O apoio institucional ao Fórum da Rede de Saúde Mental de São Pedro da Aldeia como dimensão da pesquisa de Gestão Autônoma da Medicação

Everson Rach Vargas Eduardo Passos Beatriz Prata Almeida Lorena Guerini Sobre os autores

Resumo

Este artigo compartilha uma experiência de apoio institucional a um coletivo de trabalhadores de um município da Região dos Lagos, Rio de Janeiro, no período de 2011-2014. Essa experiência é efeito da pesquisa-intervenção que implantou e validou o dispositivo de Gestão Autônoma da Medicação no Centro de Atenção Psicossocial Casarão da Saúde, no município de São Pedro da Aldeia. A pesquisa estimulou a criação de um fórum de trabalhadores da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) que funciona como espaço permanente para negociações e cuidado coletivo da experiência do cuidar na Raps. Interessa-nos, neste texto, apresentar e discutir o processo de apoio institucional à criação desse fórum como etapa importante da pesquisa realizada. A partir dessa experiência será discutida a relação entre processo de pesquisa e apoio institucional, além de suas consequentes modulações metodológicas, bem como efeitos desse processo de pesquisa-apoio para a Raps do município, que tem como prerrogativa a instalação de um dispositivo que seja capaz de cuidar da experiência de cuidar, no campo da saúde mental.

Palavras-chave:
Gestão Autônoma da Medicação; Apoio Institucional; Saúde Mental; Pesquisa Participativa

Introdução

Apresentaremos a construção do Fórum de Trabalhadores da Rede de Atenção Psicossocial no município de São Pedro da Aldeia - RJ, espaço criado a partir de uma pesquisa-intervenção realizada para implantação e validação do dispositivo de Gestão Autônoma de Medicação (GAM) e do Guia de Gestão Autônoma de Medicação (GGAM).

Para que esta experiência de intervenção e apoio - que gerou o fórum como desdobramento da pesquisa - fosse possível naquele contexto, foi necessário tanto para nós pesquisadores quanto para os trabalhadores (campo de pesquisa) apostar em um espaço para cuidar coletivamente das questões referentes ao trabalho em saúde mental em rede. Tal aposta encontra ressonância nas indicações de Kastrup e Passos (2014KASTRUP, V.; PASSOS, E. Sobre a validação da pesquisa cartográfica: acesso à experiência, consistência e produção de efeitos. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; TEDESCO, S. (Org.). Pistas do método da cartografia: a experiência da pesquisa e o plano comum. Porto Alegre: Sulina, 2014. v. 2. p. 203-237. ) que estabelecem que toda pesquisa envolvendo produção de subjetividade coloca para o pesquisador o desafio de traçar, com o campo da pesquisa, um plano comum.

Verificamos, no processo da pesquisa GAM, que o apoio institucional é efeito da experiência de pesquisa-intervenção-participativa (Kastrup; Passos, 2014KASTRUP, V.; PASSOS, E. Sobre a validação da pesquisa cartográfica: acesso à experiência, consistência e produção de efeitos. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; TEDESCO, S. (Org.). Pistas do método da cartografia: a experiência da pesquisa e o plano comum. Porto Alegre: Sulina, 2014. v. 2. p. 203-237. ; Passos; Barros, 2009). Com a implementação de grupos de Gestão Autônoma de Medicação (Grupos GAM) no Centro de Atenção Psicossocial II (Caps II) do município de São Pedro da Aldeia (Caps Casarão da Saúde) e o acompanhamento da linha de cuidado na Rede de Atenção Psicossocial (Raps), a experiência participativa de pesquisa-intervenção, que durou de 2011 a 2014, ganhou dimensão de apoio em função da peculiaridade de seu objeto, a saber: o processo de produção de saúde na rede de saúde mental do município de São Pedro da Aldeia envolvendo os diferentes atores implicados nesse processo. A pesquisa intervém sobre a realidade investigada e acompanha os processos disparados cuidando do trabalho desenvolvido, o que configura sua dimensão de apoio.

A estratégia GAM tem como diretriz a contração da grupalidade e o fomento da autonomia coletiva. Por contração da grupalidade compreendemos uma experiência de caráter oscilatório da qual emerge a possibilidade de os papéis previamente estabelecidos de trabalhador, usuário, familiar e pesquisador-universitário11 Usamos aqui a expressão "pesquisador-universitário" para distingui-los dos outros participantes da pesquisa-intervenção que são incluídos como sujeitos protagonistas no processo de produção de conhecimento na investigação. Nesse sentido, a pesquisa é realizada a partir da ação de pesquisadores-universitários, pesquisadores-trabalhadores, pesquisadores-usuários e pesquisadores-familiares. serem gradualmente dissolvidos no processo do grupo. Essa dissolução demonstra a potência da experiência grupal em constituir outras relações entre os diferentes atores, o que consideramos imprescindível para uma gestão mais autônoma em relação à medicação.

Por sua vez, tal contração fomenta uma autonomia coletiva na medida em que as regras que conduzem essa relação heterogênea se formam no contexto específico da experiência do coletivo, em um agenciamento de codependência entre os participantes. Assim, trabalhamos com a ideia de autonomia coletiva (Passos et al., 2013PASSOS, E. et al. Autonomia e cogestão na prática em saúde mental: o dispositivo da gestão autônoma da medicação (GAM). Aletheia, Canoas, n. 41, p. 24-38, 2013.) que não visa a independência pessoal ou a automedicação. A dinâmica própria do grupo, bem como o modo pelo qual os participantes se relacionam, não serão normatizados absolutamente por valores e lógicas instituídas, que se elaboram fora desse espaço.

A função dos dispositivos GAM, sempre de caráter grupalista, está em sua potência para disparar processos. Nesse caso, a estratégia GAM ganha certa concretude, ou seja, o dispositivo existe para performatizar essa estratégia (Passos et al., 2013PASSOS, E. et al. Autonomia e cogestão na prática em saúde mental: o dispositivo da gestão autônoma da medicação (GAM). Aletheia, Canoas, n. 41, p. 24-38, 2013.), na medida em que favorece a partilha da experiência do uso de medicação psiquiátrica e a discussão sobre os problemas envolvidos em tal experiência. Sua ferramenta, o GGAM brasileiro, resulta da adaptação de um material canadense (Gestion Autonome de la Médication de l´Âme: Mon Guide Personnel). O guia brasileiro é constituído por um conjunto de passos que propõem ao usuário questões e informações para problematizar sua relação com o uso de medicamentos psiquiátricos, visando aumentar a autonomia (Kinoshita, 2001KINOSHITA, R. T. O outro da reforma: contribuições da teoria da autopoiese para a problemática da cronicidade no contexto das reformas psiquiátricas. 2001. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Universidade de Campinas, Campinas, 2001 .) com respeito ao tratamento e apostando na diretriz cogestiva com a equipe que o acompanha.

Em nossa experiência percebemos que a contração de grupalidade transborda os limites do grupo GAM, envolvendo outras dimensões do trabalho em saúde. Tal desdobramento demanda à pesquisa sua dimensão de apoio ao processo de trabalho nos serviços. Nesse sentido, a pesquisa GAM implica os diferentes pontos da rede de saúde mental, ampliando a autonomia experimentada inicialmente no grupo com usuários e trabalhadores do Caps para toda a Raps.

O fórum de trabalhadores resultou da experiência que tivemos no dispositivo GAM no Caps, com usuários e trabalhadores. Assim, entre o trabalho no grupo GAM no Caps e o trabalho na construção do Fórum de Trabalhadores da Raps verifica-se uma analogia que envolve a contração de grupalidade e produção de autonomia coletiva, processos presentes na base das diferentes ações da pesquisa.

A estratégia da pesquisa-intervenção-participativa é acompanhar processos a partir de sua dimensão subjetiva. Partimos do pressuposto de que o trabalho em saúde se faz na relação entre sujeitos e estudar tal processo exige a participação desses atores no próprio processo de investigação, criando essa analogia entre a participação no processo de produção de saúde e no processo de produção de conhecimento sobre a saúde. Esse é o desafio que o Sistema Único de Saúde (SUS) coloca para a universidade, obrigando-nos a desenvolver metodologias de pesquisa à altura da proposta democratizante e participativa do sistema de saúde. São esses sujeitos em sua heterogeneidade que podem encarnar a experiência da pesquisa-participativa e performar mudanças no desenho da intervenção.

A criação do plano comum gerado pela pesquisa, que acompanha o reposicionamento subjetivo dos participantes na direção da rede, dá ao caráter participativo da intervenção a condição para criação de dispositivos nos quais os diferentes atores possam ganhar expressividade e protagonismo. O comum não diz respeito, necessariamente, à homogeneidade dos participantes ou mesmo à criação de consensos nos coletivos com os quais pesquisamos. Trata-se de afirmar - produzir e acolher - o comum heterogêneo que se contrai como coletivo autônomo. Contaremos como nesta fase da pesquisa GAM, no processo de criação do Fórum da Raps de São Pedro da Aldeia, a intervenção prevista no projeto GAM foi ganhando viés de apoio institucional no desenvolvimento da pesquisa.

Quando uma pesquisa se torna apoio?

As noções de apoio institucional e apoio matricial expressam modos de fazer análise e cogestão de coletivos organizados para a produção de saúde, mas partem de pontos de vista distintos. Enquanto o apoio institucional é uma função gerencial cogestiva usada nas relações entre serviços, gestores e trabalhadores, o apoio matricial é um modo de fazer trabalho em rede, nas relações entre profissionais que trabalham em equipes, estreitamente próximo da prática da clínica, do cuidado direto com o usuário. Assim, o apoio matricial é uma

lógica de produção do processo de trabalho na qual um profissional oferece apoio em sua especialidade para outros profissionais, equipes e setores. Inverte-se, assim, o esquema tradicional e fragmentado de saberes e fazeres já que ao mesmo tempo em que o profissional cria pertencimento à sua equipe/setor, também funciona como Apoio, referência para outras equipes. (Brasil, 2010, p. 52BRASIL. Ministério da Saúde. HumanizaSUS: documento-base para gestores e trabalhadores do SUS. 4. ed. Brasília, DF, 2010.)

Sabemos que a gestão e a clínica não operam de maneira isolada, pois há plena imbricação e coengendramento entre elas, o que nos permite afirmar que todo apoio matricial é uma forma de apoio institucional. A recíproca, contudo, não é verdadeira, em razão das especificidades do apoio matricial. O que diferencia as duas modalidades de apoio é a relação que vão estabelecer com um saber especializado.

As metodologias de apoio institucional à cogestão das instituições e de apoio matricial à cogestão do cuidado em saúde começaram a ser experimentadas na rede pública do município de Campinas, em São Paulo, durante a década de 1990, em serviços de saúde mental, de atenção básica e da área hospitalar. Inspiradas por essa primeira experiência, várias outras cidades começaram a incorporar os modos de fazer apoio institucional e matricial, como Rio de Janeiro, Belo Horizonte em Minas Gerais, Quixadá e Sobral no Ceará, Recife em Pernambuco, Aracaju em Sergipe e Viamão no Rio Grande do Sul (Campos et al., 2014CAMPOS, G. et al. A aplicação da metodologia Paideia no apoio institucional, no apoio matricial e na clínica ampliada. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 18, p. 983-995, 2014. Suplemento 1.).

Posteriormente, o apoio institucional e o apoio matricial foram incorporados pelo Ministério da Saúde (MS) e se tornaram tecnologias integrantes do SUS em todo o país. No documento do Ministério da Saúde “Caderno de Referência para a Formação de Apoiadores”, vemos que em 1998 a expressão “apoiador institucional” começou a ser utilizada no vocabulário da gestão federal do SUS. O mesmo documento afirma que em 2003 ocorreram as primeiras experiências oficiais de apoio no país. A partir dessas primeiras experiências oficiais, o MS iniciou um processo de formulação e implementação do apoio institucional nos estados e municípios da federação, com dois enfoques: apoio à gestão descentralizada do SUS, coordenado pelo Departamento de Apoio à Descentralização da Secretaria Executiva, e apoio à mudança dos modelos de gestão e atenção dos sistemas e serviços de saúde, coordenado pela Política Nacional de Humanização (PNH). A PNH incorporou os modos de fazer apoio institucional e apoio matricial com o objetivo de reacender a dimensão pública da política de saúde no SUS, intensificando a articulação entre atenção e gestão, clínica e política (Pasche; Passos, 2010PASCHE, D.; PASSOS, E. Inclusão como método de apoio para produção de mudanças na saúde: aposta da Política de Humanização da Saúde. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 86, p. 423-432, 2010.; Pasche; Passos; Hennington, 2011PASCHE, D.; PASSOS, E.; HENNINGTON, E. Cinco anos da política nacional de humanização: trajetória de uma política pública. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 11, p. 4541-4548, 2011.).

A PNH passou a contar com equipes regionais de apoiadores que se articulavam às secretarias estaduais e municipais de saúde em todo o Brasil. Fortalecendo esse processo de disseminação das tecnologias de apoio, em 2008 o MS implementou uma nova política: os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf), que se orientam principalmente pela estratégia do apoio matricial, atuando com as equipes da Estratégia de Saúde da Família com objetivo de qualificar o cuidado, ampliando a abrangência e a resolutividade das ofertas na atenção básica.

A disseminação do apoio institucional e matricial através de todas essas iniciativas do MS traz uma série de avanços e, ao mesmo tempo, encontra uma série de desafios. De todo modo, a tecnologia do apoio institucional pretende estar muito atenta à experiência dos trabalhadores com seu próprio trabalho. Em nosso caso, trata-se de pesquisar e apoiar profissionais de saúde que têm como base de trabalho o cuidado em saúde mental. Entendemos que a constituição da relação de cuidado entre trabalhador e usuário produz, em contrapartida, uma experiência no próprio trabalhador, sendo o cuidado dessa experiência de cuidado o ponto de incidência do apoio e da pesquisa, como tratado neste estudo.

O caráter de intervenção da pesquisa GAM é efeito de uma dupla inclusão. Por um lado, incluímos os participantes da pesquisa - no caso das pesquisas GAM, trabalhadores e usuários dos serviços de saúde que são campo empírico da investigação - que saem da posição passiva de objetos da pesquisa para a de sujeitos participantes das diferentes etapas da investigação: colheita e organização dos dados e análise. A pesquisa intervém quando adota metodologia participativa, o que, no campo da saúde mental, ganha sentido especial de intervenção clínica já que usuários desses serviços são tradicionalmente considerados desprovidos de razão. Por outro lado, a pesquisa-intervenção inclui as demandas que se produzem ao longo do seu percurso, as alterações e provocações que a própria instalação da pesquisa gera no campo, transformando constantemente seu desenho.

Na pesquisa realizada no município de São Pedro da Aldeia, por três anos estivemos na Raps da cidade implantando o dispositivo GAM e validando com trabalhadores, usuários e familiares o GGAM adaptado à realidade brasileira. Na pesquisa surgiram demandas que não estavam previstas no projeto inicial, entre elas a demanda dos trabalhadores da rede por um espaço de trocas de experiência e discussão dos problemas envolvendo a saúde mental do município. A inclusão dessa demanda no escopo da pesquisa conferiu caráter de intervenção na Raps, o que se atestou no processo de criação do Fórum de Trabalhadores da Raps de São Pedro da Aldeia.

O processo de implantação do dispositivo GAM - o Grupo de Intervenção com Usuários (GIU), e o Grupo de Intervenção com Familiares (GIF), ambos compostos também com trabalhadores do Caps e pesquisadores da Universidade Federal Fluminense (UFF) - no Caps de São Pedro da Aldeia, inicia a pesquisa GAM no município, quando ocorre a validação22Tradicionalmente, validação consiste em um procedimento de pesquisa que tem como objetivo testar a acurácia de determinado instrumento em elaboração. Tal experiência permitiu-nos revisitar a noção e propor uma validação que se dá pelos efeitos da intervenção. Permitiu-nos assim, pensar validação como avaliação que inclui a dimensão processual do dispositivo, não apenas sua eficácia em si mesma (Passos; Kastrup, 2014). do Guia GAM para a realidade brasileira. No desdobramento da pesquisa, acompanham-se os efeitos da intervenção da pesquisa, tanto no apoio à continuidade do dispositivo GAM, agora manejado por trabalhadores do serviço, usuários-monitores e familiares-monitores; quanto no Fórum da Raps e na associação de usuários e familiares que começou a se reorganizar.

A dimensão de apoio da pesquisa GAM esteve presente desde a implantação do GIU e do GIF no Caps de São Pedro da Aldeia. O acolhimento da experiência do uso de medicações psicotrópicas reverberou em nossa análise, colocando no mesmo plano as diversas práticas de cuidado desenvolvidas no Caps, os modos de organização do processo de trabalho dessa equipe, bem como o funcionamento da Raps no município. No entanto, apesar da pesquisa-validação precisar se debruçar sobre os processos de trabalho desde o início do grupo GAM, a construção de arranjos específicos de apoio se deu ao longo do processo.

Acolher as demandas produzidas através desse processo foi uma exigência metodológica que modulou a condução da própria pesquisa. Um trabalho de apoio indissociável do processo de investigação. Nesse sentido, não há propriamente uma linearidade temporal na sequência desses dois movimentos, pesquisa e apoio. Implementar os grupos implicava compreendermos o funcionamento da rede, o processo de trabalho do Caps e a organização do serviço para, então, pensar com os trabalhadores a melhor forma de organizar seu trabalho, incluindo a instalação dos grupos GAM.

Nesse sentido, optamos por uma sequência implicacional, em vez de uma sequência temporal linear, a qual envolveria uma etapa da pesquisa definida como grupo GAM no Caps e a etapa subsequente de apoio institucional. Ou seja, o apoio advém do processo de pesquisa, possibilitado pelo exercício da análise das implicações (Lourau, 1993LOURAU, R. Rène Lourau na UERJ: análise institucional e práticas de pesquisa. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1993.) dos pesquisadores, permitindo estarmos atentos aos efeitos produzidos pelo primeiro movimento da investigação. Esse movimento caracteriza o caráter interventivo e participativo da pesquisa.

O exercício dessa análise nos leva a determinados desdobramentos inéditos que extrapolavam as etapas previstas pela pesquisa e que haviam sido pactuadas com os trabalhadores. A implicação ganha, assim, seu sentido lógico: se há uma intervenção no campo da pesquisa em que estamos implicados, então certas demandas são produzidas, demandas que por sua vez serão incluídas nos desdobramentos da pesquisa, em sua dimensão de apoio. Trata-se, portanto, de uma sequência entre as duas fases da pesquisa que poderíamos chamar de temporalidade lógico-implicacional.

Com uma pesquisa que também realizava apoio, não estávamos interessados na imediata melhoria do funcionamento das ações e serviços da rede, como se buscássemos alcançar uma meta desconsiderando as idas e vindas no processo da pesquisa e no que ela dispara. Pesquisar o trabalho em saúde na perspectiva do apoio é, imprescindivelmente, não centralizar o trabalho em metas pré-estabelecidas, mas favorecer e acompanhar processos de contração de grupalidades ou, em última análise, de contração de rede (Pozzana; Kastrup, 2009POZZANA, L.; KASTRUP, V. Cartografar é acompanhar processos. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (Org.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009. p. 52-75.). Tais processos modulam e reorientam a racionalidade científica envolvida na atividade de produção do conhecimento.

Lourau (1993LOURAU, R. Rène Lourau na UERJ: análise institucional e práticas de pesquisa. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1993.) critica o pressuposto da racionalidade científica de “não implicação” daquele que conhece diante da realidade dada a conhecer. Não é sem motivações que a pesquisa científica, frequentemente, negligencia o acompanhamento do processo de transformação da realidade. Sua prerrogativa é compreender o fenômeno - aquilo que toma para si como objeto de interesse - como forma já constituída, exclusivamente. Por meio dos procedimentos científicos, o objeto estudado precisa ser estabilizado, tendo como consequência a resudualidade de seu regime de produção.

Partindo do pressuposto de que cabe à ciência descrever estados de coisas de um mundo que é exterior por ser apartado do sujeito, de sua experiência e atividade - seja daquele que é investigado, seja daquele que investiga -, não se considera que a realidade pesquisada está intimamente dependente do ato mesmo de pesquisar. A neutralidade buscada pelo método científico faz da realidade um objeto de estudo ao excluir o plano de produção dessa realidade. Esse ideal de inteligibilidade científica opera a clássica distinção entre quem pesquisa (sujeito) e o que é pesquisado (objeto) e, consequentemente, a hierárquica superioridade do sujeito cognoscente em relação ao objeto dado a conhecer.

Não precisamos ir longe para citar realizações dessa racionalidade científica. No âmbito da psiquiatria, como bem mostrou Foucault (1975FOUCAULT, M. Doença mental e psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.), o saber foi produzido atrelado à objetificação da experiência da loucura, posta em condições laboratoriais em um manicômio. O procedimento científico que criou as condições de possibilidade para a emergência do saber sobre a loucura como doença produzia essa realidade no ato de investigação. Desfazer essa montagem de produção de conhecimento no campo da saúde mental ganha tonalidades e implicações ético-políticas.

A noção de apoio, quando relacionada à pesquisa, nos ajuda a problematizar esses limites rígidos entre sujeito e objeto do conhecimento, que são tidos como independentes na legislação epistemológica hegemônica na modernidade. Nesse sentido, a diferença que se constata entre a nossa posição de pesquisadores-universitários e a dos trabalhadores da rede se valoriza por estabelecer uma relação com o objeto de estudo que não se define através de uma hierarquia entre quem pensa e quem executa, quem sabe e quem não sabe. A relação de produção de conhecimento na pesquisa-intervenção é de coprodução entre quem pesquisa e o que é pesquisado.

Se não há hierarquia, tampouco se buscou homogeneizar as partes nessa relação. Tal aposta nos pareceu uma condição para a pesquisa-apoio: além de incluir na análise os diferentes sujeitos implicados no processo de pesquisa e as demandas que produziu, foi preciso sustentar a alteridade, o plano comum que a pesquisa traçava.

Esse modo de relação com o trabalho do outro, que constitui uma das bases desta pesquisa, pôde se desenvolver por meio de diferentes arranjos institucionais, visando à continuidade dos dispositivos e não da pesquisa, que tem um término previsto. Um dos arranjos possíveis para sustentar esta discussão do processo de trabalho em saúde mental do município poderia ser a reunião de equipe do Caps; contudo, a demanda produzida no processo da pesquisa GAM no município exigiu a instalação de outro arranjo: o Fórum de Trabalhadores da Raps. O aumento da abertura comunicacional no Caps indicou a direção de desdobramento para a contração de uma grupalidade de trabalhadores que envolvesse diferentes equipamentos da linha de cuidado em saúde mental, a rede do município.

Quando a pesquisa-apoio apontou para a criação de um fórum da Raps do município, que demanda de apoio foi essa? Que problema estava sendo delimitado pela pesquisa-apoio, quando o sentido é o da instalação de um Fórum de Rede?

Havia uma demanda dos trabalhadores por uma melhor articulação entre os serviços, de modo a possibilitar cuidado contínuo dos usuários ao acionar diferentes serviços de saúde do município. Além disso, apontava a necessidade de um espaço de acolhimento e enfrentamento das dificuldades de relação entre os diferentes equipamentos da rede de atenção psicossocial. Diante dessas demandas, colocamos como novo horizonte da pesquisa apoiar a instalação de um fórum, com participação dos trabalhadores dos diferentes serviços que compõem a rede. A aposta da pesquisa-apoio foi fomentar a capacidade de cogestão da Raps, isto é, um espaço para analisar cogestivamente o funcionamento da rede na própria rede de ações e serviços de saúde, e não exteriormente a ela.

A cogestão é o ethos da pesquisa GAM, que está presente desde o manejo dos grupos GAM com usuários e familiares. Esse modo de organização do trabalho em saúde busca incluir, no campo da gestão, os diferentes sujeitos implicados, outros modos de fazer, bem como novas tarefas e mandatos. As múltiplas inclusões ampliam o escopo da gestão que passa a se preocupar com o protagonismo dos trabalhadores, análise institucional, formação dos trabalhadores, alteração do padrão de responsabilidade (tornando-o distribuído), valorização da dimensão subjetiva e coletiva do trabalho e abertura comunicacional.

A cogestão implica ampliação do protagonismo dos indivíduos nos processos decisórios em relação ao seu trabalho. Contudo, aumentar quantitativamente a participação dos envolvidos no planejamento e nas decisões não é exatamente o suficiente para efetivar práticas cogestivas. Como defendem Gastão Campos e Gustavo Cunha “a tarefa da cogestão seria viabilizar contratos e compromissos, sempre provisórios e sujeitos à revisão, entre estes atores, possibilitando alguma viabilidade aceitável do ponto de vista de cada um deles” (Campos; Cunha, 2010, p. 33CAMPOS, G.; CUNHA, G. Método Paidéia para co-gestão de coletivos organizados para o trabalho. Organizações & Democracia, Marília, v. 11, n. 1, p. 31-46, 2010.). Criar as condições para efetiva participação envolve transformar os modos de trabalhar e o modelo de gestão. No que concerne à inclusão de novas tarefas, a cogestão amplia o escopo da gestão, que tradicionalmente está calcado na busca por resultados do trabalho, quando considera a tarefa de analisar a instituição e formular projetos que incluam a disputa dos grupos políticos, se constituindo como espaço coletivo de tomada de decisão e espaço de formação (Brasil, 2009BRASIL. Ministério da saúde. Gestão participativa e cogestão. Brasília, DF, 2009.).

Desse modo, verificamos ao longo da pesquisa que outras demandas se produziram. Demandas que diziam respeito à contração da Raps para transformação das práticas de atenção e gestão em saúde. Esse processo se desdobrou da fase de implantação do dispositivo GAM no Caps à fase de apoio à Raps. Tal prática de contração de grupalidade dessa implantação, com um grau de autonomia aumentado - aumento da abertura comunicacional (Guattari, 2004GUATTARI, F. Psicanálise e transversalidade: ensaios em análise institucional. São Paulo: Idéias & Letras, 2004.) intragrupo (GIU e GIF) e intergrupos (grupos GAM e equipe de trabalhadores do Caps) - gerou a demanda por ampliação das redes comunicacionais, seja pela continuidade do dispositivo GAM no serviço após o fim da pesquisa, seja pela criação da associação de usuários e familiares de saúde mental do município, ou ainda pela criação do fórum de saúde mental do município. A pesquisa apoiou os processos gerados pela própria investigação.

O plano de emergência do Fórum da Rede de Atenção Psicossocial

Desde 2009, quando importamos a Gestão Autônoma da Medicação através do projeto multicêntrico de pesquisa, até 2014, data do fim da Alliance Internationale de Recherche Universités-Communautés - Santé Mentale et Citoyenneté, que viabilizou a adaptação do guia GAM canadense à realidade brasileira, traçamos um percurso metodológico que pode ser dividido em diferentes fases: primeiro realizamos a tradução e adaptação do GGAM à realidade brasileira; posteriormente validamos o Guia GAM e finalmente oferecemos apoio institucional à Raps do município de São Pedro da Aldeia.

A chegada da pesquisa ao município ocorreu por indicação da então Secretaria de Estado de Saúde e Defesa Civil - atualmente Secretaria de Estado de Saúde -, em reunião realizada em 2010, quando a equipe de pesquisadores da UFF apresentou aos apoiadores da Secretaria a GAM e os resultados da primeira fase da pesquisa multicêntrica (que envolvia UFF, Universidade Estadual de Campinas, Universidade Federal do Rio de Janeiro e Universidade Federal do Rio Grande do Sul) nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul. Naquele momento a indicação da Secretaria de Saúde possibilitou-nos uma escolha mais assertiva em relação ao município com o qual iríamos trabalhar na segunda fase da pesquisa através do projeto Autonomia e Direitos Humanos: Validação do Guia de Gestão Autônoma da Medicação (GAM), que recebeu apoio da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) a partir de 2011.

O primeiro grupo GAM realizado em São Pedro da Aldeia no Caps, o GIU, foi composto por três pesquisadores-universitários, um psiquiatra, uma terapeuta ocupacional e uma média de 12 usuários. O GIU se reuniu semanalmente por duas horas, perfazendo um total de 27 encontros que aconteceram de março a outubro de 2011. Nesses encontros o GGAM-BR foi lido, discutido e validado coletivamente, além de ter mostrado importantes efeitos terapêuticos nos usuários do Caps.

O GIF, realizado no mesmo equipamento, contou com a participação de diferentes trabalhadores do serviço ao longo do processo, entre eles, uma assistente social, uma psicóloga/coordenadora do Caps, dois técnicos de enfermagem e uma psicóloga, três pesquisadoras-universitárias e uma média de sete familiares. O grupo teve início em maio de 2011 e foi encerrado em março de 2013.

Impelidos pela experiência de publicização de problemas coletivos e pelos diversos questionamentos acerca da rede de Saúde Mental de São Pedro da Aldeia que emergiram inicialmente nos grupos GIU e GIF, propusemos um trabalho de imersão nos principais serviços da rede, a fim de cartografar a dinâmica entre eles e, principalmente, avaliar o cuidado e atenção ao usuário de saúde mental na Raps. Fizemos por uma semana o acompanhamento da linha de cuidado através de imersão na rede em 2011, quando duplas de pesquisadores acompanhavam os trabalhadores de diferentes equipamentos da Raps, em observação dialogada do trabalho destes profissionais, buscando entender como os serviços estavam se articulando em rede.

Nesse processo, os pesquisadores-universitários se revezaram durante os períodos da manhã e da tarde em cada um dos serviços, acompanhando o trabalho dos profissionais com um roteiro semi-estruturado de questões sobre as práticas do serviço. Montamos uma metodologia de acompanhamento da linha de cuidado no município, e por meio dessa imersão (Alvarez; Passos, 2009ALVAREZ, J.; PASSOS, E. Cartografar é habitar um território existencial. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (Org.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009. p. 131-149.) conseguimos cartografar as práticas de cuidado que se teciam entre o Caps Casarão da Saúde, o ambulatório ampliado Casa Azul, o Serviço Residencial Terapêutico (SRT) e o pronto-socorro, a fim de compreender como essa rede se articulava. Essas práticas eram possibilitadas por relações formalizadas institucionalmente, como as atribuições dos serviços e os atendimentos prestados, e também por outros elementos, como o bom relacionamento entre algumas equipes que se tornavam mais parceiras para a resolução de algumas questões ou mesmo as alianças políticas que favoreciam determinados investimentos na rede. Ao acompanhar o trabalho de perto e conversar com trabalhadores, usuários e familiares sobre temas como acesso, gestão do cuidado e da medicação, relação entre serviços da rede e entre os diferentes atores que por eles circulam, identificamos as práticas de cuidado e de gestão na região.

Organizamos algumas reuniões de restituição para os trabalhadores da rede quando reconheceram situações analisadoras (Guattari, 2004GUATTARI, F. Psicanálise e transversalidade: ensaios em análise institucional. São Paulo: Idéias & Letras, 2004.; Lourau, 1993LOURAU, R. Rène Lourau na UERJ: análise institucional e práticas de pesquisa. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1993.) do trabalho na Raps. Os analisadores são acontecimentos que produzem rupturas e catalisam fluxos em processos de mudança nas instituições. Realizam análise, destituindo a centralidade do papel do analista, na medida em que apontam para virtualidades presentes na pesquisa, desnaturalizando as formas instituídas, apontando para as forças instituintes e para os processos de institucionalização (Passos; Barros, 2000PASSOS, E.; BARROS, R. A construção do plano da clínica e o conceito de transdisciplinaridade. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, DF, v. 16, n. 1, p. 71-79, 2000.).

A partir do compartilhamento com os trabalhadores das impressões que a pesquisa colhia com as intervenções tanto nos grupos com usuários e familiares quanto no acompanhamento da linha de cuidado, surgiu a proposta de construção de um fórum de trabalhadores para ampliar e aprofundar as discussões sobre o trabalho na Raps, assim como criar um espaço no qual os trabalhadores se reuniriam para discutir seus problemas, compartilhar suas dificuldades e pensar coletivamente estratégias de qualificação da atenção em saúde mental no município. A partir de um desejo de ampliação dos espaços coletivos para cuidado do trabalho e do trabalhador de saúde mental, percebemos uma demanda para a instalação de um dispositivo que fosse capaz de cuidar da experiência de cuidar (Macerata; Dias, 2014MACERATA, I.; DIAS, R. Experiência e cuidado: a experimentação como via de composição entre redução de danos e atenção básica. In: RAMMINGER, T.; SILVA, M. (Org.). Mais substâncias para o trabalho em saúde com usuários de drogas. Porto Alegre: Rede Unida, 2014. p. 149-163.) dos trabalhadores daquela rede.

Para sistematizar o que se identificou ao fim da cartografia da linha de cuidado, foi composta uma comissão com representantes dos diferentes serviços da Raps, que se responsabilizou com a coordenação municipal pela organização da reunião que chamamos de pré-fórum. Neste encontro, a partir das discussões entre pesquisadores-universitários e trabalhadores foram elencados 10 pontos problemáticos:

  1. 1. A cogestão da medicação na relação entre trabalhadores, usuários e familiares.

  2. 2. A parceria entre trabalhadores, familiares e rede de apoio no cuidado em saúde mental: o controle social e as conferências, a associação de usuários e familiares e o grupo de familiares nos serviços.

  3. 3. A corresponsabilidade da rede de saúde mental na construção de Projetos Terapêuticos Singulares: a parceria entre os serviços.

  4. 4. Cuidado em saúde mental e religião.

  5. 5. Dispositivos de geração de renda e reinserção social através do trabalho.

  6. 6. Saúde mental e sexualidade.

  7. 7. A importância da intersetorialidade no cuidado em saúde mental (Centro de Referência de Assistência Social (Crass), educação, transporte, horto escola, etc.).

  8. 8. O perfil do usuário na relação com os equipamentos: o que distingue “perfil Caps” e “perfil ambulatório”. O perfil do usuário e os encaminhamentos na rede com mudança de referência.

  9. 9. Saúde mental e construção de autonomia: o que é autonomia em saúde mental?

  10. 10. A agressividade do usuário: o limite como direção clínica e a limitação dos serviços clínicos.

Entendemos que a inserção da pesquisa na rede havia produzido uma demanda de apoio institucional, expressa através do pedido dos trabalhadores para que participássemos dos espaços coletivos de discussão que eles desejavam construir e também através do pedido dos trabalhadores do Caps para que os auxiliássemos a dar continuidade ao GIU e ao GIF.

A oferta de apoio institucional à rede de saúde mental do município foi viabilizada através da construção do projeto Autonomia e Direitos Humanos: Validação do Guia de Gestão Autônoma da Medicação (GAM) - Continuidade, com apoio da Faperj, que previu a oferta de ambas as modalidades de apoio durante o período de 2013-2014.

A criação de dispositivos GAM no Caps de São Pedro colocou-nos a questão do modo de relacionamento entre Caps, SRT, ambulatório ampliado, pronto-socorro (que também oferece leitos psiquiátricos) e demais serviços da rede. Interessava-nos conhecer como a rede funcionava, mais ainda, como o Caps em suas articulações operava o cuidado naquele município e qual era sua capacidade de ordenamento dessa rede. Mais do que fornecer um diagnóstico sobre o cotidiano, com a cartografia da linha de cuidado elaboramos uma restituição em formato de conversa com os trabalhadores sobre o que experimentamos com eles nesta semana de acompanhamento do trabalho, buscando discutir as questões que foram suscitadas em nós a partir do cotidiano dos serviços. Esse encontro em roda entre diferentes atores foi um fato que já altera o funcionamento cotidiano dos serviços.

A conversa no Caps aqueceu o coletivo e gerou a demanda por ampliação da discussão para além da equipe de serviço. A pesquisa havia constatado o esvaziamento dos espaços coletivos no trabalho da rede de saúde mental no município e propôs um arranjo de aquecimento da Raps. Na ocasião desta reunião devolutiva, compartilhamos o que observáramos com a coordenação de saúde mental e a equipe do Caps. Compartilhar com eles nossa experiência em acompanhar o trabalho fez com que esta experiência coletiva de avaliação se possibilitasse a criação de outros dispositivos de encontro entre aqueles atores.

Preparamos a conversa com os trabalhadores do mesmo modo que construímos o roteiro de acompanhamento da linha de cuidado, pensando em como as articulações daquela rede de saúde mental operavam. A vontade de coletivo criou-se ao experimentar naquela reunião devolutiva um coletivo interessado e mobilizado para a discussão. Deste modo, a ausência de reuniões entre os equipamentos, a precária comunicação entre os serviços e todas as questões ganhavam ali sua dimensão de problema compartilhado. Criava-se uma experiência de plano comum (Kastrup; Passos, 2014KASTRUP, V.; PASSOS, E. Sobre a validação da pesquisa cartográfica: acesso à experiência, consistência e produção de efeitos. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; TEDESCO, S. (Org.). Pistas do método da cartografia: a experiência da pesquisa e o plano comum. Porto Alegre: Sulina, 2014. v. 2. p. 203-237. ) que unia os trabalhadores em torno de questões coletivas. Traçar um plano comum no ato de pesquisar envolveu o desafio de garantir o caráter participativo da pesquisa. Ao fugir da lógica da devolutiva como informação ao pesquisado do que o pesquisador coleta, organiza e analisa dos dados, operou-se neste coletivo uma vontade de transformação do próprio modo de trabalhar e se relacionar com a rede. Surge então o projeto de construir o Fórum de Trabalhadores de Saúde Mental.

Outras reverberações da pesquisa-apoio em saúde mental

A instalação de um fórum de trabalhadores ganha sua importância por ser um espaço de partilha tanto das condições de trabalho analisadas coletivamente, quanto das crises da rede que aparecem no cotidiano de cuidado dos usuários.

Apostando na vontade de ampliar os espaços coletivos para cuidado do trabalho e do trabalhador de saúde mental, começamos a operacionalizar com eles os encontros definindo o local. O fórum aconteceria com frequência bimestral, com os trabalhadores do Caps, pronto-socorro, ambulatório ampliado e Nasf. Os locais variavam entre os serviços.

Três questões se tornaram fundamentais para nós: (1) os níveis de precariedade das relações - precariedade das relações de trabalho, expressa através dos vínculos empregatícios frágeis, salários baixos, número reduzido de profissionais nas equipes, falta de insumos básicos e de estrutura física adequada; precariedade das relações entre os profissionais que compõem uma equipe e entre as equipes dos diferentes serviços, expressa através de pouco diálogo, isolamento e grande sensação de sobrecarga de trabalho; precariedade da relação entre trabalhadores, usuários e familiares expressa através de vínculos frágeis, escassa promoção de autonomia e grande sensação de desamparo; (2) a definição do perfil dos usuários, categorizados como “perfil Caps” e “perfil ambulatório”; (3) a gestão da medicação.

A princípio experimentamos, ao lado dos trabalhadores, muitos incômodos que não ganhavam expressão. Sentíamos o incômodo, mas não falávamos sobre ele. Ficou claro que a precariedade das relações de trabalho expressava-se no modo como cada trabalhador se posicionava na reunião. Ficou claro também que a relação entre os trabalhadores e a gestão era marcada por forte verticalidade, e que a centralização exercida tinha como correlato o silenciamento da grande maioria dos trabalhadores.

Parecia haver pouco diálogo entre os profissionais de um mesmo serviço e menos ainda entre os profissionais de serviços diferentes. A sensação de solidão e sobrecarga entre os trabalhadores era muito grande, refletindo-se na distância entre os serviços da rede, que pareciam trabalhar de maneira desarticulada. Mesmo as questões relativas ao cuidado clínico e à relação trabalhadores-usuários eram pouco compartilhadas intraequipes.

Identificando a precariedade das relações que se estabeleciam na rede, era importante fortalecer a cogestão dos processos de trabalho, de modo que a gestão fosse exercida por todos os envolvidos e não apenas pela figura que ocupa o cargo de gestor. Essa é a direção da aposta democratizante do SUS, uma política pública e não uma política de governo, ou seja, uma política sustentada pelos cidadãos. As discussões na fase de apoio ao fórum de saúde mental em São Pedro da Aldeia reacendiam a dimensão pública da política de saúde mental, ao construir corresponsabilização pelo funcionamento da rede.

Havia, no entanto, dificuldade em incluir nas reuniões do fórum os cuidadores da residência terapêutica (RT), em geral pessoas sem nível superior. Em certa ocasião discutimos um caso de difícil manejo: a RT precisava trazer novamente à casa um usuário internado que com frequência apresentava problemas de convivência com os demais moradores. A coordenadora da RT estava preocupada e sentia-se incapaz de resolver a situação sem a presença dos cuidadores da RT e sem os moradores colegas que poderiam colaborar para a possível desinternação.

O fórum então toma a decisão de fazer a próxima reunião na RT para incluir os cuidadores e também os moradores/usuários na decisão coletiva sobre o cuidado daquele usuário. O ponto temático “10. A agressividade do usuário: o limite como direção clínica e a limitação dos serviços clínicos” era ressaltado nas reuniões pelos trabalhadores como um dos mais delicados. Muitos se sentiam vulneráveis e sem recursos clínicos ao realizarem atendimentos a usuários em crise, como era o caso do morador da RT que precisava ser desinternado.

Reunimo-nos em roda no quintal da casa da RT, reforçando o convite aos moradores para discutir que decisão tomar. Alguns falaram da dificuldade em lidar com as crises, que por vezes eram agressivas, quando o usuário em questão esteve na casa. Os técnicos falaram abertamente sobre a situação de internação e a precariedade do tratamento. Os moradores disseram que era direito do usuário poder voltar à casa. O fórum possibilitou um espaço coletivo para tomada de direção clínica no cuidado deste usuário - a desinternação e retorno à RT - e, mais do que isto, possibilitou à equipe e aos usuários que decisões clínicas tão difíceis, como esta que envolve a agressividade, pudessem ser tomadas de forma mais corresponsável.

Rancière (2005RANCIÈRE, J. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005.) nos auxilia a pensar esta situação em seu aspecto clínico-político. A partilha do sensível é, para o autor, uma prática política do plano comum: quem pode falar, quem pode tomar parte do comum a partir de determinada função, os modos como ocorre a partilha do visível e do invisível neste comum.

Nesta reunião do fórum na RT pudemos promover outras possibilidades de gestão do comum e do cuidado em saúde mental, nas quais outras formas de participação para aquele coletivo foram possíveis, como a consideração da opinião dos usuários em uma decisão clínica. Entendemos que uma intervenção clínico-política, tal como desenvolvida a partir do fórum, envolve a alteração do regime de sensibilidade nas práticas do cuidado em saúde mental para esse coletivo. O que ganha visibilidade e o que sai da invisibilidade se alteram quando a partir de diferentes posições, atividades e partes, efetuamos a partilha do comum. A partição entre visível e invisível se refaz de maneira que alteremos o modo como tomamos parte nas situações.

A pesquisa encerrou sua participação no fórum com uma avaliação muito positiva. Os trabalhadores diziam: “É muito importante continuar cuidando de quem cuida”; “Isso aqui foi muito bom porque vocês estimularam, deram um gás novo!”; “Foi diferente porque vocês pegaram na mão da gente, não ficaram olhando de cima e cobrando”; “Foi uma troca muito rica”; “Foi uma luta e tivemos muitas conquistas”; “Coisas que nem imaginávamos fazer hoje são bem mais fáceis”; “Hoje a rede está mais amarrada, apesar de ainda ter muitos furos”.

Traçar um plano comum no campo de pesquisa incluiu diferentes interesses e produziu engajamento entre diferentes sujeitos que estavam implicados no processo da pesquisa. Esta se fez participativa pela coletivização da experiência do pesquisar, passando pelo apoio aos movimentos destes coletivos que acompanhamos. O cuidado coletivo de uma situação de crise é a partilha de um aspecto do cuidado que é, ao mesmo tempo, visível e invisível: a responsabilidade.

Pesquisar com trabalhadores da rede de saúde mental envolve colocar em uma mesma roda diferentes posicionamentos: o da gestão no nível central, o das coordenações dos equipamentos, dos trabalhadores de contratos temporários e dos servidores públicos, dos que possuem nível superior e dos que atuam como cuidadores e não possuem, necessariamente, a formação universitária. Diferenças que são, ao mesmo tempo, políticas e singulares, compondo, assim como outros vetores, práticas concretas de trabalho na rede com os usuários e seus familiares.

A promoção de autonomia em saúde mental envolve lidar com este comum heterogêneo que caracteriza equipe e usuários. Partilhar a responsabilidade da decisão clínica entre diferentes atores promove outra forma de gestão do comum, tão marcado, até hoje, pela pouca autonomia decisória dos usuários em seus projetos terapêuticos. Acompanhar esse processo de contração de autonomia coletiva caracterizou a pesquisa em suas dimensões de intervenção, participação e apoio.

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  • RANCIÈRE, J. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005.

  • 1
    Usamos aqui a expressão "pesquisador-universitário" para distingui-los dos outros participantes da pesquisa-intervenção que são incluídos como sujeitos protagonistas no processo de produção de conhecimento na investigação. Nesse sentido, a pesquisa é realizada a partir da ação de pesquisadores-universitários, pesquisadores-trabalhadores, pesquisadores-usuários e pesquisadores-familiares.
  • 2
    Tradicionalmente, validação consiste em um procedimento de pesquisa que tem como objetivo testar a acurácia de determinado instrumento em elaboração. Tal experiência permitiu-nos revisitar a noção e propor uma validação que se dá pelos efeitos da intervenção. Permitiu-nos assim, pensar validação como avaliação que inclui a dimensão processual do dispositivo, não apenas sua eficácia em si mesma (Passos; Kastrup, 2014).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    01 Set 2019
  • Aceito
    26 Set 2019
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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