Violência estrutural e adoecer no Haiti: reflexões sobre uma experiência11 Agradecemos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e ao ao Instituto Brasil Plural (IBP) pelo financiamento do artigo.

Structural violence and illness in Haiti: reflections on an experience

Fabiane Rosa Gioda Marcia Grisotti Esther Jean Langdon Sobre os autores

Resumo

Falar sobre saúde e principalmente da busca pela cura das doenças em sociedades globais empobrecidas e desassistidas traz à tona amplas e conflitivas reflexões. O Haiti é o país mais pobre das Américas e um dos mais pobres do mundo. A extrema vulnerabilidade a que a população está exposta é facilmente percebida por meio da análise do processo saúde/enfermidade/atenção, uma vez que esse é um dos domínios em que se acentuam as vivências de sofrimento, a percepção da inequidade e as intervenções ineficazes, que se pode observar em cada relato de experiência a violência estrutural como um legado histórico. Perpetuada ainda hoje por forças sociais e políticas globais, a violência estrutural pode ser pensada como fator associado ao risco de adoecer e a viabilidade (ou não) da cura ou do controle das doenças. A partir de um relato particular, discute-se com base nessa teoria o processo de adoecimento e o percurso feito até a resolução do padecimento, considerando a realidade da saúde pública do país.

Palavras-chave:
Haiti; Processo Saúde/Doença; Violência Estrutural

Abstract

Talking about health and especially the search for curing diseases in impoverished and unempowered global societies brings out broad and conflicting reflections. Haiti is the poorest country in the Americas and one of the poorest in the world. The extreme vulnerability to which the population is exposed is easily perceived by analyzing its health/disease/attention process, as this is one of the areas where experiencing suffering, the perception of inequity and ineffective interventions are notorious, depicting structural violence as a historical legacy in each case report. Structural violence is perpetuated today by global social and political forces and can be thought of as a factor associated with the risk of illness and the viability of healing or disease control. A private report was used to discuss the process of falling ill based on this theory and the path taken until the resolution of the disease, considering the public health reality of the country.

Keywords:
Haiti; Health/Disease Process; Structural Violence

Introdução

Este artigo foi desenhado a partir das percepções adquiridas em três diferentes vivências de campo, incluindo assistência, ensino e pesquisa em saúde comunitária em um povoado do Haiti rural, as quais deram origem a uma tese22Tese intitulada Agentes, saberes e práticas no processo saúde/doença no Haiti. de doutorado. A base da discussão deste manuscrito está alicerçada, especificamente, em um episódio pessoal de adoecimento, do qual emergem elementos para pensar e debater as questões que envolvem o processo saúde/enfermidade/atenção33Termo cunhado do antropólogo e professor Eduardo Menéndez. (s/e/a) dentro do contexto da saúde pública local.

Para a compreensão do atual cenário da saúde no Haiti, é necessário analisá-lo como um fenômeno intimamente vinculado ao contexto histórico e sociopolítico do país, aproximação contemplada em reflexões que se apoiam na teoria da “violência estrutural”. Proposta inicialmente pelo sociólogo norueguês Johan Galtung, em 1969GALTUNG, J. Violence, peace, and peace research. Journal of Peace Research, Londres, v. 6, n. 3, p. 167-191, 1969., essa teoria faz referência às estruturas sociais - econômica, política, jurídica, religiosa e cultural - locais e globais, em suas relações com as necessidades humanas fundamentais. Segundo o autor, são essas estruturas que operacionalizam, de forma indireta, ações que podem gerar repercussões negativas e nocivas para os indivíduos, assim, a violência estrutural seria entendida como “a causa da diferença entre o potencial e o real, entre o que poderia ter sido e o que é” (Galtung, 1969GALTUNG, J. Violence, peace, and peace research. Journal of Peace Research, Londres, v. 6, n. 3, p. 167-191, 1969., p. 172). Em outras palavras, quando o real é inevitável a violência não está presente. Porém quando algo que é evitável acontece, se está diante de um caso de violência estrutural:

Assim, se uma pessoa morreu de tuberculose no século XVIII seria difícil conceber isto como violência uma vez que era inevitável, mas se alguém morre disso hoje, apesar de todos os médicos e recursos no mundo, então, a violência está presente de acordo com nossa definição. (Galtung, 1969GALTUNG, J. Violence, peace, and peace research. Journal of Peace Research, Londres, v. 6, n. 3, p. 167-191, 1969., p. 168)

No Haiti, a base da teoria da violência estrutural foi utilizada ao longo do tempo por teólogos da libertação, sendo reforçada há quase duas décadas pelo médico e antropólogo Paul Farmer 44Paul Farmer é responsável pela ONG Partners in Health que atua na área da saúde no Haiti, tendo inúmeras pesquisas desenvolvidas em campo, que discute realidades violentas elaborando extensas análises e profundas críticas. Embora o termo violência estrutural tenha adaptações próprias feitas por cada autor que a utiliza, sua abrangência transcende a esfera local ou nacional sendo uma consequência histórica de atitudes políticas e econômicas globais que visam ao bem-estar de alguns em detrimento da maioria. Sob o prisma da saúde, Farmer aborda enfaticamente reflexões sociopolíticas como determinantes das inequidades em saúde. O autor sustenta ainda que a compreensão do panorama atual da sociedade haitiana requer que, além de analisar o presente, se observe o passado de forma ampla e profunda, nos quais as passagens históricas devam ser discutidas com base nas suas consequências: “Os que na hora de explicar a miséria só prestam atenção aos poderosos atores atuais não verão como as desigualdades se estruturam e legitimam com o passar do tempo” (Farmer, 2004FARMER, P. Global health equity. Ama Journal of Ethics, Chicago, v. 6, n. 4, p. 191-193, 2004. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2XinzJK >. Acesso em: 16 maio 2018.
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, p. 309).

A omissão analítica da violência estrutural é que acarreta sua perpetuação mascarando responsabilidades e mantendo intacto o seu cerne, que são as desigualdades sociais. Desconsiderar sua análise na discussão deste artigo acoberta o porquê e o como os eventos acontecidos se refletiram no processo saúde/enfermidade /atenção da informante, bem como nas políticas públicas, no acesso ao tratamento e nas possibilidades de prevenção da doença. Infelizmente não é possível fazer uma abordagem histórica pormenorizada de todos os eventos sociopolíticos e suas consequências para o caso em questão, e para a vida prática dos haitianos, porém, é importante relembrar que, desde o descobrimento até os dias atuais, a exploração e a intervenção internacional ajudam a desenhar um cenário que vem mantendo em condições subumanas a grande maioria da sua população ao longo do tempo. A ilimitada exploração de recursos naturais e da mão de obra, a perpetuação de governos corruptos e manipulados por interesses estrangeiros, os embargos, sanções e imposições de “acordos” econômicos internacionais, as invasões militares de caráter “humanitário e de estabilização do país” se somam a tantos outros eventos que contribuíram para o ônus, a exemplificar, de uma realidade na qual 40,6% de todos os haitianos em idade laboral está desempregada (4º lugar em um ranking de 217 países (CIA, 2018CIA - CENTRAL INTELLIGENCE AGENCY. The World Factbook. Washington, DC, 2018. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2RlEQhq >. Acesso em: 17 jul. 2018
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), 60% da população viva abaixo da linha da pobreza (CIA, 2018CIA - CENTRAL INTELLIGENCE AGENCY. The World Factbook. Washington, DC, 2018. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2RlEQhq >. Acesso em: 17 jul. 2018
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), e onde o mais alarmante índice de fome no mundo é evidenciado, sendo o país com maior proporção de pessoas subnutridas do planeta, metade da sua população total, 5,7 milhões, (FAO, 2015FAO - FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION. The state of food insecurity in the world. Roma, 2015. Disponível em: <Disponível em: http://www.fao.org/3/a-i4646e.pdf >. Acesso em: 21 fev. 2017.
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).

No campo da saúde a maior vulnerabilidade da população também é reflexo das consequências sociais de tais políticas nacionais e internacionais, trazendo o sistema de saneamento básico, as condições de moradia, a desnutrição e a educação básica55Mais de 40% da população do país é analfabeta, 21ª posição mundial em índice de analfabetismo (Brazil…, 2017) como fatores potenciais de influência no processo de adoecimento (Farmer; Kim, 2007FARMER, P.; KIM, J. Y. Direitos humanos, cuidados de saúde baseados na comunidade e sobrevivência infantil. In: UNICEF - FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA. Situação mundial da infância: sobrevivência infantil. Nova York, 2007. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2yCqP8n >. Acesso em: 2 mar. 2020.
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). Entre tantas outras condições desfavoráveis, atualmente, o Haiti sustenta um dos piores indicadores de saúde segundo o ranking do Banco Mundial, apresentando também um dos piores indicadores sociais, IDH 0.49 (UNPD, 2018), uma altíssima taxa de mortalidade em menores de cinco anos, 72/1000 nascidos vivos (World Bank, 2017WORLD BANK. Taxa de mortalidade infantil. Washington, DC, 2017. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2JOTjy3 >. Acesso em: 22 set. 2018.
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) - a comparar nos EUA são 7/1000 -, uma taxa de mortalidade materna de 359/100 mil nascidos vivos (CIA, 2018CIA - CENTRAL INTELLIGENCE AGENCY. The World Factbook. Washington, DC, 2018. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2RlEQhq >. Acesso em: 17 jul. 2018
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) - na Itália, por exemplo, são 4/100 mil -, e uma expectativa de vida que não ultrapassa 64 anos (CIA, 2018CIA - CENTRAL INTELLIGENCE AGENCY. The World Factbook. Washington, DC, 2018. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2RlEQhq >. Acesso em: 17 jul. 2018
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) - posição 187 no ranking -, conjuntura que reflete uma miserabilidade significativamente superior desse grupo social em comparação à maioria dos demais países, e um caso claro de violência sustentada pelas estruturas operacionais.

Adoecer em território Haitiano

Entre os tantos casos acompanhados junto com o hospital e as clínicas onde trabalhei e que poderiam ser usadas para discutir a relação entre o adoecimento e a violência estrutural, opto por trazer uma vivência particular, ocorrida na minha terceira visita ao país, na qual pude sentir um pouco do que representa “adoecer” em território haitiano66Relato da experiência de adoecimento da autora.

Em um final de tarde se inicia meu processo de adoecimento, com a sensação de frio, mal-estar e indisposição, sinais e sintomas inespecíficos para diagnosticar uma enfermidade ou causar preocupação. A evolução do quadro para uma dor de cabeça insuportável, febre alta e desmaios ocorridos durante a noite trouxeram a percepção de uma maior gravidade e me obrigaram a buscar ajuda no hospital ao alvorecer da manhã seguinte77O acesso ao hospital por ruas completamente escuras foi uma dificuldade considerada para adiar a busca pelo hospital. A energia elétrica no Haiti é disponível apenas para 38% das residências (CIA, 2018), e em vias públicas a situação é ainda mais grave.. A região de “Kaydesa88As instituições e os locais descritos neste artigo que estão referenciados ao longo do textos entre aspas e em itálico, são apresentadas com nomes fictícios., pela existência do “Gwo Lopital Jeneral”, pode ser considerada um oásis na saúde do Haiti rural. Como estrangeira, e por já ter trabalhado nesse hospital, tive acesso e um atendimento extremamente rápido e investigativo (orientado por uma médica voluntária americana), certamente diferenciado daquele oferecido à população em geral. Com a pressão arterial em 60/30mmhg e intensificação das dores de cabeça, as suspeitas iniciais giraram em torno de um quadro de meningite, o que fez com que fosse imediatamente ministrado antibiótico endovenoso. “Não há tempo a perder sendo essa a possível doença”, explicava a médica para a enfermeira, que já me colocava no soro. Em pouco tempo a laboratorista já estava coletando sangue e analgésicos eram ministrados diretamente na veia. Foi uma abordagem em equipe e muito rápida.

Os resultados dos testes de meningite e malária foram negativos. Para dengue, outra possível suspeita, apesar do Haiti ser uma área endêmica, apenas na capital, Port-au-Prince, havia recursos para o diagnóstico. Permaneci no soro por seis horas. Porém, para além do desconforto e da dor decorrentes do processo de adoecimento, havia outra situação condicionante de mais sofrimento e que estava para além da enfermidade, embora contribuísse para seus sintomas: o quadro de má-nutrição em que eu me encontrava. Desde que havia chegado em “Kaydesa”, para dar continuidade à minha pesquisa, estava hospedada na casa de uma família, na qual, como em quase todos lares, as pessoas sobrevivem com uma alimentação escassa e regulada. Eu estava me alimentando duas vezes ao dia em pequena quantidade, já havia perdido bastante peso, e estava entrando em um quadro de carência nutricional, o que, provavelmente, me tornou mais suscetível ao desenvolvimento de enfermidades. Essa realidade fez-se ainda mais penosa nesse período de convalescência pois o hospital não oferecia nenhuma refeição, e eu não tinha como consegui-la, o que acabou me tornando progressivamente mais debilitada. Esta vivência me fez sentir a impotência a que se está subjugado ao fazer parte de um contexto miserável e subassistido. Uma realidade macabra, na qual, muito além de tentar superar a dificuldade de se alimentar, é preciso lutar contra as consequências biológicas e psicológicas desse contexto, revelando um cenário em que a violência estrutural emerge como fator fomentador da violação dos direitos humanos mais básicos.

Estando a médica descrente dos resultados negativos dos exames diante do quadro sintomatológico, foi solicitada nova investigação para as mesmas doenças no dia seguinte, que mais uma vez eliminou tais possibilidades diagnósticas. A partir desse momento, a suspeita recaiu sobre a dengue, embora nem todos os sintomas fossem característicos. Com o agravamento do quadro e, em especial, a febre que não cedia, a orientação foi para que eu repetisse pela terceira vez o exame de malária, novamente negativo. Assim, o diagnóstico de dengue passou a ser aceito, não por ter sido investigado, mas por ter sido a possibilidade não excluída entre as prováveis suspeitas. O que restaria, então diante dessa “convenção” seria esperar que os sintomas passassem, dentro do curso normal da doença, reforçando a hidratação e usando medicação para diminuir a temperatura e a dor. Porém, a fadiga, a febre, a dor de cabeça, a sensação de mal-estar e os episódios de queda da pressão arterial estavam cada vez mais intensos, quando passei a me perguntar: E se não for um caso de dengue o que pode ser então? Havia um agente patogênico que precisava ser conhecido para um tratamento curativo ou de controle. Mas sem identificar o agente causador, seria muito difícil adequar o tratamento para uma resposta eficaz.

Foram quatro dias nesse quadro intenso, sem perspectiva de melhora, pois em sendo dengue, não havia necessidade de ser medicada e nem de ficar internada. O quadro de fome e de fraqueza, da mesma forma, era progressivamente maior. A vulnerabilidade em que eu me encontrava só pôde ser amenizada com a solidariedade de outros que, por boa vontade viabilizaram algum alimento e água. O único momento em que a sensação de fraqueza diminuía era durante a administração do soro, que eu recebia a cada ida ao hospital quando o quadro piorava. Essa experiência em relação à falta de comida foi muito marcante e imagino que a forma como eu me sentia se assemelhava à condição de tantos internos que não saberiam se teriam uma próxima refeição. A baixa ingesta calórica poderia, tanto para eles quanto para mim, estar protelando a remissão da enfermidade, uma vez que nenhum organismo consegue se defender malnutrido. E essa condição se repetia em praticamente todos os leitos. Comum era ver, em um mesmo quarto, familiares que tinham condições de trazer uma ou duas refeições para seu doente e outros que passavam o dia sem comer.

Já com extrema dificuldade para caminhar, na manhã do quarto dia, após mais uma noite sem dormir, convenci-me de que deveria buscar ajuda em outro lugar. Não estava sendo tratada para a causa. A conduta era esperar o curso normal da suposta doença. Sabia que de forma alguma teria condições de voltar ao Brasil, então decidi buscar ajuda na capital, Port au Prince. Pagando um carro particular, fui até a Klinik Saint Esprit, local onde eu havia trabalhado a primeira vez que estive no Haiti. Mais uma vez meu atendimento foi diferenciado. Imediatamente colocada no soro fui transferida para o Hospital Foyer Saint Camille para fazer exames, onde, no dia seguinte, recebi meu primeiro diagnóstico: uma resposta negativa para dengue, porém positivo para febre tifoide.

Sob os cuidados das irmãs do seminário St. Charles, onde estava instalada a clínica, recebo medicação e uma alimentação adequada, tendo uma resposta positiva imediata. Mas o quadro ainda não estava completo. No dia seguinte, surgiram erupções de pele, o que fez com que as irmãs imediatamente agendassem uma consulta no hospital da Argentina, base de apoio aos militares da MINUSTAH99Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti.. Sob uma nova bateria de exames foi dado mais um diagnóstico: o de dengue.

Agora, então, havia dois diagnósticos, ambos de doenças infectocontagiosas. Nesse cenário, a minha experiência de adoecimento servia apenas como comprovação de que o risco de morte prematura por doenças infectocontagiosas, facilmente tratáveis é, epidemiologicamente, maior entre os pobres que entre os não pobres. E entre os diversos fatores que justificam essa realidade está a maior exposição a patógenos e a situações patogênicas que se associam a menor acessibilidade a serviços biomédicos, apontando para que a luta inicial em prol da saúde deva se iniciar com uma luta contra a pobreza (Farmer, 2003FARMER, P. Pathologies of power: health, human rights, and the new war on the poor. Berkeley: University of California Press, 2003.). Porém, na minha história, o desenrolar do processo de adoecimento havia tomado outro rumo. O privilégio de poder ter minha enfermidade investigada até obter um diagnóstico e de fazer uma terapia adequada me direcionava para um outro lado dessa estatística: o da cura.

São muitas as frentes nas quais o sistema vigente viola os direitos humanos e as desigualdades decorrentes da pobreza se tornam uma vivência de sofrimento. Apesar de todas as dificuldades, sendo estrangeira, represento em toda essa história a parte privilegiada dessa desigualdade. A possibilidade de acessar tantos serviços médicos acabou proporcionando um desfecho que, para muito além da alegria da cura, fez pensar em como teria sido esse episódio se em meu lugar estivesse um morador típico da região de “Kaydesa”, malnutrido, sem condições de buscar ajuda em outro lugar e com um diagnóstico inconcluso.

As doenças infectocontagiosas como produto da violência estrutural

Vale agora retomar brevemente algumas resoluções políticas emergentes entre as décadas de 1990 e a primeira década do ano 2000 para discutir sua relação com a alta incidência de casos de febre tifoide e de outras enfermidades infectocontagiosas.

Dentre os momentos históricos mais importantes desse período, destaca-se a sucessão de acontecimentos ocorridos após a deposição do presidente Jean-Bertrand Aristide, em 1991, como responsável por uma das fases mais brutais e sofridas para a população haitiana. Além das milhares de mortes diretas ocorridas sob influências internacionais, a suspensão da ajuda estrangeira aumentou a miserabilidade da população e da saúde pública, acarretando uma avalanche de mortes produzidas pela falta de assistência e, sobretudo, pelas epidemias de doenças infecciosas, muitas das quais já passíveis de serem prevenidas com vacinas. As ainda piores condições nutricionais às quais a população foi subjugada aumentavam o risco de doenças e ajudaram a engrossar as estatísticas das perdas evitáveis e tratáveis.

Com o retorno do presidente Aristides em 1994, financiadores internacionais, cientes da incapacidade do país ser reerguido sem ajuda externa, decidem liberar um empréstimo de 500 milhões de dólares. O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e outros órgãos elaboraram extensos planos de reconstrução para alguns dos setores mais necessitados de auxílio, dentre eles a saúde pública, criando uma expectativa de mudanças para a população. Porém, sob a justificativa da crise política, essa ajuda acaba não se concretizando e o Estado, sem recursos, deixa o setor da saúde em uma situação ainda mais miserável. Por volta do ano 2000, as doenças infecciosas tomaram conta e a expectativa de vida baixou para menos de 50 anos no país (Farmer, 2010FARMER, P. Lucro contra saúde - Haiti: bloqueio e febre tifoide. Le Monde Diplomatique, Lisboa, 4 jan. 2010. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3c3ghxK >. Acesso em: 5 fev. 2017.
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).

Apesar de esse episódio refletir de forma expressiva no aumento da miserabilidade e no sofrimento da população, sob a justificativa da instabilidade política, mais um corte de ajuda financeira foi decretado ao país. Pelo poder político exercido por meio do BID, os Estados Unidos bloquearam empréstimos já concedidos ao Haiti “e congelaram qualquer possibilidade de obter fundos em outras instituições financeiras, tais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional”, conforme divulgação oficial (Farmer, 2010FARMER, P. Lucro contra saúde - Haiti: bloqueio e febre tifoide. Le Monde Diplomatique, Lisboa, 4 jan. 2010. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3c3ghxK >. Acesso em: 5 fev. 2017.
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)1010Citação trazida por Farmer (2010), com base no relatório da congressista Barbara Lee, de 23 de maio de 2002., mesmo tendo pleno conhecimento de que essa decisão política acarretaria ainda mais miséria a uma das populações mais pobres do planeta, segundo os próprios organismos responsáveis: “Globalmente, o principal motivo da estagnação econômica (do Haiti) é a supressão das subvenções e empréstimos do estrangeiro, paralela à resposta que a comunidade internacional deu ao impasse da situação política” (Robert; Machado, 2001ROBERT, D. R. MACHADO. Haiti: Economic Situation and Prospects. Inter-American Development Bank, [S.l.], 2001. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/39VncYd >. Acesso em: 13 jan. 2015.
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).

A história do Haiti foi, e continua sendo feita, com base em “acordos” que minam o desenvolvimento do país e massacram a população. O desenrolar desse episódio de negociações (“filhos do BID”) serve para exemplificar como a estrutura que beneficia alguns é sustentada pela violência “indireta” de outros.

Quando foi possível retomar as transações dos empréstimos entre o governo e tais órgãos, visando colocar em prática os projetos para a saúde, água potável e educação (desenhados em acordo com o BID), foi acordado o valor de 146 milhões de dólares a serem liberados ao governo haitiano (Farmer, 2010FARMER, P. Lucro contra saúde - Haiti: bloqueio e febre tifoide. Le Monde Diplomatique, Lisboa, 4 jan. 2010. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3c3ghxK >. Acesso em: 5 fev. 2017.
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). Três meses após a concessão, no entanto, o BID anunciou que para a liberação desse valor, o governo haitiano deveria, primeiramente, pagar cinco milhões de dólares de dívida em atraso, demonstrando o distanciamento existente entre a “intenção de ajuda” e as ações práticas. Como o Estado que já estava solicitando empréstimo poderia viabilizar tal montante? Que setor falido da economia e da assistência social seria ainda mais massacrado para que fosse cumprido esse pré-requisito?

Cinco meses após o acordo, o dinheiro ainda não havia sido liberado e, no entanto, o BID já estava fazendo mais uma exigência ao governo haitiano: o pagamento de uma “comissão de crédito” de 0,5 por cento do total do empréstimo, a serem pagos no prazo de 12 meses a partir da data de aceitação dos empréstimos:

Deste modo, em 31 de março de 2001 o Haiti já estava a dever ao BID 185 239,75 dólares de honorários relativos a um empréstimo nunca recebido, uma soma maior que o valor do próprio empréstimo. O montante total das comissões correspondentes aos cinco empréstimos de desenvolvimento contraídos junto do BID nas décadas anteriores elevava a dívida do país para 2 311 422 dólares. (Farmer, 2010FARMER, P. Lucro contra saúde - Haiti: bloqueio e febre tifoide. Le Monde Diplomatique, Lisboa, 4 jan. 2010. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3c3ghxK >. Acesso em: 5 fev. 2017.
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)

Nessa manobra, mais uma vez, os projetos que envolviam a saúde pública ficavam estagnados, e por suas consequências se pode pensar a base de sustentação da violência estrutural. Além dos programas que visavam a uma reestruturação nacional da saúde, com aumento da assistência e com a diminuição das taxas de mortalidade, outros projetos bloqueados em decorrências das suspensões financeiras tiveram influência direta na epidemiologia das enfermidades. Iniciativas que visavam a melhoria do acesso à água potável, uma emergência nacional, foram abandonadas, mantendo condições para a proliferação de várias doenças infectocontagiosas. A água contaminada é, provavelmente, a maior causa de morte infantil no Haiti e, sob a manifestação de febre tifoide, acarreta um número elevado de óbitos de adolescentes e adultos. Foi ao ler o artigo de Farmer (2010FARMER, P. Lucro contra saúde - Haiti: bloqueio e febre tifoide. Le Monde Diplomatique, Lisboa, 4 jan. 2010. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3c3ghxK >. Acesso em: 5 fev. 2017.
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) que tomei conhecimento de que eu estaria aumentando as estatísticas do grupo dos “filhos do BID”, uma designação usada pelos profissionais de saúde do hospital gerido por Paul Farmer para se referir aos inúmeros enfermos vítimas de febre tifoide consequente de manobras políticas e econômicas como as elencadas anteriormente.

Trabalhos mostrando focos endêmicos de febre tifoide tiveram registros em várias regiões do país no final da década de 1980, sendo, desde essa época, responsável por grande número de consultas. No final dos anos 1990, o departamento SUD1111Departamento SUD é uma das dez regiões administrativas que compõem o território haitiano. teve essa enfermidade como a quinta causa de internação hospitalar (Gorte Quiñones et al. 2009GORTE QUIÑONES, A. D. et al. Modificación de conocimientos sobre fiebre tifoidea en jóvenes en la comuna Morón. Revista de Ciencias Médicas de Pinar del Río, Pinar del Rio, v. 13, n. 4, p. 211-223, 2009.) e, em 2004, a PAHO/WHO registrou uma grande epidemia que ocorreu na região ocidental do país associada a vários casos de morte.

Quanto à região de abrangência do “Gwo Lopital Jeneral”, esta apresenta uma das mais altas incidências de febre tifoide do país, tendo sido a segunda maior causa de internação na ala da clínica médica entre 1989 e 1991. Naquele período, a incidência local era quase 10 vezes maior do que a estimada pela OMS para a região do Caribe no período de 1979 - segundo um trabalho retrospectivo de Ollé-Goig e Ruiz (1993OLLÉ-GOIG, J. E.; RUIZ, L. Typhoid fever in rural Haiti. Bulletin of PAHO, Washington, DC, v. 27, n. 4, p. 382-388, 1993. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2UQQYsN >. Acesso em: 24 maio 2018.
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). A febre tifoide continua sendo citada como a terceira mais frequente enfermidade transmitida pela água no Haiti, perdendo apenas para a diarreia e a hepatite A e, segundo dados do The world factbook (CIA, 2018CIA - CENTRAL INTELLIGENCE AGENCY. The World Factbook. Washington, DC, 2018. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2RlEQhq >. Acesso em: 17 jul. 2018
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), mostrando que o quadro permanece inalterado ao longo dos anos. A alta incidência com que as pessoas são contaminadas encontra subsídios no fato da água potável ser privilégio de menos de 57% da população - posição 177 no ranking mundial (Brazil…, 2017BRAZIL major infectious diseases. Index Mundi, [S.l.], 2017. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2XjH7gT >. Acesso em: 17 jul. 2018.
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), e na quase inexistência dos serviços de saneamento básico, que coloca 70% da população em condição de ainda maior vulnerabilidade - dados de 2015 (World Bank, 2017WORLD BANK. Taxa de mortalidade infantil. Washington, DC, 2017. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2JOTjy3 >. Acesso em: 22 set. 2018.
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). Não havendo políticas públicas que abordem a gestão de resíduos sólidos e líquidos, eles são jogados a céu aberto e disputam o espaço com animais e pessoas, criando um cenário propício à proliferação de uma variedade de doenças. O esgoto é depositado, em sua grande maioria, diretamente nos rios, de onde a população retira a água para uso diário. Embora existam alguns (poucos) locais próprios para recolher água para consumo, tanto na zona urbana quanto rural, a contaminação do lençol freático decorrente do lixo doméstico, latrinas e das indústrias multinacionais (que desrespeitam legislações conhecidas de preservação do meio ambiente) deixa a água imprópria para uso, sendo um mecanismo de proliferação de doenças.

Foi justamente a impossibilidade de uso de uma água apropriada nas atividades diárias que, acredito, acabou por me infectar com a Salmonella Typhi, causadora da febre tifoide1212O contágio é feito por meio da água contaminada com fezes humanas ou com urina contendo a bactéria. Salmonella entérica sorotipo Typhi.. Embora tenha tido o cuidado de consumir água potável acondicionada industrialmente, essa não foi uma precaução suficiente. Na verdade, diante da realidade, talvez não haja nenhuma precaução de fato eficaz. Vendida no market1313Market é o nome dado ao mercado onde se vende uma série de produtos, entre os quais os cultivados localmente. local, em pequenos sacos plásticos de 50 ml, tais bolsas com água ficam acondicionadas em grandes sacolas ou em caixas, sendo que na maioria dos estabelecimentos permanecem submersas em água do rio para manter o frescor. Estando pronta para ser consumida, a prática comum é abrir uma extremidade com os próprios dentes, sendo esse contato já suficiente para contrair a bactéria. Se, de outra forma, sendo mais precavida, optasse por lavar tais bolsinhas antes de consumir a água, acabaria por cair na mesma problemática da lavagem das frutas e das verduras, uma vez que a água para essa higienização também não é potável e possibilitaria, do mesmo modo, o contato com a bactéria. Para além dessa suscetibilidade, o banho, a escovação dos dentes e tantas outras atividades diárias também podem ter sido momentos em que se deu o contágio. Nesse cenário, a impressão que se tem é que é quase um milagre não sucumbir a alguma enfermidade transmitida pela água (vide a proliferação rápida dos casos de cólera em 2012), ainda mais pela realidade haitiana reservar ainda à população um panorama de péssimas condições alimentares e desnutrição, fator que oportuniza que a bactéria da febre tifoide, como de outras doenças, ultrapasse as barreiras protetoras do organismo e venha se manifestar como uma enfermidade (Febre…, 2013FEBRE tifoide. Atlas da Saúde, Belas, 20 ago. 2013. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2yF3dA0 >. Acesso em: 10 set. 2016.
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). A questão nutricional também contribui com o alto índice de letalidade da febre tifoide no Haiti. Antes da “era dos antibióticos”, foi identificado que a boa resolubilidade da doença associava-se ao fato de o paciente estar adequadamente nutrido e alimentado, opinião reforçada há mais de 20 anos pelo Dr. William Hodges (Freeman, 1998FREEMAN, B. C. Third-world folk beliefs and practices: Haitian medical anthropology. Porto Príncipe: La Presse Evangélique, 1998., p. 58), que salienta também a importância da solidariedade do grupo e do apoio familiar para a recuperação de doenças facilmente tratáveis nessa comunidade.

O depoimento do Dr. Hodges exprime uma realidade tanto observada nos internos quanto na experiência do meu próprio adoecimento com a febre tifoide. Embora estejamos na era dos antibióticos, e o que me foi ofertado garantiu a resolutividade da enfermidade, a demora diagnóstica que postergou a terapêutica correta, associada a má-nutrição acabou criando um quadro de sofrimento e risco muito maior do que o que seria encontrado em outros contextos. Da mesma forma, o suporte recebido por terceiros foi o que possibilitou a minha recuperação, deixando evidente que a precariedade da saúde pública no Haiti só não faz mais vítimas pela solidariedade com que a comunidade haitiana vive seu dia a dia. O alcance dessa solidariedade, porém, é limitado, e precisa dos avanços tecnológicos da biomedicina e de medidas práticas de atenção à população, conforme colocam Farmer et al. (2006FARMER, P. et al. Structural violence and clinical medicine. PLoS Medicine, São Francisco, v. 3, n. 10, 2006. , p. 1689): “Água potável e saneamento irão impedir casos de febre tifoide, mas aqueles que caem doentes precisam de antibióticos, a água limpa chegou tarde demais para eles”.

Apesar de ser considerado um hospital de referência, a precariedade do sistema de atenção à saúde biomédica em “Kaydesa” acabou por influenciar, de diversas formas, no agravamento da minha enfermidade. A inexistência de recursos para pesquisar uma das mais prováveis enfermidades, a dengue, deixa clara a distância entre a necessidade e a realidade em assistência biomédica. Por mais que a região de “Kaydesa” não seja um foco epidêmico dessa doença, o Haiti como um todo é considerado um país endêmico (CIA, 2018CIA - CENTRAL INTELLIGENCE AGENCY. The World Factbook. Washington, DC, 2018. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2RlEQhq >. Acesso em: 17 jul. 2018
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). O impacto da pobreza sobre a saúde pública é visto enquanto consequência da violência estrutural tanto nas instituições que oferecem assistência quanto nas enfermidades de maior incidência na população, junção que propicia a condição de que a saúde no Haiti esteja entre as piores do mundo (Castro; Farmer, 2004CASTRO, A.; FARMER, P. Pearls of the Antilles? Public health in Haiti and Cuba. In: CASTRO, A.; SINGER, M. Unhealthy health policy: a critical anthropological examination. 2004. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3c3gn8A >. Acesso em: 15 ago. 2018.
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).

A valoração da vida em cada contexto: a febre tifoide para pensar a abordagem das enfermidades infectocontagiosas nos diferentes grupos sociais

Dando sequência a essas reflexões, faz-se agora um aparte para discorrer sobre o que vem sendo discutido sobre a febre tifoide em países endêmicos como o Haiti e a forma como essa enfermidade infectocontagiosa é vista pela comunidade internacional.

De acordo com a WHO (2018WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Typhoid vaccines: WHO position paper - March, 2018. Weekly epidemiological record, Genebra, n. 13, p. 153-172. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/34mkEkE >. Acesso em: 10 set. 2018.
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), há entre 11 e 21 milhões de novos casos de febre tifoide anualmente, com uma estimativa entre 128 000 a 161 000 óbitos em todo o mundo. A depender da fonte de informação sobre a letalidade, a febre tifoide apresenta uma taxa de mortalidade maior que a do rotavírus ou da hepatite B, mostrando que continua sendo um sério problema de saúde pública mundial (Fondation Mérieux, 2007FONDATION MERIEUX. Report of the meeting on typhoid fever, a neglected disease: towards a vaccine introduction policy. Annecy, 2007. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2xVYgmf >. Acesso em: 16 ago. 2018.
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).

Essas estatísticas são alimentadas sobretudo pelos casos ocorridos em países pobres e em desenvolvimento, locais em que o tratamento da água e do esgoto é inexistente ou está muito abaixo do considerado satisfatório. Nos países desenvolvidos, onde tais questões não são mais um problema para a saúde pública, as taxas de contaminação são infinitamente menores, bem como a letalidade da doença. Quando tratada a tempo, e com os antibióticos corretos, a mortalidade pode cair de 10-20% para 1-4%, (Levine, 2017LEVINE, M. Typhoid fever vaccines. In: ORENSTEIN, W. A. (Ed.). Plotkin’s vaccines. 7. ed. Amsterdã: Elsevier, 2017. p. 1114-1144), mesmo quando a bactéria for resistente aos antibióticos de primeira e de segunda linha. A importância do uso do antibiótico correto está tanto em prevenir o agravamento da enfermidade e o risco de morte quanto em diminuir o sofrimento causado pela doença, reduzindo o risco de uma pessoa se tornar um portador assintomático.

A exemplificar as diferenças entre o potencial de contaminação, de sofrimento e de cura dessa enfermidade nos diferentes grupos sociais, os dados apresentados em um estudo feito em território americano servem para mostrar a discrepância dos achados locais com a realidade encontrada no Haiti (já apesentada). Segundo Gupta e Garg (2013GUPTA, V.; GARG, R. Typhoid fever and water. In: SINGH, Prati Pal; SHARMA, Vinod. Water and health. New Delhi: Springer Science & Business Media, 2013. p. 93-106.), a mortalidade por febre tifoide nos Estados Unidos chega a 0,2%, sendo caracterizada como uma doença febril de duração com média de 6 dias de hospitalização, em função da intervenção rápida e do uso de antibióticos apropriados. Entre 1999 e 2006, apenas 21% dos casos de febre tifoide era por contaminação ocorrida dentro do próprio país, sendo que tais ocorrências se deram, sobretudo, pelo consumo de alimentos importados (Lynch et. al, 2009LYNCH M. F. et al. Typhoid fever in the United States, 1999-2006. JAMA, Chicago, v. 302, n. 8, p. 859-865, 2009.). Os demais eram pessoas que haviam viajado para áreas endêmicas.

É com base nesses índices de contágio e de óbitos que órgãos internacionais de atenção à saúde elaboram as classificações de risco para a proliferação de determinadas doenças em uma nação, sendo o Haiti considerado um país de alto risco para o desenvolvimento da febre tifoide e da dengue (Brasil…, 2018; CIA, 2018CIA - CENTRAL INTELLIGENCE AGENCY. The World Factbook. Washington, DC, 2018. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2RlEQhq >. Acesso em: 17 jul. 2018
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; Fondation Mérieux, 2007FONDATION MERIEUX. Report of the meeting on typhoid fever, a neglected disease: towards a vaccine introduction policy. Annecy, 2007. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2xVYgmf >. Acesso em: 16 ago. 2018.
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). Apesar dessa classificação, os dados epidemiológicos sobre a febre tifoide no Haiti não são confiáveis, podendo estar ainda subestimados. Além da precariedade do serviço diagnóstico, há ainda a ineficiência ou a inexistência de um sistema de comunicação integrado e uma falha nas notificações das enfermidades, o que contribui para o desconhecimento da real incidência da doença (Fondation Mérieux, 2007FONDATION MERIEUX. Report of the meeting on typhoid fever, a neglected disease: towards a vaccine introduction policy. Annecy, 2007. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2xVYgmf >. Acesso em: 16 ago. 2018.
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; International…, 2017INTERNATIONAL CONFERENCE ON TYPHOID AND OTHER INVASIVE SALMONELLOSES, 10., 2017, Kampala. Proceedings… Baltimore, 2017. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2yDgKIi >. Acesso em: 15 set. 2018.
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) no país.

A partir da epidemiologia que sustenta a classificação de risco de uma nação é que as organizações internacionais debatem as abordagens para o controle das doenças. Segundo o relatório da WHO (2012WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Report of the Ad-hoc consultation on typhoid vaccine introduction and typhoid surveillance. Genebra, 2012. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2Vcu7H1 >. Acesso em: 3 abr. 2020.
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), é com base na incidência que se faz a programação de medidas de prevenção nas regiões endêmicas, momento em que se discute a necessidade de campanha de vacinação intensiva e outros planos de ação. Para além da miséria ser o ponto fundamental na suscetibilidade a essas e outras doenças, aspecto que torna evidente a violência estrutural, o seu controle, da mesma forma, aparece afundado em discussões e medidas não menos violentas, mostrando que são as forças sociais e políticas que determinam o risco para adoecer e o potencial real de cura (Castro; Farmer, 2004CASTRO, A.; FARMER, P. Pearls of the Antilles? Public health in Haiti and Cuba. In: CASTRO, A.; SINGER, M. Unhealthy health policy: a critical anthropological examination. 2004. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3c3gn8A >. Acesso em: 15 ago. 2018.
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).

Diante de todo o exposto, assumo, nesse momento, a responsabilidade que me é pertinente pelo desenvolvimento de ambas enfermidades, e as articulo em meio às decisões desses órgãos internacionais de saúde e à percepção da valoração da vida nos diferentes grupos sociais:

Várias são as corporações internacionais que, com base na avaliação de risco, trabalham em todo o planeta para informar sobre os perigos que determinadas regiões podem reservar para a saúde dos viajantes, bem como a forma de se prevenir de tais perigos, reconhecê-los e tratá-los. Informações para turistas e para trabalhadores estrangeiros sobre dengue, febre tifoide, cólera e outras doenças infecciosas estão disponíveis na internet em perfeitas aulas explicativas que usam uma variedade de recursos didáticos, sob a forma de ilustrações e longos textos, todos intencionando que tais visitantes não padeçam das mesmas enfermidades que atingem, com alarmante frequência, o povo de um determinado local.

A necessidade da vacina para a febre tifoide e, mais atualmente, para dengue, é um requisito amplamente divulgado para os viajantes que vão ao território haitiano. O que chama a atenção, no entanto, é que a preocupação com a integridade física do estrangeiro é tanta e tão intensa que, mesmo sendo de extrema validade, denuncia as diferentes formas com que esses órgãos se ocupam das doenças infectocontagiosas em cada grupo social aos quais se dirigem, deixando clara, em sua abordagem, a forma desigual com que valorizam a vida e respeitam o sofrimento.

Estas doenças infecciosas representam riscos para o pessoal do governo dos EUA que viajam para o país especificado por um período de menos de três anos. O grau de risco é avaliado considerando a natureza externa dessas doenças infecciosas, a sua gravidade e a probabilidade de ser afetada pelas doenças presentes […]. O risco de um viajante individual varia consideravelmente pelo local específico, duração da visita, o tipo de atividades, tipo de acomodação, época do ano, e outros fatores. Consulta com um médico de medicina do viajante é necessário para avaliar o risco individual e recomendar medidas preventivas adequadas tais como vacinas. (Brazil…, 2017BRAZIL major infectious diseases. Index Mundi, [S.l.], 2017. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2XjH7gT >. Acesso em: 17 jul. 2018.
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, tradução nossa)

A preocupação e a orientação para que o viajante seja vacinado é um dos focos informativos principais que esclarecem sua necessidade: “todos os viajantes que vão para áreas endêmicas estão em risco, os viajantes, especialmente a longo prazo, os viajantes de aventura, trabalhadores humanitários, e os amigos que visitam parentes em áreas de saneamento deficiente” (IAMT, 2016IAMT - INTERNATIONAL ASSOCIATION FOR MEDICAL ASSISTANCE TO TRAVELLERS. 2016. Haiti recommended vaccinations: typhoid fever. Toronto, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3e3KjDb >. Acesso em: 2 abr. 2020.
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). Além de uma infinidade de instituições privadas que se esforçam na divulgação dessas orientações, ONGs, OMS, organizações de saúde - como a Sociedade Internacional de Doenças Infecciosas, o Centro de Doenças transmissíveis (CDC) -, entre tantos outros reforçam a importância de se tomar a vacina para febre tifoide antes de viajar para regiões endêmicas, além de reforçar as precauções com o consumo de comida e água.

Essa última agência destaca, em uma das suas orientação, que o “adventurous eater” (“adventurous eater” seria aquela pessoa que, vinda de regiões mais afortunadas, onde a alimentação é variada e elaborada sob condições de higiene satisfatória, se aventura em comer e beber aquilo que, podendo não ser adequado para o consumo em sua matéria-prima ou nas condições de higiene, persiste em consumir alimentos duvidosos, tal qual os habitantes das regiões em questão) deve ter cuidado ao se alimentar no Haiti, mostrando, pela forma como a informação é veiculada, um total desrespeito com a condição de miséria alimentar e de saneamento básico a que, sem culpa, a comunidade precisa conviver, e que, diferentemente dos estrangeiros aventureiros, não dispõe de outra opção como escolha (CDC, 2018CDC - CENTERS FOR DISEASE CONTROL AND PREVENTION. Traveler’s health. Atlanta, 2018. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/34k69hr >. Acesso em: 10 set. 2018.
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).

Para além da importância desses esclarecimentos aos viajantes, a questão para a qual se chama a atenção é por que as orientações e a necessidade de vacinação são reforçadas com tanta ênfase para um público de trabalhadores e voluntários de ONGs e para os estrangeiros funcionários do governo, ao mesmo tempo que é tratada de forma tão mais “tranquila” por esses mesmos órgãos em relação à população mais suscetível? Porque eu, enquanto não pertencente ao grupo, devo ser alertada e vacinada e um haitiano local não precisa ser imunizado? Quais peso e medida usados para avaliar a intensidade do meu sofrimento e do meu risco de morte enquanto não haitiana, e quais os parâmetros utilizados com relação ao haitiano morador local?

A vacinação contra a febre tifoide e outras tantas doenças em países suscetíveis é um tema discutido de forma polêmica nas agências internacionais de saúde e nos órgãos financiadores mundiais. Embora a OMS tenha recomendado a vacinação em áreas endêmicas desde 1988, poucos países, e nesses não se inclui o Haiti, têm conseguido colocar em prática um programa de imunização preventiva de rotina (Typhoid…, 2015TYPHOID fever. Global Health Primer, Atlanta, 2015. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/34mVzGv >. Acesso em: 2 abr. 2020.
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)1414A BIO Ventures for Global Health (BVGH) é uma organização sem fins lucrativos que trabalha abordando problemas de saúde globais.. E mesmo sem ter sido operacionalizada essa primeira orientação no país, a OMS já fez uma adequação recomendando, a partir do ano 2000, a utilização de uma nova geração de vacinas para a imunização em crianças em idade escolar, em adultos jovens, e para aqueles que viajam para áreas altamente endêmicas, tendo em vista o aumento da resistência da bactéria aos antibióticos de primeira e segunda linha (Fondation Mérieux, 2007FONDATION MERIEUX. Report of the meeting on typhoid fever, a neglected disease: towards a vaccine introduction policy. Annecy, 2007. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2xVYgmf >. Acesso em: 16 ago. 2018.
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). A posição atual daWHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Typhoid vaccines: WHO position paper - March, 2018. Weekly epidemiological record, Genebra, n. 13, p. 153-172. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/34mkEkE >. Acesso em: 10 set. 2018.
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) recomenda a vigilância e o uso programático de vacinas da febre tifoide em todas as faixas etárias nessas áreas de maior risco, e controle especial em determinados grupos, entre eles os subnutridos, ressaltando que a prevenção por meio da imunização tem o potencial de diminuir o uso de antibióticos e limitar o surgimento de cepas mais resistentes, que são responsáveis pelo grande número de óbitos.

Apesar da extensão do problema e da sua dificuldade de controle, órgãos internacionais competentes e gigantes organizações globais de ajuda humanitária acabam sustentando a estrutura vigente e reforçando as questões financeiras como o principal entrave para justificar a não execução das orientações e dos planos de contenção (Farmer, 2003FARMER, P. Pathologies of power: health, human rights, and the new war on the poor. Berkeley: University of California Press, 2003.). Sob essa ótica Farmer (1999FARMER, P. Pathologies of power: rethinking health and human rights. American Jornal of Public Health, Waldorf, v. 89, n. 10, p. 1486-1496, 1999.) traz a terminologia “patologias do poder” para designar as enfermidades decorrentes da violência estrutural sob a lógica do custo-eficácia, que define o status de “caras demais” para determinadas drogas a serem usadas no mundo em desenvolvimento, deixando claro que, muitas vezes, os sujeitos são e estão doentes porque são pobres. Sob o controle de laboratórios privados, pesquisas seletivas acabam ditando preços irreais de medicamentos e vacinas, reduzindo a possibilidade de acesso a fármacos efetivos, protelando a cura e sendo corresponsáveis pela disseminação de doenças. Bloqueios na fabricação de medicamentos genéricos são práticas de grandes laboratórios, que sob a proteção de patentes permitem que centenas de pessoas morram das mais diversas doenças tratáveis e preveníveis (Farmer, 2003FARMER, P. Pathologies of power: health, human rights, and the new war on the poor. Berkeley: University of California Press, 2003.). Acordos que disponibilizam as medicações aos menos favorecidos, da mesma forma, vêm mascarados pela exploração, uma vez que são ofertados a custos exorbitantes. Sem a ajuda efetiva de organizações internacionais os valores são impraticáveis para o Estado, impedindo a execução de programas de assistência do governo e tornando a prevenção uma prática distante na comunidade.

Na avaliação da eficácia em termos de custo, a vacina da febre tifoide vem sendo discutida tanto em relação ao seu período de atuação, variável entre 2 e 9 anos, quanto ao seu potencial imunizador, que de acordo com a faixa etária pode estar entre 51% e 94%, (Typhoid…, 2015TYPHOID fever. Global Health Primer, Atlanta, 2015. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/34mVzGv >. Acesso em: 2 abr. 2020.
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). Atualmente, três tipos de vacinas contra a febre tifoide são recomendadas, segundo o relatório daWHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Typhoid vaccines: WHO position paper - March, 2018. Weekly epidemiological record, Genebra, n. 13, p. 153-172. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/34mkEkE >. Acesso em: 10 set. 2018.
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), e consideradas favoráveis em termos econômicos. Apesar de ser cost-effective, a distribuição em países pobres como o Haiti é dependente de iniciativas que vão além das políticas locais.

Em um sistema de vacinação básica que atinge apenas 53% do público-alvo (WHO, 2011), as vacinas de febre tifoide e de dengue, apesar da alta incidência, estão entre as várias que não são ofertadas pelo serviço público do Haiti. Na realidade, em termos práticos, a prevenção da febre tifoide pode ainda ser considerada uma utopia. Mesmo se pensando em programas que subsidiem a sua produção até torná-la custo-efetiva para a população, como aconteceu na Índia (país também endêmico), os valores de 1.30 dólares a dose para crianças (52 gourdes) e 4.00 dólares para adultos (160 gourdes) (Fondation Mérieux, 2007FONDATION MERIEUX. Report of the meeting on typhoid fever, a neglected disease: towards a vaccine introduction policy. Annecy, 2007. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2xVYgmf >. Acesso em: 16 ago. 2018.
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) torna a sua aquisição por meio de recursos particulares um gasto impraticável para a grande maioria dos haitianos. Foram várias pessoas e famílias que estavam sem poder desfrutar de uma única refeição no dia, mesmo em episódios de mais necessidade, como durante a convalescência. Entre proteger um membro da família para uma enfermidade que não se tem a certeza que vai desenvolver ou utilizar os 1,30 dólares para comprar um kg de arroz, um litro de óleo e um pouco de farinha, qual seria a escolha mais urgente? E há de se pensar o gasto total necessário para imunizar todos os membros de uma família. E mais ainda: o que fazer com relação às tantas outras enfermidades infeciosas de alto risco que não têm cobertura de vacinação por parte governamental e de nenhum outro órgão internacional?

Para além da dificuldade de prevenção, os sujeitos contaminados com a bactéria Salmonella Typhi passam a enfrentar uma série de dificuldades até a resolubilidade do processo de adoecimento. Segundo as estatísticas da PAHO/WHO (2004PAHO - PAN AMERICAN HEALTH ORGANIZATION; WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Enfermedades infecciosas emergentes y reemergentes, región de las Américas. Washington, DC, 2004. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/39Uhu99 >. Acesso em: 12 ago. 2018.
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), a alta incidência das mortes ocorridas no Haiti em decorrência da febre tifoide se relaciona, em parte, com a falta de recursos pessoais para a realização de consultas em tempo hábil e, em parte, com a falta de recursos das instituições para estabelecer o diagnóstico, uma vez que este só pode ser confirmado mediante testes laboratoriais específicos de sangue, fezes, urina e medula óssea. Para aqueles que superam essas dificuldades e conseguem ter acesso ao modelo biomédico de tratamento e a um diagnóstico, é necessário “enfrentar” ainda os custos do tratamento no sistema público de saúde, que há dez anos já estava estimado a um valor médio superior a 100 dólares americanos, montante que pode ser incrementado (até 500 dólares) em casos em que a demora pela busca de ajuda seja muito grande ou quando a bactéria for resistente a medicação administrada (Fondation Mérieux, 2007FONDATION MERIEUX. Report of the meeting on typhoid fever, a neglected disease: towards a vaccine introduction policy. Annecy, 2007. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2xVYgmf >. Acesso em: 16 ago. 2018.
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).

Em minha experiência, mesmo tendo recebido praticamente todo tratamento gratuito, incluindo as passagens pelos hospitais e a internação na clínica, e apresentado boa resposta ao antibiótico, o gasto com transporte e algumas taxas laboratoriais custaram $170 dólares americanos, valor impraticável para a grande maioria dos cidadãos locais, ainda mais se for levado em conta a urgência com que esse montante precisa ser viabilizado para prosseguir com o tratamento.

Para finalizar esta discussão, trago mais um dado para se pensar a complexidade do tema que envolve a discussão dos direitos humanos sob a análise de órgãos que avaliam os riscos de uma população e elaboram os planos de execução das políticas públicas globais sob a análise do custo-eficácia. Um estudo realizado por Carias et al. (2015CARIAS, C. et al. Economic evaluation of typhoid vaccination in a prolonged typhoid outbreak setting: the case of Kasese district in Uganda. Vaccine, Amsterdã, v. 33, n. 17, p. 2079-2085, 2015.) fez a projeção de uma campanha contra a febre tifoide no distrito de Kasese, Uganda, o qual é citado como referência no último relatório da WHO (2018WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Typhoid vaccines: WHO position paper - March, 2018. Weekly epidemiological record, Genebra, n. 13, p. 153-172. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/34mkEkE >. Acesso em: 10 set. 2018.
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). Por meio de um programa de vacinação único em indivíuos acima de dois anos de idade, com cobertura média de imunidade por três anos, seriam evitados 5300 casos de febre tifoide e 120 mortes, e uma economia de US$ 341 por caso evitado. Nesse estudo, o custo da vacina (em seu valor mais baixo) somado aos gastos de toda campanha de vacinação estaria próximo aos US $ 0,65 por pessoa. Custos com a produção de vacinas podem ainda ser potencialmente reduzidos com a transferência de tecnologia para os produtores emergentes adicionais e por meio das compras em grandes volumes (Fondation Mérieux, 2007FONDATION MERIEUX. Report of the meeting on typhoid fever, a neglected disease: towards a vaccine introduction policy. Annecy, 2007. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2xVYgmf >. Acesso em: 16 ago. 2018.
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, p. 26).

A violência estrutural dá formato a um cenário no qual a pobreza favorece os riscos de adoecimento (Farmer, 2010FARMER, P. Lucro contra saúde - Haiti: bloqueio e febre tifoide. Le Monde Diplomatique, Lisboa, 4 jan. 2010. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3c3ghxK >. Acesso em: 5 fev. 2017.
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). A partir dela, educação, água limpa, alimentação e saúde são direitos econômicos e sociais privados de muitos grupos, e são a base dos padecimentos por enfermidades evitáveis. (Farmer, 1999FARMER, P. Pathologies of power: rethinking health and human rights. American Jornal of Public Health, Waldorf, v. 89, n. 10, p. 1486-1496, 1999., 2003FARMER, P. Pathologies of power: health, human rights, and the new war on the poor. Berkeley: University of California Press, 2003.). Enquanto sustentáculo das desigualdades sociais, a violência estrutural é responsável pela violação de grande parte dos direitos humanos e tais violações são sim sintomas de patologias mais profundas do poder, que tão frequentemente determinam quem irá sofrer abusos e quem estará protegido contra danos (Farmer, 2003FARMER, P. Pathologies of power: health, human rights, and the new war on the poor. Berkeley: University of California Press, 2003.). Os embargos políticos, econômicos e a exploração do capitalismo no Haiti assumiram proporções catastróficas quando tornaram os haitianos mais suscetíveis a ficar doentes, colocando-os à margem dos avanços médicos e científicos.

Todas essas questões levantadas neste texto acabam reportando a uma pergunta básica feita por Farmer (2003FARMER, P. Pathologies of power: health, human rights, and the new war on the poor. Berkeley: University of California Press, 2003., p. 206) à sociedade e aos órgãos internacionais que pensam as políticas e estratégias para a saúde pública no âmbito global: “Se o acesso aos cuidados de saúde é considerado um direito humano, quem é considerado humano o suficiente para ter esse direito?”

Direitos estabelecidos universalmente só existem de fato quando as diretrizes e propostas saem do campo puramente teórico e se refletem no benefício de todos os grupos sob um usufruto equitativo dos avanços científicos.

Referências

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  • YAP, P. M. Koro - a culture-bound depersonalization syndrome. The British Journal of Psychiatry, Cambridge, v. 111, n. 470, p. 43-50, 1965.

  • 1
    Agradecemos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e ao ao Instituto Brasil Plural (IBP) pelo financiamento do artigo.
  • 2
    Tese intitulada Agentes, saberes e práticas no processo saúde/doença no Haiti.
  • 3
    Termo cunhado do antropólogo e professor Eduardo Menéndez.
  • 4
    Paul Farmer é responsável pela ONG Partners in Health que atua na área da saúde no Haiti, tendo inúmeras pesquisas desenvolvidas em campo
  • 5
    Mais de 40% da população do país é analfabeta, 21ª posição mundial em índice de analfabetismo (Brazil…, 2017BRAZIL major infectious diseases. Index Mundi, [S.l.], 2017. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2XjH7gT >. Acesso em: 17 jul. 2018.
    https://bit.ly/2XjH7gT...
    )
  • 6
    Relato da experiência de adoecimento da autora
  • 7
    O acesso ao hospital por ruas completamente escuras foi uma dificuldade considerada para adiar a busca pelo hospital. A energia elétrica no Haiti é disponível apenas para 38% das residências (CIA, 2018), e em vias públicas a situação é ainda mais grave.
  • 8
    As instituições e os locais descritos neste artigo que estão referenciados ao longo do textos entre aspas e em itálico, são apresentadas com nomes fictícios.
  • 9
    Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti.
  • 10
    Citação trazida por Farmer (2010), com base no relatório da congressista Barbara Lee, de 23 de maio de 2002.
  • 11
    Departamento SUD é uma das dez regiões administrativas que compõem o território haitiano.
  • 12
    O contágio é feito por meio da água contaminada com fezes humanas ou com urina contendo a bactéria. Salmonella entérica sorotipo Typhi.
  • 13
    Market é o nome dado ao mercado onde se vende uma série de produtos, entre os quais os cultivados localmente.
  • 14
    A BIO Ventures for Global Health (BVGH) é uma organização sem fins lucrativos que trabalha abordando problemas de saúde globais.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    15 Out 2019
  • Aceito
    03 Mar 2020
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br