Capitais científicos em saúde coletiva: proposta de análise inspirada nas fontes utilizadas na obra Homo academicus11Pesquisa realizada com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (Processo 307694/2015-1) e com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).

Suely Deslandes Ivia Maksud Sobre os autores

Resumo

Espaço social de produção de saberes e práticas, a saúde coletiva (SC) é reconhecida por seus estudiosos como um campo, a partir da acepção de Pierre Bourdieu. O campo científico é um microcosmo social dotado de leis próprias, em que se inserem os agentes e as instituições que produzem/reproduzem/difundem a ciência. Este ensaio visa propor, a partir da obra Homo academicus, de Bourdieu, um conjunto de indicadores para uma matriz de análise da distribuição de capitais de prestígio, notoriedade e poder universitário no campo científico da SC brasileira. Adaptamos os indicadores levando em conta os dados disponíveis, de modo a garantir sua viabilidade de aplicação. Utilizamos documentos oficiais que definem critérios de produtividade desejáveis para o desempenho de docentes permanentes de programas de pós-graduação e critérios de elegibilidade para a obtenção de bolsas de produtividade em pesquisa. A matriz apresentada permite um mapeamento da distribuição de capitais entre os diferentes pesquisadores, segundo sua origem disciplinar ou institucional. O exercício analítico sobre o campo da SC a partir da distribuição de capitais políticos, prestígio e notoriedade nos ajuda a conhecer melhor suas dinâmicas de produção de distinção. Empreender esse tipo de análise nos convida, nos dizeres de Bourdieu, a uma “autoanálise coletiva”.

Palavras-chave:
Saúde Coletiva; Campo Científico; Capitais Científicos

Introdução

A saúde coletiva (SC) por sua história, seu engajamento sociopolítico, sua ambição de produção teórico-explicativa e de transformação da realidade social e sanitária foi traduzida por Nunes (1994NUNES, E. D. Saúde coletiva: história de uma ideia e de um conceito. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 3, n. 2, p. 5-21, 1994., p. 16) como uma “corrente de pensamento, movimento social e prática teórica”. Ainda que esteja fortemente vinculada à origem acadêmica (Loyola, 2012LOYOLA, M. A. O lugar das ciências sociais na saúde coletiva. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 21, n. 1, p. 9-14, 2012.), a SC não se circunscreve unicamente dentro dos limites da produção científica, da ação político-institucional ou do ativismo social, mas se expande no diálogo e na tensão entre esses agentes e agências que provém os elementos de sua identidade. Abriga um forte componente científico, de vigorosa produção acadêmica, que se apresenta institucionalizado através de programas de graduação e pós-graduação disseminados em todo o país.

Pela complexidade de seu objeto, pela conformação entre distintos arranjos disciplinares, interdisciplinares e transdisciplinares, muitas das vezes concorrenciais, pelas disputas dos capitais políticos e científicos que se dão entre seus agentes, e pela relativa autonomia que possui, a SC será reconhecida por muitos de seus estudiosos (Bosi, 2012BOSI, M. L. Produtivismo e avaliação acadêmica na saúde coletiva brasileira: desafios para a pesquisa em ciências humanas e sociais. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 28, n. 12, p. 2387-2392, 2012.; Luz, 2005LUZ, M. T. Prometeu acorrentado: análise sociológica da categoria produtividade e as condições atuais da vida acadêmica. Physis, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, p. 39-57, 2005.; Nunes, 2005NUNES, E. D. Pós-graduação em saúde coletiva no Brasil: histórico e perspectivas. Physis, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, p. 13-38, 2005.; Nunes et al., 2010NUNES, E. D. et al. O campo da saúde coletiva na perspectiva das disciplinas. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 15, n. 4, p. 1917-1922, 2010.) como um campo, a partir da concepção teórica do sociólogo Pierre Bourdieu (1983BOURDIEU, P. O campo científico. In: ORTIZ, R. Pierre Bourdieu: sociologia. São Paulo: Ática, 1983. p. 122-155., 1987BOURDIEU, P. Campo do poder, campo intelectual e habitus de classe. In: BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1987. p. 183-202.; Bourdieu; Wacquant, 2005BOURDIEU, P.; WACQUANT, L. Una invitación a la sociologia reflexiva. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2005.).

O conceito de campo tem crucial papel na obra de Bourdieu, cuja análise busca superar a dicotomia entre uma sociologia objetivista das estruturas materiais e a leitura exclusivamente fenomenológica-construtivista das formas cognitivas, incluindo ambas numa leitura que conjuga a ação social dos sujeitos, as estruturas que constituem a configuração do universo social e seus mecanismos de reprodução ou transformação (Bourdieu; Wacquant, 2005BOURDIEU, P.; WACQUANT, L. Una invitación a la sociologia reflexiva. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2005.; Wacquant, 2013WACQUANT, L. J. D. Poder simbólico e fabricação de grupos: como Bourdieu reformula a questão das classes. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 96. p. 87-103, 2013.).

Os campos designam as relações objetivas e históricas entre posições socialmente sustentadas por diferentes formas de poder que guardam proximidade com as respectivas esferas da vida social (econômica, política, estética e intelectual). Cada campo (econômico, artístico, científico, religioso etc.) disporá de maneira desigual os seus capitais próprios, cuja posse permite o acesso às vantagens específicas que estão em jogo. Em outros termos, o conceito de campo designa um microcosmo social dotado de leis próprias que apresenta uma estruturação e certa autonomia em relação a outros campos. Seus agentes concorrem entre si pelos capitais daquele campo e para poderem definir as formas de manutenção, as hierarquias de autoridade e suas respectivas “taxas de conversão”, ou seja, concorrem pela prerrogativa de modificar os pesos relativos atribuídos para os critérios que sustentam tal ordenação hierárquica (Bourdieu; Wacquant, 2005BOURDIEU, P.; WACQUANT, L. Una invitación a la sociologia reflexiva. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2005.). As relações intersubjetivas entre os agentes desse campo são mediadas por modelos de percepção e estruturas mentais, ou habitus (Bourdieu, 1990BOURDIEU, P. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990.). O habitus é inculcado por diferentes processos de socialização estruturados pelo campo. É definido como um “sistema de disposições duráveis e socialmente constituídas”, ou seja, é determinado pela estrutura de poder que alicerça o campo e que orienta e dá sentido às ações e representações, constituindo um princípio para a ação. Constitui uma noção que retrata a mediação entre as estruturas sociais e as práticas dos indivíduos, sendo produto de uma gradual inculcação intelectual e corporal realizada por instituições e agentes reconhecidos como competentes para tal trabalho (Bourdieu; Chartier, 2012BOURDIEU, P.; CHARTIER, R. O sociólogo e o historiador. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.).

Portanto, ao invocar tal referencial na SC, pressupõe-se a aceitação das implicações teóricas dessa adoção. Envolve reconhecer que essa disposição de posições também é influenciada pelas relações de dominação, subordinação e homologia que se estabelecem com outras posições (internas ou externas ao campo) e que traduzem e ressignificam capitais anteriormente herdados ou adquiridos (sejam econômicos, políticos, culturais ou escolares) e cuja distribuição desigual entre seus agentes contribui para o acesso de vantagens específicas que são consideradas importantes ao campo (Bourdieu, 2013BOURDIEU, P. Homo academicus. Florianópolis: Editora da UFSC, 2013.).

Assim, ao compreender a SC como campo científico, reconhecemos que se constitui como um sistema de relações objetivas entre posições de poder, sendo o lugar de um jogo concorrencial. A estrutura de distribuição do capital científico definirá as estratégias e chances objetivas dos diferentes participantes. O que se disputa nesse caso é o monopólio da autoridade científica, que se constitui, inseparavelmente, como capacidade técnica e poder social. Tal definição se afasta, portanto, da noção de comunidade científica, enquanto campo neutro de disputas acadêmicas. Assim, o monopólio da competência científica não se constitui como capacidade puramente técnica, mas depende de uma clara articulação de relações objetivas, de dispor das posições nas hierarquias instituídas e de saber manejar os modos de pensar, agir e comportar-se academicamente dominantes. Assim, o que é peculiar na análise do campo científico é que não se pode desvincular sua dimensão política das suas dimensões intelectuais, pois as produções de verdade, reconhecimento da importância deste ou daquele objeto, as concepções de ciência serão as favoráveis àqueles que tem poder de impô-las, dando-lhes ainda mais poder (financiamentos, reconhecimento, prestígio etc.). Nessa linha de análise, todas as práticas, mesmo as que se mostram desinteressadas, se articulam à aquisição de autoridade científica e constituem uma estratégia de investimento orientada para a obtenção do lucro científico, que só se obtém pelo reconhecimento dos seus pares/concorrentes (Bourdieu, 1983BOURDIEU, P. O campo científico. In: ORTIZ, R. Pierre Bourdieu: sociologia. São Paulo: Ática, 1983. p. 122-155., 2004BOURDIEU, P. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Editora Unesp, 2004.).

Na SC, a relação entre seus principais subcampos disciplinares (epidemiologia - EPI; ciências sociais e humanas - CSH; e política, planejamento e gestão - PPG) e seus agentes é marcada pela alternância de cooperação, alianças e concorrência, com inquestionável hegemonia da epidemiologia no ensino, o que se reflete no maior número de docentes nos programas de pós-graduação (Iriart et al., 2015IRIART, J. A. B. et al. A avaliação da produção científica nas subáreas da saúde coletiva: limites do atual modelo e contribuições para o debate. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 31, n. 10, p. 2137-2147, 2015.); na maior oferta das disciplinas nos programas de pós-graduação (Minayo, 2010MINAYO, M. C. S. Pós-graduação em saúde coletiva de 1997 a 2007: desafios, avanços e tendências. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. 4, p. 1897-1907, 2010.; Nunes et al., 2010NUNES, E. D. et al. O campo da saúde coletiva na perspectiva das disciplinas. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 15, n. 4, p. 1917-1922, 2010.); na produção de maior número de artigos científicos (Camargo Junior et al., 2010CAMARGO JUNIOR, K. R. et al. Produção intelectual em saúde coletiva: epistemologia e evidências de diferentes tradições. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 44, n. 3, p. 394-398, 2010.); na distribuição de símbolos de distinção e prestígio, tais como as bolsas de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (Barata; Goldbaum, 2003BARATA, R. B.; GOLDBAUM, M. Perfil dos pesquisadores com bolsa de produtividade em pesquisa do CNPq da área de saúde coletiva. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 19, n. 6, p. 1863-1876, 2003.); bem como na expressiva participação no corpo de editores das revistas científicas nacionais (Loyola, 2008LOYOLA, M. A. A saga das ciências sociais na área da saúde coletiva: elementos para reflexão. Physis, Rio de Janeiro, v. 18, n. 2, p. 251-275, 2008.). No campo político também se verifica a participação destacada dos epidemiologistas nas agências de fomento e de regulação das políticas estatais para a ciência, nos comitês de assessoria do CNPq, na coordenação da área e nas comissões de avaliação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) (Loyola, 2008LOYOLA, M. A. A saga das ciências sociais na área da saúde coletiva: elementos para reflexão. Physis, Rio de Janeiro, v. 18, n. 2, p. 251-275, 2008.). Há evidências, portanto, de um acúmulo diferenciado de capital científico no campo (seja “puro/intelectual” ou “político”).

Tais dinâmicas de demarcação de hegemonia são compreendidas a partir da conformação histórica das relações de força entre os subcampos da SC. Segundo Loyola (2008LOYOLA, M. A. A saga das ciências sociais na área da saúde coletiva: elementos para reflexão. Physis, Rio de Janeiro, v. 18, n. 2, p. 251-275, 2008.) e Nunes (1992NUNES, E. D. As ciências sociais em saúde no Brasil e na América Latina. In: SPINOLA, A. W. P. et al. (Org.). Pesquisa social em saúde. Cortez: São Paulo, 1992. p. 25-44.), o protagonismo histórico do movimento sanitário latino-americano nas décadas de 1970-1980 delineou o compromisso ético e científico com o aprimoramento do Estado e a consolidação de mecanismos técnicos, de gestão e políticos para o cumprimento do direito à saúde. Essa agenda imprimiu uma liderança ao subcampo política, planejamento e gestão até os anos de 1990.

A supremacia da epidemiologia se faz evidente a partir dos anos de 1990, com a institucionalização de parâmetros avaliativos padronizados aos programas e profissionais da área, num contexto de políticas estatais para o avanço da produção científica brasileira e para a reforma administrativa (Nunes et al., 2010NUNES, E. D. et al. O campo da saúde coletiva na perspectiva das disciplinas. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 15, n. 4, p. 1917-1922, 2010.). Tais processos avaliativos, sejam aqueles aplicados aos programas de pós-graduação sob a liderança da Capes (2013CAPES - COORDENAÇÃO DE APERFEIÇOAMENTO DE PESSOAL DE NÍVEL SUPERIOR. Relatório de avaliação 2010-2012: trienal 2013. Brasília, DF, 2013. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2HYq2Qn >. Acesso em: 10 set. 2018.
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, 2016CAPES - COORDENAÇÃO DE APERFEIÇOAMENTO DE PESSOAL DE NÍVEL SUPERIOR. Documento de área: saúde coletiva. Brasília, DF, 2016. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2Qqeb1a >. Acesso em: 10 set. 2018.
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) sejam aqueles voltados para a avaliação da excelência dos profissionais sob orientação do CNPq (2017)CNPQ - CONSELHO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO E TECNOLÓGICO. Chamada CNPq nº 12/2017: bolsas de produtividade em pesquisa. Brasília, DF, 2017. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/30ONzLW >. Acesso em: 1º ago. 2017.
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, são inequivocamente reconhecidos como necessários ao amadurecimento e desenvolvimento da produção científica brasileira e do campo da SC. Contudo, consolidam diferenças entre as formas de produtividade e de atribuição de mérito científico de cada subcampo.

A primazia dos artigos científicos em detrimento de outros produtos acadêmicos, a maior valorização de periódicos das ciências biomédicas devido aos seus altos impactos bibliométricos, a maior conectividade entre os autores em redes colaborativas para a autoria de artigos e a valorização da internacionalização das publicações, por exemplo, permitiram uma acumulação inegável de capital científico aos agentes do subcampo da epidemiologia nas últimas duas décadas (Camargo Junior et al., 2010CAMARGO JUNIOR, K. R. et al. Produção intelectual em saúde coletiva: epistemologia e evidências de diferentes tradições. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 44, n. 3, p. 394-398, 2010.; Luz, 2009LUZ, M. T. Complexidade do campo da saúde coletiva: multidisciplinaridade, interdisciplinaridade, e transdisciplinaridade de saberes e práticas: análise sócio-histórica de uma trajetória paradigmática. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 18, n. 2, p. 304-311, 2009.).

O presente ensaio toma como recorte o componente científico da SC em suas relações de produção e distribuição de capitais científicos. Assim, o objetivo deste artigo é elencar, a partir das fontes sugeridas na obra Homo academicus (HA), de Pierre Bourdieu (2013BOURDIEU, P. Homo academicus. Florianópolis: Editora da UFSC, 2013.), alguns capitais de prestígio, notoriedade e poder universitário potencialmente úteis para a análise de atribuição de distinção no campo científico da SC brasileira.

Nosso percurso teórico-metodológico

O presente ensaio foi construído a partir de algumas etapas que se entrelaçaram. O ponto de partida foi a realização de grupo de estudos vinculado ao estudo Conformação do capital científico e a construção do habitus em Ciências Sociais e Humanas em Saúde (projeto apoiado pelo CNPq). Esse grupo foi realizado no âmbito da pós-graduação onde as autoras atuam e foi por elas coordenado, com duração de dois semestres, com o objetivo de analisar o histórico e a conformação do subcampo das ciências sociais e humanas em saúde (CSHS), a partir da interlocução com a obra de Pierre Bourdieu, em especial dos textos Homo academicus, Os usos sociais da ciência, e Intelectuales, política y poder, bem como da leitura de seus comentadores. Inicialmente, o grupo reuniu cinco pesquisadores com formação em ciências sociais em diferentes níveis (mestrado e doutorado).

Os indicadores dos capitais científicos aqui apresentados tiveram como referência os marcadores propostos na obra HA (Bourdieu, 2013BOURDIEU, P. Homo academicus. Florianópolis: Editora da UFSC, 2013.) e contextualizados para o campo da SC. Concomitantemente procedemos ao levantamento de documentos oficiais sobre a avaliação de pesquisadores e programas de pós-graduação. Utilizamos os documentos de área da Capes buscando identificar os critérios de produtividade desejáveis ao desempenho de docentes permanentes dos programas de pós-graduação em SC e os critérios de elegibilidade do CNPq para obtenção de bolsa de produtividade em pesquisa (Capes, 2016CAPES - COORDENAÇÃO DE APERFEIÇOAMENTO DE PESSOAL DE NÍVEL SUPERIOR. Documento de área: saúde coletiva. Brasília, DF, 2016. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2Qqeb1a >. Acesso em: 10 set. 2018.
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; CNPq, 2017CNPQ - CONSELHO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO E TECNOLÓGICO. Chamada CNPq nº 12/2017: bolsas de produtividade em pesquisa. Brasília, DF, 2017. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/30ONzLW >. Acesso em: 1º ago. 2017.
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).

Adaptamos os indicadores à realidade nacional e priorizamos os dados disponíveis, de modo a garantir sua viabilidade em aplicações futuras. Assim, incluímos apenas dados disponíveis no currículo da Plataforma Lattes, reconhecendo que são dados de uma “prática autobiográfica” (Nascimento; Nunes, 2014NASCIMENTO, J. L.; NUNES, E. D. Quase uma auto/biografia: um estudo sobre os cientistas sociais na saúde a partir do Currículo Lattes. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 19, n. 4, p. 1077-1084, 2014.) e que seu preenchimento é influenciado pelos critérios de atribuição de pontos nas avaliações de programas e de pesquisadores. Se, por um lado, reconhecemos que há uma tendência a registrar apenas aquilo que é considerado relevante (Montagner; Montagner; Hoehne, 2009MONTAGNER, M. A.; MONTAGNER, M. I.; HOEHNE, E. L. A consagração científica em números: análise do perfil de uma vanguarda pelos currículos Lattes. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 13, n. 30, p. 181-195, 2009.), todavia tais aspectos não diminuem o valor e a boa-fé de tal instrumento, crucial à avaliação de carreiras e programas de pós-graduação.

Categorias de capitais e caminhos metodológicos ressaltados em Homo academicus

Poderíamos dizer que HA faz parte de um conjunto de produções de Bourdieu sobre o campo científico. Em 1975, o autor publica um artigo denominado “A especificidade no campo científico e as condições sociais do progresso da razão”, dando visibilidade a tal temática em seu rol de estudos; em 1984, publica HA; em 1989, A nobreza do Estado, com o subtítulo Grandes escolas e o corporativismo, demarcando a vinculação do papel de certas escolas para a produção de agentes de poder, e, em 1997, publica sua célebre conferência no Institut National de la Recherche Agronomique, intitulada Os usos sociais da ciência. Em 2001, publica Para uma sociologia da ciência, compilação das aulas do curso por ele ministrado entre os anos 2000-2001 no Collège de France. Em outras publicações, como em capítulos em outras obras ou em entrevistas, Bourdieu voltará ao tema inúmeras vezes (Champagne, 2004CHAMPAGNE, P. Prefácio. In: BOURDIEU, P. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Editora Unesp , 2004. p. 7-15.). Todavia, apenas em HA há uma apresentação dos percursos metodológicos e das fontes empíricas utilizadas para a análise do campo universitário

Em HA, Bourdieu toma a universidade francesa como um campo. A obra foi fruto de uma extensa pesquisa iniciada no contexto da crise universitária de maio de 1968 e que se estendeu até a década de 1980. Provocou um vigoroso debate no campo científico francês à época, mas permanece pouco citada no Brasil (sua primeira versão em português é de 2011). O livro se compõe de cinco capítulos (“Um livro pra queimar?”; “O conflito das faculdades”; “Espécies de capital e formas de poder”; “Defesa do corpo e ruptura dos equilíbrios”; e “O momento crítico”) e cerca de 40 páginas de anexos com notas metodológicas. A obra inclui ainda o posfácio intitulado “Vinte anos depois” e escrito em 1987.

O texto trata das mudanças e permanências experimentadas pelo campo universitário francês na década de 1960. O contexto retratado se dá a partir das agendas de ampliação do acesso universitário, o aumento do corpo discente, demandando a ampliação e abertura do corpo docente. Assim, novos professores ingressariam na carreira, sem cumprir todos os critérios anteriormente consagrados. Mudanças na forma de admissão levariam a um novo corpo professoral, misto/plural, que provoca o que o autor denomina “ruptura dos equilíbrios”. Os dois sistemas de admissão acabaram por propiciar a formação de duas categorias de professores/interesses, e tais lógicas de relações, ligadas às leis de carreira, ficavam evidentes, por exemplo, em “eventos disruptivos” ou “crises”, fossem eleições internas ao campo, fosse o movimento de maio de 1968. Nesse contexto, Bourdieu analisará as formas de aquisição, distribuição e conversão dos distintos capitais de poder científicos e as estratégias para a manutenção das “regras do jogo” para a ocupação de posições, o que em tese permite “dominar outras posições e seus ocupantes”, assim como os mecanismos de acesso ao corpo, como bancas de concurso e comitês consultivos.

A análise de Bourdieu mostra como as estratégias de dominação se combinam às estruturas que as possibilitam, assim como o poder que é exercido pelos professores mais antigos sobre os mais jovens encontra aquiescência destes, que aceitam “entrar no jogo da concorrência”. Os critérios e o processo de seleção do corpo professoral também contribuíam para inculcar nos professores uma disposição intensa e durável para reconhecer as hierarquias e os valores do corpo. Sua obra mostra as rupturas e permanências nos “momentos críticos” dos modos de produção e reprodução dos capitais que configuram o poder simbólico central ao campo universitário.

Categorias de capitais

No exame do campo universitário, Bourdieu analisa a forma peculiar de atribuição do capital científico entre seus agentes, pressupondo a cumplicidade entre os que o atribuem e os que o recebem. Vale lembrar que os atores são ao mesmo tempo pares, juízes, concorrentes e usuários de produtos uns dos outros, característica específica do campo científico em relação a outros campos. Como reflete Bourdieu (2004BOURDIEU, P. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Editora Unesp, 2004., p. 27),

Este capital [científico], de um tipo inteiramente particular, repousa, por sua vez, sobre o reconhecimento de uma competência que, para além dos efeitos, proporciona autoridade e contribui para definir não somente as regras do jogo, mas também as suas regularidades, as leis segundo as quais vão se distribuir os lucros nesse jogo, as leis que fazem que seja ou não importante escrever sobre tal tema, que é brilhante ou ultrapassado, e o que é mais compensador publicar no American Journal de tal e tal do que na Revue Française disso e daquilo.

Bourdieu defende que o campo científico possui duas formas de poder que correspondem a duas espécies de capital científico, quais sejam: (1) capital de poder político, institucionalizado; e (2) capital científico “puro”. O primeiro tipo de capital é um poder temporal (político), institucional/institucionalizado, isto é, ligado a posições importantes ocupadas nas instituições científicas num determinado período. Já o segundo tipo de capital se caracteriza por ser um poder específico, um “prestígio pessoal” que repousa sobre o “reconhecimento” do conjunto de pares. Esses dois capitais científicos têm regras próprias de “acumulação” e de “transmissão”. O capital de poder político se adquire através de estratégias políticas específicas e se caracteriza pela disponibilização de “tempo” (se expressa por meio da participação em bancas, comissões, comitês, colóquios científicos, cerimônias, reuniões, por exemplo), compondo uma carreira político-administrativa. Já o capital científico “puro” é adquirido pelas contribuições científicas, expressas, por exemplo, em publicações em revistas prestigiosas. Em relação à transmissão, o capital científico institucionalizado se assemelha a qualquer outro capital burocrático. Já o capital científico “puro” é representado como algo mais ligado à pessoa e a “seus dons pessoais”, mas de fato possui um conjunto de dispositivos de manutenção de clientelas e de regulação dos critérios de entrada ao campo. Para o autor, o acúmulo simultâneo das duas espécies de capital seria difícil.

Na composição original da obra, os capitais culturais herdados têm um papel determinante no acúmulo dos capitais científicos, vide a desigual distribuição de prestígio científico entre as faculdades e mesmo internamente a cada uma delas. As duas principais distribuições de posições de poder científico e político na análise feita no campo francês revelam uma separação entre carreiras administrativas e/ou políticas e as de pesquisa (mais prestigiosa), que nem sempre leva à conversão do poder político em científico. Essa oposição se inscreve nas estruturas do campo universitário, que é o lugar da confrontação entre os princípios de legitimação em competência: um temporal e político, que se manifestaria na lógica de dependência do campo universitário ao campo de poder; outro, que se funda na autonomia da ordem cientifica e intelectual.

Tal composição traduz a estrutura do campo científico a partir da distribuição dos seus capitais entre os diferentes agentes do campo num dado momento. Como salienta Bourdieu, a estrutura é antes de tudo uma dinâmica , conformada por relações entre sujeitos e caracterizada pelo volume do capital de cada agente em proporção ao peso que tem em relação àqueles de todos os demais agentes do campo. A estrutura está ancorada em relações ativas, fruto da acumulação de poder e prestígio, cujo controle das regras de distribuição desses capitais permite agregar mais poder e prestígio a certos agentes, reforçando sua posição no campo.

Como possibilidades de manutenção das posições de poder acumuladas, por exemplo, os pesquisadores dominantes definirão, num dado momento, o conjunto de objetos importantes, disporão de um conjunto de orientandos que farão uma carreira, estarão presentes nas bancas de seleção ou de atribuição de bolsas, entre outros, reafirmando assim sua posição nesse campo. Naturalmente, em torno dessa estrutura objetiva há lutas, seja para conservá-la ou para transformá-la e mesmo as regras do jogo podem ser questionadas. Aqui o papel do habitus é crucial, pois nesse processo de inculcação, as regras do jogo universitário serão transmitidas, incorporadas e justificadas. O domínio dessa racionalidade acadêmica também constituirá um capital incorporado, mostrando como se comportar e agir, permitindo obter alguns lucros diante das regras de distribuição dos capitais.

O percurso metodológico de Homo academicus

Discutiremos a seguir o percurso de eleição e emprego das variáveis da pesquisa em HA, como fonte de referência para uma leitura sobre as formas empíricas de identificação dos diferentes capitais científicos.

Uma vez que as informações sobre a carreira acadêmica dos professores universitários não se encontravam reunidas, Bourdieu e sua equipe se valeram de um mix de métodos para realizar o que chamou de prosoprografia dos professores das faculdades, utilizando-se de diversas fontes escritas (revistas, anais e anuários que apresentavam currículo dos professores, arquivos biográficos da biblioteca da cidade de Paris, o documento Who is who in France e os internacionais, o índex de citação em ciências sociais, as listagens de componentes do Conselho Superior de Educação, do Conselho de Estado, inspeção e finanças, listas de bancas e concursos, de concessão de medalhas do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), de cessão de bolsas da Fulbright para estudo no exterior, catálogos de livros, jornais e revistas populares, entre outras), além de entrevistas em profundidade ou realizadas através de telefone. A partir de informações públicas, Bourdieu e seus colaboradores construíram um conjunto de indicadores para analisar a distribuição dos distintos capitais do campo científico. Esses indicadores reuniam, por exemplo, os condicionantes de acesso às “posições ocupadas”, ou, como o próprio autor denomina, “os determinantes da formação do habitus e do sucesso escolar”, quais sejam, o capital econômico e o capital cultural herdados; os determinantes escolares; o capital de poder universitário; o capital de poder científico; o capital de prestigio científico; e o capital de notoriedade intelectual.

Para Bourdieu o campo universitário é o lugar de disputa entre dois “princípios de legitimação” concorrentes: um que é devedor do campo de poder (que teria a ver com as diferenças de origem social) e outro que é “fundado na autonomia de ordem cientifica e intelectual”. Valendo-se do método de “análise das correspondências”, Bourdieu apresenta aos leitores as variáveis que dizem respeito à origem social e, que, segundo o autor, podem ser observadas para analisarmos a “realização universitária” dos agentes.

Na pesquisa contida em HA, num primeiro momento a distribuição dos capitais se baseou numa análise estatística aplicada a uma amostra aleatória de professores titulares de diferentes faculdades parisienses. Na apresentação dos dados, Bourdieu agrupou as faculdades no que ele considerou como grandes divisões administrativas: medicina, direito, letras, ciências. Com uma amostra de 405 de professores universitários, incluiu de 45% a 55% dos titulares dessas faculdades (ano de 1967) e atribuiu para cada professor dessa amostra as variáveis selecionadas para os distintos capitais.

Após associar cada tipo de capital e suas respectivas variáveis, ele descartou aquelas que não eram aplicáveis a todas as faculdades. Assim, cada subcampo também apresentou indicadores específicos. Após a distribuição percentual das variáveis segundo titulares de cada faculdade, Bourdieu procedeu à análise de correspondência. A posição de um agente na instituição, por um lado, dependeria da posse ou não de uma propriedade e, por outro, contribuiria também para caracterizar a posição da própria instituição no campo universitário. A análise das correspondências permitiria enxergar a lógica de causalidade circular que se instaura entre as posições e as disposições entre o habitus e o campo. Em outras palavras, agentes que entram numa determinada instituição são produzidos por ela e para ela.

Se num primeiro momento Bourdieu nos apresenta os titulares dessas quatro grandes áreas, visando revelar a distribuição de capitais na vida universitária francesa, num segundo momento o autor empreenderá uma discussão sobre as espécies de capital e as formas de poder a elas associadas, tomando como base apenas os professores das faculdades ligadas às áreas de letras e ciências humanas.

Indicadores de capitais científicos aplicáveis ao campo da saúde coletiva

Uma análise do campo científico da saúde coletiva exigiria um percurso ampliado. Bourdieu sugere como tratar metodologicamente o exame de um campo e, em particular, do campo científico. Em termos gerais, indica que o estudo de um campo deveria articular três momentos. Primeiro analisar o campo específico em relação ao campo de poder externo (econômico e político). Segundo, traçar um mapa da estrutura objetiva das relações entre as posições ocupadas por cada agente ou instituição que disputa o capital daquele campo. Terceiro, analisar o habitus dos agentes. Assim, as disposições objetivas do campo (sistema estruturado de práticas que definem a distribuição do capital no campo) e as disposições dos agentes deveriam ser tratados conjuntamente (Bourdieu, 2004BOURDIEU, P. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Editora Unesp, 2004.).

A análise do funcionamento e da estrutura do campo científico precisaria ainda considerar a posição de cada disciplina no conjunto hierárquico das disciplinas científicas que constituem aquele campo científico quanto à posição dos diferentes produtores e demais agentes na hierarquia das disciplinas de que fazem parte (Bourdieu, 1987BOURDIEU, P. Campo do poder, campo intelectual e habitus de classe. In: BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1987. p. 183-202.). Tal nota metodológica parece ser útil ao pensar os distintos subcampos que compõem a saúde coletiva (epidemiologia, ciências sociais e humanas, e planejamento e gestão). Seguindo a ótica relacional preconizada pela perspectiva praxiológica aqui adotada, reconhecemos que seria também necessário correlacionar o processo de produção do habitus com as relações objetivas dos agentes e instituições que definem a hierarquização e a distribuição dos capitais do campo e as relações desse campo científico com o campo de poder mais amplo (Bourdieu; Wacquant, 2005BOURDIEU, P.; WACQUANT, L. Una invitación a la sociologia reflexiva. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2005.). A análise da estrutura de distribuição dos capitais, aliada ao exame dos modelos de percepção e estruturas mentais que são inculcados por diferentes processos de socialização (habitus) e práticas sociais de cada campo, constitui um exercício analítico importante para a compreensão ampliada do campo da SC (Bourdieu, 1987BOURDIEU, P. Campo do poder, campo intelectual e habitus de classe. In: BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1987. p. 183-202., 2004BOURDIEU, P. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Editora Unesp, 2004.).

O propósito deste artigo foi construir uma matriz de indicadores para a análise da distribuição dos capitais científicos na SC, o que se mostra como uma das etapas estratégicas para a compreensão desse campo científico. A matriz apresentada a seguir busca guardar as relações entre o conjunto de capitais que demarcam uma posição social prévia (os capitais herdados ou adquiridos, o capital escolar e os capitais político-econômicos) e os capitais científicos. Os capitais científicos, voltados à produção de um capital simbólico de reconhecimento e distinção, são apresentados no item 2 do Quadro 1. Todavia, entendemos que esses capitais apresentam uma historicidade, portanto, não são atemporais e traduzem as relações de força entre os agentes científicos (Bourdieu, 2001BOURDIEU, P. Para uma sociologia da ciência. Lisboa: Edições 70, 2001., 2009BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.).

Quadro 1
Indicadores de capitais do campo científico e do campo científico da saúde coletiva

Associada a cada tipo de capital científico, uma série de atributos, comandas, realizações e cargos seria considerada critérios demarcadores de distinção e efetivaria uma posição nesse campo. Como pode ser visto no Quadro 1, buscamos estabelecer um diálogo entre aqueles indicadores sugeridos em HA e os que seriam úteis para expressar o campo científico da saúde coletiva brasileira (Capes, 2016CAPES - COORDENAÇÃO DE APERFEIÇOAMENTO DE PESSOAL DE NÍVEL SUPERIOR. Documento de área: saúde coletiva. Brasília, DF, 2016. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2Qqeb1a >. Acesso em: 10 set. 2018.
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; CNPq, 2017CNPQ - CONSELHO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO E TECNOLÓGICO. Chamada CNPq nº 12/2017: bolsas de produtividade em pesquisa. Brasília, DF, 2017. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/30ONzLW >. Acesso em: 1º ago. 2017.
https://bit.ly/30ONzLW...
).

Considerando os capitais de herança e origem social, variáveis como a profissão do pai, lugar de nascimento, bairro de residência eram utilizadas por Bourdieu como relevantes para localizar os principais determinantes sociais de acesso às posições ocupadas no campo. A adesão a certa ordem moral e status eram mediadas na obra HA pelas variáveis religião, estado civil e número de filhos. Como já explicitado, mantivemos apenas as variáveis disponíveis na plataforma de currículos Lattes.

Na matriz original de Bourdieu, o capital escolar inclui variáveis que retratam o percurso acadêmico durante os estudos secundários, que no caso brasileiro seriam dados de obtenção apenas mediante consulta direta aos informantes. Adotamos variáveis que mapeiam exclusivamente a carreira universitária, da graduação ao pós-doutorado. Incluímos o domínio de línguas como marcador relevante de capital escolar que intervém na distinção acadêmica.

O capital de poder político ou econômico que indica o poder externo ao campo científico, mas que lhe agrega distinção, foi adaptado às condições de atuação em SC, aos cargos de gestão pública e ligação em nível de influência no Ministério da Saúde e de consultoria em instituições internacionais ou transnacionais.

Todavia, nossa análise revela que boa parte dos indicadores de capital de prestígio cientifico sugeridos para o campo científico francês mantém razoável adequação à realidade brasileira, dentre eles as citações, o status das publicações, a direção ou participação nas comissões e comitês das agências federais de fomento à pesquisa, as bolsas e estadias no exterior, o reconhecimento internacional, além das orientações de teses. Agregamos à nossa matriz os pontos de corte de elevada distinção para as publicações científicas aferidas pelos critérios da Capes (extratos A1 e A2 do Qualis) e replicados pelo CNPq e os crivos para o pertencimento ao quadro de docentes permanentes nos programas de pós-graduação nos últimos triênios e quadriênio (Capes, 2016CAPES - COORDENAÇÃO DE APERFEIÇOAMENTO DE PESSOAL DE NÍVEL SUPERIOR. Documento de área: saúde coletiva. Brasília, DF, 2016. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2Qqeb1a >. Acesso em: 10 set. 2018.
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; CNPq, 2017CNPQ - CONSELHO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO E TECNOLÓGICO. Chamada CNPq nº 12/2017: bolsas de produtividade em pesquisa. Brasília, DF, 2017. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/30ONzLW >. Acesso em: 1º ago. 2017.
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).

Em relação aos capitais de notoriedade intelectual não encontramos equivalente às grandes coleções de livros, assim como devido à dificuldade de mapeamento não incluímos a disseminação por compartilhamento nas redes sociais de textos e pronunciamentos dos pesquisadores. Cabe apenas lembrar que os artigos e revistas mencionados são os de mídia de circulação popular e não acadêmica.

O capital de poder universitário foi adaptado ao poder interno das universidades e às agências que instituem critérios ou diretrizes de atuação da área, mas que não demandam necessariamente um grande acúmulo de capital científico prévio para ocupação de seus quadros. São espaços político-gerenciais ou aqueles que retêm o poder estratégico de controlar a entrada dos novos membros daquele campo ou de aferir critérios de hierarquização entre pesquisadores ou programas (bancas de seleção e de avaliação, por exemplo). Nota-se que a participação em editorias científicas aqui se restringe ao comitê consultivo, ligado à administração universitária que sustenta o periódico e não à editoria científica (presente no capital de prestígio científico). Não incluímos na matriz as disposições políticas em sentido amplo (participação em colóquios, assinatura em petições diversas) que demarcariam posicionamentos públicos dos participantes, por entender que tal mapeamento seria quase impossível num contexto de pesquisa empírica, dada a constante disseminação de tais documentos via internet.

Nesse contexto de análise é preciso reconhecer que obviamente há diferenças entre o campo científico francês, representado de forma ampla pela instituição universitária, como tratado por Bourdieu, e a disposição institucional heterogênea da SC, que constitui um campo científico específico com suas respectivas carreiras e formas organizacionais. A estruturação do campo científico da SC também difere em alguns aspectos da própria constituição do ensino superior brasileiro, sendo predominantemente conduzida por universidades (e não faculdades ou centros universitários) de natureza pública, diferentemente do campo universitário do país, onde predominam as instituições privadas (86% das instituições) e onde as universidades são minoria (Balbachevsky, 2005BALBACHEVSKY, E. A pós-graduação no Brasil: novos desafios para uma política bem-sucedida. In: BROCK, C.; SCHWARTZMAN, S. (Org.). Os desafios da educação no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. p. 285-314.). No Brasil, a carreira acadêmica nas instituições de ensino que estão restritas à graduação é bastante distinta daquelas associadas à pós-graduação (PG). A trajetória de institucionalização da PG e de sua incorporação a partir da década de 1970 num projeto que vinculava a ciência e a tecnologia ao desenvolvimento econômico do país revela os mecanismos diferenciados de atribuição de distinção às carreiras dos que nela ingressam.

Como historia Balbachevsky (2005BALBACHEVSKY, E. A pós-graduação no Brasil: novos desafios para uma política bem-sucedida. In: BROCK, C.; SCHWARTZMAN, S. (Org.). Os desafios da educação no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. p. 285-314.), já em 1969 e 1971 se criam fundos de investimento (respectivamente, o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e a Financiadora de Estudos e Projeto); e em 1975 se reforma e amplia o então modesto Conselho Nacional de Pesquisa, transformando-o no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Como o investimento na empreitada de formação pós-graduada não atraía o setor privado, coube às universidades desenvolvê-lo, todavia o financiamento era designado aos pesquisadores mais competitivos e não à instituição. A partir daí se acirrou o modelo dual, concentrando pesquisa e investimentos nos programas de pós-graduação e relegando a graduação à tarefa de reprodução educacional. Tais investimentos garantiram o crescimento da PG, sendo seguido da exigência de qualidade dessa formação. Nesse sentido, em 1976 a Capes é designada para tal tarefa, construindo uma metodologia de avaliação por pares, desde então centrada nos critérios de desempenho dos professores. Acusada de ceder às pressões dos cursos avaliados e conceder notas altas a muitos programas, a Capes remodela todo o processo de avaliação em 1998, desenvolvendo indicadores e regras a serem aplicados rígida e indistintamente a todos os programas existentes. Muitos desses critérios e tal lógica avaliativa ainda vigoram. Como uma das inúmeras e persistentes consequências desse modelo avaliativo, se favoreceu

uma clara conexão entre desempenho e sucesso: quanto melhor a avaliação alcançada pelo programa, maiores eram suas chances e de seus pesquisadores de alcançar apoio, tanto em bolsa de estudo como em recursos para pesquisa e infraestrutura. (Balbachevsky, 2005BALBACHEVSKY, E. A pós-graduação no Brasil: novos desafios para uma política bem-sucedida. In: BROCK, C.; SCHWARTZMAN, S. (Org.). Os desafios da educação no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. p. 285-314., p. 287)

Tal associação se reforça nos critérios do CNPq para atribuição de distinção das carreiras de pesquisa. A bolsa de produtividade, importante capital do campo científico nacional, demanda outros capitais de prestígio já previamente acumulados, cuja obtenção é potencializada pelo pertencimento a um programa de PG bem avaliado.

Considerações finais

Neste artigo buscamos refletir, a partir das fontes sugeridas na obra Homo academicus, quais capitais de prestígio, notoriedade e poder universitário seriam significativos para a atribuição de distinção no campo científico da SC brasileira.

A matriz apresentada é uma ferramenta processual. Não permite, por exemplo, compreender as regras de constituição e eleição desse ou daquele critério como um capital relevante para o campo. O contexto histórico e a atuação das agências envolvidas nessas definições são fundamentais para a compreensão desse elenco de capitais e suas hierarquias. Por outro lado, a matriz possibilita um mapeamento da distribuição de capitais entre os diferentes pesquisadores, segundo sua origem disciplinar ou institucional, focando o momento atual ou um dado período. Acreditamos que a disponibilidade de certos capitais leva à acumulação de outros, numa espiral de ganhos. Assim, por exemplo, ter muitas publicações em revistas internacionais de alto impacto, pertencer a um programa de pós-graduação bem avaliado leva a certo prestígio que permite a obtenção de bolsa de produtividade e ascensão no seu quadro hierárquico, que possibilitará, por sua vez, a indicação para a composição de comitês definidores das políticas de fomento, distribuição de bolsas e de outros capitais.

Tal como foi feito na obra original francesa, acreditamos ser necessária uma análise de correspondência que permita verificar onde estão representadas as categorias de cada variável e onde se pode observar as relações entre estas segundo a vinculação a cada subcampo (EPI, PPG, CSH, dentre outros). Também seria interessante analisar a probabilidade de cada variável ocorrer segundo o subcampo de origem.

Acreditamos, por fim, que o exercício analítico sobre o campo da SC e suas dinâmicas de distribuição de capitais políticos, prestígio e notoriedade nos ajudam a conhecer melhor as formas de atribuição de distinção, podendo contribuir para revelar a produção de desigualdades desse campo científico e, assim, poder melhor enfrentá-las, fortalecendo em contrapartida os laços solidários entre os seus subcampos. Empreender esse tipo de análise convida, nos dizeres de Bourdieu (2004BOURDIEU, P. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Editora Unesp, 2004.), a uma “autoanálise coletiva”, a uma socioanálise.

Como enfatiza o autor, é preciso não esperar da análise sociológica “revelações radicais”. Para realizar essa socioanálise coletiva, é preciso um “longo trabalho de cada um sobre si mesmo e sobre todos os outros, pelo conjunto do grupo” (Bourdieu, 2004BOURDIEU, P. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Editora Unesp, 2004., p. 66).

Referências

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  • 1
    Pesquisa realizada com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (Processo 307694/2015-1) e com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Out 2019
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2019

Histórico

  • Recebido
    06 Nov 2018
  • Aceito
    03 Abr 2019
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br