Este dossiê objetiva apresentar relatos de experiência de implantação e acompanhamento dos efeitos da estratégia de Gestão Autônoma da Medicação (GAM), destacando os desafios metodológicos enfrentados pelas pesquisas realizadas no campo da saúde mental pública usando a estratégia, o dispositivo e a ferramenta GAM. A GAM é uma estratégia no campo da saúde mental inicialmente desenvolvida no Quebec, Canadá, na década de 1990, a partir de dispositivos grupais usando a ferramenta Guia pessoal da gestão autônoma da medicação, formulada por associações de usuários de psicofármacos para promover discussão e produção de autonomia no uso dos medicamentos psiquiátricos. O tema da autonomia é central no movimento de renovação dos modelos de cuidado em saúde mental, pautando iniciativas como a da atenção psicossocial que norteia o sistema público de saúde no Brasil.
Em um cenário mundial de crescente medicalização da população, sobretudo no que se refere ao uso dos psicofármacos, surge no final do século XX no Canadá francês um interessante movimento de problematização do uso da medicação psiquiátrica. Como movimento social dos usuários, esta resistência às práticas de medicação se justificou pela falta de informação sobre os remédios receitados aos diagnosticados de doente mental; pelos efeitos indesejáveis dos psicofármacos; pelo sofrimento que costuma permanecer apesar do tratamento medicamentoso; pela dificuldade dos usuários dos tratamentos medicamentosos de retomar sua capacidade de contratualidade social e de inserção no mercado de trabalho; pelo desejo dos usuários de viver sem remédios. No entanto, a interrupção repentina e não assistida da medicação levou muitos a serem internados em hospitais de onde saíram mais medicados do que antes. Serviços alternativos em saúde mental e grupos de defesa dos direitos humanos no Quebec se engajaram nesse movimento crítico ao modelo assistencial biomédico.
Para responder à necessidade legítima de informação sobre os psicofármacos, em 1995, a Associação dos Grupos de Atendimento em Defesa dos Direitos em Saúde Mental do Quebec (AGIDD-SMQ) publicou o Guia Crítico dos Remédios da Alma, texto que se dirige diretamente às pessoas que usam esse tipo de medicação e fornece informações para que consigam exercer seu direito ao consentimento livre e esclarecido perante o tratamento psiquiátrico. Em 1997, a AGIDD-SMQ elaborou a formação O Outro Lado do Comprimido, diretamente inspirada no Guia Crítico dos Remédios da Alma e divulgou-a em várias regiões do Quebec, prioritariamente junto aos diagnosticados com problemas de saúde mental.
Desde 1999, serviços alternativos em saúde mental do Quebec passaram a desenvolver experiências de GAM. Os membros do Agrupamento dos Serviços Alternativos de Saúde Mental do Quebec (RRASMQ), uma centena de serviços de diferentes regiões do Quebec e com modelos de atendimento diversificados, comprometeram-se a utilizar a GAM em suas práticas. O respeito aos questionamentos críticos às práticas de “medicamentalização” (Caliman; Passos; Machado, 2016CALIMAN, L. V.; PASSOS, E.; MACHADO, A. M. A medicação nas práticas de saúde pública: estratégias para a construção de um plano comum. In: KASTRUP, V.; MACHADO, A. M. (Org.). Movimentos micropolíticos em saúde, formação e reabilitação. Curitiba: CRV, 2016. v. 1 . p. 19-39.) e às necessidades dos diagnosticados orienta estas práticas. Abre-se um espaço coletivo de discussão da medicação e define-se uma diretriz clínico-política para o tratamento em saúde mental. Valorizar a experiência e o saber dos usuários, fomentar o seu protagonismo na gestão do tratamento, experimentar outras formas de cuidado para além do medicamentoso foram vetores de alteração tanto do modelo de atenção como de gestão das práticas de saúde mental (Onocko-Campos et al., 2013ONOCKO-CAMPOS, R. T. et al. A Gestão Autônoma da Medicação: uma intervenção analisadora de serviços em saúde mental. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 18, n. 10, p. 2889-2898, 2013.).
Em 1999 realizou-se o projeto-piloto com dez serviços alternativos membros do RRASMQ, com colaboração do AGIDD-SMQ. Pesquisadores da Equipe de Pesquisa e Ação em Saúde Mental e Cultura (Érasme) avaliaram a implementação da GAM (Rodriguez del Barrio; Corin; Poirel; 2001RODRIGUEZ DEL BARRIO, L.; CORIN, E.; POIREL, M.-L. Le point de vue des utilisateurs sur l’emploi de la médication en psychiatrie: une voix ignorée. Revue Québécoise de Psychologie, Quebec, v. 22, n. 2 , p. 201-223, 2001.). Foi no âmbito desse projeto-piloto que surgiu o Meu Guia Pessoal, livreto contendo textos e perguntas para auxiliar usuários de tratamentos psiquiátricos na problematização e modificação de sua relação com os psicofármacos.
A adaptação do Guia GAM à realidade brasileira resultou da parceria entre Brasil e Canadá com a chancela da Aliança de Pesquisa entre Universidade e Comunidade (Aruc) da Universidade de Montreal. A Aruc apoiou pesquisas na temática da saúde mental e cidadania, a formação de pesquisadores e a transferência de tecnologia para a comunidade e serviços de saúde a partir de projetos multicêntricos e internacionais. Em 2009/2010 foi desenvolvido o projeto multicêntrico Pesquisa Avaliativa de Saúde Mental: Instrumentos para a Qualificação da Utilização de Psicofármacos e Formação de Recursos Humanos: GAM-BR, elaborado pela Universidade Estadual de Campinas, Universidade Federal Fluminense, Universidade Federal do Rio de Janeiro e Universidae Federal do Rio Grande do Sul (CNPq - 2009) que teve como objetivos: (1) traduzir, adaptar e testar, em Centros de Atenção Psicossocial das cidades de Rio de Janeiro (RJ), Novo Hamburgo (RS) e Campinas (SP), o Guia de Gestão Autônoma da Medicação (GGAM), com pacientes com transtornos mentais graves; e (2) avaliar o impacto desse instrumento na formação de profissionais de saúde mental (psiquiatras e profissionais não médicos).
O GGAM foi traduzido e adaptado para nossa realidade, com o intuito de fortalecimento da reforma psiquiátrica brasileira (Campos et al., 2012CAMPOS, R. T. O. et al. Adaptação multicêntrica de um guia para a gestão autônoma da medicação. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 16, n. 43, p. 967-980, 2012.). No campo da saúde pública temos debatido os avanços e os desafios ainda a serem enfrentados para a continuidade do movimento de democratização das práticas de saúde conforme o ideário do Sistema Único de Saúde (SUS). O processo constituinte que culminou na constituição de 1988 teve forte participação da Reforma Sanitária brasileira, movimento no campo da saúde que lutou pela democratização da saúde. A proposta foi a alteração dos modelos de atenção e gestão do processo de trabalho em saúde, a descentralização e o controle social na gestão do sistema público de saúde, o respeito aos direitos dos usuários dos serviços de saúde, considerando os diferentes saberes implicados no processo de produção de saúde. O texto constitucional de 1988 avançou na defesa do direito à saúde, preparando o terreno institucional para a definição em 1990 do SUS. A universalidade do acesso aos bens da saúde, a integralidade do sistema de saúde e a equidade das ofertas desse sistema se tornaram as bases da democratização da saúde no Brasil que superava a sombra autoritária dos anos da ditadura civil-militar.
No que se refere, especificamente, ao domínio da saúde mental pública, a Reforma Psiquiátrica e o movimento da Luta-antimanicomial foram os braços teórico e militante da Reforma Sanitária no campo das práticas de cuidado com os diagnosticados de transtorno mental. O cuidado em saúde mental em liberdade no território se tornou não só lema, mas, sobretudo, política de Estado a partir da década de 1990, o que indica uma sintonia com o que se experimentava no Quebec. Embora por lá o movimento da reforma psiquiátrica tenha se dado de modo importante nos serviços alternativos, no Brasil a aposta foi nos serviços substitutivos ao manicômio que compõem a rede pública de atenção psicossocial. Tal diferença, no entanto, não compromete a sintonia entre nossas experiências de mudança do modelo de cuidado em saúde mental visando a autonomia e o protagonismo dos usuários.
Avançamos, certamente, nas mudanças. No entanto, o tema da medicação se apresenta ainda como um ponto cego ou a face não reformada da reforma psiquiátrica (Sugimoto, 2012SUGIMOTO, L. Pesquisas revelam hipermedicação de pacientes com transtorno mental. Jornal da Unicamp, Campinas, n. 530, p. 5, 18-24 jun. 2012.). Verifica-se que, no cotidiano dos serviços de saúde mental (Caps e ambulatórios) ou que com eles guardam alguma interface, como é o caso da atenção básica (saúde da família e consultório na rua), há ainda uma centralidade do tratamento medicamentoso e, consequentemente, da prescrição médica, práticas de saúde que se realizam de modo predominantemente hierárquico, especialista e com baixa inclusão da experiência dos usuários.
O tema da participação, fundamental para o SUS, ganha importância, nesse contexto, seja no que se refere à mudança dos modelos de atenção e gestão no processo de trabalho em saúde, seja na formulação de metodologias de produção de conhecimento no campo da saúde, incluindo a perspectiva dos sujeitos participantes na organização e análise dos dados da pesquisa. A universidade, em seu compromisso com as expectativas da sociedade, é convocada a desenvolver metodologias de produção de conhecimento à altura dos anseios democratizantes do SUS.
Daí a aposta das pesquisas GAM em metodologias participativas no que designamos de pesquisa-intervenção participativa. Os coautores desse dossiê vêm trabalhando na construção de metodologia interventiva e participativa, a maioria como membros do grupo de pesquisa Enativos: Conhecimento e Cuidado, vinculado à Universidade Federal Fluminense. O grupo Enativos inicialmente teve os seus estudos voltados para o campo da cognição, particularmente investigando as “falsas lembranças”, fenômeno que põe em questão o caráter estritamente representacional da cognição. Na investigação que realizamos, entendemos que esse fenômeno cognitivo nos força a incluir, como dado da pesquisa e como perspectiva de análise desses dados, a alteridade da experiência daquele que se lembra, o que impede uma fácil separação entre o que é uma verdadeira e o que é uma falsa lembrança11Nas falsas lembranças, um sujeito tem uma lembrança que, objetivamente, não corresponde ao que foi convencionado no coletivo social como tendo acontecido (Stein, 2010). Contudo, o relato da lembrança é verdadeiro na medida em que quem narra diz a verdade acerca de sua experiência mnêmica; não se trata de perjúrio (Loftus; Hoffman, 1989). (Passos et al., 2018PASSOS, E. et al. A entrevista cartográfica na investigação da experiência mnêmica. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, DF, v. 38, n. 2, p. 275-290, 2018.; Silva et al., 2006SILVA, A. E. et al. Memória e alteridade: o problema das falsas lembranças. Mnemosine, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, p. 75-86, 2006., 2010). A inclusão da alteridade da experiência dos sujeitos participantes na pesquisa nos levou à construção da abordagem metodológica de pesquisa-intervenção participativa, que se mostrou pertinente ao campo da saúde pública.
Ao voltarmos nossas pesquisas para a proposta da GAM, deparamo-nos também com um problema relativo à experiência e à alteridade: os processos individuais e institucionais relacionados ao uso de psicofármacos - a prescrição, a dispensação, a vivência dos seus efeitos clínicos e colaterais, a definição e ajuste das dosagens, isto é, a gestão das práticas de medicamentação - são portadores de controvérsias e singularidades que dificultam (e problematizam) a constituição de juízos universais. Ao nos aproximarmos da experiência de uso de psicofármacos, percebemos que esta é portadora de alteridade, de modo que o conhecimento não pode se restringir às formulas instituídas e estereotipadas comuns em usuários e/ou trabalhadores dos serviços de saúde mental como o Caps, por exemplo: o medicamento é o melhor (ou o único) tratamento; o saber sobre o remédio está sempre do lado do médico; tal remédio é necessariamente bom ou necessariamente ruim. Os usuários muitas vezes possuem um saber, ancorado na experiência, sobre ações não medicamentosas que os ajudam a se sentir melhor, sobre efeitos ambivalentes dos remédios, sobre a dosagem mais adequada, mas esse saber, normalmente, não é reconhecido (nem pelos próprios usuários) e acaba não contando para o tratamento. O problema ético, relacionado à inclusão da alteridade da experiência de uso dos psicofármacos, se desdobra num problema metodológico, relativo às práticas de produção de saúde tanto quanto às práticas de produção de conhecimento em saúde.
O desafio é sair e abandonar o abstrato das posições dualistas e generalistas para, como diria Varela (2003VARELA, F. O reencantamento do concreto. In: LIMA, E. A. Cadernos de subjetividade: o reencantamento do concreto. São Paulo: Hucitec, 2003. p. 71-86.), reencantar o concreto da experiência. A experiência envolvida nas práticas de medicamentação frequentemente apresenta uma polissemia que impede a constituição de uma referência única para representá-la. Aproximar-se e incluir essa polissemia requer, portanto, outra política cognitiva (Kastrup; Tedesco; Passos, 2008KASTRUP, V.; TEDESCO, S.; PASSOS, E. Políticas da cognição. Porto Alegre: Sulina, 2008.): o conhecimento não como representação de uma realidade a priori, mas sim como cocriação ou coemergência de si e do mundo, como afirma a abordagem enativa (Varela, 2003VARELA, F. O reencantamento do concreto. In: LIMA, E. A. Cadernos de subjetividade: o reencantamento do concreto. São Paulo: Hucitec, 2003. p. 71-86.). A GAM pressupõe essa política cognitiva enativa. As perguntas que compõem o GGAM, por exemplo, não objetivam a obtenção de respostas corretas, mas sim abrir e ampliar os pontos de vista a respeito do uso dos psicofármacos. É preciso se inclinar em direção à experiência para escutar o que nela comparece não como índice de um objeto a ser representado, mas como alteridade que nos interpela e nos tira da centralidade na produção de conhecimento - sair de uma atitude de sobrevoo (típica da relação sujeito-objeto), para lateralizar numa relação sujeito-sujeito (Passos; Eirado, 2009PASSOS, E.; EIRADO, A. Cartografia como dissolução do ponto de vista do observador. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (Org.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009. p. 110-131.).
Na metodologia de pesquisa-intervenção participativa que construimos, a dimensão relacional ou interativa da pesquisa ganha primazia. O ato de pesquisar está necessariamente atrelado ao ato de intervir na realidade investigada, a partir da valorização dos pontos de vista dos participantes que saem da posição de objetos do conhecimento para a posição de sujeitos cognoscentes. Pesquisadores e participantes se percebem implicados, o que confere ao trabalho da pesquisa também um sentido de cuidado - ambos se transformam mutuamente no processo da investigação, são efeitos coemergentes desse processo. O conhecimento passa a se definir por sua autonomia coletiva (Passos et al., 2018PASSOS, E. et al. A entrevista cartográfica na investigação da experiência mnêmica. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, DF, v. 38, n. 2, p. 275-290, 2018.), pois se faz no acolhimento da alteridade, o que equivale a reconhecer a interdependência entre eu e outrem: ser autônomo não é agir de maneira independente e isolada, e sim levar em consideração os elos que nos constituem. O processo da pesquisa é, ao mesmo tempo, participativo e interventivo. Participar não se reduz a escolher entre opções já dadas, nem se restringe aos espaços previamente definidos para esse fim, mas pressupõe fabricar novas alternativas, reinventar os limites de si e do mundo.
A GAM se inscreve nessa aposta participativa e interventiva no campo da saúde mental, onde o desafio é de inclusão democrática e fomento do protagonismo dos usuários dos serviços de saúde. Esses indivíduos diagnosticados de doentes mentais são frequentemente destituídos de sua condição de sujeitos de direitos, cidadãos de contratualidade social (Kinoshita, 2001KINOSHITA, R. T. Contratualidade e reabilitação psicossocial no Brasil. In: PITTA, A. (Org.). Reabilitação psicossocial. São Paulo: Hucitec, 2001. p. 55-59.). Garantir participação na gestão do próprio tratamento não representa necessariamente autogestão, independência em relação aos serviços de saúde. A proposta cogestiva (Campos, 2000CAMPOS, G. W. S. Um método para análise e cogestão de coletivos: a constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o método da roda. São Paulo: Hucitec, 2000.; Passos et al., 2013PASSOS, E. et al. Autonomia e cogestão na prática em saúde mental: o dispositivo da gestão autônoma da medicação (GAM). Aletheia, n. 41, p. 24-38, 2013.) nos processos de produção de saúde permite que a verticalidade (hierarquia na relação dos trabalhadores entre si e entre eles e os usuários) e a horizontalidade (corporativismo) cedam lugar à transversalidade nas relações institucionais (Passos, 2017PASSOS, E. A transversalidade como estratégia de qualificação do trabalho acadêmico: observando o dispositivo Temas em Debate do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UFRGS. Revista Polis e Psique, Porto Alegre, v. 7, n. 2, p. 191-209, 2017.; Passos; Carvalho, 2015PASSOS, E.; CARVALHO, Y. M. A formação para o SUS abrindo caminhos para a produção do comum. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 24, p. 92-101, 2015. Suplemento 1.). Transversalizar é alterar o padrão comunicacional nas instituições colocando lado a lado os diferentes na gestão de um bem comum. Se a hierarquia distribui os diferentes numa relação vertical de mando e obediência e se o corporativismo reune os iguais lado a lado em defesa do que lhes é próprio, a transversalidade pressupõe lateralizar os diferentes sem recusar a heterogeneidade nas relações de saber e poder, mas colocando em análise as concentrações políticas, as hegemonias epistemológicas, o autoritarismo dos centros de poder e saber. Conduzir uma investigação em saúde mental apostando na lateralidade entre pesquisadores, trabalhadores e usuários ou familiares interfere na realidade investigada, conferindo à pesquisa seu caráter de intervenção.
A GAM é orientada pelo princípio metodológico da transversalidade. Como estratégia, a promoção da autonomia coletiva, o protagonismo distribuído e a diretriz cogestiva são modos de fazer que podem estar presentes em diferentes dispositivos seja de atenção ou de gestão do trabalho em saúde, seja em práticas de produção de conhecimento como as pesquisas-intervenção participativas. Tal estratégia está presente nos dispositivos GAM, que são grupos heterogêneos integrados por trabalhadores e usuários, ou por trabalhadores e familiares, eventualmente com a presença de pesquisadores universitários, onde se discute o GGAM, ferramenta que direciona um grupo GAM. A GAM, portanto, é estratégia, dispositivo e ferramenta, apresentando-se desde sua versão mais abstrata à mais concreta.
No trabalho da pesquisa GAM, a leitura do GGAM num dispositivo grupal nos levou a defini-lo como uma entrevista coletiva (Sade et al., 2013SADE, C. et al. O uso da entrevista na pesquisa-intervenção participativa em saúde mental: o dispositivo GAM como entrevista coletiva. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 18, n. 10, p. 2813-2824, 2013.). O uso de técnicas de entrevista não foi fortuito, é um modo de investigar a experiência com ênfase na dimensão relacional. O grupo GAM, como entrevista coletiva, era para nós uma maneira de construir dispositivos que nos permitissem instaurar novas modalidades de encontro com os participantes. No grupo GAM, cartografamos a sua dinâmica, acompanhando os processos e movimentos da experiência dos participantes, aspectos intensivos e qualitativos, o que requeria de nós procedimentos de entrevista igualmente processuais (Renault; Passos; Eirado, 2016RENAULT, L.; PASSOS, E.; EIRADO, A. Da entrevista de explicitação à entrevista na pesquisa cartográfica. In: AMADOR, F. S.; BARROS, M. E. B.; FONSECA, T. M. G. (Org.). Clínicas do trabalho e paradigma estético. Porto Alegre: UFRGS, 2016. p. 61-77.; Tedesco; Sade; Caliman, 2013TEDESCO, S. H.; SADE, C.; CALIMAN, L. V. A entrevista na pesquisa cartográfica: a experiência do dizer. Fractal: Revista de Psicologia, Niterói, v. 25, n. 2, p. 299-322, 2013.). Inspiramo-nos no conceito de cartografia formulado por Deleuze e Guattari (1995DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. v. 1.), a partir do qual desenvolvemos, em colaboração com outros pesquisadores, pistas metodológicas para a realização de pesquisas qualitativas (Passos; Kastrup; Escóssia, 2009PASSOS, E.; EIRADO, A. Cartografia como dissolução do ponto de vista do observador. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (Org.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009. p. 110-131.; Passos; Kastrup; Tedesco, 2014PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (Org.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009.). A entrevista coletiva não se constitui para nós como um meio de coleta de informações imediatamente disponível. Trata-se de uma entrevista não diretiva, que sustenta uma atitude de abertura e de experimentação, lançando mão de técnicas de relance, sensíveis ao que acontece durante o diálogo com os participantes do grupo e que buscam evocar sua experiência concreta com questionamentos amplos. Com o apoio do GGAM e da entrevista coletiva, guiamos de modo não diretivo os participantes à sua própria experiência, dispondo de tempo para a emergência de um conteúdo que não está dada de antemão.
A entrevista coletiva da GAM não se confunde com um grupo focal (Sade et al., 2013SADE, C. et al. O uso da entrevista na pesquisa-intervenção participativa em saúde mental: o dispositivo GAM como entrevista coletiva. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 18, n. 10, p. 2813-2824, 2013.). O manejo não visa à focalização das falas do grupo, o que poderia restringir o espectro da discussão, acompanhando não apenas o foco da conversa, mas também o fora-foco. O grupo é efeito de uma dinâmica de manejo cogestivo (Mello et al, 2015), com coordenação inicialmente centralizada em um moderador que tem a tarefa de fomentar o protagonismo distribuído, visando a descentralização do manejo. As decisões acerca da condução do grupo só podem ser tomadas caso a caso, através do compartilhamento da experiência dos participantes por parte do moderador. Orientado pelo princípio da transversalidade, o manejo cogestivo acolhe diferentes perspectivas, o que favorece aos participantes sentirem-se pertencentes e corresponsáveis, compartilhando o protagonismo do grupo, assumindo uma posição colaborativa e criativa. O grupo GAM não é apenas participativo, ele fomenta a participação. O efeito buscado é o da contração de uma grupalidade que é mais do que o ajuntamento de pessoas, na medida em que se alcança uma dinâmica de autonomia coletiva, isto é, o grupo passa a operar como gerador de normas para si: grupo normativo e não grupo normal (Passos; Carvalho; Maggi, 2012PASSOS, E.; CARVALHO, S. V.; MAGGI, P. M. A. Experiência de autonomia compartilhada na saúde mental: o “manejo cogestivo” na gestão autônoma da medicação. Pesquisas e Práticas Psicossociais, São João del-Rei, v. 7, n. 2, p. 269-278, 2012.) que opera a cogestão da medicação. O trabalho da pesquisa-intervenção participativa não se separa do próprio processo de implementação do dispositivo GAM.
Interessa-nos apresentar aqui experiências de pesquisa que discutem a inovação tecnológica da implantação da GAM nos serviços e suas reverberações para além da atenção especializada em saúde mental. Os textos reunidos para esse dossiê devem ser considerados no campo problemático que se arma a partir de dois eixos: (1) inovações metodológicas nas práticas de produção de saúde no campo da saúde pública - a GAM como dispositivo grupal de fomento da cogestão no cuidado em saúde mental; o apoio como direção nas práticas de gestão em saúde; o fórum de trabalhadores da saúde -; (2) inovações metodológicas nas pesquisas em saúde pública - a política de narratividade da pesquisa; a participação na análise de dados; a pesquisa-apoio. Tais eixos são transversais aos textos apresentados, já que todos eles se localizam na relação entre pesquisa e experiência, entre pesquisa e intervenção. Contudo, podemos localizar os artigos aqui reunidos como estando mais predominantemente em um eixo ou em outro. As práticas de produção de saúde abrangem as dimensões de atenção, gestão, promoção e prevenção, tomadas como distintas e inseparáveis.
No eixo de inovações metodológicas em práticas de saúde mental pública, dois artigos discutem a estratégia GAM e a inseparabilidade entre a gestão dos processos de trabalho e os processos de cuidado em saúde mental.
No artigo “Gestão Autônoma da Medicação (GAM) como dispositivo de atenção psicossocial na atenção básica e apoio ao cuidado em saúde mental”, Eduardo Caron e Laura Feuerwerker problematizam uma experiência de construção de dispositivos de atenção psicossocial na atenção básica, baseados na proposta GAM. Tais dispositivos, orientados pela diretriz da cogestão e do compartilhamento de experiências, foram constituídos em Unidades Básicas de Saúde através de grupos que reuniam usuários de medicação psiquiátrica. No contexto da prescrição massiva de psicofármacos na atenção básica e da centralização da responsabilidade sanitária em saúde mental nos serviços de atenção especializada, os autores discutem a importância estratégica de metodologias de intervenção que fomentem autonomia nas relações de poder entre equipes de saúde, entre trabalhadores e usuários, e entre os tipos de saber envolvidos nas práticas de produção de saúde.
No artigo “O apoio institucional ao Fórum da Rede de Saúde Mental de São Pedro da Aldeia como dimensão da pesquisa de Gestão Autônoma da Medicação”, Everson Rach Vargas, Eduardo Passos, Beatriz Prata Almeida e Lorena Guerini apresentam uma experiência de Apoio Institucional a um coletivo de trabalhadores do município São Pedro da Aldeia, no Rio de Janeiro. Tal experiência, que surge no processo de pesquisa-intervenção participativa que implantou e validou o dispositivo da GAM no Caps do município, teve como um de seus efeitos a construção de um fórum de trabalhadores da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) em São Pedro da Aldeia, como dispositivo de cuidado da experiência de cuidar no campo da saúde mental. No texto destaca-se a relação entre o processo da pesquisa e a tecnologia de apoio institucional, sublinhando-se as modulações metodológicas implicadas neste processo, tanto no que diz respeito à prática de pesquisa quanto à prática de produção de saúde na Raps do município.
Se na primeira parte deste dossiê as experiências relatadas expressam os efeitos da metodologia de pesquisa-intervenção participativa nas práticas de produção de saúde, na segunda parte são apresentadas as inovações que a inclusão da experiência e da alteridade nas práticas de produção de saúde efetua nas metodologias de pesquisa.
O encontro entre pesquisa e campo é o mote do texto “A pesquisa-intervenção como pesquisa-apoio: o caso do POP RUA”, de Iacã Macerata, José Guilherme Neves Soares e André Miranda de Oliveira. Neste artigo, os autores desenvolvem o conceito de pesquisa-apoio como uma modulação da pesquisa-intervenção participativa no campo da saúde, a partir de relato de experiência de uma pesquisa acerca da prática de cuidado de uma Equipe de Consultório na Rua, da cidade do Rio de Janeiro. Nesta pesquisa, os problemas do campo da atenção psicossocial à população em situação de rua lançam luz sobre os desafios da abordagem metodológica das pesquisas GAM.
No artigo “A política de narratividade na pesquisa-intervenção participativa”, Christian Sade e Jorge Melo discutem a narratividade em pesquisas-intervenção participativas relacionadas à GAM. Os autores tomam como ponto de partida a assertiva de que escutar e legitimar a experiência dos usuários é um ponto chave para a GAM. A produção de narrativas evidencia a legitimação necessária de diferentes pontos de vista comumente excluídos: tanto dos usuários quanto do pesquisador, ponto de vista que hegemonicamente fica oculto na pretensa neutralidade de investigador.
No artigo “Participar da análise, analisar a participação: aspectos metodológicos de uma pesquisa-intervenção participativa em saúde mental”, Letícia Renault e Júlia Ramos discutem a articulação entre os temas da participação e da análise de dados sob o ponto de vista da metodologia na pesquisa-intervenção participativa vinculada à GAM. Nesta pesquisa-intervenção todos os participantes são, em alguma medida, pesquisadores, o que altera a compreensão dos modos de se fazer análise em pesquisa. As autoras propõem uma relação circular entre participação e análise, onde a participação depende da realização coletiva da análise e a análise permite a identificação e a transformação de diferentes qualidades da participação.
As experiências e proposições aqui relatadas resultam do campo problemático da Gestão Autônoma da Medicação. Com esta reunião de textos queremos tornar pública a experiência deste coletivo de pesquisa e destacar os desafios metodológicos que surgem quando valorizamos a experiência dos participantes, seja nas práticas de saúde seja nas pesquisas em saúde. Queremos dar ênfase à relação de distinção e inseparabilidade entre produção de conhecimento e produção de cuidado, o que sintoniza nossas práticas de pesquisa com o trabalho em saúde.
Referências
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
09 Dez 2019 - Data do Fascículo
Oct-Dec 2019
Histórico
- Recebido
06 Out 2019 - Aceito
14 Out 2019