Participar da análise, analisar a participação: aspectos metodológicos de uma pesquisa-intervenção participativa em saúde mental

Letícia Renault Júlia Ramos Sobre os autores

Resumo

Este artigo discute a articulação entre os sujeitos da participação e a análise dos dados do ponto de vista da metodologia na pesquisa de intervenção participativa vinculada à abordagem da Gestão Autônoma da Medicação (GAM). Para esta pesquisa de intervenção, todos os participantes são pesquisadores, o que altera o entendimento predominante sobre como fazer análise em uma pesquisa. Entendemos que existe uma relação circular entre participação e análise: a participação efetiva depende da realização coletiva da análise por todos os pesquisadores; a análise permite a identificação e transformação de diferentes qualidades de participação, sendo uma ferramenta para promover autonomia e cogestão. Neste artigo, procuramos identificar duas qualidades principais de participação presentes na experiência de campo com um grupo de membros da família GAM: participação automática e participação autônoma. Essa distinção toma como uma de suas principais referências a abordagem enativa de Francisco Varela, sua caracterização do automatismo cognitivo e seu conceito de perturbação. Nesse contexto, participação e análise são mutuamente implicadas, uma vez que a análise permite a identificação de automatismos e a promoção de perturbações, fomentando a autonomia na participação; por outro lado, isso tem como efeito coletivizar a análise e a distribuição da tarefa de produção do conhecimento entre todos os participantes.

Palavras-chave:
Pesquisa Participativa de Base Comunitária; Análise de Dados; Gestão Autônoma da Medicação; Pesquisa de intervenção; Abordagem Enativa

Introdução

O tema da participação tem lugar de destaque no campo da saúde no Brasil (Cavalcanti; Cabral; Antunes, 2012CAVALCANTI, M. L. T.; CABRAL, M. H. P.; ANTUNES, L. R. Participação em saúde: uma sistematização de artigos publicados em periódicos brasileiros: 1988/2005. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 7, p. 1813-1823, 2012.). Como princípio organizativo do Sistema Único de Saúde (SUS), a participação popular ganhou relevância não só como objeto de pesquisas científicas, mas também como integrante das metodologias de investigação. Daí a importância, no contexto brasileiro e latino-americano, das pesquisas-intervenção e pesquisas participativas em saúde, compondo um panorama de transformação no qual as investigações científicas buscam se organizar de maneira mais distribuída socialmente (Pellegrini Filho, 2004PELLEGRINI FILHO, A. Pesquisa em saúde, política de saúde e eqüidade na América Latina. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, p. 339-550, 2004.).

Já o tema da análise de dados recebeu menos atenção. Bastante explorado por metodologias de pesquisa não participativas, ele é pouco abordado pelas pesquisas-intervenção participativas. Desse modo, procuramos aqui discutir a articulação entre participação e análise sob a perspectiva da metodologia de uma pesquisa-intervenção participativa em saúde mental. Essa discussão se baseia na experiência de campo com a abordagem da Gestão Autônoma da Medicação (GAM).

A GAM se originou no Canadá visando à ampliação da autonomia dos usuários de serviços de saúde mental através de um debate crítico sobre o uso de medicamentos psiquiátricos1.11Cf. <https://bit.ly/2Bg0afX>. No Brasil, essa discussão ganhou espaço graças à atuação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)e Universidade Federal Fluminense (UFF) (Campos et al., 2012CAMPOS, R. T. O. et al. Adaptação multicêntrica de um guia para a gestão autônoma da medicação. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 16, n. 43, p. 967-980, 2012.). Essas universidades promoveram uma pesquisa-intervenção participativa para tradução, adaptação e validação do instrumento utilizado nesta abordagem: o Guia GAM (GGAM) (Onocko Campos et al., 2012ONOCKO CAMPOS, R. T. et al. Guia da gestão autônoma da medicação (GAM). Campinas: Unicamp, 2012. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2n1358H >. Acesso em: 2 out. 2019.
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). Em diferentes campos, realizaram-se Grupos de Intervenção (GIs) com usuários e trabalhadores de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) onde o GGAM era discutido coletivamente. No município de São Pedro da Aldeia (RJ), realizamos a validação do dispositivo GAM e do GGAM com usuários, familiares e trabalhadores do CAPS. Desenvolvido para usuários, o GGAM é composto por questões sobre a experiência cotidiana do tratamento, do uso de medicamentos e de temas relativos à saúde mental, contendo também textos informativos sobre psicotrópicos, direitos dos usuários e rede de saúde e assistência social.22O GGAM encontra-se disponível em <https://bit.ly/2n1358H>.

A experiência com os GI com usuários, trabalhadores e universitários (os GIU) mostrou que familiares33Ao longo do texto, um problema linguístico se impôs: que gênero utilizar para designar os e as participantes da pesquisa? Em especial quando tratamos de familiares, o uso da generalização no masculino gera desconforto: são as mulheres, sobretudo as mães, as protagonistas no cuidado de usuários e usuárias. No país, muitas famílias são geridas por mulheres e, em muitos espaços, o cuidado ainda é visto como tarefa primordialmente feminina. Essa realidade se refletia na composição do GIF, formado em sua maioria por mulheres (ainda que - ou até por isso - a presença ocasional de dois pais e de um irmão fosse significativa e importante). No GIF, ao contrário do GIU realizado no mesmo Caps, as pesquisadoras universitárias e as trabalhadoras também eram mulheres, o que trouxe a questão de gênero para o cerne da descrição concreta da experiência de pesquisa, contrastando com a descrição abstrata no masculino. Evitamos buscar uma solução rápida para essa questão e optamos por manter o texto com as flutuações de gênero (generalizações masculinas, designações ambíguas e formas femininas) como um modo de “permanecer com o problema” (Haraway, 2016). dos usuários desempenhavam papel decisivo na gestão do uso dos medicamentos. Em contextos frequentemente precários de tratamento e assistência, o medicamento representava um dos únicos recursos disponíveis para lidar com possíveis crises, o que provocava receio nos familiares de que os usuários parassem de tomar a medicação. Assim, os familiares ajudavam a controlar os horários em que os remédios deveriam ser tomados e a obter as prescrições, fornecendo os medicamentos aos seus parentes em tratamento (às vezes sem consentimento). Compreendemos assim que, para discutir criticamente o uso da medicação, era necessário criar um dispositivo para incluir os familiares, o Grupo de Intervenção com Familiares (GIF). Nesses encontros, discutíamos o GGAM, procurando reformulá-lo quando parecia necessário.

Abordaremos aqui a articulação entre análise e participação no GIF e, para tanto, apresentaremos inicialmente um breve panorama das pesquisas-intervenção e do lugar da participação nas investigações científicas. Depois, discutiremos as diferentes formas de participação que encontramos em nosso trabalho - interessou-nos indagar quais seriam os modos de participar dos diferentes dispositivos. Finalmente, discutiremos como tais modos de participação se articulavam à análise e quais os efeitos dessa análise sobre a produção de conhecimento e a transformação de realidades.

Pesquisa-intervenção, participação e análise de dados

O termo “pesquisa-intervenção” representa um marco para a política epistemológica em ciências humanas, buscando afirmar a inserção social das práticas de produção de conhecimento. Assim, ainda que haja diversidade de modos e áreas, ela sempre aponta para a ideia de participação.

Poderíamos traçar o percurso das formas de participação nas pesquisas desde a pesquisa-ação de Lewin, nos Estados Unidos dos anos 1930 (Barros, 1994BARROS, R. D. B. Grupo: a afirmação de um simulacro. 1994. Tese (Doutorado em Psicologia) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1994.), passando pela emergência de uma tradição latino-americana, nos anos 1950 e 1960, de pesquisas participantes ligadas a diferentes movimentos sociais de vocação emancipatória (Brandão, 2006BRANDÃO, C. R. A pesquisa participante e a participação da pesquisa: um olhar entre tempos e espaços a partir da América Latina. In: BRANDÃO, C. R.; STRECK, D. R. Pesquisa participante: a partilha do saber. Aparecida: Ideias & Letras, 2006. p. 21-54.) e chegando, atualmente, a metodologias de produção do conhecimento ligadas à teoria da complexidade, como a sociopráxis (Cordeiro; Villasante; Araújo Júnior, 2010CORDEIRO, J. C.; VILLASANTE, T. R. P.; ARAÚJO JÚNIOR, J. L. A. C. A participação e a criatividade como ferramentas de análise das políticas públicas. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. 4, p. 2123-2132, 2010.), que evoca as matrizes da democracia participativa para pôr em xeque os problemas de pesquisa e os rumos das políticas públicas. Há ainda a afirmação da relevância social da produção de conhecimento e seu vínculo com os movimentos sociais, ligada à epistemologia do sul e metodologias pós-abissais (Santos, 2018SANTOS, B. S. O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias do sul. Coimbra: Almedina, 2018.).

A ideia comum a essas perspectivas é que a pesquisa não está a serviço de uma descrição da realidade: ela a modifica. O pesquisador desempenha um papel na transformação dos contextos pesquisados, ainda que com diferentes graus de engajamento e posições políticas diversas. Por essa razão, a “análise de dados” não ocupa lugar central nas metodologias de pesquisas-intervenção: a própria noção de “dado” é, aqui, problemática (Barros; Barros, 2014BARROS, L. M. R.; BARROS, M. E. B. O problema da análise em pesquisa cartográfica. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; TEDESCO, S. (Org.). Pistas do método da cartografia: a experiência da pesquisa e o plano comum. Porto Alegre: Sulina, 2014. p. 175-202.). Interessada nas transformações promovidas por sua própria atuação, a matéria primordial da intervenção não é um dado, algo preexistente à espera de representação ou interpretação. Assim, o termo “análise”, em uma pesquisa-intervenção, está ligado à produção de transformações (Lourau, 1975LOURAU, R. A análise institucional. Petrópolis: Vozes, 1975.).

A participação do pesquisador não é a única na pesquisa-intervenção. Uma das intervenções mais contundentes dessa abordagem é a afirmação da participação dos demais, dela extraindo seus efeitos. Esse é o caso das “pesquisas participantes”, que reivindicam como uma de suas principais intervenções as transformações sociais, políticas e/ou epistemológicas da participação ativa de outrem em seus dispositivos de pesquisa (Passos; Barros, 2000PASSOS, E.; BARROS, R. B. A construção do plano da clínica e o conceito de transdisciplinaridade. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, DF, v. 16, n. 1, p. 71-79, 2000.)44Enfatizamos aqui que a pesquisa-intervenção sempre aponta para a participação, mas pode-se muito bem enfatizar a ideia inversa. Como nos indicam Rocha e Aguiar (2003, p. 66), “A pesquisa-intervenção consiste em uma tendência das pesquisas participativas que busca investigar a vida de coletividades na sua diversidade qualitativa, assumindo uma intervenção de caráter socioanalítico”.. Aqui também há diversos graus e nuances, pois se pode participar na qualidade de colaborador, para a consecução de determinados objetivos pré-estabelecidos, ou coautor do processo de produção de conhecimento. Em última instância, na qualidade de coautor do conhecimento, supõe-se que o participante da pesquisa seja também um pesquisador. Se os pesquisadores ligados à universidade são detentores do conhecimento técnico relativo às metodologias de pesquisa e ao campo de estudo, os pesquisadores participantes são detentores do conhecimento encarnado sobre a experiência a ser investigada. Assim, a qualidade da participação não é a mesma em todas as situações de pesquisa, nem durante todos os momentos de uma mesma pesquisa. A escala de Arnstein (1969ARNSTEIN, S. R. A ladder of citizen participation. Journal of the American Planning Association, Abingdon, v. 35, n. 4, p. 216-224, 1969.), adotada no campo da sociologia, por exemplo, descreve oito graus de participação nos projetos de pesquisa ou intervenção social.

O campo das metodologias que se designam participativas ou participantes é, desse modo, composto por diferentes abordagens teóricas e definições acerca do que seria participação. Porém, pode-se considerar que uma característica comum é o propósito de rompimento com dogmas presentes em metodologias de pesquisa de tradição hoje majoritária, tais como a suposição de neutralidade do pesquisador e a condição de informante dos sujeitos da pesquisa (Rocha; Aguiar, 2003ROCHA, M. L.; AGUIAR, K. F. Pesquisa-intervenção e a produção de novas análises. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, DF, v. 23, n. 4, p. 64-72, 2003.; Schmidt, 2006SCHMIDT, M. L. S. Pesquisa participante: alteridade e comunidades interpretativas. Psicologia USP, São Paulo, v. 17, n. 2, p. 11-41, 2006.; Villasante, 2010VILLASANTE, T. R. Historias y enfoques de una articulación metodológica participativa. Cuadernos CIMAS, Madri, p. 1-18, 2010.). Assim, as metodologias participativas buscam romper com as “metodologias extrativistas”, nas quais há total unilateralidade na interação cognitiva sujeito/objeto, de modo que os que veem seu conhecimento ser tratado como matéria-prima nunca detêm o controle sobre o processo extrativo (Santos, 2018SANTOS, B. S. O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias do sul. Coimbra: Almedina, 2018.). Compreendendo a participação em seu sentido forte, a noção de que a “análise de dados” de uma pesquisa é uma representação (ou, quando muito, uma interpretação) da realidade levada a cabo de maneira neutra e isolada pelo pesquisador ou cientista é insustentável.

A análise, aqui, se articula necessariamente ao engajamento ético-político da pesquisa e aos diferentes graus de participação de todos os envolvidos. Assim, pelo fato das pesquisas participantes não se adequarem aos critérios de cientificidade tradicionais e privilegiarem seu impacto em determinada realidade social, a análise ganha uma multiplicidade de sentidos, não sendo possível definir definitivamente se significa um procedimento ligado à produção de conhecimento ou se é um instrumento operador de transformações. É justamente a tensão entre essas duas dimensões - a produção de conhecimento e a transformação da realidade - que constitui, a nosso ver, as pesquisas-intervenção. A análise comporta simultaneamente ambos os sentidos e nos permite ver com mais vivacidade a interdependência entre produção de conhecimento e transformação de realidade.

É inegável que a maneira singular de sustentar a tensão entre essas duas dimensões ao longo do processo de pesquisa-intervenção vai imprimir aspectos distintos a cada trabalho. A noção de análise ganhará sentidos diferentes de acordo com cada uma das abordagens metodológicas postas em prática. Em alguns casos, a análise aparece ligada à interpretação de dados da realidade, ainda que estes tenham sido coletados de forma colaborativa; em outros, os termos tradicionalmente utilizados nas pesquisas ganham novos significados, tal como acontece nos trabalhos que se inspiram na análise institucional (Lourau, 1975LOURAU, R. A análise institucional. Petrópolis: Vozes, 1975.), na qual a análise aparece como operadora de mudanças sociopolíticas. Em outros casos, ainda, busca-se um rompimento com as metodologias de tradição majoritária, eliminando-se todo seu vestígio terminológico e evitando-se falar em “análise de dados”.

Portanto, a análise dificilmente poderia ser definida de uma maneira geral, igualmente válida para práticas tão diversas. Nosso interesse é menos propor uma sistematização do que é (ou deveria ser) a análise nesse campo, e mais compartilhar alguns dos desafios que enfrentamos na compreensão do que era analisar no caso da pesquisa GAM. Discutiremos como nosso trabalho se constituiu ao lidar com a tensão entre produção de conhecimento e transformação de realidade, bem como as razões que nos levaram a acrescentar o termo “participativo” para descrever o que fizemos.

Como participamos da pesquisa-intervenção?

A fim de aprofundar a discussão sobre análise e participação, apresentaremos experiências concretas ensejadas pela realização do GIF. Cabe ressaltar a composição heterogênea deste - formado por trabalhadores, familiares e acadêmicas -, a qual se deveu a uma aposta na importância da lateralização de pontos de vista distintos como estratégia para transformar relações de poder instituídas e ampliar as possibilidades de participação dos envolvidos.

Ao longo do processo de discussão, o grupo experimentou diferentes momentos e formas de participação e análise. Quando iniciamos o trabalho com familiares de usuários do CAPS, já havia um grupo constituído, com frequência semanal e coordenado por duas trabalhadoras. Validar o GGAM no grupo de familiares já existente não era parte da proposta inicial de nosso projeto e suscitou questionamentos e problemas não previstos. Em razão das dificuldades de constituição de um novo grupo, optamos por adaptar a metodologia, inserindo o projeto nesse dispositivo já em andamento (Ramos, 2012RAMOS, J. F. C. A autonomia como um problema: uma pesquisa a partir da realização do dispositivo GAM em um CAPS fluminense. 2012. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2012.; Renault, 2015RENAULT, L. A análise em uma pesquisa-intervenção participativa: o caso da gestão autônoma da medicação. 2015. Tese (Doutorado em Psicologia) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2015.).

Inicialmente, o modo de funcionamento já instituído no grupo baseava-se numa forma de participação que chamou nossa atenção, a qual intitulamos provisoriamente de “participação por depoimentos e informes”. Diante de qualquer pergunta feita pela trabalhadora ao grupo, os familiares respondiam com depoimentos relativos à pergunta feita, sem que houvesse interferências na fala do “depoente”. Em seguida, outro familiar se manifestava, remetendo-se à pergunta inicial, como se durante a fala anterior estivesse apenas aguardando a oportunidade de dar seu depoimento. Havia pouquíssimas trocas entre os participantes do grupo. Após o término do depoimento de todos que desejassem falar, a profissional dava sua opinião, fazia algum comentário de incentivo ou indicava que tomaria providências em relação ao exposto. Em seguida, outro tema era trazido à pauta pela trabalhadora, suscitando novos depoimentos por parte das familiares.

O modo de participação das trabalhadoras no grupo era análogo ao percebido entre as familiares. As trabalhadoras estavam envolvidas com uma série de atividades relacionadas à saúde mental no município e tinham como intenção ter os familiares como parceiros. Para tanto, durante as reuniões do grupo, elas transmitiam às familiares notícias sobre o andamento dos processos - que nem sempre diziam respeito a situações que as envolviam diretamente. Repetidamente perguntavam: “E então? O que vocês acham? Acham isso bom?”, ao que elas respondiam afirmativamente. Na sequência, a pauta de informes prosseguia. Assim, embora houvesse o propósito de compartilhar com as familiares, na prática, esse modo de fazer não disparava o início de um processo de trocas entre as participantes do próprio grupo. A participação era mitigada.

Interessante notar que esse funcionamento não era direcionado a um participante, mas estava diluído na maneira do grupo se relacionar. Inicialmente, também nós, pesquisadoras-universitárias, participávamos do mesmo modo: acompanhávamos os informes e testemunhos como se eles não nos dissessem muito respeito e não estivessem ligados ao nosso propósito de validar o GGAM. Aguardávamos, então, nosso momento de falar sobre o Guia e, de certo modo, dar nosso testemunho da pesquisa-intervenção.

Após percebermos esse modo de funcionamento, o trabalho de manejo se dedicou a desconstruí-lo, transformando nosso próprio modo de participar e convidando os participantes a opinarem uns sobre o que os outros diziam. “Então, o que o grupo acha disso que X disse?”, “Alguém pensou alguma coisa diferente disso que foi dito?”, “Y está dizendo tal coisa, como é para os outros?”, perguntávamos. Ao alterarmos nosso modo de estar no grupo, as demais participações também se transformavam. As falas passaram, progressivamente, a se entrecruzar mais e a se questionarem mutuamente, envolvendo-se de maneira inextrincável.

O trabalho do manejo, então, visava deliberadamente a esse tipo de funcionamento: inicialmente localizado nas pesquisadoras, o manejo procurava sua própria distribuição, descentrando-se (Melo et al., 2015MELO, J. et al. Acesso e compartilhamento da experiência na gestão autônoma da medicação: o manejo cogestivo. In: BRASIL. Ministério da Saúde. Cadernos HumanizaSUS: saúde mental. Brasília, DF, 2015. v. 5. p. 233-247.). Cada participante passava a ser corresponsável pelo manejo, fazendo relances, reflexões e tornando-se sensível à participação dos demais. Tal modo de funcionamento foi considerado um efeito importante do dispositivo GAM no GIF e configurou uma maneira de participar bastante diferente da inicial. Compreendemos que a direção do manejo era, partindo da “participação por depoimentos e informes”, fomentar o que nomeamos “participação autônoma”.

Para ampliarmos a compreensão sobre essas duas formas de participação, utilizaremos a distinção entre autonomia e automatismo55Tal distinção já nos inspirara, em uma pesquisa sobre a memória, a elaborar as categorias de “automatismo”, “controle egoico” e “autonomia” para nos referirmos aos graus de abertura em relação à experiência (Passos et al., 2018). (Passos et al., 2018PASSOS, E. et al. A entrevista cartográfica na investigação da experiência mnêmica. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, DF, v. 38, n. 2, p. 275-290, 2018.; Varela; Thompson; Rosch, 2003VARELA, F., THOMPSON, E.; ROSCH, E. A mente incorporada: ciências cognitivas e experiência humana. Porto Alegre: Artmed, 2003.)..As formas de relação estabelecidas entre sujeito e mundo são constantemente interrompidas por perturbações (breakdowns) que afetam a estabilidade de tais relações (Varela, 1995VARELA, F. Sobre a competência ética. Lisboa: Edições 70, 1995.). Diante dessas desestabilizações das formas adotadas, de início em nossa atitude natural, são evocados micromundos e microidentidades já constituídos para lidar com o processo. Pela presteza com que se oferece à ação, a recorrência às formas já existentes é designada automatismo, que consiste na incorporação de modos previamente estabelecidos de relação com o mundo.

A participação observada no GIF indicou que a dinâmica estabelecida entre os participantes favorecia a recorrência a sentidos já existentes. Entendemos que a “participação por depoimentos e informes” pode ser considerada uma “participação automática”, pois punha em cena identidades e compreensões pré-existentes, com pequeno potencial de transformação.

Outro modo de lidar com os breakdowns consiste na criação de arranjos existenciais que envolvem o surgimento de novos sujeitos e mundos. Nesse caso, o breakdown se apresenta como perturbação na relação supostamente dada entre identidade e mundo. Há um colapso das microidentidades geralmente acionadas, pois elas já não oferecem a prontidão à ação exigida diante de uma situação vivida como inédita. Há uma ruptura na sensação de continuidade, que nos torna mais sensíveis à emergência de novas identidades e dos novos mundos que lhes são coextensivos.

Essa perturbação das relações dadas faz do breakdown uma ocasião privilegiada de manifestação da autonomia. Como a própria etimologia da palavra indica, a autonomia supõe a criação de regras que têm um “si” como referência (do grego auto: próprio, si mesmo; nomos: regras). Uma situação inesperada, que rompe com o automatismo, demanda a criação de novas regras que permitam uma ação apropriada (tanto no sentido de adequada à situação quanto no sentido de próprio, referente a um “si”). A constituição dessas regras equivale à criação de um “si” e de novos mundos para ele.

Essa criação autônoma não é uma escolha a ser feita pelos sujeitos, pois trata-se do surgimento dos sujeitos e mundos na experiência. Compreende-se, assim, que não é a autonomia de um indivíduo, mas uma dinâmica que permite a emergência de indivíduos e mundos. Nessas ocasiões de emergência de novos modos de estar no mundo, há ampliação da autonomia, pois se ampliam as possibilidades existenciais.

Como fruto do trabalho de manejo realizado com/no grupo, um efeito de coletivização permitiu a construção de outras formas de participar. Trata-se de um modo mais autônomo, pois mais permeável à reinvenção de si e do mundo. Quando as falas se entrecruzavam mais e os participantes interferiam nas histórias dos demais, abria-se espaço à construção coletiva de novos sentidos. A experiência do outro ressoava, fazia eco com experiências pessoais e gerava novas narrativas e experiências, transformadas pela experiência no/com o grupo. Essa forma de participação estava mais próxima de uma “participação autônoma”, isto é, menos determinada por automatismos. Essas duas maneiras de participar do grupo - automática e autônoma - nos mostrou que a participação na GAM não podia ser compreendida em termos de tudo ou nada. No início, à primeira vista, participávamos ativamente, com testemunhos, informes, comentários e providências. Como efeitos dessa forma de participação, reforçavam-se o isolamento entre as experiências, a reificação de identidades e a atribuição de responsabilidades individualizadas. Embora, de certo modo, todos participassem do grupo, não havia “contração de grupalidade” (Sade et al., 2013SADE, C. et al. O uso da entrevista na pesquisa-intervenção participativa em saúde mental: o dispositivo GAM como entrevista coletiva. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 18, n. 10, p. 2813-2824, 2013.).

Dar-se conta desses efeitos demandava reflexão - ou, podemos dizer, análise. Essa reflexão não era feita isoladamente, isto é, automaticamente, ela era um primeiro passo no/do grupo em direção a experiências de breakdown que favoreciam a autonomia. Abria-se espaço à emergência de microidentidades um tanto inéditas no grupo. As experiências narradas não eram mais o testemunho de um dado já vivido (Passos et al., 2018PASSOS, E. et al. A entrevista cartográfica na investigação da experiência mnêmica. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, DF, v. 38, n. 2, p. 275-290, 2018.), mas a expressão de sentidos coconstruídos no grupo, abertos à transformação. Cultivar esses modos de participação no grupo, incluindo a nossa, passou a ser uma direção do trabalho.

Portanto, a participação (na pesquisa, na intervenção) é transformadora, sendo ao mesmo tempo matéria e fonte de reflexões - refletimos sobre ela e graças a ela. Uma participação que “não move ninguém” (não comove aquele que fala e aquele que escuta) não gera reflexão nem análise (Ferrand, 2008FERRAND, C. (Coord.). Le croisement des pouvoirs: croiser les savoirs en formation, recherche, action. Paris: L’Atelier, 2008.), não produz conhecimento nem transforma realidades. Compreender a diferença entre os modos de participar foi a nossa pista para compreender o papel da análise na pesquisa-intervenção GAM. Analisar era refletir, ou melhor, correfletir sobre a participação - refletíamos coletivamente sobre nossas formas de estar no grupo e, de maneira circular, tais reflexões transformavam nossa participação, redistribuindo fronteiras e nos pondo em movimento.

“Participação automática” e “participação autônoma”

As duas formas de participação apontadas não têm a pretensão de esgotar a discussão a respeito da participação em grupos e nos grupos GAM. Entretanto, interessou-nos esse recorte a fim de abordar o problema da análise na pesquisa-intervenção participativa.

Em primeiro lugar, é importante ressaltar que, se a fórmula “pesquisa-intervenção” sempre aponta para a participação, ela não necessariamente indica qual qualidade da participação está em jogo. Quando a caracterizamos como “participativa”, referimo-nos à “participação autônoma”, procurando destacar essa qualidade de participação que nos põe em movimento, que gera, a um só tempo, conhecimento e transformação.

Em segundo lugar, aprendemos no GIF que a participação autônoma nem sempre se apresenta da forma como esperamos. Frequentar assiduamente uma reunião e manifestar-se não são necessariamente sinônimos de participar de maneira autônoma. A noção de recalcitrância (Despret, 2008DESPRET, V. The becomings of subjectivity in animal worlds. Subjectivity, Nova York, v. 23, n. 1, p. 123-139, 2008.; Latour, 2007LATOUR, B. Como falar do corpo? A dimensão normativa dos estudos sobre a ciência. In: NUNES, J.; ROQUE, R. Objectos impuros: experiências em estudos sociais da ciência. Porto: Afrontamento, 2007. p. 40-61.) indica que a complacência com os pesquisadores não é tão interessante quanto as objeções que os participantes lhe apresentam. Resistir às questões formuladas pelos pesquisadores transforma as relações entre sujeito e objeto na pesquisa e produz conhecimento. A qualidade da participação pode ser apreciada sob o critério da análise, que, à espreita de ocasiões de recalcitrância, põe a participação à prova da reflexão do/no grupo, gerando novas reflexões. A participação autônoma permite a transformação dos participantes em sujeitos da pesquisa e essa estratégia, para a GAM, é fundamental, pois está em consonância com seus próprios objetivos de promoção da autonomia e protagonismo dos usuários. Em outras palavras, o método da pesquisa-intervenção realiza os objetivos da estratégia GAM.

Quando a participação se dá de maneira mais autônoma, os modos de funcionamento instituídos no grupo são postos em análise, ampliando a abertura ao surgimento de novas articulações e sentidos, novas microidentidades e micromundos. Por outro lado, quando mais automatizada, a análise tende à ratificação dos domínios já instituídos e, assim, está ligada à produção de conhecimento e à transformação da realidade. Quando há apenas ratificação de identidades e mundos, não há propriamente conhecimento sendo produzido, nem há transformação no sentido psicoterápico ou socioanalítico de reposicionamento subjetivo.

Há, então, uma ligação íntima entre participação e análise: quanto mais a participação é autônoma, tanto mais ela é geradora de análises; e, simultaneamente, quanto maior a disponibilidade de análise, mais forte é a tendência à participação autônoma.

No GIF, a participação autônoma nem sempre era “engajada”, tal como tipicamente representada, e sequer podíamos afirmar que se tratava de uma direta no dispositivo de pesquisa: às vezes era uma participação indireta dos usuários (cujas experiências se faziam presentes no relato dos familiares), a presença tímida e silenciosa de alguém que nos mobilizava ou até mesmo a ausência de alguém que se mostrava fonte de análises (como ocorreu, por exemplo, quando o GIF passou longos períodos sem a presença de um trabalhador).

Uma recusa em participar de determinados espaços associativos pode ser ocasião de análise, permitindo colocar em xeque os pressupostos da própria investigação (Despret, 2004DESPRET, V. Hans, le cheval qui savaient compter. Paris: Les Empêcheurs de Penser en Rond, 2004., 2013). A análise tem a dupla função de permitir tanto a produção de conhecimento sobre a situação específica e concreta de investigação quanto a transformação dos dispositivos, ampliando possibilidades de participação.

Discutindo esse tipo de recusa, Callon e Rabeharisoa (1999CALLON, M.; RABEHARISOA, V. La leçon d’humanité de Gino. Réseaux, Paris, v. 17, n. 95, p. 197-233, 1999.) realizaram uma investigação junto a um portador de uma doença genética que se recusava a participar de todas as formas instituídas de associação destinadas aos portadores dessa doença. Pondo em análise a compreensão automática de que essa recusa corresponderia à falta de mobilização e consciência política, os autores compreendem-na como recalcitrância. Essa recusa se torna um modo de questionar as condições do debate público tal como ele é frequentemente concebido, no qual a oposição entre a esfera pública e a privada definem a autonomia como um voluntarismo individual diante de escolhas pré-fabricadas. Nesse sentido, autonomia seria a propriedade de um indivíduo capaz de escolher racionalmente entre opções já dadas - supostamente o único modo de evitar a irracionalidade e dependência. Quando iniciamos o GIF, encontramos entre os familiares uma situação análoga: as familiares não mostravam qualquer interesse em constituir uma associação de usuários e familiares, apesar da insistência dos trabalhadores e do entusiasmo dos universitários com a proposta (Ramos, 2012RAMOS, J. F. C. A autonomia como um problema: uma pesquisa a partir da realização do dispositivo GAM em um CAPS fluminense. 2012. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2012.; Renault, 2015RENAULT, L. A análise em uma pesquisa-intervenção participativa: o caso da gestão autônoma da medicação. 2015. Tese (Doutorado em Psicologia) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2015.). As opções pareciam pré-definidas: “participar” equivaleria necessariamente a empenhar-se na criação da associação; a alternativa seria ratificar as identidades dos familiares como desmobilizadas e dependentes.

Entretanto, o que parecia falta de mobilização e fraca participação nas discussões sobre saúde mental pôde ser posto em análise e compreendido em sua dimensão de recalcitrância. Progressivamente, o desinteresse foi compreendido como recusa ativa à distribuição de responsabilidades individuais no serviço de saúde mental. As identidades “desmobilizadas” sofreram um abalo e novas possibilidades (de compreensão e de transformação subjetiva) se abriram. Rompendo o automatismo das participações, apareceu o receio dos familiares ante um possível isolamento e perda de ajuda dos trabalhadores em um contexto de grande precariedade.

Compreendemos com isso que formas de participação bastante atípicas sob o ponto de vista das associações instituídas não são, forçosamente, formas de “não-participação” absoluta ou de desmobilização. No GIF, analisar coletivamente a resistência à constituição da associação nos levou a compreender a demanda dos familiares por um acompanhamento mais próximo dos trabalhadores. Em função da fragmentação da rede de atenção psicossocial no município e seu baixo índice de articulação com demais serviços da rede, os familiares compartilhavam a sensação de sobrecarga: foram inúmeros relatos de acúmulo de responsabilidades e falta de apoio no cuidado de seus parentes. Ao assumirem um papel mais ativo, os familiares receavam perder o apoio dos trabalhadores e exercer funções que caberiam ao serviço, temendo ficar ainda mais sozinhos para lidar com as dificuldades.

Questionar os automatismos da participação exigia também questionar as formas de estabelecer as fronteiras entre o público e o privado. A não participação em certas formas instituídas de associação equivalia a uma recusa (de caráter político e público) de determinado modo de separar as esferas íntima e coletiva, bem como às alternativas que se apresentavam como dadas (Callon; Rabeharisoa, 1999CALLON, M.; RABEHARISOA, V. La leçon d’humanité de Gino. Réseaux, Paris, v. 17, n. 95, p. 197-233, 1999.).

De modo aparentemente paradoxal, produzir conhecimento sobre a recusa em participar de uma associação foi ocasião de um deslocamento de ponto de vista e reposicionamento diante da questão: novos modos de estar no GIF se produziram e possibilitaram, mais tarde, a construção coletiva de uma associação de usuários e familiares (Renault, 2015RENAULT, L. A análise em uma pesquisa-intervenção participativa: o caso da gestão autônoma da medicação. 2015. Tese (Doutorado em Psicologia) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2015.). Produção de conhecimento e transformação de realidade se articulavam em torno das mudanças pelas quais passavam o par análise-participação.

Análise participativa e autonomia coletiva

A participação autônoma não pode ser caracterizada de antemão por certas características pré-definidas. Ela não corresponde necessariamente ao ativismo político, ao engajamento em uma associação ou mesmo à assiduidade aos encontros de um grupo. Quais são, então, os indicadores da participação autônoma?

Para desenvolver essa questão, podemos acompanhar algumas das transformações que aconteceram durante o GIF. Os primeiros passos do GGAM propõem que cada usuário reflita sobre si, suas preferências e perspectivas de trabalho, bem como o modo como se cuida e se relaciona com outras pessoas, entre outros assuntos ligados ao cotidiano. Uma vez que o Guia dirigido aos usuários era debatido por familiares, nossa expectativa era que elas pudessem responder a tais perguntas tentando imaginar como seus parentes se manifestariam diante dessas questões.

Porém, causou surpresa as familiares começaram a responder em nome delas próprias. Por exemplo, à pergunta “Como você se apresenta para quem quer conhecer um pouco de você?”, as familiares respondiam “Sou fulana, moro em tal lugar…”. Diante dessas respostas, reiterávamos a proposta de discutir como as familiares achavam que seus parentes (os usuários) se posicionariam sobre as questões. Nossa insistência na proposta inicial suscitava respostas vagas, tais como “não sei…” ou “não acho que ele seria capaz de se apresentar a alguém”, demonstrando não haver interesse por parte das familiares nessa forma de discussão.

Esse modo de participação nos obrigou a rever nosso posicionamento em relação às experiências trazidas pelo grupo: não era possível discutir o GGAM com as familiares desconsiderando as experiências destas em relação aos debates provocados pelo guia. As experiências dos usuários e familiares não estavam separadas: produzir conhecimento acerca da experiência do outro era também pôr em análise experiências próprias. Para discutir a experiência de uma mãe ao acompanhar o cotidiano e o cuidado de seu filho, fez-se necessário acolher suas próprias experiências de cuidado consigo. A recusa inicial das familiares em discutir a perspectiva dos usuários representou um breakdown em relação aos objetivos propostos inicialmente. Foi necessário pôr em análise o automatismo da pesquisa, que, diante da recusa dos familiares em participar da maneira prevista, precisou rever seu manejo e objetivos.

Gradativamente, as familiares compartilharam suas próprias experiências, cuja legitimidade as universitárias apontavam compreender a partir de determinado ponto de vista (apontando para a possibilidade da existência de outros). No decorrer dos encontros, foi se produzindo um modo de compartilhamento que nem sempre permitia identificar a quem pertencia a experiência que estava sendo compartilhada, se à familiar ou ao usuário.

Para as familiares, a possibilidade de pôr em análise suas próprias vivências em um dispositivo coletivo permitiu maior abertura individual para compreender perspectivas distintas. Com isso, aos poucos a permeabilidade do grupo a pontos de vista diferentes foi se expandindo, favorecendo a percepção de outros modos de experimentar as questões, incluindo a experiência dos usuários. O ponto de vista dos usuários emergiu graças à expansão da autonomia do GIF, não devido ao automatismo da pesquisa.

Nesse exemplo, identificamos dois índices de aumento da participação autônoma. Primeiro, o aumento do concernimento em relação a pontos de vista distintos, de modo que as universitárias se viram obrigadas a ampliar os referenciais da pesquisa, incluindo a experiência das familiares. Já estas partiram de suas experiências individuais, passando pelas dos outros familiares presentes, até chegarem aos usuários.

O segundo índice é relativo a um aumento da permeabilidade para o surgimento de novos arranjos existenciais. A realização do grupo propiciou o surgimento de situações que representavam breakdowns para os automatismos de universitárias e familiares. Observamos que, em vez de reproduzirem as formas já instituídas de lidarem com as situações, construiu-se outro modo vivenciá-las, expandindo o potencial criativo do grupo.

Levar em conta os elos de dependência entre os diferentes pontos de vista permite acolher o potencial criativo de si e do mundo. No GIF, a experiência dos familiares não excluía a experiência dos usuários, ao contrário: acolhendo a experiência de uns, encontrávamos a experiência de outros, em uma composição coletiva. Por isso referimo-nos à “autonomia” que qualifica a participação como uma “autonomia coletiva”: ela não é um atributo de um indivíduo, nem se confunde com a independência de um sujeito. Ela supõe a inclusão da experiência em sua dimensão coemergente e o acolhimento da alteridade. Graças à análise no/do GIF, foi possível pôr em xeque os automatismos universitários e transformar o manejo do grupo quando necessário. Ao invés de nos perguntarmos por que não havia participação autônoma, buscamos pôr em análise nossas participações automáticas e nossas preconcepções acerca da participação. Quando familiares se ausentavam do grupo, procurávamos analisar coletivamente nas supervisões o que estava se passando. Nessas ocasiões, percebíamos que nossas experiências como moderadoras estavam intimamente ligadas às das familiares e acessar o ponto de vista delas nas supervisões permitia nosso reposicionamento e a transformação do trabalho de pesquisa-intervenção. Assim, a não participação era analítica, pois nos fazia encontrar novas formas de participação. Como indica a Clinique de Concertation:66CLINIQUE de Concertation. [S. l.], c2017. Disponível em: <http://concertation.net>. Acesso em: 3 out. 2019. Agradecemos a Lemaire e ao trabalho da Clinique de Concertation as observações sobre a presença dos ausentes.

Se os membros das famílias não estão onde esperamos, eles devem estar onde não esperamos, nos interstícios, entre as instituições, entre as profissões. O que significa dizer que, por sua recusa, eles nos propõem um outro tipo de trabalho, não fechado, coletivo, que poderia ser interessante adotar. (Halleux; Lemaire, 2006HALLEUX, L.; LEMAIRE, J. M. Combien d’oreilles pour une écoute constructive? La Clinique de Concertation. L’Observatoire, Liège, n. 50, p. 85-88, 2006. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2oCWVf9 >. Acesso em: 02 out. 2019.
https://bit.ly/2oCWVf9...
, tradução nossa)

Paradoxalmente, a participação autônoma não se limita à participação dos presentes em determinada reunião ou encontro. Ela diz respeito também à abertura ao outro e à presença de “ausentes” (Halleux; Lemaire, 2006HALLEUX, L.; LEMAIRE, J. M. Combien d’oreilles pour une écoute constructive? La Clinique de Concertation. L’Observatoire, Liège, n. 50, p. 85-88, 2006. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2oCWVf9 >. Acesso em: 02 out. 2019.
https://bit.ly/2oCWVf9...
), apontando para uma dimensão pública. Acessar a experiência dos familiares no GIF nos levava à experiência dos usuários, que, por sua vez, convocava a dos trabalhadores do serviço, dos trabalhadores da rede, dos cidadãos do município… Cada experiência comportava experiências de outrem, construindo um horizonte público do qual não se podia determinar de antemão quem faria parte.

Algumas questões do GGAM pareciam à primeira vista se referir apenas à vida privada dos usuários (como as sobre cuidados pessoais ou relacionamentos amorosos), mas elas não estavam separadas da esfera da cidadania. A oposição entre público e privado não se devia propriamente à natureza das questões, mas ao grau de abertura ao potencial inclusivo e expansivo que adotávamos diante delas. A participação autônoma tende a um horizonte de inclusão cujos limites não estão predefinidos, remetendo a um trabalho sempre aberto, em construção permanente.

Considerações finais

A análise na pesquisa-intervenção é inseparável da participação, pois, como instrumento de produção de conhecimento, ela nos permite discernir entre diferentes tipos de qualidade da participação e entrecruzar pontos de vista distintos. Como ferramenta de intervenção, a análise transforma a participação, rompendo automatismos e fomentando a autonomia.

Ao mesmo tempo, a passagem da “participação automática” à “participação autônoma” permite que a análise se torne uma tarefa efetivamente coletiva. Analisar deixa de ser atividade exclusiva dos pesquisadores universitários, reservada a peritos, para ser pública de direito, convidando a participação de todos. Em um movimento circular, participação e análise remetem continuamente uma à outra, garantindo à pesquisa-intervenção sua abertura.

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  • VILLASANTE, T. R. Historias y enfoques de una articulación metodológica participativa. Cuadernos CIMAS, Madri, p. 1-18, 2010.

  • 1
    Cf. <https://bit.ly/2Bg0afX>.
  • 2
    O GGAM encontra-se disponível em <https://bit.ly/2n1358H>.
  • 3
    Ao longo do texto, um problema linguístico se impôs: que gênero utilizar para designar os e as participantes da pesquisa? Em especial quando tratamos de familiares, o uso da generalização no masculino gera desconforto: são as mulheres, sobretudo as mães, as protagonistas no cuidado de usuários e usuárias. No país, muitas famílias são geridas por mulheres e, em muitos espaços, o cuidado ainda é visto como tarefa primordialmente feminina. Essa realidade se refletia na composição do GIF, formado em sua maioria por mulheres (ainda que - ou até por isso - a presença ocasional de dois pais e de um irmão fosse significativa e importante). No GIF, ao contrário do GIU realizado no mesmo Caps, as pesquisadoras universitárias e as trabalhadoras também eram mulheres, o que trouxe a questão de gênero para o cerne da descrição concreta da experiência de pesquisa, contrastando com a descrição abstrata no masculino. Evitamos buscar uma solução rápida para essa questão e optamos por manter o texto com as flutuações de gênero (generalizações masculinas, designações ambíguas e formas femininas) como um modo de “permanecer com o problema” (Haraway, 2016HARAWAY, D. J. Staying with the trouble. Durham: Duke University Press, 2016.).
  • 4
    Enfatizamos aqui que a pesquisa-intervenção sempre aponta para a participação, mas pode-se muito bem enfatizar a ideia inversa. Como nos indicam Rocha e Aguiar (2003, p. 66ROCHA, M. L.; AGUIAR, K. F. Pesquisa-intervenção e a produção de novas análises. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, DF, v. 23, n. 4, p. 64-72, 2003.), “A pesquisa-intervenção consiste em uma tendência das pesquisas participativas que busca investigar a vida de coletividades na sua diversidade qualitativa, assumindo uma intervenção de caráter socioanalítico”.
  • 5
    Tal distinção já nos inspirara, em uma pesquisa sobre a memória, a elaborar as categorias de “automatismo”, “controle egoico” e “autonomia” para nos referirmos aos graus de abertura em relação à experiência (Passos et al., 2018PASSOS, E. et al. A entrevista cartográfica na investigação da experiência mnêmica. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, DF, v. 38, n. 2, p. 275-290, 2018.).
  • 6
    CLINIQUE de Concertation. [S. l.], c2017. Disponível em: <http://concertation.net>. Acesso em: 3 out. 2019. Agradecemos a Lemaire e ao trabalho da Clinique de Concertation as observações sobre a presença dos ausentes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    10 Ago 2019
  • Aceito
    17 Set 2019
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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