Princípios de uma política alternativa aos manicômios judiciais11Os dois primeiros autores respectivamente agradecem à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pela bolsa de doutorado e ao Ministério da Educação (MEC) pela bolsa de residência médica.

Principles of an alternative policy to judiciary asylums

Pedro Afonso Cortez Marcus Vinícius Rodrigues de Souza Luís Fernando Adas Oliveira Sobre os autores

Resumo

Os hospitais de custódia brasileiros são marcados por uma lógica de exclusão e segregação social. Indivíduos considerados inimputáveis ou semi-imputáveis são destinados a esses espaços com o intuito de cumprir medidas de segurança, mas não recebem os devidos cuidados em saúde mental, o que impossibilita a completa reintegração social e sentencia o indivíduo à marginalização. Nesse contexto, o objetivo deste ensaio foi propor princípios para definir uma Política Territorial de Reabilitação Psicossocial como alternativa aos manicômios judiciários brasileiros. Para tanto, analisou-se a formação da política territorial em saúde mental como proposta eficaz para assistência em saúde no contexto brasileiro, tecendo críticas ao modelo vigente para acompanhamento de medidas de segurança. Também se evidenciaram as contradições relativas ao processo de diagnóstico e acompanhamento em saúde mental na proposta não territorial. Assim, estabelecidos os pontos críticos do modelo excludente vigente, propôs-se uma política alternativa, cuja fundamentação territorial insere o cumprimento das medidas de segurança no contexto das políticas públicas de assistência social e saúde mental, tendo como finalidade a reabilitação integral do sujeito, tal como preconizado pela Lei nº 10.216/2001.

Palavras-chave:
Distúrbios Mentais; Crime; Políticas Públicas; Política Social; Política de Saúde

Abstract

Brazilian judiciary asylum hospitals are marked by exclusion and social segregation. Individuals who are not considered to be criminally responsible due to mental illnesses are destined to these spaces to comply with detention orders but do not receive the necessary mental health care, making it impossible to bring them back to social coexistence, thus sentencing these individuals to marginalization. In this context, we aimed at proposing principles for the definition of a Territorial Psychosocial Rehabilitation Policy as an alternative to the Brazilian judiciary asylums. To do so, the formation of the territorial policy in mental health was analyzed as an effective proposal for health care in the Brazilian context, and criticism was proposed on the current model of monitoring detention orders. Also, the contradictions related to the process of diagnosis and follow-up in mental health in the non-territorial proposal were highlighted. Thus, after we established the critical points of the existing exclusionary model, we proposed an alternative policy, whose territorial foundation inserts the fulfillment of the detention orders into a context of social assistance and mental health care public policies, aiming at the full rehabilitation of the subject, as recommended by Law No. 10,216/2001.

Keywords:
Mental Disorders; Crime; Public Policies; Social Policy; Health Care Policy

Introdução

Os hospitais de custódia, também conhecidos como manicômios judiciais, são espaços destinados à manutenção de indivíduos para cumprimento de medida de segurança, cuja condição seja constatada como inimputável ou semi-imputável. Em linguagem cotidiana, é o espaço destinado àqueles autores de fatos típicos penais considerados “loucos” e, consequentemente, inaptos tanto para o convívio social quanto para a execução penal regular (Silva et al., 2016SILVA, G. R. et al. Produções textuais dos pacientes do Manicômio Judiciário de São Paulo (1910-1923): o paciente escreve sua história. Cadernos de Clio, Curitiba, v. 7, n. 2, p. 107-126, 2016.). Pelas condições oferecidas atualmente aos autores de fatos típicos penais enquadrados nesses termos, verificam-se lacunas no que tange às chances de reabilitação psicossocial dos sujeitos, o que demanda exame detalhado desses espaços e a proposição de alternativas aos modelos vigentes (Cortez; Souza, 2017CORTEZ, P. A.; SOUZA, M. V. R. Menos profissionais, mais sujeitos: formação para a educação popular no Sistema Único de Saúde (SUS). Revista de Educação Popular, Rio de Janeiro, v. 16, n. 2, p. 27-37, 2017.).

Para isso, analisou-se o percurso de formação desses espaços ao longo da história no contexto internacional e nacional, denunciando a ineficácia do modelo psiquiátrico segregacionista e propondo a territorialidade como alternativa viável para a reabilitação nos tempos atuais. Em seguida, apresentaram-se evidências relativas aos diagnósticos em saúde mental, os quais reforçam a ideia de que análises equivocadas e práticas ineficientes podem perpetuar o quadro disfuncional, encadeando o indivíduo à exclusão social. Por fim, demonstrou-se a contradição existente nos manicômios judiciais e o tensionamento entre penitenciária e hospital, com intuito de respaldar uma alternativa de política pública assistencial territorial voltada à efetivação dos princípios propostos pela Lei nº 10.216/2001 nas práticas sobre o tema.

Cabe destacar que pensar alternativas aos manicômios judiciais é fundamental, pois na trajetória histórica de formação dessas instituições há uma dinâmica excludente e segregacionista (Rossi, 2015ROSSI, V. R. Medida de Segurança: a violação do direito à saúde a partir do conceito de periculosidade. Cadernos Ibero-americanos de Direito Sanitário, Brasília, DF, v. 4, n. 3, p. 75-93, 2015.). Por meio dessa dinâmica, a violência institucional assume dois níveis, os quais precisam ser modificados: no nível do sujeito, a prática apreendida no modelo atual implica na exclusão do indivíduo do convívio social, sem perspectiva de reintegração social ao território de origem; na esfera institucional, o problema reside em uma prática assistencial desconexa de avanços mais recentes em saúde mental preconizados pela Lei nº 10.216/2001, a qual aponta para a necessidade de considerar o indivíduo e seu contexto social concreto na definição de políticas e práticas sobre o assunto.

No presente, apreender os atravessamentos entre legislação, assistência social e saúde mental é imprescindível, pois, diferentemente dos espaços instituídos para a saúde mental por meio de políticas públicas criadas pelo Poder Executivo, as práticas relativas aos hospitais de custódia tendem a apresentar maior resistência na otimização de processos e práticas, persistindo, ainda nos dias atuais, num modelo que despotencializa o indivíduo e desconsidera seu entorno ao longo do processo assistencial. Na prática, ainda que nomeados como hospitais de custódia, a maior parte dos espaços destinados à reabilitação do autor de fato típico penal considerado “louco” ainda reproduz a lógica manicomial segregacionista, o que torna urgente a análise de tal tema e a proposição de alternativas capazes de contribuir para avanços nessa questão (Silva; Cruz; Trajano, 2013SILVA, É. Q.; CRUZ, M. O.; TRAJANO, R. P. D. Saúde mental, direito e psicologia no Judiciário: interlocuções na Seção Psicossocial da Vara de Execuções Penais do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Cadernos Ibero-americanos de Direito Sanitário , Brasília, DF, v. 2, n. 2, p. 445-450, 2013.).

Partindo do escopo descrito, este ensaio objetiva, por meio da proposição dialógica entre saberes de psicologia, direito, medicina e serviço social, propor princípios para a instituição de uma Política Territorial para a Reabilitação Psicossocial (PTRP) de autores de fatos típicos penais com transtornos mentais, a fim de superar as contradições existentes atualmente nos hospitais de custódia. Inicia-se na seção seguinte a consecução da proposta deste manuscrito, com a apresentação dos primórdios das práticas de assistência em saúde mental fundamentadas no paradigma territorial no Brasil.

Da exclusão manicomial à proposta territorial

Internacionalmente, os avanços sobre a inclusão do indivíduo e do plano terapêutico no território têm início com comunidades terapêuticas e hospitais comunitários que, constatando a ineficácia dos modelos segregacionistas, tornaram-se as novas formas de ação na assistência em saúde mental no final do século XX. No Brasil, essas práticas foram fortalecidas com a reforma psiquiátrica no início do século XXI, a qual expandiu as políticas nacionais sobre o tema, num caminho de priorização do convívio e assistência no território em detrimento dos modelos segregacionistas. Em termos concretos, é nessa época que se inicia a promulgação das primeiras ações que viriam a se tornar a Rede de Atenção Psicossocial (Raps) e legitimar dispositivos como os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), dentre outros (Oliveira; Rodrigues, 2015OLIVEIRA, J. A. M.; RODRIGUES, H. B. C. Uma política de aliança intensiva na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Tempos Gerais , São João del-Rei v. 4, n. 2, p. 126-143, 2015.).

Nesse espaço, os Caps apresentam-se como porta de entrada do serviço de saúde mental. Instituídos pela Portaria nº 224/1992 (Brasil, 1992BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 224, de 29 de janeiro de 1992. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 30 jan. 1992.) e atualizados por meio da Portaria nº 366/2002 (Brasil, 2002BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 336, de 19 de fevereiro de 2002. Diário Oficial da União , Brasília, DF, 19 fev. 2002.), do Ministério da Saúde, esses serviços surgiram como alternativa aos hospitais psiquiátricos convencionais. Diferentemente daqueles modelos manicomiais, que preconizavam a prática “psicopatologizante” e a contenção dos indivíduos no cárcere, os Caps dinamizam o atendimento à saúde mental ao alterarem dois princípios básicos: (1) práticas multidisciplinares tornaram-se interdisciplinares; e (2) o afastamento no cárcere hospitalar deu espaço à proximidade na territorialização (Onocko-Campos; Furtado, 2006ONOCKO-CAMPOS, R. T.; FURTADO, J. P. Entre a saúde coletiva e a saúde mental: um instrumental metodológico para avaliação da rede de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do Sistema Único de Saúde. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 22, p. 1053-1062, 2006.).

No primeiro aspecto, a prática em saúde mental, antes outorgada pelo psiquiatra nos leitos hospitalares, passou a contar com a assistência interdisciplinar prestada de forma conjunta por psicólogos, nutricionistas, assistentes sociais, enfermeiros e outros profissionais que agregaram ao plano terapêutico novos olhares sobre a dimensão existencial do sujeito. Em conjunto, esses profissionais puderam atentar para o que está além do aqui e agora - ultrapassar o sintoma a ser tratado pela medicação - com intuito de enxergar o entorno e suas possibilidades como impactantes na experiência individual do paciente (Jorge et al., 2011JORGE, M. S. B. et al. Promoção da Saúde Mental-Tecnologias do Cuidado: vínculo, acolhimento, co-responsabilização e autonomia. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 7, p. 3051-3060, 2011.).

No entanto, a despeito da eficácia da territorialização promovida por meio do Caps, verifica-se uma lacuna ao se apreender esse dispositivo como meio para a reabilitação de indivíduos autores de fatos típicos penais. Tal lacuna está em promover a interface entre esse dispositivo e os tribunais de justiça, os quais tendem a se apresentar em regiões alheias ao território. Nesse caso, outro dispositivo oferecido pelo Poder Executivo pode servir como alternativa para facilitar a relação entre ambos. Desenvolvidos por meio de Secretarias de Desenvolvimento Social, os Centros de Referência de Assistência Social (Cras) e os Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas) prestam assistência social por meio de equipe multidisciplinar (psicólogos, assistente sociais e outros profissionais técnicos de nível superior), utilizando também a prática territorial (Bulla, 2003BULLA, L. C. Relações sociais e questão social na trajetória histórica do serviço social brasileiro. Textos & Contextos, Porto Alegre, v. 2, n. 1, p. 1-15, 2003.; Silva; Corgozinho, 2011SILVA, J. V.; CORGOZINHO, J. P. Atuação do psicólogo, SUAS/CRAS e psicologia social comunitária: possíveis articulações. Psicologia & Sociedade , Florianópolis, v. 23, p. 12-21, 2011.).

Em geral, essas instituições têm como atribuição prevenir a ocorrência de riscos sociais e aumentar o acesso a direitos e garantias individuais, por exemplo, apoiando indivíduos e famílias do território em situação de risco iminente ou já concretizado. Assim, ao lidar com o indivíduo com diagnóstico de doença mental autor de fato típico penal, o papel dessas instituições seria prestar assistência psicossocial e jurídica a fim de realizar o nexo para acompanhamento das ações de saúde mental desenvolvidas pelo Caps com o indivíduo territorializado. Ademais, também se inseriria no escopo dessas instituições a efetivação dos direitos sociais e a inclusão cidadã por meio de capacitação para o trabalho e acesso ao emprego ou aos meios assistenciais necessários para assegurar ao sujeito e sua família meios de subsistir e manter o vínculo de reabilitação psicossocial com o Caps ativo e funcional ao longo do cumprimento da medida de segurança (Macedo et al., 2011MACEDO, J. P. et al. O psicólogo brasileiro no SUAS: quantos somos e onde estamos? Psicologia em Estudo , Maringá, v. 16, n. 3, p. 479-489, 2011.).

Contudo, antes de prosseguir na compreensão da interface entre os dispositivos citados, é necessário esclarecer o processo que leva os indivíduos ao diagnóstico relativo à saúde mental. Em sentido amplo, nenhum sujeito é considerado “louco” ou diagnosticado como doente mental, e consequentemente destinado às medidas de segurança, sem a determinação prévia de um profissional habilitado para realizar o diagnóstico, o qual traz implicações para a vida do sujeito portador da condição diagnosticada, o que é detalhado a seguir.

Preso e “louco”: a interferência na condição existencial pelo ato médico legal

Numa historiografia da loucura, a condição destinada ao louco sempre se assemelhou à enfermidade e inaptidão de forma geral. Ser louco é como um prognóstico de fracasso e convite permanente à exclusão e ao estigma, variando entre épocas três aspectos basilares: (1) o conceito de loucura; (2) critérios e saberes do ator social responsável por atestar a loucura; e (3) práticas destinadas ao sujeito considerado enlouquecido.

Quanto ao conceito de loucura, nota-se que ela pode ser apreendida como oposição ao funcionamento mental normal. No entanto, a própria definição de normalidade não facilita a proposição de uma concepção clara para tal termo, uma vez que sempre é estabelecida em função de algum critério. Dessa forma, a normalidade pode se referir ao conceito estatístico em que, dentro de parâmetros populacionais específicos, os quadros normais são postos no centro e os desviantes, nos extremos. Também pode ser designada numa perspectiva categórica, a partir de observações de sinais e sintomas, os quais cumulativamente preenchem os critérios para atestar determinada psicopatologia em detrimento de outra (Dunker, 2011DUNKER, C. I. L. Mal-estar, sofrimento e sintoma. Tempo Social, São Paulo, v. 23, n. 1, p. 115-136, 2011.).

Retomando o enfoque relativo à história da loucura, o conceito de normal também já foi apreendido como predominância de comportamentos sociais morais em oposição aos comportamentos sociais desviantes. A despeito das teorizações e imprecisões sobre o tema, prevalece hoje a dimensão nosológica proposta pelos principais modelos internacionais. Entre eles, destacam-se o Cadastro Internacional de Doenças (CID-10) (APA, 2013APA - AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Cadastro Internacional de doenças: CID-10. Washington, DC, 2013.) e o Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais (DSM-5) (APA, 2014APA - AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5. Porto Alegre: Artmed, 2014.). Por meio das classificações propostas nesses compêndios o paciente é submetido à avaliação das faculdades mentais e, em caso de adequação aos critérios estabelecidos, designado como inimputável ou semi-imputável, e a autoridade judicial define, baseando-se em parecer técnico específico, a condição do sujeito (Shine, 2010SHINE, S. K. Andando no fio da navalha: riscos e armadilhas na confecção de laudos psicológicos para a justiça. Saúde, Ética & Justiça, São Paulo, v. 14, n. 1, p. 40-41, 2010.).

A dinâmica que possibilita ao ato legal atestar a condição existencial de um indivíduo recai sobre o segundo ponto citado, especificamente aquele relativo aos critérios e saberes do ator social que subsidiam tecnicamente o atestado à loucura. No modelo corrente, os pareceres elaborados por psiquiatras e psicólogos fundamentam decisões judiciais em processos criminais sobre o tema, resultando em medidas de segurança e encaminhamento a hospitais de custódia (Cunha; Boarini, 2016CUNHA, C. C.; BOARINI, M. L. A medicina com o voto de Minerva 1: o louco infrator. Psicologia & Sociedade, Florianópolis, v. 28, n. 3, p. 442-452, 2016.). Contudo, ainda que essas ações sejam respaldadas por aspectos nosológicos, é possível tecer críticas às formas como esse processo ocorre. Vale apontar, por exemplo, os estudos que servem de base para classificações nosológicas. De forma recorrente, muitos deles apresentam limitações substanciais que levam à reestruturação dos critérios classificatórios pelos próprios especialistas. Portanto, são passíveis de questionamento quanto à robustez técnico-científica do método empregado, à validade das inferências diagnósticas ao longo do tempo e ao impacto delas no ciclo de vida dos sujeitos (Matos; Matos; Matos, 2005MATOS, E. G.; MATOS, T. M. G.; MATOS, G. M. G. A importância e as limitações do uso do DSM-IV na prática clínica. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, v. 27, n. 3, p. 312-318, 2005.).

Outro aspecto crítico refere-se à qualidade das avaliações propostas nesses contextos. Toda avaliação relativa ao fenômeno psíquico demanda alguns elementos cruciais: (1) análise do histórico clínico do paciente; (2) avaliação funcional do sujeito de forma contextual; e (3) instrumento válido para tal finalidade (CFP, 2010CFP - CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Avaliação psicológica: diretrizes na regulamentação da profissão. Brasília, DF, 2010.). No contexto analisado, porém, o histórico do paciente muitas vezes é restrito ao fato típico penal, não abrangendo o tempo pregresso nem o funcionamento do sujeito de forma contextualizada. Muitas vezes isso acontece porque as avaliações voltadas ao judiciário não se inserem no âmbito territorial das práticas relativas à saúde mental e, portanto, não concebem o sujeito em sua integralidade (França, 2004FRANÇA, F. Reflexões sobre psicologia jurídica e seu panorama no Brasil. Psicologia: Teoria e Prática, São Paulo, v. 6, n. 1, p. 73-80, 2004.).

Diante desse cenário, o Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2010CFP - CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Avaliação psicológica: diretrizes na regulamentação da profissão. Brasília, DF, 2010.) estabeleceu diretrizes com o intuito de otimizar práticas de avaliação psicológica no âmbito judiciário. No entanto, ainda que haja uma preocupação classista em aprimorar a precisão e validade dos instrumentos de avaliação, tal como vislumbrado na iniciativa Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos (Satepsi), notam-se os gargalos na avaliação causados pela desterritorialização, pois é impossível avaliar aspectos pregressos e contextuais sem instituir programas assistenciais de nível macro, os quais ultrapassam atribuições e possibilidades das categorias profissionais (Yamamoto; Oliveira, 2010YAMAMOTO, O. H.; OLIVEIRA, I. F. Política Social e Psicologia: uma trajetória de 25 anos. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, DF, v. 26, n. 25, p. 9-24, 2010.).

Nessa seara, é urgente propor práticas territoriais aos indivíduos destinados às medidas de segurança. Afinal, quando delineadas apropriadamente, as políticas desenvolvidas de forma territorial podem potencializar as condições de avaliação e assistência à saúde mental em diferentes contextos, incluindo o judiciário e penal. Do contrário, quando não definidas de modo adequado, essas práticas supostamente voltadas à promoção de saúde e melhora do quadro do paciente exercem efeito negativo, muitas vezes mostrando-se ofensivas à dignidade, à condição humana e ao quadro geral do sujeito destinado à medida de segurança e atestado como louco (Diniz; Brito, 2016DINIZ, D.; BRITO, L. “Eu não sou presa de juízo, não”: Zefinha, a louca perigosa mais antiga do Brasil. História, Ciências, Saúde: Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 23, n. 1, p. 113-129, 2016.). Por esse motivo, é preciso um exame detalhado do terceiro aspecto crucial apontado anteriormente: as práticas voltadas ao sujeito considerado enlouquecido.

Penitenciária versus hospital: a imprecisão como ato letal

Na dimensão historiográfica predominam a exclusão e o estigma no tocante às práticas desenvolvidas em hospitais de custódia e em serviços de assistência à saúde mental. Dessa forma, tratar um indivíduo nesses espaços muitas vezes requeria abstenção completa dos vínculos sociais e da própria condição existencial do sujeito em tratamento (Emerim; Souza, 2016EMERIM, M. F.; SOUZA, M. “Ninguém esquece uma coisa dessas”: problematizações sobre parricídio e hospitais de custódia. Psicologia & Sociedade, Florianópolis, v. 28, n. 1, p. 171-180, 2016.). Assim, tal como propõem os hospitais de custódia atualmente, as práticas de cuidado à saúde mental sempre atravessaram a tênue linha entre a margem como alternativa existencial versus o enclausuramento como modelo curativo. Na impossibilidade de optar por um caminho que tangenciasse essa díade a loucura era e ainda é tratada como imprecisa e inominável. Ao louco, diversas vezes restava como opção apenas a anulação de si mesmo, caracterizada como ato letal por impossibilitar o indivíduo de efetivar a própria existência, devido à ineficácia da assistência prestada.

Um dos aspectos centrais que denuncia a ineficácia dos hospitais de custódia é a contradição entre a nomenclatura adotada pelo dispositivo e suas práticas. É comum haver imprecisão dos técnicos, familiares, pacientes e até da própria justiça sobre qual ato dirige a finalidade dos hospitais de custódia (Diniz; Brito, 2016DINIZ, D.; BRITO, L. “Eu não sou presa de juízo, não”: Zefinha, a louca perigosa mais antiga do Brasil. História, Ciências, Saúde: Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 23, n. 1, p. 113-129, 2016.). A princípio, essas instituições surgiram como alternativa aos manicômios judiciais, que, por terem se associado à psiquiatria segregacionista da metade dos anos 1950, demandaram uma roupagem diferente para aceitação social após escândalos de maus-tratos (Ibrahim; Vilhena, 2014IBRAHIM, E.; VILHENA, J. Manicômio judiciário: é possível ao louco-criminoso resistir? Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, DF, v. 34, n. 4, p. 879-894, 2014.).

No Brasil, destacam-se entre os horrores imputados a espaços com predominância da psiquiatria segregacionista o Hospício de Barbacena, cujas ações são associadas ao apartheid brasileiro em registros historiográficos que denunciaram a morte de milhares de indivíduos em uma colônia voltada para loucos no interior de Minas Gerais (Godoy, 2015GODOY, A. B. Arquivos de Barbacena, a Cidade dos Loucos: o manicômio como lugar de aprisionamento e apagamento de sujeitos e suas memórias. Revista Investigações, Recife, v. 27, n. 2, p. 1-38, 2015.). Assim, pelos abusos cometidos nessas colônias, os manicômios foram reformados, dando lugar aos primeiros hospitais psiquiátricos. Entretanto, a nova roupagem não perdeu o ranço que anterior: a sede por exclusão e diferenciação social entre ricos e pobres, normais e anormais, loucos e sãos. É nesse contexto que os hospitais de custódia também surgiram e, novamente, revelaram a contradição inerente aos princípios que os geraram (Vidal; Bandeira; Gontijo, 2008VIDAL, C. E. L.; BANDEIRA, M.; GONTIJO, E. D. Reforma psiquiátrica e serviços residenciais terapêuticos. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, Rio de Janeiro, v. 57, n. 1, p. 70-79, 2008.).

Essa contradição pode ser verificada por meio dos excertos que tratam desses espaços na Lei de Execuções Penais nº 7.210/1984 (Brasil, 1984BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 13 jul. 1984.). Nota-se que a lei prevê os hospitais de custódia, mas não há nela qualquer consideração sobre o espaço físico e demais condições relacionadas a esses espaços como hospitais. Dessa forma, na letra da lei observa-se que as únicas condições estabelecidas para destinar o sujeito à unidade celular foram a salubridade térmica e sanitária do ambiente e área mínima de 6 m². É possível inferir que, na inexistência de previsão distinta para o hospital de custódia, a unidade celular regular passa a ser critério para proposição desses espaços e, conforme as descrições, tornam os hospitais análogos às penitenciárias, o que pode ser apreendido por relatos de pacientes (Ferreira, 2017FERREIRA, M. T. Lugares, sujeitos e narrativas: reflexões sobre a trajetória institucional de um interno do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Roberto de Medeiros. Aracê, São Paulo, v. 4, n. 5, p. 160-179, 2017.).

Por meio dessa analogia se nota como princípio dos hospitais de custódia a tônica do modelo penal brasileiro: em vez de reabilitação social foca-se no desejo latente de vingança, na segregação e exclusão (Peron, 2014PERON, P. R. A trágica história do Hospital Psiquiátrico Colônia. Psicologia Revista, São Paulo, v. 22, n. 2, p. 261-267, 2014.). Dessa forma, a omissão na prescrição das unidades celulares dos hospitais de custódia operou em favor da mentalidade de época, cuja intenção era a marginalização social entre normais e anormais, aptos e inaptos. Com isso, tais instituições delinearam uma política que relegou a último plano a assistência àquele que cumpre medida de segurança, perpetuando a exclusão do território e cronificação do quadro clínico como justificativa para manter os princípios que as criaram: a indiferença com os sujeitos que nelas se inserem e suas possibilidades.

Em outras palavras, o abandono ocasionado pela violência institucional praticada pela carceragem transvestida em hospital resultava na percepção do próprio paciente e dos familiares de que o tratamento não tinha efetividade e, portanto, o sujeito era irrecuperável. Nessa seara, a imprecisão entre o que era apresentado e o que de fato definia as práticas desses espaços marcava a vida do indivíduo sob medida de segurança no hospital de custódia: o fim - como finitude e finalidade - da própria vida no hospital. Pacientes ali eram somente os acoimados que esperavam com paciência, durante toda a vida, por um plano terapêutico, mas que só recebiam um prognóstico possível para encerrar o quadro: a letalidade, a morte como expressão da finitude da condição existencial do sujeito marcado pela exclusão social e violência institucional (Santos; Lopes; Silva, 2016SANTOS, J. E.; LOPES, M. J.; SILVA, E. Q. (Re)inserção social: perspectiva do interno da ala de tratamento psiquiátrico. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, Florianópolis, v. 8, n. 19, p. 116-126, 2016.). Nesses termos, nota-se a importância de propor uma alternativa ao modelo vigente, no qual a letalidade dê espaço à reabilitação, o que é abordado adiante.

Princípios de uma política territorial: a reabilitação como ato final

Em linhas gerais, essa alternativa perpassa pela modificação no paradigma de atuação dos hospitais de custódia. Trata-se, portanto, da reinvenção desse espaço, abandonando a ambiguidade que o destina ao ato carcerário e inserindo-o no âmbito das políticas de saúde mental. No formato atual dos hospitais de custódia, sem a territorialização, a maior dificuldade refere-se a acompanhar e desenvolver um plano terapêutico para o indivíduo destinado à medida de segurança. Pela ausência de acompanhamento ao longo da execução penal, o sujeito muitas vezes cai em condições degradantes de maus-tratos na instituição ou negligência de direitos adquiridos, no que tange aos prazos penais e outros aspectos relativos à medida de segurança. Para superar essa dinâmica excludente é fundamental repensar a organização e inserção dos hospitais de custódia e das varas judiciais penais nos Tribunais de Justiça, bem como a articulação desses dispositivos com outras esferas do poder estatal (Moreira; Onocko-Campos, 2017MOREIRA, M. I. B.; ONOCKO-CAMPOS, R. T. Ações de saúde mental na rede de atenção psicossocial pela perspectiva dos usuários. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 26, p. 462-474, 2017.).

Para funcionamento mínimo da PTRP, além das varas judiciais de execuções penais especializadas em saúde mental, é necessário um território que inclua os dispositivos regulares previstos no Sistema Único de Saúde (SUS) e na Raps. É preciso também uma unidade Caps e um Cras ou Creas. Caso o território não tenha contingente suficiente para a instalação dessas instituições, é possível acompanhar o caso em unidades próximas, por meio de visitas domiciliares e integração com outras equipes de referenciamento. Alternativamente, outros dispositivos, como Unidades Básicas de Saúde (UBS) e Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf), mediante acompanhamento de preceptor especializado em saúde mental, podem suprir potenciais lacunas das redes na formulação da política e na estruturação das ações de territorialização.

Para facilitar a visualização dos modelos aqui discutidos, apresentam-se na Figura 1 as cartografias da opção não territorial vigente e da proposta territorial esboçada neste ensaio (PTRP). No modelo não territorial, o indivíduo autor de fato típico penal não estabelece vínculos com o território. A conduta típica penal é apreendida como desconectada do seu histórico e contexto, o que implica na segregação social existente nos dias atuais (Vicentin; Gramkow; Rosa, 2010VICENTIN, M. C. G.; GRAMKOW, G.; ROSA, M. D. A patologização do jovem autor de ato infracional e a emergência de “novos” manicômios judiciários. Journal of Human Growth and Development, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 61-69, 2010.). O indivíduo é levado à vara criminal e, após o processo e consequente julgamento, os autos judiciais são encaminhados à vara de execuções penais, destinando-o ao hospital de custódia. Tal como proposto anteriormente, o encaminhamento ao hospital muitas vezes resulta num ato letal, já que não resta ao indivíduo outra opção depois de entrar nesse local.

Figura 1
Cartografia dos modelos assistenciais não territorial e territorial

Em oposição, na proposta PTRP as relações se invertem, saindo do fluxo linear relativo à punição e segregação do modelo vigente, rumo ao modelo dinâmico territorial, cujas instituições se integram e se retroalimentam no desenvolvimento da assistência psicossocial e reintegração social do sujeito em cumprimento de medida de segurança (Furtado et al., 2016FURTADO, J. P. et al. A concepção de território na saúde mental. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 32, p. 1-15, 2016.; Vasconcelos, 2010VASCONCELLOS, V. C. Trabalho em equipe na saúde mental: o desafio interdisciplinar em um CAPS. SMAD. Saúde Mental Álcool e Drogas, Ribeirão Preto, v. 6, n. 1, p. 1-16, 2010.). Nesse modelo, o fato típico penal é reconhecido a partir de um sujeito situado num território, de forma que as execuções relativas ao ato devem ser pensadas em sentido funcional, visando reintegrá-lo ao território e dotá-lo de condições dignas de assistência à saúde mental.

Na PTRP, tal como no primeiro modelo o fato típico penal é encaminhado a uma vara criminal para julgamento, mas, diferentemente da primeira proposta, verifica-se na alternativa territorial uma vara de execuções penais especializada em saúde mental. Esse dispositivo é fundamental, pois a lacuna no modelo vigente se refere às negligências e impropriedades ocorridas durante o cumprimento da medida de segurança, demandando um dispositivo capaz de atender, na esfera judicial, as demandas dessa natureza com maior expertise (Barreto, 2016BARRETO, F. P. O aberto e o fechado. Tempos Gerais, São João del-Rei, v. 4, n. 2, p. 47-56, 2016.). No momento inicial, o indivíduo é levado para cumprir medida de segurança na clínica judicial, a qual se caracteriza como um hospital terciário para atendimento de casos especializados em saúde mental na esfera penal. Contudo, essa clínica não se afirma na PTRP como o dispositivo final das pessoas cumprindo medida segurança, uma vez que elas recebem outro tratamento nesse espaço.

Na proposta da PTRP a clínica judicial se apresenta como porta de entrada no período de crise - imediatamente após o fato típico penal -, com intuito de recepcionar o sujeito para iniciar a medida de segurança e, constatando-se condições favoráveis, encaminhá-lo ao dispositivo territorial para consecução do plano terapêutico (Andrade; Zeferino; Brandt Filho, 2016ANDRADE, K.; ZEFERINO, M. T.; BRANDT FILHO, M. Articulação da rede de atenção psicossocial para o cuidado às crises. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 21, n. 2, p. 222-233, 2016.; Macedo et al., 2011MACEDO, J. P. et al. O psicólogo brasileiro no SUAS: quantos somos e onde estamos? Psicologia em Estudo , Maringá, v. 16, n. 3, p. 479-489, 2011.). O encaminhamento territorial é feito por meio da Raps, que articula o Judiciário e dispositivos do SUS. Na territorialização, tanto o Caps quanto um hospital geral terciário serão responsáveis por receber o sujeito e mantê-lo em tratamento ao longo da medida de segurança. Ainda no território, a interface entre os dispositivos do Executivo e do Legislativo se estabelece primordialmente por meio da Raps, que articula as redes e os mecanismos de apoio para reinserção social dos indivíduos. Os dispositivos Cras/Creas, oferecendo assistência psicossocial a sujeitos em condição de vulnerabilidade social, propiciarão o acompanhamento do indivíduo territorializado, com intuito de reportar à vara de execuções penais especializada em saúde mental questões relativas ao sujeito na inserção do território, abrangendo vínculos familiares, comunitários e dispositivos assistenciais e de saúde (Raichelis, 2010RAICHELIS, R. Intervenção profissional do assistente social e as condições de trabalho no SUAS. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, n. 104, p. 750-772, 2010.). As atribuições dos dispositivos em cada esfera do poder estatal na PTRP são sintetizadas na Tabela 1.

Tabela 1
Relação entre dispositivos e atribuições por esferas na PTRP

Assim, com a consecução do plano terapêutico e nos casos de melhora do quadro que iniciou a medida de segurança, o sujeito poderá, por fim, ser reintegrado definitivamente ao território. A vantagem de manter o indivíduo territorializado é que isso permite uma análise funcional do sujeito no ambiente em que irá se inserir (Sampaio et al., 2011SAMPAIO, J. J. C. et al. O trabalho em serviços de saúde mental no contexto da reforma psiquiátrica: um desafio técnico, político e ético. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 16, n. 12, p. 4685-4694, 2011.). Além disso, com o plano terapêutico contextual e a efetivação de ações de reintegração social na localidade, obtém-se maior validade ecológica da prática proposta, o que tende a otimizar os resultados alcançados de forma longitudinal no longo prazo (Neto; Dimenstein, 2016NETO, M.; DIMENSTEIN, M. Experiência de acompanhamento terapêutico: do hospital à cidade. Pesquisas e Práticas Psicossociais, São João del-Rei, v. 11, n. 2, p. 489-498, 2016.).

Ademais, considerando que a tônica da proposta territorial passa a ser intersetorialidade entre os dispositivos e a articulação entre justiça, saúde mental e assistência social, inverte-se a lógica punitiva existente no modelo não territorial, rumo à definição de uma política cujo ato final é a reabilitação integral do sujeito (Frazatto; Beltrame, 2016FRAZATTO, C. F.; BELTRAME, M. M. Os serviços abertos de Saúde Mental no Brasil: o cuidado em liberdade na perspectiva dos higienistas. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. 19, n. 4, p. 737-750, 2016.; Goulart; Durães, 2010GOULART, M. S. B.; DURÃES, F. A reforma e os hospitais psiquiátricos: histórias da desinstitucionalização. Psicologia & Sociedade , Florianópolis, v. 22, n. 1, p. 112-120, 2010.). Por fim, cabe destacar que diferente do modelo vigente, em que os prazos indeterminados delineiam o abandono e a segregação social, a PTRP pressupõe estudos especializados que indiquem aos quadros diagnósticos específicos um tempo máximo de internação nas clínicas judiciais (Rodrigues; Bispo, 2015RODRIGUES, M. C. A.; BISPO, K. C. S. Inconstitucionalidade do aspecto atemporal das medidas de segurança aplicadas aos doentes mentais. Raízes no Direito, Goiânia, v. 3, n. 1, p. 38-58, 2015.). Com isso, espera-se que a territorialização e, em última instância, a definição e execução do plano terapêutico nos dispositivos territoriais se tornem o núcleo de atuação e definição das práticas de reabilitação psicossocial nos casos de indivíduos em conflito com a lei diagnosticados como inimputáveis ou semi-imputáveis, tal como preconizado pela Lei nº 10.216/2001 (Brasil, 2001BRASIL. Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 abr. 2001.).

Considerações finais

Pelo exposto neste artigo, espera-se a otimização das alternativas assistenciais que impactem na efetiva execução da Lei nº 10.216/2001 como marco regulatório das práticas sobre o tema, especificamente no que tange à reabilitação e ao direito de reinserção psicossocial por meio da territorialidade como apriorístico fundamental para a transição da loucura à normalidade. Nesse sentido, a corrente investigação contribui na literatura sobre o tema ao instituir caminhos para integrar os três poderes do país aos princípios da Lei nº 10.216/2001, por meio de uma prática assistencial que otimiza e revitaliza os dispositivos já existentes nesses poderes.

No que se refere às limitações deste estudo, destaca-se o enfoque macro dado ao tema, o que gera uma agenda para outras pesquisas com finalidade de abranger a PTRP em nível micro, considerando: (1) atribuições estaduais e municipais consonantes com o princípio de descentralização da Raps; (2) política permanente de formação e redefinição de cargos e tarefas a serem executadas pelos agentes públicos nos dispositivos específicos após a inter-relação dos serviços; e (3) metodologia cartográfica para mapear territórios e dispositivos, bem como facilitar a proposição das redes intersetoriais; e (4) definição de princípios norteadores de avaliação da eficácia terapêutica, assistência social e estrutural da rede de reabilitação, por meio de indicadores quantitativos, a fim de possibilitar a expansão das práticas bem-sucedidas a outros territórios.

Outra questão fundamental refere-se às limitações de aplicação prática das propostas elencadas. Nos dispositivos das diferentes esferas da PTRP, é preciso pessoal e espaço de trabalho para que as propostas sejam implementadas. Para isso, o desenvolvimento de políticas públicas que subsidiem ações e espaços para o bem-estar social é substancial. Afinal, enquanto proposta de prática de assistência pública alternativa aos moldes existentes atualmente nos hospitais de custódia, a PTRP demanda constante interação de pares e saberes, a fim de se tornar uma opção efetiva nos diversos territórios brasileiros. Para tanto, somente a união entre saberes e práticas multidisciplinares, por meio de atravessamentos de princípios, guias e práticas profissionais e de avaliação em saúde mental, poderá efetivá-la como alternativa viável ao que está posto atualmente.

Tratar essa questão é fundamental em um Estado cujo discurso explicitado se respalda na crise e no contingenciamento de gastos públicos, e no qual se nota também, de forma implícita, um movimento crescente de desumanização das instituições e precarização social das pessoas e dos direitos fundamentais em diferentes instâncias. Por essa razão, este estudo se posiciona contrariamente aos argumentos instrumentais, cuja lógica valida esse tipo de pensamento excludente. Assim, reafirma-se a urgência de promover o bem-estar social como pré-requisito para superar crises nas demais esferas, incluindo o espectro econômico. Não existe desenvolvimento econômico nem progresso se os atores sociais não contarem a priori com condições para ser, pertencer e se desenvolver em suas territorialidades.

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  • 1
    Os dois primeiros autores respectivamente agradecem à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pela bolsa de doutorado e ao Ministério da Educação (MEC) pela bolsa de residência médica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    21 Jul 2018
  • Aceito
    29 Set 2018
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br