Encontros com a diferença na formação de profissionais de saúde: juventudes, sexualidades e gêneros na escola11Projeto parcialmente financiado pela Pró-Reitoria de Extensão e Cultura e pela Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Encounters with the difference at health education: youth, sexualities, and genders at school

Cristiane Gonçalves da Silva Patrícia Leme de Oliveira Borba Sobre os autores

Resumo

O artigo discute a forma como gênero e sexualidades são significados por jovens secundaristas, com base nas reflexões advindas do projeto de extensão universitária Juventudes e funk na Baixada Santista: territórios, redes, saúde e educação, desenvolvido em parceria com duas escolas públicas de Santos. O projeto tem como principal estratégia as Oficinas da Diferença, que partem do binômio teoria-prática na formação interdisciplinar de estudantes de psicologia, serviço social, terapia ocupacional e educação física, e da noção de marcadores sociais da diferença. Essas oficinas são concebidas como encontros voltados a disparar reflexões que expressem a multiplicidade de experiências juvenis - o reconhecimento de jovens como sujeitos sociais, o modo como encaram o exercício da sexualidade, performances de gênero, estilos de vida e concepções de mundo. O método demonstra-se potente tanto na ação com jovens como na formação de profissionais comprometidos/as com a promoção de uma convivência equânime e com o respeito às diferenças constitutivas dos sujeitos.

Palavras-chave:
Juventude; Sexualidade; Gênero; Escola; Marcadores Sociais da Diferença

Abstract

This article discusses how gender and sexuality are understood by high school youth, based on the reflections arising from the experience in a university extension project named ‘Youth and Funk in Baixada Santista: territories, networks, health and education,’ which was developed in partnership with two public schools of Santos. The main strategy of the project are the ‘Difference Workshops,’ which are based on the theory-practice binomial in the interdisciplinary training of Psychology, Social Work, Occupational Therapy and Physical Education undergraduate students, and on the notion of socials markers of difference. Furthermore, such workshops are designed as encounters that should start reflections or dialogued on the multiplicity of youthful experiences - the recognition of young people as social subjects, the way they see the exercise of sexuality, gender expressions, lifestyles, and worldviews. Such method proved to be methodologically powerful both in actions with young people and in training future professionals who are committed with the promotion of an egalitarian sociability and respect to the constitutive differences of subjects.

Keywords:
Youths; Sexuality; Genders; School; Socials Makers of Difference

Aproximação

O artigo propõe discutir a forma como gênero e sexualidades são significados por jovens estudantes de escolas públicas do ensino médio da cidade de Santos,22As duas escolas não serão identificadas para evitar exposição dos sujeitos envolvidos. localizada no litoral sul do estado de São Paulo. O conteúdo analisado emerge de diversas atividades desenvolvidas durante o projeto de extensão Juventudes e funk: territórios, rede, saúde e educação, em parceria com duas escolas públicas do estado de São Paulo: uma Escola Técnica (Etec), vinculada à Secretaria de Ciência e Tecnologia, e uma escola estadual de ensino fundamental e médio, vinculada à Secretaria de Educação. Uma delas está num território de maior vulnerabilidade social e atende prioritariamente a comunidade local, enquanto a outra fica em bairro de classe média e recebe estudantes de diversos locais da Baixada Santista. As distintas escolas compõem a pluralidade em que se apresentam gênero e sexualidades entre jovens secundaristas.

O centro da discussão localiza-se nas próprias intencionalidades do projeto de extensão em compor uma formação graduada no âmbito da extensão, numa perspectiva interprofissional e interdisciplinar, alinhada ao Projeto Político-Pedagógico do Campus Baixada Santista da Universidade Federal de São Paulo (Rossit; Batista; Batista, 2014ROSSIT, R. A. S.; BATISTA, S. H.; BATISTA, N. A. Análise de um projeto de educação interprofissional na formação em saúde: percepção de egressos. Espaço para a Saúde, Londrina, v. 15, p. 381-386, 2014.). A equipe de trabalho do referido projeto é integrada por estudantes de psicologia, serviço social, terapia ocupacional e educação física, além de docentes que transitam nos campos das ciências humanas e sociais, saúde coletiva, educação e terapia ocupacional. A formação se efetiva em encontros com vários interlocutores, ocasiões avaliadas como potentes e desafiadoras.

Particularmente nos encontros com jovens secundaristas ficam explícitas as complexas articulações entre marcadores sociais da diferença - gênero, sexualidade, raça-cor,33Entendemos o debate em torno dos termos “raça”, “cor” e “etnia” utilizados pela produção científica de distintos campos e pelos movimentos sociais e que estão, portanto, em disputa. No caso das atividades educativas realizadas pelo projeto de extensão, partimos das experiências dos sujeitos participantes que, geralmente, são de racismo - constituído pela ideia de raça - e de discriminações em que a cor da pele aparecia explicitamente. Desse modo, esses são os termos utilizados também no artigo. classe, geração. Tais articulações se materializam nas percepções compartilhadas; nos posicionamentos diante de perguntas e dos posicionamentos de outras pessoas nos encontros; nas reações motivadas por temas controversos (geralmente levados pelo próprio projeto); em brincadeiras, piadas e zoeiras feitas entre pares ou direcionadas a jovens outros, (re)conhecidos por suas diferenças, pela distinta visão de mundo que costuma gerar conflitos. Cada atividade do projeto nos lança ao encontro de jovens, de significados e de uma complexa articulação de discursos, numa trama de relações em que gênero e sexualidades estão em disputa.

O projeto de extensão efetiva-se nos encontros, que dependem de pactuações entre interlocutores/as. Nomeamos de encontros modalidades diversas, como oficinas, supervisões, exposições dialogadas, rodas de conversa. O formato variado é parte da dinâmica metodológica que se fundamenta nos princípios da participação democrática, colaboração, problematização e horizontalidade. Varia o número de participantes nesses encontros, que algumas vezes acontecem com turmas mistas e, quando necessário, separadas por gênero. O roteiro de trabalho é uma construção coletiva da equipe de extensão, a partir da aproximação com jovens e pactuações necessárias. Privilegiam-se recursos audiovisuais, músicas, dinâmicas expressivas, apresentação de sínteses de dados de pesquisa como elementos disparadores e condutores do objetivo de cada encontro. A duração também varia, de acordo com cada proposta e tempo (da escola) disponível. Em algumas ocasiões, os/as jovens produziam algo ao final, como parte do processo.

São sujeitos e instituições constituídos em seus discursos de verdade sobre sexualidades e gênero e sobre outras importantes questões que atravessam a juventude. Trata-se de pactuar interesses de escolas e universidade, de jovens universitários/as e secundaristas, de jovens e adultas/os, de docentes de escolas e universidades. Nesse tipo de encontro procura-se possibilitar, além de certa prática, as trocas necessárias ao próprio fazer da extensão. A reflexão aqui apresentada reconhece no trabalho de extensão um modo de produzir conhecimento essencial para o projeto de universidade pública em que acreditamos.

Os encontros promovidos pelo projeto de extensão ganham distintas nomenclaturas (reuniões gerais, reuniões de formação, supervisões44Encontros para acompanhar a produção audiovisual sobre diversidade sexual, relações de gênero e raciais desenvolvidos por estudantes da Etec como parte de projeto interdisciplinar anual da escola. Em 2016, o projeto de extensão da Unifesp foi parceiro no desenvolvimento desse trabalho, na orientação e na supervisão dos/as estudantes no processo. e oficinas). Participam dos encontros distintas/os interlocutoras/es: educadoras/es das escolas, membros de instâncias públicas do município e do estado, de outros setores e núcleos acadêmicos do campus da Baixada Santista da Unifesp, de outros campi e também de movimentos sociais. O exercício reflexivo aqui proposto, entretanto, baseia sua argumentação nos encontros com jovens e naquilo que é trazido para os encontros que denominamos oficinas e supervisões. A chamada Oficina da Diferença é uma das atividades mais importantes do projeto, além de ser uma das principais atribuições de estudantes extensionistas, que assumem a execução desse tipo de encontro. Assim se familiarizam cada vez mais com o agenciamento do binômio teoria-prática e com uma importante estratégia de trabalho. Estudantes de graduação devem conceber, organizar, facilitar, avaliar e sistematizar as oficinas, tendo como desafio a efetivação de diálogo sobre as experiências juvenis ali presentes, particularmente sobre o modo como se expressam masculinidades e feminilidades que se constituem nas pedagogias culturais de instâncias responsáveis pela socialização.

Fundamentos freirianos são substratos das Oficinas da Diferença e se expressam no manejo grupal de diferentes formas: desde a revisão do lugar do técnico na busca constante por constituir relações mais horizontalizadas até a aposta na dialogicidade, que pressupõe uma escuta sensível, bem como um esforço intencional de estar verdadeiramente com o outro e compartilhar, naquele momento, seu mundo, suas experiências e valores (Freire, 1987FREIRE, P. Paulo Freire & educadores de rua: uma abordagem crítica. Bogotá: Fundação Nações Unidas para a Infância, 1987.).

A problematização que se pretende fazer nas oficinas procura sempre considerar as diferenças dos sujeitos presentes ou de outros sujeitos que aparecem no diálogo estabelecido. Os encontros constituem processos de compartilhamento de significados, de diversas possibilidades de leitura sobre sexo e orientação sexual, sobre ser mulher e ser homem, sobre saúde sexual e reprodutiva entre jovens. O investimento é na promoção de uma convivência equânime e com respeito às diferenças constitutivas dos sujeitos. Não apenas as Oficinas da Diferença, mas também os encontros de supervisão têm gerado indagações sobre juventudes nas escolas e nos diversos territórios que constituem a própria juventude.

A escolha da escola como território privilegiado para ações extensionistas se fundamenta no interesse pela categoria juventudes. É nesse ambiente que encontramos jovens passando por um período importante do dia e da vida, especialmente quando consideramos a expansão das vagas de ensino médio em escolas públicas. Isso trouxe indícios da necessidade de alavancar processos dialógicos capazes de abranger a diversidade das culturas contemporâneas juvenis, com destaque para as expressões de gênero e sexualidade (Lopes et al., 2011LOPES, R. E. et al. Oficinas de atividades com jovens da escola pública: tecnologias sociais entre educação e terapia ocupacional. Interface, Botucatu, v. 15, n. 36, p. 277-288, 2011.).

Os encontros com jovens nos territórios escolares permitem-nos uma aproximação de elementos que circulam nos diversos territórios juvenis, para além da escola. São elementos discursivos que formam, conformam e deformam territórios e sujeitos e que o trabalho de extensão tem permitido compreender. Há uma pluralidade de elementos discursivos importantes na constituição das trajetórias juvenis e também no agenciamento de jovens para a vivência da sexualidade e das expectativas de gênero, a partir das pedagogias culturais que operam subjetividades e sujeitos (Meyer, 2013MEYER, D. E. Gênero e educação: teoria e prática. In: LOURO, G. L.; NECKEL, J. F.; GOELLNER, S. V. (Org.). Corpos, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na educação. Petrópolis: Vozes , 2013. p. 9-19. ).

Nos encontros lidamos com performances de feminilidades e masculinidades nos corpos juvenis, que são lidos como corpos de mulheres, moças, meninas ou de homens, rapazes, meninos. O trabalho do projeto de extensão revela uma juventude plural, que expressa complexos significados e articulações entre gêneros, sexo-sexualidade, geração, raça-cor, estilos de vida, locais de moradia, entre outros aspectos. As diferenças marcam os sujeitos jovens e os territórios que compõem, de maneira subjetiva, identitária e coletiva. A partir dos sistemas classificatórios produzidos pela diferença, elas e eles se posicionam como sujeitos nos encontros.

Sobre jovens sujeitos

Jovens são sujeitos que ocupam diversos lugares, deslocam-se entre distintas categorias classificatórias. Estas, por sua vez, também vão conformando a territorialidade juvenil em uma rede fluida de circulação e de intercâmbios, atualizada a cada encontro com outras pessoas nos territórios. Mesmo quando as idades são semelhantes, agrupadas em séries do ensino médio, as discussões durante oficinas e supervisões explicitam que essa variável, enquanto categoria biológica, não é determinante da condição de ser jovem, tampouco a condição social. Nessa perspectiva, é possível negociar com prolongamento da juventude, dadas as ambiguidades das fronteiras etárias e a diversidade de experiências - trata-se da “moratória social”, conforme definem Margulis e Urresti (1996MARGULIS, M.; URRESTI, M. La juventud es más que una palavra. In: MARGULIS, M. (Org.). La juventud es más que una palabra. Buenos Aires: Biblos, 1996. p. 1-25.). Nos encontros é perceptível a presença de códigos diferentes, relacionados à forma como jovens incorporam modos de perceber e de apreciar o mundo para além da idade ou da condição social.

Até quando o encontro é entre jovens da mesma turma reconhecemos a rica diversidade de ideias e atitudes compartilhadas, explicitando que ser jovem dependente dos muitos sentidos atribuídos ao espaço urbano dos territórios, das performances de gênero, da classe social, do modo como se vivencia o lazer e a condição de vulnerabilidade à violência. Portanto, são muitos os elementos que conferem sentidos à juventude, ao mesmo tempo que as/os próprias/os jovens atribuem sentidos a esses mesmos elementos, como alerta Pereira (2007PEREIRA, A. B. Muitas palavras: a discussão sobre juventude nas ciências sociais. Ponto Urbe, São Paulo, n. 1, p. 1-18, 2007.).

Desse modo, a categoria juventudes reafirma-se como plural e ganha materialidade nos encontros do projeto de extensão, principalmente nas Oficinas da Diferença, porque sua estratégia metodológica permite trazer a experiência dos sujeitos jovens e, portanto, discursos que ora reforçam concepções binárias, naturalizadas em classificações essencialistas e excludentes, ora são capazes de romper com padrões vigentes. Nas discussões realizadas valorizam-se as possibilidades de identificar e compreender intersecções entre os marcadores sociais das diferenças que constituem jovens. Como ferramenta metodológica e analítica, a interseccionalidade permite decodificar irregularidades e regularidades que se inscrevem nos sujeitos jovens e nos territórios que os constituem.

No modo como concebemos os encontros, torna-se central reconhecer o/a jovem como sujeito social (Dayrell, 2003DAYRELL, J. O jovem como sujeito social. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 24, p. 40-52, 2003.) e concebê-lo como possibilidade de acessar repertórios capazes de ampliar o protagonismo juvenil para outros territórios na cidade. Nesse sentido, o trabalho de extensão é orientado por pressupostos éticos-teóricos que investem em uma sociedade mais justa, com garantia dos direitos humanos, e partem das expectativas e demandas de jovens. Investe-se, portanto, na equidade de gênero e nos direitos sexuais e reprodutivos. Portanto, a extensão, articulada com ensino e pesquisa, deve lidar com os discursos que subalternizam sujeitos, valorizando a capacidade de jovens agenciarem as pedagogias culturais nos discursos que as/os atravessam.

Esses sujeitos também se constituem a partir dos marcadores sociais da diferença, relevantes para entender hierarquias e valores e para definir territórios, territorialidades e posicionamentos dos/as jovens na rede social em que se inserem. Como aponta Castells (1999CASTELLS, M. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.), a rede é feita de nós interconectados, relações e tecnologias de comunicação, estruturas abertas com capacidade de se expandir ilimitadamente, integrando novos nós e conexões relacionais. Essas redes sociais são produtoras de subjetividades que também se conectam e permitem apreender os sujeitos na dinamicidade e capacidade de expansão que as caracterizam e na capacidade relacional dos sujeitos em produzir e reproduzir conexões entre si.

Nos encontros com estudantes do ensino médio, de algum modo nos aproximamos de suas trajetórias, da maneira como se inserem nas redes e de alguns agenciamentos dos elementos discursos. Hierarquização, classificação, exclusão também aparecem, disparados pela diferença que marca jovens e outras pessoas, por vezes em reflexões orientadas pelo script das oficinas e sob a forma de zoeira. Nos debates durante as oficinas e supervisões identificamos a interação entre múltiplas diferenças e desigualdades.

Quanto ao binômio teórico-prático da formação, a metodologia das Oficinas da Diferença parte da interseccionalidade como conceito analítico que permite ler e interpretar a realidade, ao mesmo tempo que busca meios para atuar sobre ela, intencionando transformá-la (Mello; Gonçalves, 2010MELLO, L.; GONÇALVES, E. Diferença e interseccionalidade: notas para pensar práticas em saúde. Cronos, Natal, v. 11, n. 12, p. 163-173, 2010.). Assim, inspirados pela proposta de Crenshaw (2002CRENSHAW, K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-188, 2002.), tomamos a interseccionalidade como estratégia analítica para capturar a interação entre eixos de subordinação que criam desigualdades entre jovens estudantes.

Os marcadores sociais encontram-se sempre em correlação e revelam seu caráter histórico quando utilizados para compreender determinado fenômeno (Alves, 2009ALVES, A. M. Fronteiras da relação: gênero, geração e a construção de relações afetivas e sexuais. Sexualidad, Salud y Sociedad, Rio de Janeiro, n. 3, p. 10-32, 2009.). A cada encontro e no processo de preparação de oficinas e supervisões, masculinidades e feminilidades devem ser apreendidas analiticamente de forma a contribuir para desvelar distintos territórios que constituem as próteses identitárias (Preciado, 2011PRECIADO, B. Multidões Queer: notas para políticas dos “anormais”. Estudos Feministas , Florianópolis, v. 19, n. 1, p. 11-20, 2011.) nas relações de gênero. Tornam-se nítidas também as relações sociais fundamentadas nas diferenças de significados atribuídos a homens e mulheres e às relações de poder (Scott, 1995SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil para a análise histórica. Recife: SOS Corpo, 1995. ).

Encontro com as diferenças

Durante os encontros são trazidas experiências de relações afetivo-sexuais, discutem-se posições sociais a partir da condição feminina e masculina, bem como orientações sexuais não heterossexuais. A problematização se alinha e se inspira em participantes dos encontros, mas também em outros sujeitos, personagens imaginários (de filmes e novelas, por exemplo), pessoas da mídia, amigas/os ou conhecidos/as. Problematizam-se várias dimensões que se conectam à performatividade de gênero e à experiência da sexualidade e, por vezes, desembocam em violações de direitos. Nas oficinas é recorrente a utilização de cenas para disparar a discussão - episódios reais da vida dos sujeitos, conteúdos veiculados na mídia, ocorrências do cotidiano escolar. No processo de interação nas Oficinas da Diferença, estudantes são reconhecidos/as como sujeitos sociais culturalmente constituídos em tramas discursivas.

De acordo com Brah (2006BRAH, A. Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu, Campinas, n. 26, p. 329-376, 2006.), as posições dos sujeitos e suas diferentes subjetividades são inscritas pelo contexto que as reitera ou repudia. A diferença serve de ferramenta analítica com capacidade de fornecer elementos descritivos e ajudar a pensar nos processos que marcam certos indivíduos e certos grupos, a partir da experiência da diferença enquanto desigualdade. A experiência é o lugar de formação do sujeito - a partir dela se tecem subjetividades e territorialidades que atravessam o espaço da escola, mas também o ultrapassam.

Nas trajetórias juvenis compartilhadas durante oficinas e supervisões, buscamos constantemente apreender distintos significados e agenciamentos das pedagogias culturais sobre sexualidades e gêneros. Particularmente no tocante às relações afetivo-sexuais, identificamos momentos, como destacaram Simões, França e Macedo (2010SIMÕES, J.; FRANÇA, I.; MACEDO, M. Jeitos de corpo: cor/raça, gênero, sexualidade e sociabilidade juvenil no centro de São Paulo. Cadernos Pagu , Campinas, n. 35, p. 37-78, 2010.), nos quais se efetivam negociações dos marcadores sociais da diferença, articulados entre sujeitos e coletividades. Trata-se, portanto, de um importante aspecto da produção de sociabilidades que definem a agência e as formas de interação desejantes e hierárquicas entre jovens.

As/os interlocutoras/es do projeto de extensão parecem ocupar diversos lugares e, ao mesmo tempo, demonstram capacidade para deslocamento entre distintos sistemas classificatórios, o que ressalta novamente a pluralidade como constitutiva da condição de jovem. Nas Oficinas da Diferença buscamos promover o encontro a partir da explicitação da própria diferença, tomada como foco reflexivo e condutor.

O diálogo estabelecido permite o posicionamento dos sujeitos e, por vezes, explicita as classificações usadas entre elas e eles, bem como as “brincadeiras” e zoeiras recorrentes no cotidiano escolar. Assim são identificadas atitudes racistas e sexistas por parte de professores/as, colegas de escola e familiares. Não raramente, os sujeitos são classificados durante o encontro de distintas formas. Dependendo do debate, apresentam-se ou são apontados como o negro periférico evangélico, o funkeiro branco pegador, a moça católica que não discrimina ninguém, mas que não aceita beijo lésbico em público, a menina que pega todos e não esconde sua condição, a militante feminista, o gay negro trabalhador, a garota bissexual, entre vários outros sistemas classificatórios.

O processo educativo das Oficinas da Diferença impõe-nos a necessidade de mediar recorrentes conflitos. Por vezes lidamos com posicionamentos mais duros e inflexíveis, os quais - ainda que entrem em conflito com nossa visão de mundo - não devem nos impedir de continuar trabalhando na perspectiva de considerar qualquer jovem como sujeito social, mesmo aquele/a que nos parece reacionário/a. Esse modo de trabalhar exige o reconhecimento das desigualdades de acesso aos direitos como consequência da estigmatização e discriminação (Paiva, 1999PAIVA, V. Cenas sexuais, roteiros de gênero e sujeito sexual. In: BARBOSA, R. M.; PARKER, R. (Org.). Sexualidades pelo avesso: direitos, identidade e poder. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social/UERJ; São Paulo: Editora 34, 1999. p. 250-271.). Pensar sobre juventudes nesse quadro significa considerar o/a jovem como sujeito de sua sexualidade e de direitos, concebido numa perspectiva de autonomia para exercício da sexualidade e para estabelecer relacionamentos afetivos (Silva et al., 2008SILVA, C. G. et al. Religiosidade, juventude e sexualidade: entre a autonomia e a rigidez. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 13, n. 4, p. 683-692, 2008. ). Direitos sexuais são reconhecidos como constituintes dos direitos humanos, ou seja, entendidos como necessidade básica e parte dos direitos fundamentais (Petchesky, 2001PETCHESKY, R. P. Derechos y necesidades: repensando las conexiones en los debates sobre salud reproductiva y sexual. In: GRUSKIN, S. (Org.). Derechos sexuales y reproductivos: aportes y dialogos contemporaneos. Lima: Centro de la Mujer Peruana Flora Tristán, 2001. p. 27-41.).

Também é central para o trabalho compreender a importância do território escolar nas trajetórias juvenis e reconhecer a relevância das pedagogias culturais que operam na escola e fora dela. São as pedagogias culturais que constituem gêneros e sexualidades em inúmeras aprendizagens e práticas apresentadas explícita ou dissimuladamente em um conjunto inesgotável de instâncias sociais. De acordo com Louro (2008LOURO, G. L. Gênero e sexualidade: pedagogias contemporâneas. Pro-Posições, Campinas, v. 19, v. 2, n. 56, p. 7-17, 2008.), as pedagogias operam por meio de um processo minucioso, sutil, sempre inacabado. A escola é território, cenário de experiências constitutivas das trajetórias de rapazes e moças, particularmente no aprendizado e na construção de sexualidades e relações de gênero. Portanto, a vivência na e a partir da escola é relevante na conformação de modos de expressar o gênero e das relações de poder que operam a partir de corpos compreendidos como masculinos ou femininos. O território escolar é tomado naquilo que o torna profícuo (ou não) na manutenção de pedagogias de gênero e sexualidade que reforçam o modelo hegemônico.

A escola oferece condições ideais para determinar posições de subalternidade e reforçar a centralidade. Nesse território se constroem as diferenças nos corpos, nas atitudes de jovens e também nas brincadeiras e conflitos cotidianos. Historicamente o princípio organizador da escola é a separação das pessoas a partir de ordenamentos, classificações e hierarquizações. No encontro com jovens, é possível identificar concepções presentes na organização e no fazer cotidiano escolar que, como aponta Louro (2014LOURO, G. L. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes , 2014.), engendram pedagogias que multiplamente constituem estudantes generificados/as. Para Green e Bigum (2013GREEN, B.; BIGUM, C. Alienígenas na sala de aula. In: SILVA, T. (Org.). Alienígenas na sala de aula: uma introdução aos estudos culturais em educação. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 203-237.), a escola constitui importante espaço de referência para jovens e, ao mesmo tempo, espaço de conflito. Em uma análise sobre jovens a partir da instituição escolar, os autores discutem a dificuldade da escola em conciliar-se com o lazer e o tempo livre da juventude. Tendo em conta essa discussão, nos encontros realizados buscamos trazer ao convívio escolar vários outros elementos relevantes para a juventude, como conteúdos da internet, lazer, música, vistos como expressões fundamentais para a/o jovem na contemporaneidade.

As/os interlocutoras/es jovens expressam distintas formas de significar e articular gêneros, sexo, saúde sexual e reprodutiva, violência, racismo, uso de drogas. Revelam, assim, a pluralidade de sujeitos que se definem em suas diferenças. Sofrimentos, experiências de agressão e discriminação, além de percepções sobre relações desiguais, são desenhadas a partir dos marcadores sociais da diferença e dos contextos sociais onde estão inseridas/os. Como aponta Louro (2010LOURO, G. L. Pedagogias da sexualidade. In: LOURO, G. L. (Org.). O corpo educado. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. p. 7-34.), nesses complexos elementos articulados, revelam-se as pedagogias culturais na forma como produzem performances de gênero e idealizações sobre sexualidades, na interação e na relação. O modo como os sujeitos operam as inúmeras aprendizagens e práticas nesse processo se explicita em um conjunto inesgotável de instâncias sociais para além da escola.

Moças e rapazes articulam elementos nas expressões compartilhadas em encontros e supervisões, revelando certa conformação, modos de viver e de performar gêneros, bem como relações de poder que operam a partir de corpos compreendidos como masculinos e femininos. É o que se nota na dificuldade das meninas em colocar suas opiniões em grupos mistos; no recorrente atravessamento das falas das moças pelos rapazes; na culpabilização da mulher pelo abuso sexual; na exigência de certo tipo de conduta íntegra para pessoas não heterossexuais. Muitas vezes o território escolar aparece, na experiência do projeto de extensão, como espaço onde as pedagogias de gênero e sexualidade engendram muitos esforços que cristalizam o modelo hegemônico (Louro, 2013LOURO, G. L. Currículo, gênero e sexualidade: o “normal”, o “diferente” e o “excêntrico”. In: LOURO, G. L.; NECKEL, J. F.; GOELLNER, S. V. (Org.). Corpos, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na educação. Petrópolis: Vozes , 2013. p. 32-43.).

As instituições escolares conduzem processos, estratégias e práticas culturais que produzem pessoas como rapazes-homens e moças-mulheres de determinados tipos. Por outro lado, as/os jovens conectam-se a outras instâncias e processos para além dos territórios escolares, mas que também compõem certas noções de educação. É o caso de instâncias como família, meios de comunicação de massa, lazer, internet, jogos eletrônicos, cinema, música, grupos de iguais, como nos convida a pensar Meyer (2013MEYER, D. E. Gênero e educação: teoria e prática. In: LOURO, G. L.; NECKEL, J. F.; GOELLNER, S. V. (Org.). Corpos, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na educação. Petrópolis: Vozes , 2013. p. 9-19. ).

Os territórios adquirem relevância na constituição dos sentidos atribuídos à categoria juventude e indicam pertencimento juvenil a partir de signos da cultura, articulados às muitas dimensões da vida. Nas oficinas houve discussões sobre o território escolar e também sobre pertencimento a outros territórios, além de complexas territorialidades compostas em interconexão. Tomamos o conceito de território na perspectiva de Perlongher (1987PERLONGHER, N. O negócio do michê: prostituição viril em São Paulo. São Paulo: Brasiliense, 1987.), que alerta para os significados muito além da fixidez espacial. Os territórios juvenis compõem sujeitos jovens e precisam ser apreendidos em sua fluidez, no reconhecimento de que, portanto, escapam da limitação imposta pelo espaço físico. Nessa perspectiva, território remete a outros lugares e também a não lugares, implicando em deslocamentos e transposição de fronteiras. Constitui-se a partir de sujeitos e subjetividades e é percebido como lugar das relações - define-se nas interações, nas circulações, nas trocas, “na multiplicidade de fluxos desejantes”, como descreve Perlongher (1987PERLONGHER, N. O negócio do michê: prostituição viril em São Paulo. São Paulo: Brasiliense, 1987., p. 152). Para ele, os sujeitos ocupam diversos lugares de códigos e se deslocam entre distintas categorias classificatórias. Nesses deslocamentos, uma rede fluida de circulação e de intercâmbios constitui o que o autor chama de territorialidades. Lugares de códigos se atualizam a cada encontro humano, de pares. As pessoas não estão no território; é ele que está nas pessoas, demandando ser compreendido em sua dimensão subjetiva, na relação com determinados códigos sociais (Saraiva, 2012SARAIVA, M. R. O. Territórios dos sentidos: da emergência dos processos de subjetivação na metrópole contemporânea. Espaço Acadêmico, Maringá, v. 11, n. 132, p. 21-29, 2012.).

Territórios e territorialidades aparecem nas discussões e supervisões e fazem parte da pluralidade juvenil. A partir da experiência do projeto de extensão, temos a recorrente sensação de que no território escolar predomina a reificação de modelos hegemônicos binários, pasteurizados em modos hierarquizantes que valorizam homens e subalternizam mulheres, que circunscrevem o gênero à genitália e que colocam a sexualidade heterossexual no topo da pirâmide, como bem apontou Rubin (2003RUBIN, G. Pensando sobre sexo: notas para uma teoria radical da política da sexualidade. Cadernos Pagu , Campinas, n. 21, p. 1-88, 2003.) na discussão sobre a dimensão política e autônoma da sexualidade.

É relevante destacar que as/os próprias/os jovens acabam deslocando a diferença para desigualdade. Por outro lado, elas/es também são sujeitos constituídos de diferentes marcadores sociais interseccionados. Dessa maneira, são colocados em situações e lugares desiguais em relação aos sujeitos centrais em determinado contexto. Conforme Vencato (2014VENCATO, A. P. Diferenças na escola. In: MISKOLCI, R.; LEITE JÚNIOR, J. Diferenças na educação: outros aprendizados. São Carlos: EdUFSCar, 2014. p. 19-56.), o processo vivido com jovens no trabalho de extensão mostra como as diferenças sociais estão inseridas num jogo complexo de hierarquias. Particularmente, marcadores sociais de raça e gênero devem ser considerados no contexto da juventude de Santos (SP), cidade de cenários desiguais, e nos bairros onde estão as escolas parceiras do projeto. Uma delas fica mais próxima do centro, dos cortiços, da prostituição, do mercado central (esvaziado, com baixa frequência de clientes e visitantes), região com expressivo número de pessoas em situação de rua. A outra escola localiza-se próxima de shopping, clube, praças arborizadas, numa área que parece concentrar pessoas de classe média, fronteiriça com a classe popular que se concentra nos conjuntos habitacionais ao redor.

No projeto de extensão, um dos territórios importantes para compreender a juventude santista é o funk, tomado em suas territorialidades e, portanto, enquanto produtor de subjetividades e estilos de vida. Circulam nos territórios do funk e a partir deles representações de masculinidade e feminilidade que podem se materializar em relações de gênero e modos de viver a sexualidade, seja nas letras das músicas, na dança, nos estilos de vestir, nos corpos. O funk é considerado uma manifestação cultural importante para as juventudes na Baixada Santista e da qual se tem construído uma aproximação, em encontros com estudantes de escolas da região e em pesquisa feita a partir de outros territórios.55O trabalho implica permanente pesquisa na internet e encontros com interlocutoras/es sobre territórios juvenis, incluindo o universo do funk, que permite aproximação de jovens de Santos. Nos encontros com jovens, a relevância do funk aparece ora como repulsa, ora como interesse e desejo, ao lado de outros estilos de lazer, música e prazer.

Para a Baixada Santista, essa abordagem do funk enquanto movimento cultural é relevante porque permite aproximação de parte significante da juventude e de suas territorialidades, fornecendo elementos fundamentais para pensar a constituição da trajetória de rapazes e moças numa região considerada centro cultural do movimento funk - particularmente nos últimos quinze anos, período em que muita música funk foi produzida e quando rapazes dos bairros periféricos e das comunidades de cidades litorâneas de São Paulo se tornaram MC.66MC é sigla para Mestre de Cerimônia, adotada pelos/as cantores/as do estilo funk, com alusão à ideia de conduzir as festas.

Os territórios de funk são nitidamente generificados, assim como corpos de mulheres e homens que se apresentam neles e a partir deles (Silva, 2015SILVA, C. G. Juventudes e funk na Baixada Santista, São Paulo/Brasil. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS EM LÍNGUA PORTUGUESA, 11., 2015, Lisboa. Anais… Lisboa: Conlab, 2015. p. 3393-3407.). A complexidade desses territórios encarna algumas discussões realizadas pelo projeto e se desdobraram em experiências de investimento no diálogo com a pluralidade de distintas territorialidades juvenis. Universitárias/os, secundaristas e funkeiros participaram de dois encontros ocorridos no campus da universidade.77O projeto de extensão organizou dois encontros no campus da Unifesp: um debate sobre os documentários Funk ostentação, o filme e Funk ostentação, o sonho, com a participação de MC da cidade (2015), e uma batalha de rimas (I Batalha da Silva, 2016) com participação de artistas do rap e do funk da Baixada. As rimas foram elaboradas a partir de temas como combate ao racismo, à LGBTfobia e ao machismo, colocando sujeitos em diálogo diante do reconhecimento dos direitos e das diferenças que os constituem. Foram encontros com diferentes: universitárias feministas, rappers e funkeiros com histórico de músicas extremamente sexistas, MC trans e rimadora lésbica, entre outros. No jogo dos marcadores sociais da diferença esta não desaparece, e o diálogo respeitoso sinaliza a potência metodológica dos encontros. O trabalho da extensão se dedica a identificar fissuras e resistências nos territórios para poder ir além da constatação, um tanto óbvia, da exclusiva reiteração da opressão de gênero.

Dentre os encontros desenvolvidos pelo projeto de extensão, as oficinas têm se mostrado potentes e permitem acesso a territórios férteis para o trabalho e para compreender a condição juvenil, especialmente a partir dos marcadores sociais da diferença. O trabalho viabiliza a leitura dos/as jovens e do que compartilham nos encontros: concordâncias e discordâncias; resistências diante do racismo e da discriminação por orientação sexual; conflitos em torno da violência contra a mulher, com posicionamentos que reproduzem padrões de gênero, naturalizando a submissão feminina nas relações e culpabilizando a mulher no caso da violência sexual. Ao mesmo tempo, parte das moças reivindica igualdade na vivência da sexualidade e defende o direito de as pessoas terem experiências não heterossexuais. O diálogo nos encontros mostra que - apesar de ser comum as meninas se arriscarem e se posicionarem menos em debates com grandes grupos e apesar de os rapazes, especialmente os mais falantes, atropelarem frequentemente os posicionamentos das colegas, sobretudo quanto ao exercício da sexualidade feminina e à homossexualidade masculina - há ativa participação de algumas meninas, também mais falantes, que bancam posições contra-hegemônicas e que, se preciso for, aumentam o tom de voz para serem escutadas no debate.

Resultados em processo

O trabalho desenvolvido pelo projeto de extensão tem permitido aproximações com a juventude secundarista na medida em que viabiliza apreender dimensões importantes das pedagogias culturais operacionalizadas nas instâncias constitutivas dos sujeitos jovens: família, escola, religião, grupo de pares. Os conteúdos recorrentemente trazidos por jovem nas discussões travadas nas Oficinas da Diferença nos colocam diante de complexos repertórios sobre gêneros, sexualidades, relações geracionais e raciais.

Um desafio do projeto é garantir que sua metodologia permita horizontalizar o encontro entre estudantes e entre qualquer interlocutor/a participante: secundaristas e extensionistas, professoras/es, docentes universitárias/os. Para isso, é preciso ouvir as posições plurais, mesmo aquelas que operam coladas às concepções binárias, que limitam gêneros e sexualidade ao padrão heteronormativo. Por outro lado, é extremamente relevante garantir que posicionamentos de resistência, aqueles que denunciam naturalizações e essencialismos, apareçam e sejam respeitados nos encontros. Nesse exercício, a pluralidade não pode significar anulação do sujeito, subalternização de pessoas ou qualquer tipo de violência que nasce de um reconhecimento restritivo, capaz de atribuir legitimidade apenas a determinado tipo de indivíduo.

O encontro tem se efetivado nos próprios recursos que disparam reflexões, trazidos para problematização nas oficinas. Não raramente, as discussões levam as/os jovens a acionar letras de músicas, territórios específicos, conteúdos da internet, redes sociais, objetos de consumo e projetos de vida. Nas discussões também é comum a presença de conteúdos que remetem à religiosidade, indicando que as moralidades religiosas são agenciadas no cotidiano da juventude. Tal aspecto surge nas idealizações das relações afetivo-sexuais e no modo como classificam e hierarquizam orientações sexuais a partir de códigos e princípios pautados por autoridades religiosas,88Autoridades religiosas podem ser padre, pastor, mãe/pai de santo ou um membro mais velho da mesma comunidade religiosa. tidas pelos/as jovens como referências adultas importantes, como outros estudos já apontam, que se apresentam sob a forma de discursos no forjar das trajetórias juvenis e subjetividades (Silva; Paiva; Parker, 2013SILVA, C. G.; PAIVA, V.; PARKER, R. Juventude religiosa e homossexualidade: desafios para a promoção da saúde e de direitos sexuais. Interface, Botucatu, v. 17, n. 44, p. 103-117, 2013.).

As pedagogias culturais que constituem jovens estudantes também podem ser apreendidas para além dos encontros, por exemplo, na observação do cotidiano escolar, quando vamos às escolas para pactuação com sua comunidade ou quando o cotidiano é trazido para os debates. Aqui a ideia foi refletir sobre a particularidade de certo debate, tomado como pano de fundo, quando se trata de instituições escolares. Sendo o trabalho do projeto reiterar uma educação comprometida com os direitos humanos e centrada na compreensão da/o jovem como sujeito social, articulando o repertório teórico-prático com uma produção do conhecimento implicada na transformação social, tensionamos diretamente certos discursos pautados por ideias que essencializam corpos, gêneros, sexualidades, que veiculam a desigualdade entre negras/os e brancas/os, entre pobres e não pobres, ou seja, discursos e moralidades que valorizam alguns indivíduos em detrimento de outros.

Fragmentos desse tipo atravessam as diversas etapas de negociação entre escolas e universidade. O diálogo que o projeto promove nos encontros é por vezes tomado pela pouca ou nenhuma abertura à pluralidade de ideias ou a uma relação mais horizontal entre adultas/os e jovens, entre professoras/es e estudantes.

Nesse sentido, é relevante referir o debate que desde 2015 tem conformado certo cenário de disputa em torno dos planos de educação nas esferas municipal, estadual e federal quanto aos posicionamentos sobre conteúdos de gênero e sexualidade. Também é atual a discussão de projetos de lei que tramitam em diferentes âmbitos do Estado, como o “Escola sem partido”, que reivindica uma concepção de escola neutra. Trata-se, segundo Frigotto (2016FRIGOTTO, G. Escola sem partido: imposição da lei da mordaça aos professores. e-Mosaicos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 9, p. 11-13, 2016., p. 11),

da escola do partido absoluto e único: partido da intolerância com as diferentes ou antagônicas visões de mundo, de conhecimento, de educação, de justiça, de liberdade; partido, portanto da xenofobia nas suas diferentes facetas: de gênero, de etnia, da pobreza e dos pobres, etc. Um partido, portanto que ameaça os fundamentos da liberdade e da democracia liberal, mesmo que nos seus marcos limitados e mais formais que reais. Um partido que dissemina o ódio, a intolerância e, no limite, conduz à eliminação do diferente.

O posicionamento favorável à legitimidade exclusiva de alguns sujeitos selecionados desemboca na anulação da discussão sobre a pluralidade constitutiva da escola e na defesa de uma falsa neutralidade. Assim, questões tão francamente em disputa, como gênero e sexualidades, deveriam ficar de fora justamente por denunciarem a concepção frágil na qual essa perspectiva se baseia: uma visão universalista que naturaliza e generaliza, geralmente a partir de uma interpretação colada na genitália como definidora quase exclusiva dos corpos considerados masculinos e femininos.

Dessa forma, o projeto de extensão potencializa uma tensa disputa, onde conflitos se materializam em ataques, ofensas e quase nunca em diálogos. As relações de poder presentes no trabalho da extensão se apresentam em diferentes conformações, tendo o debate sobre gênero, sexualidade e escola sem partido como pano de fundo. Nas negociações feitas aparecem interesses e concepções das instâncias escolares (direção e coordenação pedagógica), de professores/as, estudantes e também de jovens graduandas/os da Unifesp. O desafio da negociação é não cristalizar as posições dos sujeitos políticos envolvidos, mas procurar investir em estratégias metodológicas que, sem abrir mão das temáticas consideradas relevantes pelo projeto, levem em conta as demandas de todas/os as/os participantes.

O processo educativo está sujeito, portanto, a um ir e vir constante, lidando no meio do caminho com ideias que nitidamente colaboram para a desigualdade no convívio escolar. Na contramão, a metodologia dos encontros procura dialogar mesmo diante de proibições e controles que incidem ainda com força sobre as meninas, o corpo feminino e o exercício no campo da sexualidade, como parte da saída institucional para evitar abusos cometidos contra as próprias meninas. Também são questionadas atitudes que marginalizam um tipo de masculinidade, considerada perigosa e ameaçadora num contexto territorial marcado pelo tráfico de drogas. O projeto implica em lidar com deslocamentos e tensões que despertam, por vezes, emoções ruins na sua equipe. A resistência que caracteriza a metodologia do encontro está na manutenção do diálogo e na negociação permanente, estratégias que permitem abrir caminhos para ressignificações e rompimentos com posturas rígidas e limitantes. O diálogo alimenta o comprometimento metodológico com a transformação social que se pauta prioritariamente no reconhecimento de jovens como sujeitos de direitos.

Alguns apontamentos finais

Para finalizar esta reflexão é preciso enfatizar a potência teórico-metodológica dos encontros do projeto de extensão, particularmente das Oficinas da Diferença. Ao problematizar discursos sobre gêneros e padronizações da sexualidade, permitimos compartilhamento de percepções entre docentes, extensionistas e interlocutoras/es, efetivando o processo educativo, continuamente retomado em outros encontros pautados no movimento e na circulação de ideias, e estimulando abertura para novas possibilidades que desemboquem em outros encontros. Tais oficinas se caracterizam, portanto, como um contínuo processo de desconstrução que forja coletivamente a ruptura com certezas e verdades de todos/as envolvidos/as, promovendo o reconhecimento da diversidade, da importância da diferença e da existência de distintos significados e discursos sobre qualquer tema, buscando a horizontalidade entre sujeitos e reforçando a primazia da condição e da dignidade humana para todas as pessoas.

A recorrente necessidade de olhar, refletir e praticar interdisciplinarmente uma formação em gênero e sexualidade implica em assumir a importância dessas dimensões para as juventudes, especialmente porque são esferas que se organizam a partir da cultura e, nessa condição, renegam a existência de uma sexualidade natural ou essencial. Todos os/as jovens constituem-se na pluralidade, como sujeitos sexuais e de direitos, o que inclui o direito ao exercício de suas sexualidades.

Outra dimensão que entendemos como potencialidade teórico-metodológica está na estreita ligação entre pesquisa e ensino, a qual retroalimenta as propostas metodológicas dos encontros realizados pelo projeto de extensão, contribuindo para redesenhar o processo. Ensino, pesquisa e extensão buscam dialogar com jovens, vendo-os como sujeitos posicionados politicamente, para que tenham cada vez mais acesso a repertórios que possibilitem romper com subalternidades e eliminar progressivamente situações de desigualdade, inclusive aquelas vividas nas escolas.

Apostamos na promoção do diálogo, que necessita de aguçada atenção para a pluralidade de visões de mundo e de significados entre pares e não pares juvenis e também nas relações intergeracionais. O instrumental metodológico-analítico adotado permite captar interseccionalidades de marcadores sociais da diferença e decodificar seus sentidos e tramas. A própria diferença e as reflexões sobre ela nos encontros são permanentemente transformadas em estratégias que compõem a metodologia de novas oficinas e de outros tipos de encontro. Nos encontros está viva a dinâmica das diferenças, em suas possibilidades e impossibilidades dialógicas: apresentam-se tensões e consensos, rompem-se silêncios e revelam-se resistências na condição de subalternidade de alguns sujeitos.

Também é importante destacar o efeito da presença de estudantes de graduação nas escolas públicas de ensino médio como parte de uma formação com vistas a promover um processo educativo baseado na reciprocidade entre jovens em diferentes condições. Universitárias/os e secundaristas em encontro colocam em evidência a necessidade de superar o adultocentrismo que hierarquiza relações entre professores/as e estudantes no cotidiano escolar.

O projeto de extensão revela a importância de investir em movimentos de aproximação da pluralidade juvenil nas escolas públicas santistas que sejam pautados sempre na perspectiva do encontro com sujeitos sociais. De alguma forma, essa experiência parece assumir caráter demonstrativo para constituir inovações sócio-políticas no campo da juventude e educação na formação universitária.

Agradecimentos

Agradecemos às/aos estudantes do projeto de extensão, que traduzem cotidianamente o campo das ideias em ações, em permanente afetação nos encontros. Nomeamos aqui quem esteve na equipe durante o período que serviu de base para a reflexão deste artigo. Obrigada, Ana Carolina Siqueira dos Anjos, Bárbara Pereira de Sena, Tainá Moreira Gatti (estudantes de terapia ocupacional), Bruna Carolina Silva dos Reis, Gabriel Santos Francisco, Giovanna Moreira Zanchetta, Júlia Cupello Silva Takeuchi, Karen Correa Stein, Paula Gonçalves Freire, Mariana Pereira Romano, Nathalia Evelyn Firmino Silva (estudantes de serviço social), Bruna Caroline Guimarães Vieira, César Mezzomo Keinert, Maíra Nobre Coelho, Mariana Skruzdeliauskas, Maytê Mayara Amorim Mussato, Priscilla Karaver Gonçalves de Sá, Raissa Mian Terra (estudantes de psicologia) e Marcelo Pereira Gonçalves (estudante de educação física). Agradecemos também às/aos estudantes, às gestoras e às/aos professoras/es das escolas parceiras pelas portas abertas e pelos encontros.

Referências

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  • 1
    Projeto parcialmente financiado pela Pró-Reitoria de Extensão e Cultura e pela Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
  • 2
    As duas escolas não serão identificadas para evitar exposição dos sujeitos envolvidos.
  • 3
    Entendemos o debate em torno dos termos “raça”, “cor” e “etnia” utilizados pela produção científica de distintos campos e pelos movimentos sociais e que estão, portanto, em disputa. No caso das atividades educativas realizadas pelo projeto de extensão, partimos das experiências dos sujeitos participantes que, geralmente, são de racismo - constituído pela ideia de raça - e de discriminações em que a cor da pele aparecia explicitamente. Desse modo, esses são os termos utilizados também no artigo.
  • 4
    Encontros para acompanhar a produção audiovisual sobre diversidade sexual, relações de gênero e raciais desenvolvidos por estudantes da Etec como parte de projeto interdisciplinar anual da escola. Em 2016, o projeto de extensão da Unifesp foi parceiro no desenvolvimento desse trabalho, na orientação e na supervisão dos/as estudantes no processo.
  • 5
    O trabalho implica permanente pesquisa na internet e encontros com interlocutoras/es sobre territórios juvenis, incluindo o universo do funk, que permite aproximação de jovens de Santos.
  • 6
    MC é sigla para Mestre de Cerimônia, adotada pelos/as cantores/as do estilo funk, com alusão à ideia de conduzir as festas.
  • 7
    O projeto de extensão organizou dois encontros no campus da Unifesp: um debate sobre os documentários Funk ostentação, o filme e Funk ostentação, o sonho, com a participação de MC da cidade (2015), e uma batalha de rimas (I Batalha da Silva, 2016) com participação de artistas do rap e do funk da Baixada. As rimas foram elaboradas a partir de temas como combate ao racismo, à LGBTfobia e ao machismo, colocando sujeitos em diálogo diante do reconhecimento dos direitos e das diferenças que os constituem.
  • 8
    Autoridades religiosas podem ser padre, pastor, mãe/pai de santo ou um membro mais velho da mesma comunidade religiosa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    06 Mar 2018
  • Aceito
    15 Ago 2018
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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