práticas terapêuticas (Capra, 1982CAPRA, F. Ponto de mutação. São Paulo: Cultrix, 1982.; Menéndez, 2005MENÉNDEZ, E. L. El modelo médico y la salud de los trabajadores. Salud Colectiva, Lanús, v. 1, n. 1, p. 9-32, 2005.).
Relacionada com o caráter regulatório da ideologia capitalista, a perceção positiva da eficácia da biomedicina por parte dos setores operários é reflexo do carácter de urgência sentido por eles na resolução de suas enfermidades. Adoecer traduzia-se em deixar de trabalhar e no enorme risco de ficar desempregado/a, comprometendo dramaticamente as condições de sobrevivência de toda a família. Retornar ao mercado de trabalho tornava-se, pois, urgente, implicando, necessariamente, restauração imediata do estado de saúde (Menéndez, 2005MENÉNDEZ, E. L. El modelo médico y la salud de los trabajadores. Salud Colectiva, Lanús, v. 1, n. 1, p. 9-32, 2005.). Enformando novas representações sobre a saúde e a doença, a nova relação das classes operárias com o “tempo” é, pois, determinante na compreensão da racionalidade implícita no aumento da sua demanda pelo saber biomédico e consequente relativo menor recurso aos sistemas de cura e práticas terapêuticas não científicas a que antes recorriam em primeira instância. Os novos imperativos capitalistas revelam-se, com efeito, incompatíveis com práticas tradicionais cujos processos terapêuticos se baseiam num relativo maior respeito pelos ritmos naturais e biológicos do organismo humano. Tais práticas - que, dependendo da abordagem, podem até ser qualificadas como expectantes ou miméticas, em virtude da forma como procuram imitar a natureza (Laplantine, 1991LAPLANTINE, F. Antropologia da doença. São Paulo: Martins Fontes, 1991., p. 162) -, ainda que continuem a representar importante recurso para muitos setores da sociedade (incluindo para o operariado), vão assim perdendo poder simbólico em favor da biomedicina, a qual pode ser qualificada como “medicina de urgência” (Capra, 1982CAPRA, F. Ponto de mutação. São Paulo: Cultrix, 1982.; Menéndez, 2005MENÉNDEZ, E. L. El modelo médico y la salud de los trabajadores. Salud Colectiva, Lanús, v. 1, n. 1, p. 9-32, 2005.). Com a ideologia capitalista a definir essa condição de urgência, ocorre um “abalo terapêutico”, um rompimento com a visão de cura ancestral, que explica, a par do “epistemicídio” de que se falou anteriormente,66De facto, importa estabelecer uma “ponte” com o que se desenvolveu anteriormente, a respeito da ligação da biomedicina à ciência moderna e ao colonialismo. Para além da ligação ao capitalismo, devemos relembrar que a “suposta maior eficácia da biomedicina” se articula com o projeto imperial de imposição da ciência como único saber válido e legítimo. Perpetrando aquilo que Santos (2007) designa por “epistemicídio”, o projeto colonialista conduziu, como se viu, a uma descredibilização de outras epistemologias terapêuticas, o que veio favorecer a visão social sobre a eficácia biomédica. Isso aconteceu tanto por meio de formas mais diretas - como a legitimação da profissão biomédica - como por vias mais genéricas, associadas à ascensão do projeto colonial da modernidade (Santos; Meneses; Nunes, 2004) - por exemplo, a erradicação de saberes locais sobre a biodiversidade pela escolarização e devastação ambiental ou a perseguição judicial a atores ditos “curandeiros”. Todas essas formas de epistemicídio vieram, obviamente, diminuir as alternativas ou as condições anteriores de eficácia dessas “epistemologias outras”. a perceção social positiva granjeada pela biomedicina a partir de finais do século XIX.
Importa enfatizar, portanto, que a maior eficácia terapêutica atribuída à medicina científica moderna entre finais do século XIX e princípios do século XX decorre de uma combinação de fatores reais e imaginários, que se ligam tanto à aplicação de práticas realmente efetivas como ao emprego de práticas indiferentes ou até negativas, em linha com uma proposta de resolução de problemas de saúde originados num contexto de produção capitalista (Menéndez, 2005MENÉNDEZ, E. L. El modelo médico y la salud de los trabajadores. Salud Colectiva, Lanús, v. 1, n. 1, p. 9-32, 2005.). Paradoxalmente, o compromisso estabelecido entre o modelo biomédico e a ideologia capitalista - assente na insensibilidade às causas extrabiológicas das doenças -, que contribuiu para que ele se tornasse hegemónico, representa, nos dias de hoje, um dos fatores que mais contribui para a sua descredibilização. Como refere Queiroz (1986QUEIROZ, M. S. O paradigma mecanicista da medicina ocidental moderna: uma perspectiva antropológica. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 20, n. 4, p. 309-317, 1986., p. 310),
É possível dizer, sem contradição, que num certo momento, a medicina científica tornou-se hegemónica exatamente por se mostrar compatível com o “ethos” capitalista e, num outro momento, tornou-se inviável exatamente por se mostrar excessivamente comprometida com esse “ethos”, perdendo assim a sua independência e autonomia, ainda que relativas, face ao sistema social em que atua. Na medida em que a sua funcionalidade ao sistema significa tomar-se insensível às causas reais de doenças (que muitas vezes residem na forma como a vida é organizada pela sociedade) e às soluções que implicariam em melhoria do nível de saúde de uma população, a medicina tem produzido serviços extremamente caros e ineficazes, dois [dos] sintomas principais de sua crise.
De facto, no trilho do reducionismo biologista, a teoria dos germes proposta por Pasteur (1822-1895) e Koch (1843-1910), respetivamente na França e na Alemanha, veio instaurar, em meados do século XIX, um modelo monocausal de explicação da doença, cuja influência não apenas adentrou o século XX, como ainda se faz sentir nos nossos dias (Lock; Nguyen, 2010LOCK, M.; NGUYEN, V.-K. An anthropology of biomedicine. Chichester: Wiley-Blackwell, 2010.; Queiroz, 1986QUEIROZ, M. S. O paradigma mecanicista da medicina ocidental moderna: uma perspectiva antropológica. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 20, n. 4, p. 309-317, 1986.). Com a circunscrição da procura da doença no corpo individual e a transformação desse mesmo corpo num “campo de batalha”, a teoria microbiana vem promover um ponto de inflexão epistemológica, a partir do qual passa-se a desenvolver verdadeira obsessão com a identificação do “inimigo” e a descoberta das “balas mágicas” para derrotá-lo (Bastos, 1997BASTOS, C. A pesquisa médica, a SIDA e as clivagens da ordem mundial: uma proposta de antropologia da ciência. Análise Social, Lisboa, v. 32, n. 140, p. 75-111, 1997., p. 78).
A partir de finais do século XIX, o foco na doença infecciosa torna-se, pois, predominante, levando progressivamente “ao obscurecimento de concepções que destacavam a multicausalidade das doenças” (Bastos, 2002BASTOS, C. Ciência, poder, ação: as respostas à sida. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2002., p. 74) e defendiam, para sua erradicação, a atenção a fatores de ordem extrabiológica (Lock; Nguyen, 2010LOCK, M.; NGUYEN, V.-K. An anthropology of biomedicine. Chichester: Wiley-Blackwell, 2010.; Queiroz, 1986QUEIROZ, M. S. O paradigma mecanicista da medicina ocidental moderna: uma perspectiva antropológica. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 20, n. 4, p. 309-317, 1986.). Assim, justamente numa altura em que as doenças cada vez mais se relacionavam com as condições de trabalho e de vida próprias do contexto socioeconómico capitalista, a medicina científica moderna transformava-se “numa racionalização para não se lidar com as causas verdadeiras das doenças num modo que pudesse ser disfuncional para o crescimento do sistema produtivo” (Berliner, 1982 apud Queiroz, 1986QUEIROZ, M. S. O paradigma mecanicista da medicina ocidental moderna: uma perspectiva antropológica. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 20, n. 4, p. 309-317, 1986., p. 313).
Ao difundir a ideia de que a origem de todas as doenças individuais e coletivas residia na proliferação de germes, a teoria microbiana veio incentivar a intervenção na ordem social - todavia, não enquanto transformações sociais profundas que dirimissem as desigualdades, mas como monitorização de fatores de contágio e propagação das doenças infecciosas pela implementação de medidas de carácter higienista. Objetivando a saúde de toda a coletividade, a medicina científica moderna ganha, então, revigorado poder regulatório, com a atribuição, por parte dos Estados, do papel de policiamento da implementação dessas medidas (Foucault, 1992FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1992.; Lock; Nguyen, 2010LOCK, M.; NGUYEN, V.-K. An anthropology of biomedicine. Chichester: Wiley-Blackwell, 2010.). É assim que, a partir de finais do século XIX, a emergente biomedicina assume nova feição, a de “medicina da força de trabalho”, direcionada para o “controle da saúde e do corpo das classes mais pobres para torná-las mais aptas ao trabalho e menos perigosas para as classes mais ricas” (Foucault, 1992FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1992., p. 97). Iniciando-se na Inglaterra e rapidamente se disseminando por toda a Europa, essa atribuição de poderes à biomedicina, por parte dos Estados, é fundamental na compreensão da construção da sua legalidade e autoridade pública, no âmbito de um processo em que a progressiva aquisição do monopólio dos atos terapêuticos se traduz, concomitantemente, numa “desapropriação do saber popular em saúde” (Catão, 2011CATÃO, M. Ó. Genealogia do direito à saúde: uma reconstrução de saberes e práticas na modernidade. Campina Grande: EDUEPB, 2011., p. 79).
Para além da dimensão higienista, associada à saúde pública, outra consequência importante da teoria microbiana da doença é, como antes se referiu, a “obsessão” que a medicina científica moderna passa a desenvolver na descoberta das “balas mágicas” que permitirão aniquilar o “inimigo” (Bastos, 1997BASTOS, C. A pesquisa médica, a SIDA e as clivagens da ordem mundial: uma proposta de antropologia da ciência. Análise Social, Lisboa, v. 32, n. 140, p. 75-111, 1997., p. 78). Com efeito, a revolução fármaco-terapêutica que vinha sendo germinada desde os primeiros anos do século XIX beneficia de enorme impulso a partir do momento em que começam a ser isolados os microrganismos responsáveis pelas doenças infecciosas. Paul Ehrlich (1854-1915), autor da célebre expressão “balas mágicas”, é justamente quem vem colocar “a terapêutica experimental no patamar das disciplinas científicas” (Pita, 2006PITA, J. R. Farmácia, medicamentos e microbiologia em Miguel Bombarda. In: PEREIRA, A. L.; PITA, J. R. Miguel Bombarda (1851-1910) e as singularidades de uma época. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006. p. 49-60., p. 49) com suas descobertas revolucionárias no tratamento da sífilis. Ao combater uma das doenças mais mortais e temidas há vários séculos, o “milagroso” medicamento de Ehrlich - o famoso salvarsan - vem estabelecer terminantemente “o primado da ação terapêutica do medicamento e da sua capacidade de atuação, relativamente à força curativa da natureza” (Pita, 2006PITA, J. R. Farmácia, medicamentos e microbiologia em Miguel Bombarda. In: PEREIRA, A. L.; PITA, J. R. Miguel Bombarda (1851-1910) e as singularidades de uma época. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006. p. 49-60., p. 50), mobilizando a farmacologia para o centro da intervenção médica.
Justapondo-se de forma perfeita à nova concepção de “urgência terapêutica”, incentivada pelos novos estilos de vida da era capitalista, o fármaco passa a figurar como um dos elementos mais populares da biomedicina e um dos maiores símbolos da sua eficácia. E, na mesma medida em que significa crescente manifestação de confiança na ciência, representa um retrocesso no recurso a soluções terapêuticas não farmacológicas - não científicas -, sujeitando-as a um progressivo processo de descredibilização e desqualificação social (Lopes, 2010LOPES, N. Consumos terapêuticos e pluralismo terapêutico. In: LOPES, N. Medicamentos e pluralismo terapêutico: práticas e lógicas sociais em mudança. Porto: Afrontamento, 2010. p. 19-85.). Com efeito, ainda que as modalidades terapêuticas tradicionais continuem a existir, o certo é que, a partir de finais do século XIX, elas vêm a perder reconhecimento e valor social em prol da farmacologização (Lopes et al, 2012LOPES, N. et al. O natural e o farmacológico: padrões de consumo terapêutico na população portuguesa. Saúde e Tecnologia, Lisboa, n. 8, p. 5-17, nov. 2012.) - processo que, desde o início, se alimenta da medicalização da vida e concomitante desenvolvimento da indústria farmacêutica, dois fenómenos intimamente ligados ao capitalismo.
Movimento profissional biomédico e estratégias de fechamento na construção da dominação
Entre os fatores que contribuíram para a hegemonia do modelo biomédico, a maior ou menor eficácia dos atos médicos é, como defende Luz (2014LUZ, M. T. A arte de curar versus a ciência das doenças: história social da homeopatia no Brasil. Porto Alegre: Rede Unida, 2014., p. 19), questão de menor importância, sobretudo quando confrontada - como aqui se tem vindo a fazer - com a questão da compatibilidade entre esse mesmo modelo e as “características culturais” do contexto no qual se impôs. Foi essa compatibilidade, aliás, aliada ao facto de o método científico se ter tornado independente quer do médico, quer do paciente, que veio permitir a constituição de uma forte corporação profissional, elemento fundamental no modo como a biomedicina veio a conseguir “superar as medicinas concorrentes” (Luz, 2014LUZ, M. T. A arte de curar versus a ciência das doenças: história social da homeopatia no Brasil. Porto Alegre: Rede Unida, 2014., p. 19).
A história do processo de dominação da biomedicina liga-se, com efeito, à história da constituição, no seu próprio seio, de um forte movimento profissional, investido, desde o início, de um conjunto de esforços tendentes à monopolização dos cuidados de saúde, mediante estratégias de pressão institucional. Comumente, o Medical Registration Act de 1858, no Reino Unido, é referenciado como marco histórico do início desse movimento. Com ele, é criado o General Medical Council (GMC), mediante o qual é conferido à profissão médica - biomédica - o direito de se autorregular, bem como o monopólio do título de médico, baseado num registo oficial de praticantes policiados pelo próprio GMC (Saks, 2005SAKS, M. Medicine and complementary medicine: challenge and change. In: SCAMBLE, G.; HIGGS, P. Modernity, medicine and health: medical sociology towards 2000. London: Routledge, 2005. p. 198-215., p. 201). Esse movimento veio reivindicar o direito de submeter as práticas médicas ao crivo da cientificidade, estabelecendo seu próprio conhecimento como o único válido e aceitável, conquistando assim o poder de desacreditar outras filosofias e práticas terapêuticas concorrentes, classificando-as como inapropriadas e ilegítimas e, portanto, como desmerecedoras da legitimação e apoio estatal (Cant; Sharma, 1996CANT, S.; SHARMA, U. Introduction. In: CANT, S.; SHARMA, U. Complementary and alternative medicines: knowledge in practice. London: Free Association, 1996. p. 1-24.; Frohock, 2002FROHOCK, F. M. Moving lines and variable criteria: differences/connections between allopathic and alternative medicine. The Annals of the American Academy of Political and Social Science, Thousand Oaks, v. 583, p. 214-232, 2002.; Saks, 2005SAKS, M. Medicine and complementary medicine: challenge and change. In: SCAMBLE, G.; HIGGS, P. Modernity, medicine and health: medical sociology towards 2000. London: Routledge, 2005. p. 198-215.).
Tal não significa, porém, que a biomedicina tenha passado a dominar por completo os cuidados de saúde nas modernas sociedades ocidentais. Na verdade, há evidências de que outras modalidades terapêuticas tenham continuado a atrair a atenção de grande número de pessoas, mesmo a partir da segunda metade do século XIX, altura em que a medicina científica moderna ganha crescente poder (Bakx, 1991BAKX, K. The “eclipse” of folk medicine in Western society. Sociology of Health & Illness, Hoboken, v. 13, n. 1, p. 20-38, 1991.; Saks, 2005SAKS, M. Medicine and complementary medicine: challenge and change. In: SCAMBLE, G.; HIGGS, P. Modernity, medicine and health: medical sociology towards 2000. London: Routledge, 2005. p. 198-215.). Algumas dessas práticas, como a homeopatia, no caso específico do Reino Unido, chegam mesmo, por esta altura, a serem praticadas por profissionais da biomedicina, apesar da forte oposição dos corpos líderes do recém-formado movimento corporativista (Saks, 2005SAKS, M. Medicine and complementary medicine: challenge and change. In: SCAMBLE, G.; HIGGS, P. Modernity, medicine and health: medical sociology towards 2000. London: Routledge, 2005. p. 198-215.; Sharma, 1992SHARMA, U. Complementary medicine today: practitioners and patients. London: Routledge, 1992.). Estamos, todavia, perante uma persistência que se torna cada vez mais difícil à medida que a enorme força dos movimentos médicos vai conseguindo persuadir os Estados a restringir o financiamento da formação médica a escolas de medicina convencional, a introduzir sistemas de acreditação e requisitos de licenciamento, bem como a codificar as práticas médicas lícitas, diferenciando-as das práticas irregulares (Frohock, 2002FROHOCK, F. M. Moving lines and variable criteria: differences/connections between allopathic and alternative medicine. The Annals of the American Academy of Political and Social Science, Thousand Oaks, v. 583, p. 214-232, 2002.).
Entre finais do século XIX e princípios do século XX, nos casos específicos de Estados Unidos e Reino Unido, o profissionalismo biomédico tinha já alcançado elevado grau de sucesso no fechamento ocupacional da prática médica, granjeando o obscurecimento do pluralismo terapêutico até então vigente (Saks, 2003SAKS, M. Orthodox and alternative medicine: politics, professionalization and health care. London: Sage, 2003.). Wallis e Morley (1976 apud Saks, 2003SAKS, M. Orthodox and alternative medicine: politics, professionalization and health care. London: Sage, 2003., p. 41), representantes da perspectiva funcionalista aplicada à área da saúde, vêm contribuir para a reprodução da abordagem mainstreamsobre as razões dos privilégios da profissão biomédica, sustentando que a explicação para tal fechamento - para o período e espaços geográficos referenciados - reside na maior capacidade tecnocientífica da biomedicina em oferecer respostas às necessidades do mundo moderno. Mike Saks (2003)SAKS, M. Orthodox and alternative medicine: politics, professionalization and health care. London: Sage, 2003., referência na investigação sobre o processo de profissionalização na biomedicina, vem rejeitar essa perspectiva essencialista, adotando uma posição relativista, que enfatiza a análise das interações entre os interesses dos grupos ocupacionais concorrentes.
Com efeito, situando-se na mesma linha relativista desenvolvida no ponto anterior, Saks (2003SAKS, M. Orthodox and alternative medicine: politics, professionalization and health care. London: Sage, 2003.) rejeita a ideia de que a profissionalização biomédica, baseada no fechamento e exclusão de praticantes de outros sistemas médicos, se associe de forma linear ao aumento da sua eficácia. Desde logo, esse argumento não é válido para o caso específico do Reino Unido , uma vez que o Medical Registration Act de 1858 surgiu muito antes da revolução farmacológica e de outros avanços no diagnóstico e tratamento que ocorreram já no século XX (Saks, 2003SAKS, M. Orthodox and alternative medicine: politics, professionalization and health care. London: Sage, 2003., p. 42). Essa ideia não se sustém igualmente para o caso dos Estados Unidos, já que nesse país o nível em que se encontrava o conhecimento médico na segunda metade do século XIX era também limitado (Starr, 1982 apud Saks, 2003SAKS, M. Orthodox and alternative medicine: politics, professionalization and health care. London: Sage, 2003., p. 43): os maiores avanços científicos na medicina norte-americana vieram a ser verificados apenas a partir do século XX (Berlant, 1975 apud Saks, 2003SAKS, M. Orthodox and alternative medicine: politics, professionalization and health care. London: Sage, 2003., p. 43).
A abordagem neo-weberiana das profissões, segundo Saks (2003SAKS, M. Orthodox and alternative medicine: politics, professionalization and health care. London: Sage, 2003., 2005SAKS, M. Medicine and complementary medicine: challenge and change. In: SCAMBLE, G.; HIGGS, P. Modernity, medicine and health: medical sociology towards 2000. London: Routledge, 2005. p. 198-215.), é aquela que melhor dá conta da conceptualização do poder da profissão biomédica, na medida em que contempla uma análise dos interesses ocupacionais e das estratégias ativadas no sentido do controlo do mercado e do seu fechamento no âmbito daquela que é, na verdade, uma ordem social pluralista. Saks (2003)SAKS, M. Orthodox and alternative medicine: politics, professionalization and health care. London: Sage, 2003. crê que é justamente o fechamento social, por exclusão, que melhor caracteriza o processo de emergência da profissão biomédica e seu domínio sobre outros agentes da área da saúde.
Berlant (1978 apud Franco, 2010FRANCO, L. O processo de institucionalização das medicinas alternativas e complementares: o caso da acupuntura em Portugal. 2010. Tese (Doutorado em Sociologia) -Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2010.) - autor neo-weberiano igualmente tido como referência nesse domínio de análise -, tomando por base a teoria weberiana da monopolização, considera que uma das mais bem-sucedidas estratégias de fechamento da profissão biomédica consistiu na manutenção da escassez do serviço, o que foi possível pelo estabelecimento das instituições de formação médica e pela capacidade de persuasão do Estado a um tratamento legal preferencial. Essas estratégias vieram permitir a eliminação dos competidores externos, condição essencial, segundo Berlant (1978, apud Franco, 2010FRANCO, L. O processo de institucionalização das medicinas alternativas e complementares: o caso da acupuntura em Portugal. 2010. Tese (Doutorado em Sociologia) -Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2010.), para o estabelecimento de qualquer monopólio.
No início do século XX, a American Medical Association (AMA) diligenciou a realização de uma grande pesquisa, cujo objetivo primordial passava por conhecer as escolas médicas dos Estados Unidos e Canadá, garantindo que se revestiam de sólida base científica. Essa pesquisa resultou na publicação, em 1910, do documento Medical education in the United States and Canada: a report to The Carnegie Foundation for the Advancement of Teaching, de autoria de Abraham Flexner. Esse documento, conhecido como Relatório Flexner, veio a se traduzir num verdadeiro ponto de viragem na história da profissionalização biomédica, não apenas na América do Norte, mas também em muitas outras sociedades modernas ocidentais (para onde acabou por ser exportado). Fixando rígidas diretrizes de cientificidade, o Relatório Flexner serviu para a AMA exercer pressão sobre os estados norte-americanos para o encerramento de um elevado número de escolas médicas que, presumivelmente, não obedeciam aos requeridos padrões de positividade. Como resultado, apenas um restrito número de instituições foram consideradas como estando dentro desses padrões, sendo as demais escolas - a maioria - declaradas como irregulares e, portanto, legalmente forçadas a fechar (Capra, 1982CAPRA, F. Ponto de mutação. São Paulo: Cultrix, 1982., p. 140). Alcançando, nesses termos, uma drástica redução e restrição na oferta do ensino médico, o movimento profissional biomédico veio, assim, a dar gigantescos passos na consolidação do fechamento e monopolização da área da saúde, conseguindo, simultaneamente, que seus serviços se tornassem bens altamente escassos e detentores de elevado prestígio e status social (Saks, 2003SAKS, M. Orthodox and alternative medicine: politics, professionalization and health care. London: Sage, 2003.).
Em meados do século XX, em praticamente todo o mundo moderno ocidental, e muito especialmente nos Estados Unidos e Reino Unido, a profissão biomédica tinha-se tornado extremamente poderosa, em virtude da reforma flexneriana da educação médica, do suporte (legal e financeiro) crescentemente oferecido pelos Estados (Saks, 2003SAKS, M. Orthodox and alternative medicine: politics, professionalization and health care. London: Sage, 2003.) e da constante reafirmação do método científico, encarado como verdade única e universal, válida para todos os tempos e lugares do mundo (Bakx, 1991BAKX, K. The “eclipse” of folk medicine in Western society. Sociology of Health & Illness, Hoboken, v. 13, n. 1, p. 20-38, 1991.). Dessa forma, no mesmo passo em que a profissão estendia seus poderes e a ortodoxia biomédica se consolidava, as práticas terapêuticas que não se enquadravam na ideologia científica passavam a ser vistas como crenças marginais, resquícios pré-modernos ou até mesmo como formas de heresia (Bakx, 1991BAKX, K. The “eclipse” of folk medicine in Western society. Sociology of Health & Illness, Hoboken, v. 13, n. 1, p. 20-38, 1991.; Frohock, 2002FROHOCK, F. M. Moving lines and variable criteria: differences/connections between allopathic and alternative medicine. The Annals of the American Academy of Political and Social Science, Thousand Oaks, v. 583, p. 214-232, 2002.).
Após aquele que pode ser considerado como um período de eclipse (Bakx, 1991BAKX, K. The “eclipse” of folk medicine in Western society. Sociology of Health & Illness, Hoboken, v. 13, n. 1, p. 20-38, 1991.), assiste-se, durante as décadas de 1960 e 1970 - no âmbito dos chamados movimentos de contracultura -, à (re)emergência do interesse das populações modernas ocidentais por sistemas terapêuticos tradicionais ou não científicos. Importa sublinhar, todavia, que a crescente visibilidade e reconhecimento desses sistemas não vem destronar a biomedicina da sua posição de hegemonia (Cant; Sharma, 1996CANT, S.; SHARMA, U. Introduction. In: CANT, S.; SHARMA, U. Complementary and alternative medicines: knowledge in practice. London: Free Association, 1996. p. 1-24., 1999CANT, S.; SHARMA, U. A new medical pluralism? Alternative medicine, doctors, patients and the state. London: Routledge, 1999.; Collyer, 2004COLLYER, F. The corporatisation and commercialisation of CAM. In: TOVEY, P.; EASTHOPE, G.; ADAMS, J. The mainstreaming of complementary and alternative medicine studies in social context. London: Routledge, 2004. p. 81-99.), o que é bem revelador do modo eficaz com que soube construir o seu projeto de dominação.
Considerações finais
Segundo Boaventura de Sousa Santos (2007SANTOS, B. S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 78, p. 3-46, 2007.), o pensamento moderno ocidental é abissal, assente em distinções visíveis e invisíveis, sendo que estas últimas são estabelecidas mediante linhas radicais, que inviabilizam a copresença do universo “deste lado da linha” com o universo “do outro lado da linha”. Esse “outro lado da linha” é produzido como realidade que não existe - ou que, pelo menos, não existe numa lógica de horizontalidade. No campo do conhecimento, elucida o autor, “o pensamento abissal consiste na concessão à ciência moderna do monopólio da distinção universal entre o verdadeiro e o falso” (Santos, 2007SANTOS, B. S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 78, p. 3-46, 2007., p. 5). Do lado de cá, está a verdade científica; do lado de lá, “não há conhecimento real; existem crenças, opiniões, magia, idolatria, entendimentos intuitivos ou subjetivos, que, na melhor das hipóteses, podem tornar-se objetos ou matéria-prima para a inquirição científica” (Santos, 2007SANTOS, B. S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 78, p. 3-46, 2007., p. 5).
A metáfora do pensamento abissal afigura-se bastante interessante e adequada para ilustrar o modo como a biomedicina se impôs como modelo médico hegemónico nas sociedades modernas ocidentais. Umbilicalmente ligada à ciência moderna, o modelo biomédico nasce e desenvolve-se no “lado de cá da linha”, naturalizando-se e universalizando-se como epistemologicamente superior a todas as outras formas de saber terapêutico, sendo estas últimas remetidas, claro está, para o “lado de lá da linha”. Ora, o estabelecimento de um pensamento pós-abissal na área da saúde - condição fundamental para a criação de uma verdadeira “ecologia de saberes” - implica, necessariamente, que se reconheça a persistência do pensamento abissal, pois só assim é possível pensar e agir para além dele (Santos, 2007SANTOS, B. S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 78, p. 3-46, 2007., p. 27). Por mais que a necessidade desse reconhecimento nos possa parecer algo de redundante - atendendo a uma certa retórica política/social que parece fazer crer que se vive numa época de grande respeito pela pluralidade de saberes -, certo é que a “realidade abissal” continua a existir no campo dos cuidados de saúde, sinalizando-nos essa urgência. De facto, na prática, e não obstante o crescente reconhecimento público da sua incompletude, a biomedicina continua a figurar como modelo médico epistemologicamente superior (Luz, 2005LUZ, M. T. Cultura contemporânea e medicinas alternativas: novos paradigmas em saúde no fim do século XX. Physis, Rio de Janeiro, v. 7, n. 15, p. 145-176, 2005., 2014LUZ, M. T. A arte de curar versus a ciência das doenças: história social da homeopatia no Brasil. Porto Alegre: Rede Unida, 2014.), pautando e regulando o que se entende por “saber médico”. E é aí, nessa representação de superioridade, que continua a residir um dos maiores obstáculos à criação de uma “ecologia de saberes” na área médica.
Diante do reconhecimento dessa persistência, torna-se bastante clara a importância de as ciências sociais reavivarem, no palco da produção académica, o processo de hegemoneização da biomedicina, rememorando seu carácter de construção sociocultural. Foi com base nessa percepção que este artigo se propôs olhar para lá da versão essencialista da (suposta) superioridade biomédica, mostrando como essa superioridade decorre, na verdade, de um complexo quadro de produção histórica - sociocultural -, não correspondendo, de todo, à tradução de um valor epistemológico naturalmente superior a outros sistemas de cura ou de conhecimento terapêutico.
Foi então possível, por meio de uma revisão da literatura sobre o tema, revisitar sinteticamente os principais eixos de sustentação da construção do gigantesco poder simbólico da biomedicina no contexto da modernidade ocidental. Revisitámos, em primeiro lugar, a ligação da biomedicina à racionalidade cognitiva-instrumental da ciência moderna, percebendo como a permeabilidade a essa racionalidade lhe conferiu estatuto de “regime de verdade” ou de “metanarrativa”, catapultando instantaneamente todos os outros sistemas de cura e práticas terapêuticas para o “lado de lá da linha”. Revimos, em segundo lugar, o processo de anatomoclínica e o modo como, por intermédio dele, a biomedicina se compatibilizou com os ideais modernos e se estabeleceu como poder normativo/regulador, passando a auferir, por parte dos Estados, prova de validade e proteção legal. Reexaminámos, em terceiro lugar, aquela que se constitui como uma das mais “eficazes” narrativas do modelo biomédico, a saber, a ideia de que a sua hegemonização, iniciada de modo mais pujante em meados do século XIX, se deveu, em grande medida, ao reconhecimento público da sua maior eficácia diante de outros saberes. Questionou-se essa suposta maior eficácia biomédica, relativizando-a no quadro da sua compatibilidade com os novos imperativos capitalistas, os quais, entre outros aspectos, ressignificaram a relação das classes trabalhadoras com a noção de tempo e os processos naturais/expectantes de cura. Finalmente, num último ponto, revisitámos a importância da constituição de um forte movimento profissional, colocando em evidência a forma como esse movimento, mediante hábeis estratégias de pressão institucional, veio a conseguir consolidar o privilégio epistémico da biomedicina.
Apesar da clara intersecção entre a crescente insatisfação social com os efeitos iatrogénicos do reducionismo biomédico e a gradativa manifestação de interesse e procura pelos saberes terapêuticos não científicos, a biomedicina não deixa de produzir e reproduzir, nos dias que correm, sua hegemonia (Franco, 2010FRANCO, L. O processo de institucionalização das medicinas alternativas e complementares: o caso da acupuntura em Portugal. 2010. Tese (Doutorado em Sociologia) -Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2010.; Luz, 2005LUZ, M. T. Cultura contemporânea e medicinas alternativas: novos paradigmas em saúde no fim do século XX. Physis, Rio de Janeiro, v. 7, n. 15, p. 145-176, 2005., 2014LUZ, M. T. A arte de curar versus a ciência das doenças: história social da homeopatia no Brasil. Porto Alegre: Rede Unida, 2014.). Hoje, como antes, a criação e a negação do “outro lado da linha” fazem parte dos seus princípios e práticas hegemónicas (Santos, 2007SANTOS, B. S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 78, p. 3-46, 2007.). A diferença está no enorme desafio que os saberes terapêuticos do “outro lado da linha” lhe têm vindo a colocar em virtude da forte pressão social que os fazem sair dos antigos lugares de invisibilidade. Em face desse desafio, o modelo biomédico tem vindo a fazer uso de estratégias reatualizadas de reafirmação da sua soberania epistémica, muito particularmente pela pressão institucional exercida pelos seus movimentos corporativistas. Uma das mais recentes estratégias de preservação dessa soberania tem residido na tentativa de apropriação ou cooptação de algumas das técnicas terapêuticas desses outros saberes, desapropriando-os dos seus próprios sistemas de conhecimentos e submetendo-os aos cânones epistemológicos científicos (Franco, 2010FRANCO, L. O processo de institucionalização das medicinas alternativas e complementares: o caso da acupuntura em Portugal. 2010. Tese (Doutorado em Sociologia) -Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2010.). Essa não é, de resto, uma estratégia inovadora da biomedicina, mas uma estratégia crescentemente utilizada por todas as manifestações do pensamento abissal, situadas “do lado de cá da linha” (Santos, 2007SANTOS, B. S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 78, p. 3-46, 2007.). Uma estratégia, adite-se, que nos recorda - a nós, cientistas sociais - da importância de não repousarmos na nossa capacidade reflexiva e autorreflexiva, exercitando sempre a atenção plena às novas formas de reprodução dos saberes e poderes hegemonicamente instituídos.
Agradecimentos
Manifesto o meu agradecimento a toda a equipa editorial, bem como aos revisores científicos pelos seus comentários e sugestões que muito enriqueceram este artigo.
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- 1Este artigo inscreve-se numa pesquisa teórica realizada no âmbito de um projeto de doutoramento em sociologia financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (referência: SFRH/BD/63242/2009).
- 2Lyotard (2003)LYOTARD, J.-F. A condição pós-moderna. Lisboa: Gradiva, 2003. utiliza o termo “metanarrativa” para designar toda a forma discursiva de saber que, num dado momento, tem capacidade de agregar um nível superior de consenso em relação a uma multiplicidade de jogos de linguagem, passando a representar um discurso superior de legitimação, ao qual são atribuídos poderes diversos, como o de descrever e prescrever a realidade humana com base numa ideia de progresso.
- 3Atendendo à limitação de espaço e ao objetivo do artigo, opta-se por não desenvolver esses sistemas terapêuticos, referenciando-os de forma lata e superficial, que não traduz, obviamente, sua complexidade. Ainda assim, há um aspecto que devemos realçar, respeitando sua diversidade e heterogeneidade. De facto, o universo desses sistemas terapêuticos está longe de poder ser tratado em “bloco”, como um universo homogéneo. A título de exemplo, muitos deles têm em comum uma visão integral e sistémica do ser humano, no entanto importa não esquecer que essa não é necessariamente uma visão inerente ou efetivamente praticada por todos os sistemas, de forma inequívoca e universal - consulte-se, a propósito, Capra (1982CAPRA, F. Ponto de mutação. São Paulo: Cultrix, 1982., p. 296-297) a respeito da prática de alguns terapeutas da medicina tradicional chinesa, nem sempre caracterizada por verdadeiro holismo. Esta nota de rodapé serve, portanto, para alertar à necessidade de se atender a essa diversidade sempre que, ao longo do texto, nos referimos a esses sistemas terapêuticos, o que acontece, aliás, já a seguir, no mesmo parágrafo desta nota, quando nos referimos à visão holística de muitos desses sistemas, em contraponto à visão fragmentada da biomedicina. Sublinhe-se: referimo-nos a “muitos”, mas não a todos.
- 4É desse modo que, no âmbito deste artigo, se utiliza o termo “medicina científica moderna” em alternância com o termo “biomedicina”. Ambos os conceitos se referem ao mesmo modelo médico.
- 5Importa assinalar, a propósito, o estudo realizado pelo epidemiologista McKeown (1976 apud Capra, 1982CAPRA, F. Ponto de mutação. São Paulo: Cultrix, 1982., p. 117-118), que veio mostrar, relativamente à realidade inglesa, que o declínio da mortalidade a partir da segunda metade do século XIX se deveu muito mais à melhoria global das condições de vida do que às novas práticas biomédicas. O autor concluiu que até mesmo o controlo das doenças infecciosas resultou, sobretudo, de um incremento nas condições de vida (nutrição, higiene e salubridade) e só secundariamente da ação dos novos medicamentos.
- 6De facto, importa estabelecer uma “ponte” com o que se desenvolveu anteriormente, a respeito da ligação da biomedicina à ciência moderna e ao colonialismo. Para além da ligação ao capitalismo, devemos relembrar que a “suposta maior eficácia da biomedicina” se articula com o projeto imperial de imposição da ciência como único saber válido e legítimo. Perpetrando aquilo que Santos (2007)SANTOS, B. S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 78, p. 3-46, 2007. designa por “epistemicídio”, o projeto colonialista conduziu, como se viu, a uma descredibilização de outras epistemologias terapêuticas, o que veio favorecer a visão social sobre a eficácia biomédica. Isso aconteceu tanto por meio de formas mais diretas - como a legitimação da profissão biomédica - como por vias mais genéricas, associadas à ascensão do projeto colonial da modernidade (Santos; Meneses; Nunes, 2004SANTOS, B. S.; MENESES, M. P.; NUNES, J. A. Introdução: para ampliar o cânone da ciência: a diversidade epistemológica do mundo. In: SANTOS, B. S. Semear outras soluções: os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais. Porto: Afrontamento, 2004. p. 19-101.) - por exemplo, a erradicação de saberes locais sobre a biodiversidade pela escolarização e devastação ambiental ou a perseguição judicial a atores ditos “curandeiros”. Todas essas formas de epistemicídio vieram, obviamente, diminuir as alternativas ou as condições anteriores de eficácia dessas “epistemologias outras”.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Oct-Dec 2018
Histórico
- Recebido
14 Set 2018 - Aceito
17 Out 2018