Saúde pública e inovações tecnológicas para abastecimento público

Public health and technological innovations for public supply

Nathalie Cruz José Carlos Mierzwa Sobre os autores

Resumo

A escassez de água em metrópoles brasileiras tem se agravado em função das características de seu próprio desenvolvimento. A expansão urbana desordenada e próxima a mananciais, junto com a falta de infraestrutura para estes novos núcleos habitacionais, tem favorecido a degradação dos mananciais utilizados para abastecimento público. Em razão disto, a população fica mais suscetível às doenças de veiculação hídrica. Independentemente dos tipos de contaminantes presentes na água, busca-se aprimorar as tecnologias tradicionalmente empregadas nos processos de tratamento hídrico a fim de garantir uma água segura para o abastecimento da população, sem considerar as inovações tecnológicas neste setor. Assim, o presente estudo busca evidenciar a necessidade de melhorar as ações de tratamento de água e esgotos realizadas atualmente no país, em função dos riscos associados à saúde pública. Busca-se também analisar o reúso potável direto e como esta prática pode ser uma solução para promover uma água de qualidade e suprir a demanda de grandes centros urbanos em situação de escassez hídrica.

Palavras-chave:
Reúso Urbano; Inovação Tecnológica; Saúde Pública

Abstract

Water scarcity in Brazilian metropolises has been aggravated by the characteristics of their very development. The disordered urban expansion near fountainheads and the lack of infrastructure for new housing units has contributed to the degradation of water sources used for public supply. This causes the population to be more susceptible to waterborne diseases. Regardless of the various types of contaminants present in the water, the improvement of traditional technologies used in the water treatment process and wastewater treatment is sought after to promote safe water supply to the population, without considering technological innovations on the sector. This study aims to demonstrate the ineffectiveness of treatment processes currently used in Brazil and the risks to public health. We also analyze the direct potable reuse and how this practice can be a solution to promote water quality and meet the demand of large urban centers in situations of water scarcity.

Keywords:
Urban Reuse; Technological Innovation; Public Health

Introdução

Há alguns anos as principais regiões metropolitanas do Brasil vêm sofrendo escassez de água, principalmente no Sudeste. O problema se agrava tanto pelas mudanças climáticas quanto por questões pontuais de grandes centros urbanos, como crescimento populacional, ocupação desordenada na área urbana e perto de mananciais, mudanças no ambiente hidrológico (diminuição do tempo de concentração) e a falta de planejamento das concessionárias de saneamento (falta de estudos de demanda e oferta de água, bem como de infraestrutura e fornecimentos intermitentes), intensificando a situação (Britto; Maiello; Quintslr, 2019BRITTO, A. L.; MAIELLO, A.; QUINTSLR, S. Water supply system in the Rio de Janeiro Metropolitan Region: open issues, contradictions, and challenges for water access in an emerging megacity. Journal of Hydrology, Amsterdam, v. 573, p. 1007-1020, 2019.; Rodrigues; Villela, 2016RODRIGUES, C.; VILLELA, F. N. J. Disponibilidade e escassez de água na Grande São Paulo: elementos-chave para compreender a origem da atual crise de abastecimento. Geousp, São Paulo, v. 19, n. 3, p. 399-421, 2016.).

Apesar da notória disponibilidade de água no país e da melhora nos índices de atendimento com os serviços de saneamento, segundo o último senso do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2008IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa nacional de saneamento básico. Rio de Janeiro, 2008. Disponível em: <Disponível em: http://bit.ly/2D4UUN3 >. Acesso em: 18 abr. 2018.
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), o Brasil ainda não chegou na universalização destes serviços, pois 99,4% dos municípios possuem rede de distribuição de água e apenas 55,2% contam com rede coletora de esgotos. Dados mais recentes mostram que apenas 51,92% dos municípios atendidos com água possuem rede coletora de esgotos, e que somente 74,87% do esgoto coletado segue para tratamento (Brasil, 2018BRASIL. Ministério da Saúde. Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Org.). Cadernos de informação de saúde. Brasília, DF, 2009. Disponível em: <Disponível em: http://bit.ly/348GrLM >. Acesso em: 30 jul. 2018.
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). Isto posto, pode-se inferir que a maior parte dos esgotos domésticos e industriais gerados chega aos corpos receptores sem tratamento adequado, favorecendo o aumento de matéria orgânica, nutrientes e de contaminantes como metais tóxicos, compostos orgânicos persistentes e poluentes emergentes (fármacos, agrotóxicos, detergentes e hormônios). A questão da seca intensifica esta situação, já que a vazão natural dos mananciais é reduzida e, com isso, o lançamento contínuo de águas residuais passa a ser a maior contribuição na deterioração dos mananciais utilizados para abastecimento, além de inflacionar os custos com tratamento de água e aumentar os casos de doença por veiculação hídrica (Tran; Jassby; Schwabe, 2017TRAN, Q. K.; JASSBY, D.; SCHWABE, K. A. The implications of drought and water conservation on the reuse of municipal wastewater: recognizing impacts and identifying mitigation possibilities. Water Research, Amsterdam, v. 124, p. 472-481, 2017.).

Atualmente os processos de tratamento de água e esgoto são baseados em seus custos, e não na implantação da melhor tecnologia que promova uma água segura. No Brasil, as estações de tratamento de esgoto (ETE) atuam na remoção de nutrientes e sólidos em suspensão, não sendo eficientes na remoção de íons divalentes e monovalentes. Já as estações de tratamento de água (ETA) são responsáveis por retirar material em suspensão e coloidal, patógenos e algas, porém são ineficazes com os micropoluentes. Por outro lado, processos avançados de tratamento são capazes de remover essas substâncias e promovem um efluente com melhor qualidade, podendo ser incorporados nas etapas de tratamento de águas residuais e em sistemas de tratamento de água potável. Por conta dessa grande variabilidade de contaminantes presentes nas águas utilizadas para o abastecimento, se faz necessário aprimorar os processos de tratamento com a melhor tecnologia disponível para promover uma água segura (Mierzwa, 2017MIERZWA, J. C. Processos de separação por membranas de água e efluentes. São Paulo: Vídeo, 2017. 48 slides, color.; Simões, 2016SIMÕES, C. P. P. Avaliação operacional e remoção de bisfenol-a no tratamento de água por diferentes tipos de membranas: avaliação em escala piloto. 2016. Dissertação (Mestrado em Tecnologia Ambiental e Recursos Hídricos) - Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2016. Disponível em: <Disponível em: http://bit.ly/2DaSn3G >. Acesso em: 13 maio 2017.
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; Tran; Jassby; Schwabe, 2017TRAN, Q. K.; JASSBY, D.; SCHWABE, K. A. The implications of drought and water conservation on the reuse of municipal wastewater: recognizing impacts and identifying mitigation possibilities. Water Research, Amsterdam, v. 124, p. 472-481, 2017.).

Assim, o presente trabalho aborda o sistema de reúso potável indireto que vem ocorrendo nos mananciais de abastecimento e os riscos associados à saúde pública. Em seguida, analisa-se o reúso potável direto e como esta prática pode ser uma solução para as metrópoles brasileiras.

Reúso potável indireto e saúde pública

Por conta dos desequilíbrios ecológico-ambientais, junto com os desarranjos gerados pela urbanização e a falta de saneamento, algumas práticas utilizadas nos sistemas de tratamento de água e esgoto colocam em risco a população, favorecendo o surgimento de doenças. Uma dessas práticas é o reúso potável indireto, comumente utilizado no país, quando os esgotos, após tratamento ou não, são dispostos em mananciais superficiais ou subterrâneos para diluição e na cidade à jusante, posteriormente captados, tratados e distribuídos para os diversos fins.

O reúso potável indireto, planejado ou não, tem sido empregado porque acreditava-se que um manancial poderia receber efluentes domésticos, por estes estarem livres de contaminantes como micropoluentes complexos, orgânicos e inorgânicos, característicos de efluentes industriais. Porém, o cenário atual mostra o contrário: estudos já detectaram a presença de um grupo desse tipo de contaminantes, denominados de disruptores endócrinos, em afluentes e efluentes de ETE por lodos ativados na Itália; em São Paulo constatou-se a presença de hormônios naturais e sintéticos no reservatório Guarapiranga, em amostra tomada da ETA Alto da Boa Vista (Hespanhol, 2015HESPANHOL, I. A inexorabilidade do reúso potável direto. Revista Dae, São Paulo, v. 63, n. 198, p. 63-82, 2015b.a).

Essa prática deve ocorrer quando se tem mananciais protegidos e livres de efluentes com contaminantes que os sistemas de tratamento empregados são incapazes de remover. Porém, tal forma de reúso tem ocorrido em mananciais poluídos, como em São Paulo, ao longo do rio Tietê e do Paraíba do Sul, e na reversão da Represa Billings para a Guarapiranga, já que as águas desta seguem para ETA por meio de sistema convencional (Hespanhol, 2015HESPANHOL, I. Reúso potável direto e o desafio dos poluentes emergentes. Revista USP, São Paulo, n. 106, p. 79-94, 2015a.a).

Segundo estudo de Giatti (2007GIATTI, L. L. Reflexões sobre água de abastecimento e saúde pública: um estudo de caso na Amazônia brasileira. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 16, n. 1, p. 134-144, 2007.), este tipo de reúso também tem sido observado no estado do Amazonas, demonstrando que a situação é a mesma em diversas regiões do país. Por falta de coleta e tratamento, os igarapés recebem efluentes que chegam ao Rio Negro, à montante do ponto de captação para abastecimento público, e apesar de o Rio Negro ter grande capacidade de autodepuração de efluentes, ele já não suporta a carga recebida e está poluído. Somado a isso, os hábitos regionais favorecem o aumento das doenças de veiculação hídrica. No Norte do país os ribeirinhos utilizam a água do Rio Negro para a maior parte de suas atividades diárias, desde lavagem de roupas e utensílios até higiene pessoal.

Embora se acredite que em metrópoles a situação seja diferente, em alguns bairros de São Paulo que beiram o reservatório Billings, por falta de infraestrutura de abastecimento, os moradores utilizam-se de poços artesianos para consumo, cujas águas estão contaminadas por metais pesados, afetando a saúde da população local (Santana, 2018SANTANA, F. São Paulo e as cidades do Cabo e do México vivem uma grave crise hídrica. G1, [s.l.], 22 jul. 2018. Disponível em: <Disponível em: https://glo.bo/34eC8i3 >. Acesso em: 21 ago. 2018.
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).

A pouca infraestrutura de saneamento em regiões normalmente mais pobres e afastadas favorece o aparecimento de doenças de veiculação hídrica. Segundo o Ministério da Saúde (Brasil, 2009BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.914, de 12 de dezembro de 2011. Dispõe sobre os procedimentos de controle e de vigilância da qualidade da água para consumo humano e seu padrão de potabilidade. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 14 dez. 2011. Disponível em: <Disponível em: http://bit.ly/2OjUPeU >. Acesso em: 18 abr. 2018.
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), o índice de doenças infecciosas e parasitárias no país foi de 8,3%. O índice de cada região é apresentado no Gráfico 1.

Gráfico 1
Índice de doenças infeciosas e parasitárias por região do país

Além de doenças infecciosas e parasitárias, os contaminantes orgânicos e inorgânicos chamados de disruptores endócrinos, já mencionados, são capazes de gerar disfunções endócrinas e perturbação hormonal em seres saudáveis. Neste grupo estão substâncias como fármacos, pesticidas, hormônios e toxinas, muitos dos quais não são biodegradáveis ou removidos pelos sistemas de tratamento de esgoto, causando incertezas quanto aos seus efeitos a longo prazo (Hespanhol, 2015HESPANHOL, I. A inexorabilidade do reúso potável direto. Revista Dae, São Paulo, v. 63, n. 198, p. 63-82, 2015b.a; Rezende, 2010REZENDE, C. C. S. Reúso potável de esgoto sanitário: possibilidades e riscos. 2010. Dissertação (Mestrado em Ciências) - Universidade de São Paulo, São Carlos, 2010. Disponível em: <Disponível em: http://bit.ly/35rRD6o >. Acesso em: 18 jun. 2018.
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).

Quando seres de vida selvagem são expostos a disruptores endócrinos, sofrem impactos no sistema reprodutor e imunológico, reduzindo severamente o número de populações. Em humanos, há efeitos relacionados ao sistema reprodutivo: pesquisas demonstraram o declínio da qualidade de esperma e aumento de abortos espontâneos. Além disso, o desenvolvimento neurológico e comportamental pode ser prejudicado quando o feto é exposto a alguns químicos na fase pré-natal. O contato com pesticidas e organoclorados também é capaz de ocasionar doenças como câncer de próstata. Outra preocupação, detectada na Austrália em rios na região de South East Queensland, é que apesar de alguns antibióticos não causarem efeito cíclico em humanos, por estarem em baixas concentrações nas águas superficiais, as descargas no ambiente acabaram tornando determinadas bactérias resistentes a estes fármacos (Rezende, 2010REZENDE, C. C. S. Reúso potável de esgoto sanitário: possibilidades e riscos. 2010. Dissertação (Mestrado em Ciências) - Universidade de São Paulo, São Carlos, 2010. Disponível em: <Disponível em: http://bit.ly/35rRD6o >. Acesso em: 18 jun. 2018.
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).

A grande questão é que saúde não equivale a mera ausência de doenças, mas à erradicação delas na sociedade, já que os determinantes patogênicos residem em todos os setores sociais e não apenas no da saúde. Desta forma, o saneamento possui duas perspectivas: prevenir enfermidades ou promover a saúde. A prevenção antecede o surgimento ou o agravamento de uma doença, criando uma barreira de contato entre seu vetor e os indivíduos, de forma a reduzir sua incidência ou garantir que sua manifestação seja amena, comprometendo fortemente o ciclo dos agentes biológicos, físicos e químicos. Neste ponto de vista, o saneamento seria parceiro do setor de saúde, e as doenças sinalizadoras estariam vinculadas à falta ou insuficiência de abastecimento de água de boa qualidade, à ausência de coleta e tratamento de águas residuais, dentre outros fatores, como manejo de resíduos sólidos, drenagem urbana e poluição do ar.

Já a promoção da saúde busca erradicar ou eliminar por longo tempo determinadas doenças, cujo aparecimento sinalizaria que algo não está bem e, a partir disto, definir ações assertivas e necessárias para intermediar a situação. Neste caso, os projetos de saneamento têm como objetivo implantar sistemas de engenharia, mas a preocupação maior seria com o seu funcionamento pleno, duradouro e acessível à toda população, não com a implantação propriamente dita (Souza, 2007SOUZA, C. M. N. Relação saneamento-saúde-ambiente: os discursos preventivista e da promoção da saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 16, n. 3, p. 125-137, 2007.).

Diante disso, para melhorar a saúde pública é preciso uma abordagem interdisciplinar, possibilitando a gestão dos recursos hídricos e a implementação de infraestrutura e tecnologias de saneamento, de forma a promover a saúde e erradicar as doenças entregando à população uma água segura.

Reúso potável direto e segurança no abastecimento

O cenário dos mananciais de abastecimento, os sistemas de tratamento ineficazes na remoção de poluentes e a escassez de água em metrópoles apontam o reúso potável direto como solução para promover a saúde.

Esta prática consiste no tratamento avançado de efluentes domésticos seguido por tratamento convencional ou avançado em ETA. Ou seja, traduz-se em tratar e reusar o esgoto gerado em áreas urbanas, favorecendo a redução do estresse hídrico nas metrópoles, complementando o abastecimento público e oferecendo uma água de qualidade à população.

Contudo, como não há um manancial que intermedeie os tratamentos, pois o esgoto tratado em ETE segue diretamente para uma ETA, existem algumas implicações no processo, entre elas, o aumento dos riscos à saúde humana e a resistência da população, que reage negativamente diante dessa fonte alternativa. Mas, valendo-se de tecnologia confiável e de campanhas educativas, é possível mitigar os riscos e aumentar a aceitação da população a essa prática (Rezende, 2010REZENDE, C. C. S. Reúso potável de esgoto sanitário: possibilidades e riscos. 2010. Dissertação (Mestrado em Ciências) - Universidade de São Paulo, São Carlos, 2010. Disponível em: <Disponível em: http://bit.ly/35rRD6o >. Acesso em: 18 jun. 2018.
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).

O reúso potável direto é seguro por contar com técnicas de certificação da qualidade hídrica que permitem produzir água a partir de esgotos domésticos, respeitando critérios econômicos e de saúde pública. A seguir, serão descritas resumidamente algumas tecnologias empregadas em sistemas desse tipo (Hespanhol, 2015HESPANHOL, I. A inexorabilidade do reúso potável direto. Revista Dae, São Paulo, v. 63, n. 198, p. 63-82, 2015b.b).

Membranas

No reúso potável direto utilizando membranas, estas são classificadas quanto ao tamanho de seus poros, podendo ser de microfiltração, ultrafiltração, nanofiltração e osmose reversa (OR). As membranas são responsáveis pela remoção de poluentes químicos tradicionais e emergentes, mesmo os de baixa massa molecular, como os disruptores endócrinos, e de organismos patogênicos de dimensões muito pequenas, por exemplo, os oocistos de Cryptosporidium spp. A Figura 1 exemplifica qual membrana atua em determinada faixa de remoção de contaminantes, em comparação com o sistema convencional de tratamento (coagulação e floculação).

Figura 1
Faixas de remoção de substâncias por processos de tratamento de água

Carvão ativado biológico

O carvão ativado biológico (CAB) atua por adsorção, degradação e filtração de substâncias, formando um biofilme que consome a matéria orgânica e gera subprodutos como água, dióxido de carbono e biomassa.

O processo se inicia pela ação de oxidante forte aplicado na entrada da unidade filtrante. Dessa maneira são removidos materiais orgânicos (geralmente biodegradáveis), não orgânicos (compostos estáveis e de difícil degradação) e organismos patogênicos contidos em águas superficiais ou subterrâneas.

Processos oxidativos avançados

Utilizados em efluentes que contenham traços de compostos orgânicos naturais ou sintéticos, os processos oxidativos avançados (POA) são responsáveis pela geração do radical livre hidroxila (OHº), um oxidante forte com capacidade de oxidar compostos não afetados por oxidantes convencionais, como oxigênio, ozônio e cloro, reduzindo a toxicidade por mineralizar completamente os contaminantes.

Os sistemas são estudados com base nas características do efluente a ser tratado, e, dependendo da qualidade deste, ainda se faz necessário empregar tecnologias avançadas na ETA, como membranas ou POA. Desta forma, após a caracterização do efluente é importante implantar uma estação piloto para identificar quaisquer problemas no processo e subsidiar o projeto a ser desenvolvido, tomando parâmetros de projetos reais e avaliando os custos associados.

Uma grande barreira à implantação de sistemas avançados no país tem sido de caráter econômico. Atualmente, pensa-se no custo da tecnologia a ser empregada e não no da produção de uma água segura. Segundo estudo de Mierzwa (2009MIERZWA, J. C. Desafio para o tratamento de água de abastecimento e o potencial de aplicação do processo de ultrafiltração. 2009. Tese (Livre-Docência em Engenharia Hidráulica e Sanitária) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.), apesar de os sistemas convencionais custarem muito menos que um processo de tratamento com membranas, quando a qualidade da água de um manancial está comprometida e é necessário aprimorar o sistema convencional (por exemplo, com carvão ativado) esses custos chegam a se equiparar.

Conforme exposto, a segurança da prática e a escassez hídrica global fizeram o reúso potável direto ser aplicado em diversos países, como Austrália, África do Sul, Estados Unidos e na Namíbia, que desde 1968 não tem problemas de saúde pública associados à prática (Cunha, 2008CUNHA, V. D. Estudo para proposta de critérios de qualidade da água para reúso urbano. 2008. Dissertação (Mestrado em Engenharia Hidráulica e Saneamento Ambiental) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. Disponível em: <Disponível em: http://bit.ly/2OFjzNm >. Acesso em: 11 jul. 2018.
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; Hespanhol, 2015HESPANHOL, I. A inexorabilidade do reúso potável direto. Revista Dae, São Paulo, v. 63, n. 198, p. 63-82, 2015b.b).

No Brasil, a equipe de Hespanhol (2017HESPANHOL, I. Direct potable reuse in Brazil: a pilot plant study. In: INTERNATIONAL DESALINATION ASSOCIATION WORLD CONGRESS, 2017, São Paulo. Anais… São Paulo: IDA, 2017. p. 1-13.) desenvolveu um estudo com uma estação piloto de reúso potável direto na ETE Capivari II, localizada no município de Campinas. Esta estação é composta por membranas de OR, POA, carvão ativado granular (CAG) e CAB, seguido de processos de desinfecção (PD).

Após as análises, os resultados obtidos demonstram que a qualidade do efluente final está de acordo com a maior parte das variáveis da Portaria do Ministério da Saúde nº 2.914, de 12 de dezembro de 2011, que trata dos padrões de qualidade da água para abastecimento público, com remoção de cor, coliformes e Escherichia coli, ferro, manganês, sulfato e nitratos. Além disso, as unidades complementares dos arranjos tiveram desempenho significativo na remoção de bactérias heterotróficas (100%), sulfato (99%), manganês (>98%), total de sólidos dissolvidos (95%), sódio (94%), dureza total (>93%), cor aparente (>88%), alumínio (42%), níquel (>37%) e zinco (28%).

Neste estudo, além das variáveis recomendadas pela Portaria nº 2.914/2011, foram realizadas análises de toxicidade, mutagenicidade, vírus e hormônios, de forma a caracterizar melhor o efluente final da estação de reúso. Os resultados indicaram toxicidade na maioria das amostras após a cloração, mas não no arranjo com OR/POA/PD. Em relação às análises de mutagenicidade, não foi indicado nenhum potencial mutagênico nas amostras analisadas, como também não foram encontrados vírus entéricos.

Isto demonstra uma defasagem nos padrões utilizados no país, em função da grande variabilidade de compostos existentes, sendo necessário que a legislação contemple um maior grupo de contaminantes. A lei não deve utilizar os parâmetros de forma pontual, o que torna o processo complexo, exigindo a análise de muitos parâmetros individualmente. É importante que os dispositivos legais recorram a parâmetros que identifiquem grupos de contaminantes e seus efeitos quando substâncias estão em sinergia no meio, facilitando a identificação destes grupos e abrangendo novos contaminantes. Desta forma, utilizar variáveis de controle (indicadores que abrangem diversas substâncias) de acordo com a realidade dos mananciais brasileiros facilita a identificação, o monitoramento e o aprimoramento das tecnologias empregadas nos sistemas de saneamento.

Considerações finais

A escassez, a distância e a poluição de mananciais tornam pouco viável a prática do reúso potável indireto. Os sistemas de tratamento tradicionais, tanto para águas residuárias como para água potável, já não são suficientes para promover uma água segura à população. Por isso, é necessário aprimorar as tecnologias capazes de remover contaminantes orgânicos, inorgânicos e organismos patogênicos que os processos comumente utilizados não são. Em paralelo, a fim de atender à realidade dos mananciais, é essencial aprimorar instrumentos legais para monitorar os processos utilizados.

Este estudo demonstra que o saneamento é uma medida de promoção à saúde, através da implantação de sistemas de engenharia, e também é uma medida de prevenção por criar múltiplas barreiras à contaminação, de forma a garantir a segurança da água através de mananciais protegidos, com coleta e tratamento de esgotos, uso e ocupação do solo de forma ordenada e distante dos mananciais utilizados para abastecimento. Estas medidas são recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (WHO, 2017WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Guidelines for drinking water quality. 4. ed. Genebra, 2017.), por meio do Plano de Segurança da Água, que abrange questões sobre tecnologias e medidas de conservação hídrica.

Conforme demonstrado, o reúso potável direto pode ser uma solução tanto para a crise hídrica, suprindo a demanda local sem a necessidade de buscar fontes distantes, como para fornecer uma água segura à população.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Fev 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    12 Mar 2019
  • Aceito
    26 Set 2019
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br