Reflexão sobre a saúde indígena e os desafios atuais em diálogo com a tese “Tem que ser do nosso jeito”: participação e protagonismo do movimento indígena na construção da política de saúde no Brasil

Ailton Krenak Sobre o autor

Resumo

Este ensaio traz o discurso proferido por Ailton Krenak em 25 de março de 2020, na Banca de Doutorado de Nayara Scalco, sob orientação da professora Marília Louvison, no Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, acrescido de trechos da palestra proferida no Seminário Internacional: A Saúde Indígena e a Ecologia de Saberes no Enfrentamento dos Desafios Atuais: “Tem que ser do nosso jeito”11O Seminário Internacional: A Saúde Indígena e a Ecologia de Saberes no Enfrentamento dos Desafios Atuais: “Tem que ser do nosso jeito”, realizado em 26 de março de 2019, está disponível em <https://bit.ly/3povjUR> e <https://bit.ly/3aspLoi>., em 26 de março de 2019. Neste cenário, traz a importância do diálogo entre diferentes saberes e como o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena se constitui. Com foco no debate sobre a relação entre Estado brasileiro e povos indígenas desde os tempos do Brasil colônia, a partir da produção das Epistemologias do Sul que guia a discussão da tese, propõe repensar a saúde e o cuidado para além do saber biomédico.

Palavras-chave:
Saúde Indígena; Subsistema de Atenção à Saúde Indígena; Políticas Públicas; Epistemologias do Sul

É uma enorme alegria estar aqui com vocês nesta oportunidade. Muito prazer de estar integrando essa mesa, numa situação que nós sabemos que não é muito comum. Eu não sei quantas vezes uma pessoa indígena esteve, de fato, admitida numa condição de avaliar uma tese ou uma dissertação nas nossas universidades. Não é muito comum sujeitos que habitam aquele outro lado da linha abissal (Santos; Meneses, 2009SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. (Org.). Epistemologias do sul. Coimbra: Almedina, 2009.) serem chamados para opinar deste lado - talvez isto reflita o tal do colonialismo interno (Casanova, 2006CASANOVA, P. G. Colonialismo interno (uma redefinición). In: BORON, A. A.; AMADEO, J.; GONZÁLEZ, S. (Org.). La teoria marxista hoy: problemas y perspectivas. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2006. p. 409-434. ). É um exemplo real de colonialismo interno que nos impregna.

Procurei fazer as leituras possíveis dessa tese (Vieira, 2019VIEIRA, N. B. S. “Tem que ser do nosso jeito”: participação e protagonismo do movimento indígena na construção da política de saúde no Brasil. 2019. Tese (Doutorado em Ciências) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.) e fico muito contente de ter essa oportunidade, que coincide com o fato de estarmos aqui experimentando essa fricção entre o saber arrogante, como disse o professor João Arriscado Nunes, e as ecologias de saberes (Santos, 2010SANTOS, B. S. Ecologia de saberes. In: SANTOS, B. S. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2010. p. 137-178.). O que sugere essa imagem é exatamente a situação histórica desses povos que são o pretexto desta nossa conversa acerca do Subsistema da Saúde Indígena. O Subsistema da Saúde Indígena só tem sentido entre esses embates: entre o que seria essa ecologia de saberes e aquele saber arrogante. Nós vivemos uma história revestida pelo colonialismo, na qual o Estado que promove as políticas públicas é o nosso inimigo.

Não podemos pensar que o Estado dentro do capitalismo vai promover cuidado com alguém. Pelo contrário, ele vai devorar as pessoas assim como devora as paisagens. Nós somos uma plataforma extrativista pró-capitalismo. As nossas montanhas, os nossos rios, as nossas florestas e os nossos corpos têm o mesmo gradiente da abordagem das economias, que engloba o planeta inteiro, e isso não é apenas um problema brasileiro. A forma de o capital tratar a saúde e o campo da saúde como uma mercadoria está cada vez mais em disputa, e com uma tendência crescente em todos os lugares do mundo. É como se fosse um passe: te vendem um passe para a sobrevivência, que é o pacote da saúde.

Então, esta tese (Vieira, 2019VIEIRA, N. B. S. “Tem que ser do nosso jeito”: participação e protagonismo do movimento indígena na construção da política de saúde no Brasil. 2019. Tese (Doutorado em Ciências) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.) buscou apoio na construção das Epistemologias do Sul (Santos; Meneses, 2009SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. (Org.). Epistemologias do sul. Coimbra: Almedina, 2009.) e nos instrumentos da ecologia dos saberes para entrar neste assunto e tentar desvendar algumas dessas ocultações que integram a nossa coexistência. Essas ocultações são os lugares do silenciamento, a negação do sujeito. Toda essa trajetória das nossas relações coloniais nos afeta até hoje, pelo fato de a gente ter saído da colônia, inaugurado uma república. O texto reflete bem essa travessia, e a forma como a colonialidade se despista e atravessa os tempos com a mesma viralidade.

Na colônia, nós éramos duramente perseguidos com as tentativas de uso desses corpos como força de trabalho escravo. O nosso não submetimento à condição de mão de obra escrava nos colocava na condição de índios hostis, e a gente sofria com a violência e as guerras. Então, esse processo de estranhamento entre os povos que estavam aqui e os que chegaram para ocupar esse território nunca teve trégua, mesmo quando as políticas do Estado buscavam de alguma maneira refletir mudanças estratégicas com relação a esses povos, como o “morde e assopra” do Serviço de Proteção ao Índio e da Fundação Nacional do Índio. Todas essas políticas só despistavam o modo colonial de aniquilamento, que no texto “Tem que ser do nosso jeito”: participação e protagonismo do movimento indígena na construção da política de saúde no Brasil é alcançado pelo uso do recurso da ecologia de saberes (Vieira, 2019VIEIRA, N. B. S. “Tem que ser do nosso jeito”: participação e protagonismo do movimento indígena na construção da política de saúde no Brasil. 2019. Tese (Doutorado em Ciências) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.).

Este conjunto de instrumentos que o professor Boaventura e os seus colegas (Santos; Meneses, 2009SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. (Org.). Epistemologias do sul. Coimbra: Almedina, 2009.) foram estruturando amplia o aparato de contestação à fúria desse capitalismo que devora o planeta - e nós não somos escolhidos em especial; o capitalismo devora todo mundo. Estamos todos sendo comidos: as nossas montanhas, os nossos rios e as nossas subjetividades.

Dentro desse campo das subjetividades, seria interessante a gente pensar o contato do que chamamos de cuidado, de saúde, e não ficar prisioneiro dessas marcas já determinadas sobre o que é saúde, doença, bem-estar; essas ideias cristalizadas sobre o corpo, um corpo que não se constitui, um corpo que é dado. Tomar coragem de ser um corpo que se constitui, um corpo crítico, que nos permitiria fazer uma outra pergunta mais radical: será que os índios não iriam sobreviver sem a medicina do branco? Então, essas são as questões que emergem da leitura desse interessante documento, porque na medida em que ele abre uma fissura na lógica do sistema, que é colonialista, capitalista e predatório, ele puxa um pequeno apêndice para falar de uma coisinha que é a saúde.

Por que é uma coisinha? Porque dentro do capitalismo, dentro da lógica imperial, a última coisa que interessa é a vida. Nós somos, todos, matéria para queimar. A nossa história colonial queimava, transformou gente em carvão. Bem mais de milhares e milhões de pessoas supriram a demanda do colonialismo nas caldeiras: gente-carvão. Entendo que essa ideia de gente-carvão é a mais consequente na crítica ao colonialismo: é quando ele toma os outros corpos como uma matéria que ele pode manipular, que ele pode fazer virar força de trabalho para cana de engenho, para puxar engenho, para fazer hidrelétrica, para fazer estrada, para construir fazenda, para plantar café. Precisa de gente para fazer isso, e no caso daqui ele foi implantado com mão de obra escrava.

No Brasil, quem plantou café foram os negros, quem plantou cana foram os negros, quem fabricou açúcar foram os índios e os negros. No final do século XIX, com a chegada dos imigrantes italianos, eles pararam de usar mão de obra escrava porque eles tinham uma mão de obra mais treinada e mais dócil para plantar café. Os italianos vieram para substituir a mão de obra escrava, mas não em condições muito melhores do que os escravos. Era mais barato trazer italianos libertos que iriam trabalhar de boa vontade, e muitas vezes só em troca de comida e de um lugar para ele ficar ali, do que vigiar índio que fugia e sustentar negros nas senzalas. Foi assim que essa história colonial foi se constituindo, até configurar essa sociedade complexa que nós somos, na qual quase desapareceram com os índios.

Se fosse um daqueles mitos antigos, a gente iria dizer: estava programado que um dos três sujeitos fundadores do mito tinha que desaparecer, mas por alguma razão, por algum dispositivo, esse sujeito, o índio, teve uma erupção. E ele apareceu na cena da história política do Brasil só no final do século XX, porque até as décadas de 1950, 1960, esse sujeito estava totalmente sepultado. Tanto que o Darcy Ribeiro (1977RIBEIRO, D. Os índios e a civilização. Petrópolis: Vozes, 1977.), numa prancha do livro Os índios e a civilização, diz que os povos Krenak, Aimoré, Tremembé estavam extintos. Durante a colônia inteira ficou aquela ambiguidade, e penso que nem era prioridade naquela hora acabar com os índios. Quando se inaugura a República, todos os bandeirantes, caçadores de índios, vieram para dentro da República e criaram o Serviço de Proteção ao Índio. Apesar de todo o culto que é feito à memória do Marechal Rondon,22Cândido Mariano da Silva Rondon, conhecido como Marechal Rondon (Santo Antônio de Leverger, 1865 - Rio de Janeiro, 1958): engenheiro militar e sertanista brasileiro. Foi o primeiro diretor do Serviço de Proteção ao Índio e estimulou a criação do Parque Nacional do Xingu. eles eram exatamente aqueles que trouxeram os índios ao estado de extinção. Quando chegam as décadas de 1930, 1940, 1950, praticamente toda a literatura produzida no Brasil já declarava os índios extintos.

Há inúmeros povos que estão hoje azucrinando Brasília, jogando pedra nos vidros do Palácio, que estavam extintos. Então é próximo de uma literatura fantástica, e nem o Gabriel García Márquez (1977MÁRQUEZ, G. G. Cem anos de solidão. Rio de Janeiro: Record, 1977.) iria entender como essa multidão de gente que já estava morta apareceu para bagunçar o coreto, ocupar a avenida Paulista, azucrinar o Alckmin,33Geraldo José Rodrigues Alckmin Filho (Pindamonhangaba, 1952): governador do estado de São Paulo de 2001 a 2006 e de 2011 a 2018. infernizar o Temer,44Michel Miguel Elias Temer (Tietê, 1940): presidente do Brasil de 31 de agosto de 2016, empossado após o impeachment da titular, Dilma Rousseff, a 1º de janeiro de 2019. e eventualmente também bater lata para a Dilma55Dilma Vana Rousseff (Belo Horizonte, 1947): presidente do Brasil de 1º de janeiro de 2011 até seu afastamento por um processo de impeachment em 2016. e o Lula,66Luiz Inácio Lula da Silva (Caetés, 1945): presidente do Brasil de 1º de janeiro de 2003 a 1º de janeiro de 2011. quando eles não entenderam e tentaram fazer Belo Monte. Aliás, os índios avisaram: “não façam esse troço que isso vai dar errado”. E deu errado!

Mas os índios ainda não ganharam o crédito de profetas, eles no máximo são pajés, que é o que coloca a medicina dos índios bem naquele lugar atribuído pela biomedicina, pelos especialistas do ramo, que são os saberes. Tem uns saberes, os índios têm uns saberes, mas esses saberes precisam ser comprovados. Um amigo meu da Universidade Federal de Ouro Preto pediu minha colaboração para um documento que estava produzindo com o objetivo de “comprovar a racionalidade do sistema de práticas curativas dos índios, comprovar a racionalidade da medicina indígena”. Ele estava escolhendo o cara errado, pois eu iria convencê-lo de que não há racionalidade nenhuma nisso, nem na sua medicina. Que a sua medicina é uma ficção, que vocês inventam doença, e depois inventam remédio, e os laboratórios se enchem de grana.

Pois bem, pondo em questão que são práticas marcadamente de origens e percursos distintos, em que momento é possível cruzar a ideia da integralidade e equidade quando o próprio complexo todo não tem equidade, e mesmo quando busca a integralidade o faz de uma maneira manipulada e com o objetivo de controle? O sistema da saúde do Ocidente é controle, como colocou Foucault (1987FOUCAULT, M. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1987.), o barato do Ocidente é vigiar e punir. Então, ele só mantém vivo quem ele pode usar a seu serviço, e deixa morrer quem ele não quer vivo. Por que o Estado brasileiro daria sustentação a um complexo programa de integralidade e equidade na saúde para os inimigos do Estado, que somos nós? Ou vocês estão confundindo a gente com alguém que nós não somos? O povo indígena não vai dar refresco para o Estado.

Se o Estado quiser cuidar dos índios, o Estado precisa saber quem nós somos. Quando o Pierre Clastres (2003CLASTRES, P. A sociedade contra o Estado: pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac Naify, 2003.) diz que essas sociedades, no seu modo de existir, contrariam a configuração do aparato do Estado, ele não estava provocando nenhuma crise no sistema de conhecimento da sociologia, da antropologia, das ciências sociais. Clastres (2003) viveu no meio dos Mbyá, dos Guarani Paí Tavyterã, dos Yanomami. Esses parentes, com as cosmovisões deles, nunca deixaram o Estado dominá-los, eles sempre escaparam desse controle. Então, ele viu gente que tinha uma potência, uma autonomia de estar no mundo que o fascinou a ponto de afirmar que o Estado não tem o que dizer a essa gente; esses indígenas na sua constituição não concebem uma coisa sobre eles, eles são soberanos; eles podem ser poucos, mas são soberanos em relação a qualquer domínio.

É por isso que o Estado brasileiro colonial, português, ou atualizado para os novos termos, não consegue estabelecer uma comunicação com equidade com esses povos. A relação vai ser sempre desigual. Eu nunca procurei uma correspondência desse aparato com o que nós somos ou pensamos. Eu sempre lidei com o Estado como uma ameaça. Esse aparato é uma ameaça para os nossos corpos, e é uma ameaça para os nossos modos de estar no mundo com a captura que ele faz de todo o mundo simbólico.

As nossas medicinas não têm nada a ver com isso que os não indígenas chamam de medicina; as próprias ideias do corpo, da pessoa, são distintas. E decididamente isso não é uma particularidade dos Kamaiurá, dos Yawalapiti, ou de quem ficou, digamos, escondido em alguma área remota do Brasil. Isso também está na cabeça dos Pankararu que estão ali nas favelas do Morumbi (no Real Parque), nos Truká, nos Fulni-ô, nos Kiriri, nos Kariri-Xocó, pessoal que está no rio São Francisco, lutando há 300 anos. Some, submerge, emerge.

O sistema de clivagem do Ocidente dizia: tem branco, tem negro e tem índio, e definia o que é cada um. Passa o tempo e decidem sumir com os índios. Ao aparecer aquela gente de novo, o Ocidente questiona: “mas esse aí não é o índio? O índio que desapareceu não é esse que apareceu?” Bom, você conhece outro povo que desapareceu e apareceu de novo? É uma transfiguração, ele desapareceu e apareceu. E querem ter um retrato dele, do desaparecido, para achá-lo? Não, agora ele é outro, cara! Ele é outra gente, é outra pessoa. Nem sequer isso o Estado consegue perceber, porque eles querem que um laudo antropológico, que um inventário que remonta ao século XVII, XVIII, prove que aqueles Tupinambá que o Florestan Fernandes (1970FERNANDES, F. A função social da guerra na sociedade Tupinambá. 2. ed. São Paulo: Pioneira, 1970.) disse que estavam na mata atlântica são os mesmos Tupinambá de Olivença, que estão na Bahia. Porque afinal de contas os Tupinambá acabaram.

Florestan (Fernandes, 1970FERNANDES, F. A função social da guerra na sociedade Tupinambá. 2. ed. São Paulo: Pioneira, 1970.) ainda disse que os Tupinambá são sociedades que se reproduzem como a guerra, que é o seu mote. Fazendo guerras, essa sociedade vai se reconstituindo e reformulando. Você sai, caça alguém, faz a guerra, e aquela sociedade vai fazendo ritos, vai fazendo festas, vai se reproduzindo. Uma coisa boa que o Florestan Fernandes deixou para a gente foi isso. Nós somos todos Tupinambá, a gente não vive sem guerra, a gente está o tempo inteiro fazendo guerra para reproduzir esse sistema colonial, que chegou aqui fazendo guerra de extermínio, e que continua se reproduzindo nas nossas práticas.

A política que o Estado faz contra nós todos, índios, negros e brancos, é política de extermínio. Alguns não indígenas devem estar pensando que eles estão caçando os índios, mas eles estão caçando todo mundo, os índios, os brancos e os negros. Eles estão caçando todos os corpos que têm algum potencial de insurgir contra uma ordem abstrata que quer todo mundo dominado.

Estive no começo na 8ª Conferência Nacional de Saúde, e por um acaso, talvez não por um acaso, mas por uma situação histórica, fui eu que fiz um encaminhamento de uma resolução propondo que se realizasse a 1ª Conferência Nacional de Saúde Indígena. Essa resolução foi aprovada e nós tivemos a 1ª Conferência Nacional de Saúde do Índio, que veio a produzir ao longo dessa história política alguns instrumentos, e o que configura hoje a política da saúde exercida dentro desse conduto, que é o Subsistema da Saúde Indígena. Eu tenho corresponsabilidade com a existência dessa experiência. Uma experiência continuada, sem cessar, todo ano, toda conferência, toda articulação regional. Foi um processo intenso até chegarmos nesta situação em que parece que não interessa mais ao Estado brasileiro, por uma circunstância, que esse instrumento continue existindo. Isto denuncia a ausência de Estado de Direito e de democracia.

Nós não vivemos numa democracia e nós não vivemos também uma situação em que os direitos conquistados, os direitos constituídos em processos de mobilização e de luta social, estão sendo respeitados. Então, se nós temos uma situação em que podem ser postas em questão as conquistas da cidadania, nós precisamos ser capazes de discutir em um tom mais crítico e menos apreciativo da história recente.

Nós temos que ver que estamos diante de uma afronta. Estamos em um quadro mais geral no qual não vamos ter muitas possibilidades de recorrer a outros fóruns a não ser o da nossa própria capacidade de resistir e de brigar, de lutar pelos nossos direitos, aqui dentro desse país que nós compartilhamos, com tantas desigualdades que ficam escrachadas quando a gente fala da situação dos povos indígenas.

***

Tomando a realidade ampla que nós estamos vivendo, as demandas, as agendas de lutas são dos povos que estão ligados com a terra. O povo indígena, quando diz que “terra é saúde”, não é só um slogan, um lema para campanha. Eles estão dizendo: “a gente vai morrer por causa disso, nós não vamos mudar de estratégia, nós vamos morrer se for preciso”.

Os outros movimentos ligados com demanda de terra não têm na terra o seu único lugar de existência. A terra, para esses, também é uma mercadoria. Para todos os outros grupos, à exceção dos índios e dos quilombolas, terra é mercadoria. Então, é uma disputa que cabe muito bem dentro da lógica do capitalismo e dentro de um Estado autoritário e manipulador. É por isso, inclusive, que mesmo numa ditadura você pode ter um programa de reforma agrária. É produção, vai colocar o pessoal para produzir para o mercado, vai integrar essa gente no mercado. Agora, o que não é admissível, é contraditório com as relações dentro do Estado capitalista organizado com economia capitalista, é que você respeite as autonomias de povos que vão estar em territórios - além de terra, territórios - e que têm identidade, e que estabelecem governança nesses territórios a partir das suas perspectivas. Não tomam posse de glebas de terra para produzir para o mercado. Essa é a questão de fato. E o que mais torna inviável essa relação é o fato de que será uma posse comum do território. A posse e o uso são comuns, são povos compartilhando o uso de um território que informa um pensamento sobre si. É diferente de um monte de pessoas tomarem conta de uma gleba de terra para poder plantar flores ou batatas e entrar na economia de mercado. A crise é quando você tem gente que quer viver, e não entrar na fila da produção.

Na América Latina tem acontecido recorrentemente o fato de um assunto virar uma potência de mobilização, de articulação, em relação a uma situação autoritária do Estado. Na Argentina, a liderança Mapuche puxou um movimento grande de contestação de uma das regiões das províncias, que se tornou uma mobilização nacional de trabalhadores de todas as categorias, em torno de uma fagulha. Então, se o movimento indígena cria uma fagulha que pode mobilizar as populações que estão além dessa agenda da terra, nos centros urbanos, com os trabalhadores, isso pode até acontecer.

Se a população urbana está se sentido bem, tudo bem, então não precisa ficar preocupada em transformar isso numa bandeira que vai interessar a todos. Agora, se estão incomodados, se estão de verdade percebendo que a mudança climática, que a falta de água, que a qualidade de vida urbana é ruim, então se movam para que essa coisa mude. Porque eu não acho que viver na cidade seja o destino de todo mundo, e decerto não é o destino final dos índios. Essas situações em que há povos indígenas vivendo no trânsito, em regiões urbanas, é o resultado de uma guerra constante que nós estamos sofrendo há muito tempo.

Nós nunca ficamos em paz. Essa máquina sempre esteve fazendo guerra contra alguém, aqui dentro. Uma hora são os índios, uma hora são os negros, outra hora são os pobres em geral. Então, nós não podemos ser assim, tão ingênuos, tão alienados a ponto de ficar achando que nós estamos numa ilha. Nós não estamos numa ilha, nós estamos num mar de tormentas. Nenhum povo indígena acha que está em paz, todos sabem que estão em guerra.

O fato de a história do Brasil não ter conseguido admitir o povo indígena dentro do seu modo de operar e de se constituir como sociedade criou o escândalo de quando falam do povo indígena, falam como se estivessem falando ou de gente totalmente incapaz ou de gente que está sempre à beira de uma crise na relação com a sociedade brasileira. Então, como o Brasil nunca decidiu se mata ou não mata os índios, eles criaram uma caixa de primeiros socorros para ir fazendo uns curativos enquanto decidem se aniquilam ou não. Na história, as contagens, o censo, vão se surpreendendo com a reaparição de povos que foram declarados extintos em outras épocas, e com o surgimento de povos que sequer tinham surgido nas localizações diferentes do país onde eles aparecem.

E nós continuamos reaparecendo em diferentes contextos. Reaparecendo no contexto urbano, reaparecendo no meio de florestas não reconhecidas nem demarcadas, reaparecendo em lugares já reconhecidos e demarcados, como uma espécie de constante questionamento à ideia de uma Nação e à ideia de um Estado. Deveríamos considerar que qualquer política pública só pode acontecer condicionada, que ela está sendo feita para um povo que até agora o Estado não sabe se deixa ficar vivo ou se mata. Então, não vamos ficar alimentando muita ilusão sobre o Estado brasileiro, em qualquer circunstância, mesmo numa experiência mais ou menos de promoção de inclusão nas outras políticas, que talvez tenham inspirado uma boa parte do desenho do Subsistema da Saúde Indígena. Uma certa vontade de promover inclusão e política pública é que fez com que se constituísse uma nova categoria de trabalhadores da saúde, que são os especialistas em saúde dos índios. E a minha pergunta de novo é: será que os índios iriam morrer se não existissem especialistas em saúde dos índios?

É isso. Muito obrigado.

Referências

  • CASANOVA, P. G. Colonialismo interno (uma redefinición). In: BORON, A. A.; AMADEO, J.; GONZÁLEZ, S. (Org.). La teoria marxista hoy: problemas y perspectivas. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2006. p. 409-434.
  • CLASTRES, P. A sociedade contra o Estado: pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
  • FERNANDES, F. A função social da guerra na sociedade Tupinambá. 2. ed. São Paulo: Pioneira, 1970.
  • FOUCAULT, M. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1987.
  • MÁRQUEZ, G. G. Cem anos de solidão. Rio de Janeiro: Record, 1977.
  • RIBEIRO, D. Os índios e a civilização. Petrópolis: Vozes, 1977.
  • SANTOS, B. S. Ecologia de saberes. In: SANTOS, B. S. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2010. p. 137-178.
  • SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. (Org.). Epistemologias do sul. Coimbra: Almedina, 2009.
  • VIEIRA, N. B. S. “Tem que ser do nosso jeito”: participação e protagonismo do movimento indígena na construção da política de saúde no Brasil. 2019. Tese (Doutorado em Ciências) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.

  • 2
    Cândido Mariano da Silva Rondon, conhecido como Marechal Rondon (Santo Antônio de Leverger, 1865 - Rio de Janeiro, 1958): engenheiro militar e sertanista brasileiro. Foi o primeiro diretor do Serviço de Proteção ao Índio e estimulou a criação do Parque Nacional do Xingu.
  • 3
    Geraldo José Rodrigues Alckmin Filho (Pindamonhangaba, 1952): governador do estado de São Paulo de 2001 a 2006 e de 2011 a 2018.
  • 4
    Michel Miguel Elias Temer (Tietê, 1940): presidente do Brasil de 31 de agosto de 2016, empossado após o impeachment da titular, Dilma Rousseff, a 1º de janeiro de 2019.
  • 5
    Dilma Vana Rousseff (Belo Horizonte, 1947): presidente do Brasil de 1º de janeiro de 2011 até seu afastamento por um processo de impeachment em 2016.
  • 6
    Luiz Inácio Lula da Silva (Caetés, 1945): presidente do Brasil de 1º de janeiro de 2003 a 1º de janeiro de 2011.

  • 1
    O Seminário Internacional: A Saúde Indígena e a Ecologia de Saberes no Enfrentamento dos Desafios Atuais: “Tem que ser do nosso jeito”, realizado em 26 de março de 2019, está disponível em <https://bit.ly/3povjUR> e <https://bit.ly/3aspLoi>.

  • Errata

    No artigo "Reflexão sobre a saúde indígena e os desafios atuais em diálogo com a tese 'Tem que ser do nosso jeito': participação e protagonismo do movimento indígena na construção da política de saúde no Brasil", doi 10.1590/S0104-12902020200711, publicado no volume 29, nº3 de 2020 da revista Saúde e Sociedade, primeira página, nota de rodapé número 1:
    Onde se lia:
    1 O Seminário Internacional: A Saúde Indígena e a Ecologia de Saberes no Enfrentamento dos Desafios Atuais: "Tem que ser do nosso jeito", realizado em 26 de março de 2020, está disponível em <https://bit.ly/3povjUR> e <https://bit.ly/3aspLoi>.
    Leia-se:
    1 O Seminário Internacional: A Saúde Indígena e a Ecologia de Saberes no Enfrentamento dos Desafios Atuais: "Tem que ser do nosso jeito", realizado em 26 de março de 2019, está disponível em <https://bit.ly/3povjUR> e <https://bit.ly/3aspLoi>.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    04 Ago 2020
  • Revisado
    09 Jan 2021
  • Aceito
    10 Jan 2021
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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