Resumo
O estudo analisou as manifestações de violência institucional na atenção em saúde às mulheres em situação de violência sexual. Pesquisa qualitativa baseada em entrevistas semiestruturas com 68 profissionais e 15 gestores atuantes em nove serviços da rede municipal de saúde em Fortaleza, Ceará, Brasil. A análise foi organizada em quatro temáticas: invisibilidade da violência sexual; violência no acolhimento à mulher; limitações estruturais, de medicamentos e de insumos; e atuação frente ao aborto legal. Os resultados revelaram o não reconhecimento da violência sexual como objeto de intervenção no setor saúde e um acolhimento à mulher marcado por omissões, falta de privacidade e atitudes discriminatórias. As condições estruturais e a escassez de medicamentos e insumos foram colocadas como limitantes para o atendimento. O aborto legal envolveu conflitos culturais, gerenciais e institucionais que favoreceram a violação de direitos. Conclui-se que a violência institucional no contexto da atenção às mulheres em situação de violência sexual extrapola questões de ordem subjetiva e de formação dos profissionais de saúde. E a oferta de uma atenção integral capaz de transpor a violência institucional requer que a gestão repense a configuração dos serviços da rede de atendimento e esteja próxima dos atores envolvidos.
Palavras-chave:
Violência; Violência Sexual; Serviços de Saúde; Saúde da Mulher; Aborto Legal
Introdução
Os princípios epistêmicos e operacionais do sistema de saúde brasileiro preconizam atenção à saúde de modo equânime, reiterando a universalidade e integralidade da atenção (Paim et al., 2011PAIM, J. et al. The Brazilian health system: history, advances, and challenges. The Lancet, Londres, v. 9779, n. 377, p. 1778-1797, 2011.). O Brasil vai além, ao decretar que esta atenção deve se organizar em rede articulada, qualificada e resolutiva, legalizando documentos normativos e corresponsabilizando gestores a cumprir a legislação na organização de redes de atenção à saúde (Brasil, 2011BRASIL. Decreto nº 7.508, de 28 de junho de 2011. Regulamenta a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a organização do Sistema Único de Saúde-SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 29 jun. 2011. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2ZJXvq0 >. Acesso em: 12 jul. 2018.
https://bit.ly/2ZJXvq0... ).
A despeito dos avanços normativos para constituição de serviços de referência no atendimento às mulheres em situação de violência sexual (VS), a institucionalização de práticas humanizadas ainda enfrenta a reprodução de estereótipos de gênero e a ausência de fluxos de atendimento que evitem a violação de direitos (Alcaraz et al., 2014ALCARAZ, C. L. et al. Formación y detección de la violencia de género en la profesión sanitária. Revista de Enfermagem da UFSM, Santa Maria, v. 4, n. 1, p. 217-226, 2014.; Cavalcanti et al., 2015CAVALCANTI, L. F. et al. Implementação da atenção em saúde às violências sexuais contra as mulheres em duas capitais brasileiras. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 39, n. 107, p. 1079-1091, 2015.). Dessa forma, percebe-se que, nesses serviços, a violência institucional (VI) capilariza-se e assume formatos que negam os avanços nesse complexo campo de atuação.
Toma-se por VI aquela praticada nas instituições prestadoras de serviços públicos e/ou privados perpetrada por agentes que deveriam proteger as mulheres em situação de violência, garantindo-lhes uma atenção humanizada, preventiva e reparadora de danos (Mury, 2004MURY, L. Violência institucional: casos de violação de direitos humanos na área da saúde materna e neonatal no estado do Rio de Janeiro. São Paulo: Direitos Humanos no Brasil, 2004. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2MOuUL3 >. Acesso em: 23 maio 2018.
https://bit.ly/2MOuUL3... ). Santos et al. (2011SANTOS, A. M. R. et al. Violência institucional: vivências no cotidiano da equipe de enfermagem. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, DF, v. 64, n. 1, p. 84-90, 2011.) a definem como aquela exercida nos serviços de saúde por omissão ou comissão. O primeiro aspecto engloba a negação total ou parcial de ações de saúde e o segundo se refere a procedimentos desnecessários e/ou indesejáveis.
O debate sobre o tema no campo teórico e prático relaciona-se ao caráter interdisciplinar da formação profissional em Direitos Humanos adequada às mudanças ocorridas na sociedade e às necessidades da população, ou seja, uma formação no sentido da defesa e ampliação dos Direitos Humanos (Tosi, 2006TOSI, G. Direitos humanos como eixo articulador do ensino, da pesquisa e da extensão. In: ZENAIDE, M. N. T. et al. A formação em direitos humanos na universidade: ensino, pesquisa e extenção. João Pessoa: Editora UFPB, 2006. p. 22-42.).
As investigações sobre VI em diferentes cenários vêm se concentrando nos aparatos do estado, estruturas organizacionais, processo de trabalho, negação de autonomia e direitos de mulheres que buscam atendimento (Aguiar; D’Oliveira; Schraiber, 2013AGUIAR, J. M.; D’OLIVEIRA, A. F. P. L.; SCHRAIBER, L. B. Violência institucional, autoridade médica e poder nas maternidades sob a ótica dos profissionais de saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 29, n. 11, p. 2287-2296, 2013.; Azeredo; Schraiber, 2017AZEREDO, Y. N.; SCHRAIBER, L. B. Violência institucional e humanização em saúde: apontamentos para o debate. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 9, p. 3013-3022, 2017.; Bento; Moreira, 2017BENTO, P. A. S.; MOREIRA, M. C. N. A experiência de adoecimento de mulheres com endometriose: narrativas sobre violência institucional. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 9, p. 3023-3032, 2017.). Contraditoriamente, há uma escassez de literatura que analise VI nos contextos de atenção à mulher em situação de VS, na qual a desigualdade de gênero é constitutiva da demanda atendida, visto que as pesquisas se reportam, na maioria, ao ciclo gravídico e puerperal (Aguiar; D’Oliveira; Schraiber, 2013AGUIAR, J. M.; D’OLIVEIRA, A. F. P. L.; SCHRAIBER, L. B. Violência institucional, autoridade médica e poder nas maternidades sob a ótica dos profissionais de saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 29, n. 11, p. 2287-2296, 2013.; Martins; Barros, 2016MARTINS, A. C.; BARROS, G. M. Parirás na dor? Revisão integrativa da violência obstétrica em unidades públicas brasileiras. Revista Dor, São Paulo, v. 17, n. 3, p. 215-218, 2016.) e às mulheres encarceradas (Ferreira et al., 2017FERREIRA, M. J. M. et al. Prevalência e fatores associados à violência no ambiente de trabalho em agentes de segurança penitenciária do sexo feminino no Brasil. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 9, p. 2989-3002, 2017.).
Entende-se que manifestações da VI nos serviços de atenção à mulher em situação de VS carece de investigações em diferentes cenários, ainda que apresentem similaridades. Importa mencionar que o cenário brasileiro que anuvia o setor saúde e tantos outros demanda monitoramento do instituinte (Carvalho; Gastaldo, 2008CARVALHO, S. R.; GASTALDO, D. Promoção à saúde e empoderamento: uma reflexão a partir das perspectivas crítico-social pós-estruturalista. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13, p. 2029-2040, 2008. Suplemento 2.) para que não se conforme como o instituído, que nega o direito e a autonomia das mulheres.
Nesta lógica, o estudo analisa as manifestações de violência institucional na atenção em saúde às mulheres em situação de violência sexual.
Método
Este artigo é um recorte da pesquisa “Análise dos serviços de saúde na atenção às mulheres em situação de violência sexual: estudo comparativo em duas capitais brasileiras (Rio de Janeiro e Fortaleza)” e tem como foco as manifestações de VI na atenção em saúde às mulheres em situação de VS em Fortaleza, Ceará, Brasil. Este município apresenta alta taxa (10,4 por 100.000 habitantes) de homicídios de mulheres, ocupando a 4ª posição entre as capitais do país (Waiselfisz, 2015WAISELFISZ, J. J. Mapa da violência 2015: homicídios de mulheres no Brasil. Brasília, DF: ONU Mulheres, 2015. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/39xDCHk >. Acesso em: 7 jul. 2018.
https://bit.ly/39xDCHk... ).
É um estudo qualitativo, empreendido nos serviços de saúde, de nível secundário e terciário, vinculados à rede municipal de saúde de Fortaleza. O município tem uma rede de dez hospitais, dos quais nove constituíram-se campo da pesquisa, sinalizados pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS), na época da coleta de dados, como serviços de referência na atenção às mulheres em situação de VS.
Participaram do estudo profissionais de nível superior da gestão e da atenção que atuavam nesses serviços, garantindo a participação de diferentes categorias profissionais (médicos, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos, pedagogos). Ao todo, a pesquisa envolveu 68 profissionais da atenção e 15 gestores.
Para a produção dos dados, utilizou-se entrevista semiestruturada com questões sobre identificação, formação profissional, inserção institucional e atenção em saúde nos casos de VS. A captação dos participantes aconteceu por indicação e recomendação de profissionais da equipe que detivessem experiência na questão em foco. As entrevistas aconteceram entre agosto e dezembro de 2013 mediante autorização escrita, de forma individual, em local reservado, em dias e horários pré-acordados com as instituições e os profissionais.
As gravações tiveram média de 30 minutos por entrevista, posteriormente transcritas na íntegra e codificadas com as siglas G (gestor), numerada de 1 a 15; e M (médico), E (enfermeiro), AS (assistente social), P (psicólogo) e PE (pedagogo), numeradas de 1 a 68; como forma de preservar o anonimato. A organização do material empírico correspondeu às questões da pesquisa.
Para a análise dos dados, adotou-se a técnica de análise de conteúdo na modalidade temática, guiando-se pela trajetória de análise proposta por Gomes (2013GOMES, R. Análise e interpretação de dados de pesquisa qualitativa. In: MINAYO, M. C. S.; DESLANDES, S. F.; GOMES, R. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 33. ed. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 79-108.). Após uma leitura exaustiva das falas e classificação inicial, foram atribuídos os núcleos de sentido em cada classe do esquema de classificação e o material foi reagrupado em quatro temáticas: invisibilidade da violência sexual; violência no acolhimento à mulher; limitações estruturais, de medicamentos e de insumos; e atuação frente ao aborto legal.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil do Rio de Janeiro, sob o Parecer nº 45A/2013.
Resultados e discussão
Participantes
Os dados retrataram número similar de gestores dos dois sexos, com leve expressão para o masculino. Quanto aos profissionais, predominou o sexo feminino. A idade da maioria dos participantes, nos dois grupos, concentra-se na faixa etária entre 40 e 59 anos. Predominaram os participantes considerados unidos (casamento formal ou união estável), e que se declararam católicos nos dois grupos.
Em relação ao perfil profissional, entre os gestores sobressaiu a formação médica. Entre os profissionais, as categorias dos assistentes sociais e enfermeiros. Nos dois grupos, a maioria possui uma graduação em universidade pública. Quanto ao tempo de formado, a maior parte dos gestores possui mais de 25 anos e, os profissionais, de 11 a 20 anos de graduado.
Nos dois grupos prevaleceram os participantes com pós-graduação, sendo em maior quantidade cursos de especialização em nível lato sensu. Quanto ao tempo de trabalho na instituição de saúde, número igual de gestores tinha menos de 5 anos e de 11 a 20 anos de trabalho na unidade; entre os profissionais, a maior parte tinha menos de 5 anos de atuação. Predominaram gestores e profissionais concursados, apesar de muitos não terem mencionado o tipo de vínculo empregatício. O curto tempo de trabalho na unidade, apesar da idade e do tempo de formado dos participantes, pode estar relacionado à alta rotatividade dos profissionais nos serviços, principalmente em se tratando dos cargos de gestão, que quase sempre são permutados a cada início de governo.
Invisibilidade da violência sexual
A invisibilidade da VS nos serviços de saúde é demonstrada na dificuldade de os profissionais reconhecerem as suas manifestações como objeto de intervenção das propostas institucionais de atenção, não as incluindo como função dos serviços: Eu nunca tive oportunidade de atender mulher com esse tipo de demanda. Foi uma surpresa saber que o hospital é referência, porque em momento algum me foi dito isso (P7).
Um número inexpressivo de entrevistados incorporou, nos seus depoimentos, a VS como um problema a ser enfrentado e assistido pelo setor de saúde. Para alguns, a questão constitui-se em “caso de polícia”, de cunho exclusivo dos setores da segurança pública e justiça, reduzindo o fenômeno a um ato criminoso.
Em contrapartida, os participantes estão vinculados a instituições indicadas pela Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres como referência no atendimento às mulheres em situação de VS. Este fato nos remete ao hiato existente entre o preconizado e disseminado na mídia e a concretização dessas práticas nos serviços. O desconhecimento dessa função por profissionais com anos de atuação alude a articulações e decisões acordadas na gestão central que não chegam aos profissionais responsáveis pela operacionalização das ações, evidenciando a fragmentação no processo.
no serviço a gente nunca havia instituído realmente essa situação, para ser conduzida aqui. […] não fomos comunicados que iríamos atender pacientes de violência sexual. Como não houve essa comunicação, a equipe se manteve assim, com o desconhecimento de que existe esse serviço. (M11)
É inoportuno responsabilizar os profissionais de saúde por uma atenção improvisada e inapropriada, tendo em vista que estes atores estão deslocados do processo de pactuação e sem formação continuada que inclua treinamento e supervisão sobre a intervenção adequada. Intervir sobre a VS requer compreendê-la como demanda e saber posicionar-se na direção da construção de uma atuação em rede que viabilize o seu enfrentamento.
Depoimentos reiteraram a não identificação das situações de VS contra a mulher na prática profissional. Outros expuseram que essa dificuldade se atrela ao fato de a demanda explícita ser considerada baixa. Os casos velados manifestam-se como demanda invisível que impõe empecilhos para seu reconhecimento.
Nós tivemos um caso em que a mulher veio seis vezes e dizia que estava com problema de garganta e dor. O médico não conseguiu visualizar, não estava sensibilizado para identificar que aquilo poderia ser um caso de violência sexual. (G6)
Em algumas situações essa violência passa desapercebida porque ela vem por outra causa. Se o profissional que estiver no acolhimento não tiver um olhar apurado, pode passar desapercebida. (AS10)
Essas noções explicitam que a VS, muitas vezes, não se apresenta como queixa principal e o ato não se manifesta em marcas corporais visíveis através de lesões e traumas resultantes da agressão. A fala da gestora corrobora a dificuldade dos profissionais em abordar os determinantes sociais de saúde (Warmling et al., 2018WARMLING, C. M. et al. Práticas sociais de medicalização & humanização no cuidado de mulheres na gestação. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 34, n. 4, p. 1-11, 2018.) e a dificuldade para o reconhecimento e manejo dos casos. O contexto em que se desenvolve o atendimento de emergência não permite uma escuta qualificada da demanda pelos profissionais, centrando-se nos parâmetros vitais, com vínculo tênue, e impedindo a detecção das situações de VS.
Exteriorizar o problema torna-se mais delicado quando a violência é crônica, perpetrada na maioria das vezes pelo parceiro íntimo no contexto doméstico ou intrafamiliar. Nos atendimentos na atenção secundária e terciária, os casos explícitos de VS são frequentemente perpetrados por estranhos. A literatura reafirma a invisibilidade da violência contra mulheres na assistência à saúde (Almeida; Silva; Machado, 2014ALMEIDA, L. R.; SILVA, A. T. M. C.; MACHADO, L. S. O objeto, a finalidade e os instrumentos do processo de trabalho em saúde na atenção à violência de gênero em um serviço de atenção básica. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 8, n. 48, p. 47-59, 2014.).
Esta fragilidade nos serviços se dá, em grande parte, pela ausência de espaços interdisciplinares na formação em saúde que possam dialogar sobre temas complexos, como a violência (Cortes; Padoin, 2016CORTES, L. F.; PADOIN, S. M. M. Intencionalidade da ação de cuidar mulheres em situação de violência: contribuições para a enfermagem e saúde. Escola Anna Nery, Rio de Janeiro, v. 20, n. 4, e20160082, 2016.), e pelo pouco investimento na qualificação e no suporte profissional. Também a conduta clínica baseada no modelo biomédico e a própria organização do processo de trabalho não favorecem a execução de uma clínica ampliada que viabilize o desenvolvimento da atenção integral ao indivíduo (Guedes; Nogueira; Camargo Júnior, 2009GUEDES, C. R.; NOGUEIRA, M. I.; CAMARGO JÚNIOR, K. R. Os sofredores de sintomas indefinidos: um desafio para a atenção médica. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 19, n. 3, p. 797-815, 2009.; Pedrosa; Spink, 2011PEDROSA, C. M.; SPINK, M. J. P. A violência contra mulher no cotidiano dos serviços de saúde: desafios para a formação médica. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 124-135, 2011.).
No primeiro contato com os profissionais, as mulheres manifestam outras queixas que só podem ser captadas caso tenha havido, durante a formação profissional, abordagem sobre como lidar com casos de violência contra a mulher. A verbalização das violências vivenciadas requisita condições de acessibilidade, privacidade e escuta empática do profissional, de modo a garantir a integralidade do atendimento.
A desconsideração da VS como problema de saúde e função institucional, atrelada às barreiras que inviabilizam sua identificação, contribuem para a produção da VI, como omissão nos serviços de saúde (Santos et al., 2011SANTOS, A. M. R. et al. Violência institucional: vivências no cotidiano da equipe de enfermagem. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, DF, v. 64, n. 1, p. 84-90, 2011.). Ou seja, essa modalidade de violência se expressa nas relações mulheres/unidades de saúde e mulheres/profissionais de saúde, sendo configurada, principalmente, pela falta de acesso e pela má qualidade da prestação dos serviços.
Violência no acolhimento à mulher
Muitas vezes, o primeiro contato das mulheres com os serviços de saúde é marcado por falta de privacidade, exposição da violência para outras pessoas, atitudes discriminatórias e juízos de valor. Depoimentos apontam críticas aos atendimentos sem privacidade e aos funcionários que expõem as mulheres a constrangimentos. Soma-se a esses elementos processos de trabalho desorganizados e atos discriminatórios que confirmam a VI na atenção à saúde dessas mulheres: Muitas vezes, ela fica muita exposta. Existem aqueles que ficam ao redor, querendo saber da situação que ela viveu. Existe um acolhimento, mas de exposição (E63); Ela é vítima de violência lá fora e sofre outra violência aqui quando é abordada de maneira inadequada pelo profissional. Ela é agredida duas vezes quando entra aqui (E36).
Essa VI é um problema grave, em geral silenciado, invisível e naturalizado no cotidiano das unidades de saúde. Tem sido apontado como resultado da precariedade do sistema de saúde e da conduta pessoal de desrespeito dos profissionais às mulheres. Essas formas estão presentes em falas grosseiras, desrespeitosas, discriminatórias e em desatenção quanto às necessidades de saúde da mulher.
As atitudes discriminatórias com declarações moralistas sobre a vida pessoal e o comportamento das mulheres, assim como o discurso autoritário, reproduzem os preconceitos e as posturas sexistas nas relações sociais entre os sexos, corroborando a matriz hegemônica de gênero. Isso reforça a experiência emocional de vulnerabilidade nas mulheres que sofreram violência, gerando um círculo vicioso entre violência interpessoal e violência institucional, e impede que as instituições cumpram a função de interromper a cadeia de produção do problema (Villela et al., 2011VILLELA, W. V. et al. Ambiguidades e contradições no atendimento de mulheres que sofrem violência. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 113-123, 2011.). A atenção em saúde, que deveria cumprir sua função social de empoderar e gerar autonomia às mulheres, acaba oprimindo e reforçando as desigualdades de gênero (Carvalho; Gastaldo, 2008CARVALHO, S. R.; GASTALDO, D. Promoção à saúde e empoderamento: uma reflexão a partir das perspectivas crítico-social pós-estruturalista. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13, p. 2029-2040, 2008. Suplemento 2.; Pedrosa; Spink, 2011PEDROSA, C. M.; SPINK, M. J. P. A violência contra mulher no cotidiano dos serviços de saúde: desafios para a formação médica. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 124-135, 2011.).
Aguiar, D’Oliveira e Schraiber (2013AGUIAR, J. M.; D’OLIVEIRA, A. F. P. L.; SCHRAIBER, L. B. Violência institucional, autoridade médica e poder nas maternidades sob a ótica dos profissionais de saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 29, n. 11, p. 2287-2296, 2013.) advogam que, no campo das relações entre profissionais e usuárias, as situações de VI são difíceis de serem percebidas como tal pelos sujeitos envolvidos, ainda que impliquem na anulação da autonomia e na discriminação de classe, raça ou gênero. Para as autoras, as manifestações da VI naturalizam-se na cultura institucional, favorecendo as suas condições de existência e perpetuação.
Vale acrescentar que o atendimento aos traumas físicos, embora se reconheça a importância, não deve ser foco principal da atenção. Essa inversão de rotas, desumana e ineficiente, também reproduz a VI ao distanciar as mulheres de direitos fundamentais. A inabilidade para lidar com queixas sensíveis reforça a visão do hospital como espaço onde o poder opera por meio da dessubjetivação do outro (Guedes; Nogueira; Camargo Júnior, 2009GUEDES, C. R.; NOGUEIRA, M. I.; CAMARGO JÚNIOR, K. R. Os sofredores de sintomas indefinidos: um desafio para a atenção médica. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 19, n. 3, p. 797-815, 2009.; Villela et al., 2011VILLELA, W. V. et al. Ambiguidades e contradições no atendimento de mulheres que sofrem violência. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 113-123, 2011.). Essas falhas, que se apresentam na despersonalização das mulheres e na substituição de uma relação dialógica por exames e procedimentos técnicos, transformam o setor saúde em produtor da violência institucional.
Em se tratando das situações de VS, o acolhimento pressupõe receber as mulheres com respeito e solidariedade, compreendendo demandas e expectativas. Pessoas em situação de violência experienciam medo, ansiedade, vergonha, culpa e desesperança. Para minimizar o sofrimento, os profissionais que acolhem essas usuárias devem demonstrar empatia, sensibilidade e atitudes livres de julgamento, assim como a possibilidade de se colocar no lugar do outro; posturas que não identificadas nos relatos apresentados, contrariando as diretrizes da Norma Técnica (Brasil, 2012BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes: norma técnica. 3. ed. Brasília, DF, 2012.).
Vale acrescentar que o acolhimento dessas mulheres ainda depende da concepção dos profissionais sobre o significado do fenômeno e do impacto que esse ato também pode exercer sobre os próprios trabalhadores, os quais, por vez, precisam refletir e avaliar seus próprios sentimentos e preconceitos, visando evitar distorções na comunicação com a mulher (Barros et al., 2015BARROS, L. A. et al. Vivência de (des)acolhimento por mulheres vítimas de estupro que buscam os serviços de saúde. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 9, n. 2, p. 193-200, 2015.).
Limitações estruturais, de medicamentos e de insumos
Quanto à estrutura física, mesmo com distintas vocações institucionais e modos de funcionamento, identifica-se, em todas as unidades investigadas, a ausência de local específico para atenção às mulheres em situação de VS: Não tem local específico. É uma situação que a mulher fica muito exposta, constrangedora. E quando ela fica no corredor mais ainda, porque ela está exposta a todos, ela fica num ambiente largada (E63).
Apesar disso, gestores e profissionais mencionam a preocupação em realizar os atendimentos em consultórios/salas dos assistentes sociais, médicos e psicólogos, locais mais reservados para essa abordagem. Alguns reconheceram a necessidade de que esse atendimento ocorra fora do ambiente da emergência, para garantir privacidade e sigilo durante a entrevista e realização dos exames. Por outro lado, nos serviços que recebem demanda traumatológica, atende-se nas emergências, corredores ou enfermarias, expondo a mulher a constrangimentos.
Possivelmente, a limitada área física de alguns hospitais ou o número de mulheres que busca esses serviços em decorrência de VS não justifique a destinação de sala própria para este tipo de atendimento. Em contrapartida, se não há uma organização institucional incluindo um local adequado e uma equipe preparada para este fim, essa demanda permanecerá baixa, uma vez que a falta de privacidade no local do acolhimento também se constitui motivo para as usuárias não procurarem o serviço e não relatarem a VS.
A falta de privacidade dificulta a abordagem de experiências sensíveis e faz com que o primeiro contato da usuária com o serviço seja marcado pela impessoalidade e inviabilize o seguimento da mulher, parecendo estar implícito que aquele não é um lugar de resolução de necessidades subjetivas (Villela et al., 2011VILLELA, W. V. et al. Ambiguidades e contradições no atendimento de mulheres que sofrem violência. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 113-123, 2011.).
Destaca-se que as dimensões de conforto, privacidade e resolutividade são referidas como condições da prática do acolhimento que devem ser realizadas nas unidades do SUS, sendo essenciais à escuta qualificada da demanda e garantia da integralidade do atendimento (Brasil, 2014BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Linha de cuidado para a atenção integral à saúde de crianças, adolescentes e suas famílias em situação de violências: orientação para gestores e profissionais de saúde. Brasília, DF, 2014.). O Decreto nº 7.958/2013 assegura os princípios do respeito da dignidade da pessoa, da não discriminação, do sigilo e da privacidade, devendo os serviços dispor de um espaço de escuta qualificada com privacidade, de modo a proporcionar ambiente de confiança e respeito (Brasil, 2013BRASIL. Decreto nº 7.958, de 13 de março de 2013. Estabelece diretrizes para o atendimento às vítimas de violência sexual pelos profissionais de segurança pública e da rede de atendimento do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 14 mar. 2013. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2ucXoaU >. Acesso em: 12 jul. 2018.
https://bit.ly/2ucXoaU... ).
Quanto aos procedimentos técnicos na atenção às mulheres após uma VS, estes incluem um conjunto de intervenções para prevenir uma gravidez indesejada e as infecções sexualmente transmissíveis (IST). Estas ações são sensíveis ao tempo, havendo a recomendação que o atendimento seja realizado até 72 horas após a agressão devido à maior eficácia das medidas profiláticas (Brasil, 2012BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes: norma técnica. 3. ed. Brasília, DF, 2012.).
Também se identifica a VI em virtude de limitações no fornecimento de medicamentos e de insumos necessários para essas intervenções. A estrutura de organização da rede hospitalar municipal de Fortaleza não supre adequadamente as necessidades das mulheres em situação de VS, tendo em vista que apenas um serviço se mostrou preparado para a efetivação das profilaxias contra as IST e da anticoncepção de emergência. Este cenário contradiz as recomendações da normativa oficial (Brasil, 2012BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes: norma técnica. 3. ed. Brasília, DF, 2012.), que postula que as instituições com serviços de ginecologia e obstetrícia devem estar estruturadas para atender a esses casos.
A concentração de ações em apenas um local da rede ocasiona uma demanda excessiva, o que pode sobrecarregar esta instituição e prejudicar a atenção aos casos, pois os recursos humanos e materiais podem não ser suficientes para atender a todo o conjunto de solicitações do município.
Atuação relacionada ao aborto legal
Entre as consequências da VS, a gravidez se destaca pela complexidade das reações psicológicas e sociais, sendo concebida pelas mulheres como segunda violência. A Norma Técnica, em todas suas versões, orienta serviços e profissionais de saúde na condução dessas situações (Brasil, 2012BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes: norma técnica. 3. ed. Brasília, DF, 2012.), nas quais a mulher tem o direito ao aborto legal assegurado desde 1940 (Brasil, 1940BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial, Brasília, DF, 31 dez. 1940. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/37vODHo >. Acesso em: 4 out. 2017.
https://bit.ly/37vODHo... ).
Nesta pesquisa, a atuação profissional frente à gravidez decorrente de uma VS nos hospitais da rede municipal de Fortaleza restringia-se a uma única unidade de saúde. Acrescenta-se a esta lacuna - o município dispor de apenas uma unidade que realiza o aborto legal - o fato desse procedimento estar restrito a um único dia da semana. Vale ressaltar que esse serviço recebia, além dos encaminhamentos de outras instituições de Fortaleza, usuárias de outros municípios do estado.
A gente não encontra facilidade com os médicos para fazer um aborto legal, porque dentro da lei, da ética, eles podem não querer realizar. Como só tem um, a gente sempre marca na quarta-feira que é o plantão dele […] a psicóloga que fica responsável por esses casos contribui nesse diálogo, mas já os outros profissionais, enfermeira, assistente social e plantonista não formam um vínculo com isso. (P19)
O número reduzido de serviços de saúde que realizam o aborto legal é realidade no território brasileiro (Madeiro; Diniz, 2016MADEIRO, A. P.; DINIZ, D. Serviços de aborto legal no Brasil: um estudo nacional. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 563-572, 2016.). Madeiro e Diniz (2016MADEIRO, A. P.; DINIZ, D. Serviços de aborto legal no Brasil: um estudo nacional. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 563-572, 2016.), ao empreenderem estudo nos serviços de aborto legal no Brasil, constataram que, dos 68 listados pelo Ministério da Saúde e pelas Secretarias Estaduais de Saúde como em funcionamento, somente 37 efetivamente realizavam o procedimento.
A interrupção da gravidez prevista em lei engloba conflito cultural, gerencial, institucional e pessoal que favorece a peregrinação da mulher pela rede de saúde ou a demora no acesso ao aborto, ultrapassando, muitas vezes, o tempo previsto para a realização do ato. Fato que implica a não garantia do direito, além de transtornos de ordem emocional e física.
A organização do processo de trabalho concentrando a interrupção legal da gravidez ao encargo de uma única equipe e em um único dia da semana, verificada nesta pesquisa, fere as prerrogativas legais, os direitos assegurados e as orientações do Ministério da Saúde (Brasil, 2012BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes: norma técnica. 3. ed. Brasília, DF, 2012.). A pouca disponibilidade dos profissionais, principalmente dos médicos, para a realização do aborto se constitui como um dos principais desafios para o cumprimento efetivo do aborto legal.
A composição da equipe multiprofissional ainda é um obstáculo para a maioria dos serviços que prestam esse tipo de atendimento no Brasil (Madeiro; Diniz, 2016MADEIRO, A. P.; DINIZ, D. Serviços de aborto legal no Brasil: um estudo nacional. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 563-572, 2016.). Dessa forma, o cumprimento do aborto previsto em lei esbarra em obstáculos administrativos e de ordem pessoal dos trabalhadores da saúde. Apesar de a atenção às mulheres em situação de VS ter trazido, com mais ênfase, o aborto para o cotidiano das instituições de saúde, esse tema ainda é tabu para muitos profissionais.
Para os participantes deste trabalho, as recusas a esse tipo de atendimento pautaram-se nas questões religiosas, morais, direito individual à objeção de consciência, despreparo técnico, desconhecimento da legislação, estigma envolvido no ato e sofrimento emocional da equipe.
A interrupção da gravidez também está condicionada ao posicionamento da equipe médica relacionado ao direito à objeção de consciência, prevista no código de ética médica. Montoya-Vacadíez (2014MONTOYA-VACADÍEZ, D. M. Mitos y realidades sobre la objeción de conciencia en la praxis médica. Revista Ciencias de la Salud, Bogotá, v. 12, n. 3, p. 435-449, 2014.) assevera que a objeção de consciência pode ser compreendida como ato em oposição a um mandato legal em detrimento de embates com convicções morais, filosóficas ou religiosas, levando ao conflito entre a obediência à lei e a obediência ao juízo da consciência.
Vale esclarecer que o direito à objeção de consciência para a não realização do aborto legal deve ser respeitado. Em contraponto, é dever institucional informar à mulher sobre os seus direitos e garantir a atenção ao abortamento, em tempo hábil, por outro profissional ou serviço. As gerências das instituições de saúde que disponibilizam esse atendimento devem lançar mão de estratégias para assegurar o direito ao aborto legal, por exemplo realizando escala de trabalho sem profissionais objetores e a não participação de profissionais objetores em práticas contrárias às suas consciências (Diniz, 2013DINIZ, D. Estado laico, objeção de consciência e políticas de saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 29, n. 9, p. 1704-1706, 2013.).
A atenção à saúde da pessoa que sofre VS é prioritária e a recusa infundada e injustificada de atendimento pode ser caracterizada, ética e legalmente, como negligência ou omissão.
Nas outras instituições que compuseram o cenário desta pesquisa, apesar de as características diferenciadas de cada serviço, a maioria dos gestores e profissionais de saúde desconhece a orientação legal, os procedimentos técnicos e os encaminhamentos que devem ser empreendidos nos casos de gravidez decorrentes de violência sexual. Por consequência, as orientações fornecidas às mulheres nem sempre são adequadas; o encaminhamento para os locais que realizam o aborto legal não é garantido, evidenciando a inexistência de um fluxo intrassetorial para esta atenção no município.
Em uma unidade que foi formulada com o objetivo de atender integralmente o público feminino, incluindo a atenção às situações de violência, profissional indica que, apesar de o hospital possuir estrutura física adequada, a equipe de saúde não está treinada para esse tipo de atuação, inviabilizando-a:
temos uma estrutura física, mas não temos pessoal e o próprio sistema não está estruturado, pela própria questão financeira do hospital. O hospital era para ter sido inaugurado com tudo pronto. É como se você tivesse uma casa excelente e ela não funcionasse. (P48)
A análise mostra a necessidade de estruturação das unidades para viabilizar o aborto legal e de capacitação da equipe sobre os domínios teóricos e práticos acerca da questão, pois, mesmo que a instituição não realize esse procedimento, os profissionais devem estar aptos para fornecer orientações às usuárias e referenciar outros serviços da rede.
Também chama atenção que, para alguns entrevistados, a mulher ainda deve confirmar que a gravidez foi resultado de uma VS por meio da realização de um boletim de ocorrência (BO), laudo pericial ou autorização judicial para, somente assim, ter acesso ao aborto legal.
Primeira coisa, ela tem que ir à delegacia da mulher fazer a queixa. Depois ela vai para o IML fazer o exame para comprovar que realmente foi estuprada. No IML faz o βHCG para comprovar se ela está grávida ou não. Depois desses procedimentos legais é que vai ser autorizado o aborto legal. (M39)
A partir da fala do profissional, percebe-se que a mulher que se propõe ao aborto tem que comprovar a VS, concebendo que ela pode simular a violência para realizar o procedimento. O que atesta que a veracidade do relato feito pela mulher é contestada, e seu depoimento não é suficiente para garantir a interrupção da gravidez. Esse posicionamento decorre do desconhecimento acerca das políticas públicas de saúde, do receio dos profissionais em estarem cometendo um crime e da persistência do julgamento moral acerca da veracidade da VS para realização do o aborto legal (Diniz et al., 2014DINIZ, D. et al. A verdade do estupro nos serviços de aborto legal no Brasil. Revista Bioética, Brasília, DF, v. 22, n. 2, p. 291-298, 2014.; Farias; Cavalcanti, 2012FARIAS, R. S.; CAVALCANTI, L. F. Atuação diante das situações de aborto legal na perspectiva dos profissionais de saúde do Hospital Municipal Fernando Magalhães. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 7, p. 1755-1763, 2012.).
Diniz et al. (2014DINIZ, D. et al. A verdade do estupro nos serviços de aborto legal no Brasil. Revista Bioética, Brasília, DF, v. 22, n. 2, p. 291-298, 2014.) argumentam que, em geral, a verdade da VS é construída no encontro entre os testes de verdade sobre o acontecimento do ato e a leitura sobre a subjetividade da mulher. O local da cena da VS também é um fator modulador para o teste de verdade - se o ato envolveu maior crueldade, maiores são as chances de os profissionais conceberem que a mulher está falando a verdade; porém, se foi uma violência que aconteceu no contexto conjugal, por exemplo, o texto da mulher pode ser colocado sob suspeita em razão das questões socioculturais que naturalizam esse ato nessas relações (Diniz et al., 2014DINIZ, D. et al. A verdade do estupro nos serviços de aborto legal no Brasil. Revista Bioética, Brasília, DF, v. 22, n. 2, p. 291-298, 2014.).
Nessa perspectiva, o depoimento da mulher não basta para o acesso ao serviço de aborto legal. Ela precisará passar pelos testes de veridição das equipes de saúde para que tenha seu direito legitimado e seja reconhecida como “vítima”. Terá de expor uma história que apresente relação de causalidade entre a violência e a gravidez e, além disso, traços subjetivos de vitimização e a descrição de um local que esteja no imaginário social como propício ao acontecimento da violência (Diniz et al., 2014DINIZ, D. et al. A verdade do estupro nos serviços de aborto legal no Brasil. Revista Bioética, Brasília, DF, v. 22, n. 2, p. 291-298, 2014.).
Esse posicionamento, identificado nos depoimentos de alguns participantes deste estudo, contribui para dificultar o acesso das usuárias ao aborto previsto em lei e é rechaçado pela Norma Técnica (Brasil, 2012BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes: norma técnica. 3. ed. Brasília, DF, 2012.), a qual isenta as mulheres de apresentar BO, laudo pericial ou qualquer outro documento que ateste a violência sexual. O consentimento da mulher ou o de seu representante legal deve ser peça suficiente para o acesso ao procedimento nos serviços de saúde. O único documento necessário para a interrupção da gravidez decorrente de estupro é o consentimento por escrito da mulher (Brasil, 2012BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes: norma técnica. 3. ed. Brasília, DF, 2012.).
Constitui uma violência institucional a recusa em realizar a interrupção da gravidez decorrente de violência sexual, trazendo consequências para a autodeterminação sexual e reprodutiva das mulheres. Essa violência pode levar a mulher a buscar esse procedimento em condições inseguras, o que constitui um problema de saúde pública ainda maior, com sérias repercussões à sua saúde. Quando o aborto previsto em lei não é garantido pelos serviços de saúde, muitas mulheres recorrem ao aborto clandestino, procedimento que acarreta riscos à saúde e as expõem desnecessariamente a complicações graves e à morte.
Nos países da América Latina, os impedimentos impostos às mulheres que optam por interromper a gravidez geram, a cada ano, mais de quatro milhões de abortos ilegais, sendo a mortalidade materna, em razão do aborto clandestino, muito alta, principalmente em países menos desenvolvidos (Sigal, 2015SIGAL, M. P. Bioethics, abortion and public policies in Latin America. Revista de Bioética y Derecho, Barcelona, n. 33, p. 3-13, 2015.). No Brasil, o aborto está entre as quatro principais causas de mortalidade materna, com taxas inaceitavelmente altas, segundo padrões internacionais (McCallum; Menezes; Reis, 2016MCCALLUM, C.; MENEZES, G.; REIS, A. P. O dilema de uma prática: experiências de aborto em uma maternidade pública de Salvador, Bahia. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 23, n. 1, p. 37-56, 2016.).
Estudiosos advogam que uma mulher finalizar um abortamento no hospital significa mergulhar em um ambiente no qual uma cultura institucional está enraizada por meio de processos e dinâmicas cotidianos que impactam no cuidado dispensado (McCallum; Menezes; Reis, 2016MCCALLUM, C.; MENEZES, G.; REIS, A. P. O dilema de uma prática: experiências de aborto em uma maternidade pública de Salvador, Bahia. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 23, n. 1, p. 37-56, 2016.). A visão moralizante e preconceituosa manifestada nas demonstrações de intolerância ou hostilidade contra mulheres que recorrem ao aborto legal está imbricada na prática profissional e nos arranjos institucionais (estrutura, organização, cultura), inviabilizando uma atenção humanizada e restringindo o acesso ao procedimento de forma segura.
Considerações finais
Os depoimentos dos entrevistados sinalizaram a complexa rede de desafios que se coloca na atenção à saúde das mulheres em situação de violência sexual. O trajeto realizado pela mulher em busca de possibilidades para o enfrentamento do problema mostra a necessidade de transpor sobreposições de violências. Nesse sentido, é fundamental articular as manifestações da violência institucional às dimensões da violência estrutural vivenciada pelo conjunto da sociedade.
Dessa forma, a análise das manifestações da VI na atenção em saúde às mulheres em situação de VS revela que o problema extrapola questões de ordem subjetiva e da formação dos profissionais. Evidencia-se que a inexistência de suporte institucional culmina com o afastamento dos profissionais de saúde desse tipo de atenção e a consequente violação de direitos humanos.
Ofertar um atendimento da forma como está preconizado em documentos técnicos e previsto em lei implica a participação dos atores envolvidos tanto na produção de conhecimento acerca das políticas e normas que orientam a atuação no setor saúde quanto na construção de melhores práticas.
Para se enfrentar a violência institucional no cotidiano das unidades de saúde, torna-se necessário uma gestão que repense a configuração dos serviços e da rede de atenção às mulheres que sofrem violência sexual, tendo o intuito de ampliar e descentralizar a oferta desse tipo de atenção. Acrescenta-se, ainda, que a gestão local deve estar próxima dos atores envolvidos, direcionando-os de acordo com as políticas públicas que norteiam as ações em saúde, e possibilitando uma atenção integral às mulheres por meio da oferta de ambientes acolhedores voltados à garantia de direitos.
Referências
- AGUIAR, J. M.; D’OLIVEIRA, A. F. P. L.; SCHRAIBER, L. B. Violência institucional, autoridade médica e poder nas maternidades sob a ótica dos profissionais de saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 29, n. 11, p. 2287-2296, 2013.
- ALCARAZ, C. L. et al. Formación y detección de la violencia de género en la profesión sanitária. Revista de Enfermagem da UFSM, Santa Maria, v. 4, n. 1, p. 217-226, 2014.
- ALMEIDA, L. R.; SILVA, A. T. M. C.; MACHADO, L. S. O objeto, a finalidade e os instrumentos do processo de trabalho em saúde na atenção à violência de gênero em um serviço de atenção básica. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 8, n. 48, p. 47-59, 2014.
- AZEREDO, Y. N.; SCHRAIBER, L. B. Violência institucional e humanização em saúde: apontamentos para o debate. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 9, p. 3013-3022, 2017.
- BARROS, L. A. et al. Vivência de (des)acolhimento por mulheres vítimas de estupro que buscam os serviços de saúde. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 9, n. 2, p. 193-200, 2015.
- BENTO, P. A. S.; MOREIRA, M. C. N. A experiência de adoecimento de mulheres com endometriose: narrativas sobre violência institucional. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 9, p. 3023-3032, 2017.
- BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial, Brasília, DF, 31 dez. 1940. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/37vODHo >. Acesso em: 4 out. 2017.
» https://bit.ly/37vODHo - BRASIL. Decreto nº 7.508, de 28 de junho de 2011. Regulamenta a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a organização do Sistema Único de Saúde-SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 29 jun. 2011. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2ZJXvq0 >. Acesso em: 12 jul. 2018.
» https://bit.ly/2ZJXvq0 - BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes: norma técnica. 3. ed. Brasília, DF, 2012.
- BRASIL. Decreto nº 7.958, de 13 de março de 2013. Estabelece diretrizes para o atendimento às vítimas de violência sexual pelos profissionais de segurança pública e da rede de atendimento do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 14 mar. 2013. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2ucXoaU >. Acesso em: 12 jul. 2018.
» https://bit.ly/2ucXoaU - BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Linha de cuidado para a atenção integral à saúde de crianças, adolescentes e suas famílias em situação de violências: orientação para gestores e profissionais de saúde. Brasília, DF, 2014.
- CARVALHO, S. R.; GASTALDO, D. Promoção à saúde e empoderamento: uma reflexão a partir das perspectivas crítico-social pós-estruturalista. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13, p. 2029-2040, 2008. Suplemento 2.
- CAVALCANTI, L. F. et al. Implementação da atenção em saúde às violências sexuais contra as mulheres em duas capitais brasileiras. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 39, n. 107, p. 1079-1091, 2015.
- CORTES, L. F.; PADOIN, S. M. M. Intencionalidade da ação de cuidar mulheres em situação de violência: contribuições para a enfermagem e saúde. Escola Anna Nery, Rio de Janeiro, v. 20, n. 4, e20160082, 2016.
- DINIZ, D. Estado laico, objeção de consciência e políticas de saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 29, n. 9, p. 1704-1706, 2013.
- DINIZ, D. et al. A verdade do estupro nos serviços de aborto legal no Brasil. Revista Bioética, Brasília, DF, v. 22, n. 2, p. 291-298, 2014.
- FARIAS, R. S.; CAVALCANTI, L. F. Atuação diante das situações de aborto legal na perspectiva dos profissionais de saúde do Hospital Municipal Fernando Magalhães. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 7, p. 1755-1763, 2012.
- FERREIRA, M. J. M. et al. Prevalência e fatores associados à violência no ambiente de trabalho em agentes de segurança penitenciária do sexo feminino no Brasil. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 9, p. 2989-3002, 2017.
- GOMES, R. Análise e interpretação de dados de pesquisa qualitativa. In: MINAYO, M. C. S.; DESLANDES, S. F.; GOMES, R. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 33. ed. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 79-108.
- GUEDES, C. R.; NOGUEIRA, M. I.; CAMARGO JÚNIOR, K. R. Os sofredores de sintomas indefinidos: um desafio para a atenção médica. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 19, n. 3, p. 797-815, 2009.
- MADEIRO, A. P.; DINIZ, D. Serviços de aborto legal no Brasil: um estudo nacional. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 563-572, 2016.
- MARTINS, A. C.; BARROS, G. M. Parirás na dor? Revisão integrativa da violência obstétrica em unidades públicas brasileiras. Revista Dor, São Paulo, v. 17, n. 3, p. 215-218, 2016.
- MCCALLUM, C.; MENEZES, G.; REIS, A. P. O dilema de uma prática: experiências de aborto em uma maternidade pública de Salvador, Bahia. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 23, n. 1, p. 37-56, 2016.
- MONTOYA-VACADÍEZ, D. M. Mitos y realidades sobre la objeción de conciencia en la praxis médica. Revista Ciencias de la Salud, Bogotá, v. 12, n. 3, p. 435-449, 2014.
- MURY, L. Violência institucional: casos de violação de direitos humanos na área da saúde materna e neonatal no estado do Rio de Janeiro. São Paulo: Direitos Humanos no Brasil, 2004. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2MOuUL3 >. Acesso em: 23 maio 2018.
» https://bit.ly/2MOuUL3 - PAIM, J. et al. The Brazilian health system: history, advances, and challenges. The Lancet, Londres, v. 9779, n. 377, p. 1778-1797, 2011.
- PEDROSA, C. M.; SPINK, M. J. P. A violência contra mulher no cotidiano dos serviços de saúde: desafios para a formação médica. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 124-135, 2011.
- SANTOS, A. M. R. et al. Violência institucional: vivências no cotidiano da equipe de enfermagem. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, DF, v. 64, n. 1, p. 84-90, 2011.
- SIGAL, M. P. Bioethics, abortion and public policies in Latin America. Revista de Bioética y Derecho, Barcelona, n. 33, p. 3-13, 2015.
- TOSI, G. Direitos humanos como eixo articulador do ensino, da pesquisa e da extensão. In: ZENAIDE, M. N. T. et al. A formação em direitos humanos na universidade: ensino, pesquisa e extenção. João Pessoa: Editora UFPB, 2006. p. 22-42.
- VILLELA, W. V. et al. Ambiguidades e contradições no atendimento de mulheres que sofrem violência. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 113-123, 2011.
- WAISELFISZ, J. J. Mapa da violência 2015: homicídios de mulheres no Brasil. Brasília, DF: ONU Mulheres, 2015. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/39xDCHk >. Acesso em: 7 jul. 2018.
» https://bit.ly/39xDCHk - WARMLING, C. M. et al. Práticas sociais de medicalização & humanização no cuidado de mulheres na gestação. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 34, n. 4, p. 1-11, 2018.
- 1Fonte de financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) através do Edital MCTI/CNPq/SPM-PR/MDA nº 32/2012 - Relações de Gênero, Mulheres e Feminismos.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
20 Mar 2020 - Data do Fascículo
2020
Histórico
- Recebido
15 Set 2018 - Aceito
03 Nov 2019