Resumo
A transexualidade é uma experiência identitária que emerge como resposta inevitável a uma forma de organizar a vida social e, consequentemente, o cuidado em saúde com base na produção de sujeitos. Objetivamos compreender como um contexto identitário trans mobiliza, na articulação com família e serviço de saúde, performances identitárias. Realizamos uma etnografia com entrevista semiestruturada e observação participante em um ambulatório especializado no cuidado trans-específico no Sistema Único de Saúde (SUS), entre dezembro de 2017 e julho de 2018. Durante o estudo, destacou-se a história de Marilda, por seu caráter emblemático ao narrar a transição de “homem homossexual” para “travesti” e, atualmente, para “mulher trans”, em uma performance identitária que almeja o reconhecimento e o pertencimento familiar, bem como o acesso à saúde, à educação e a uma profissão distante da prostituição. Sua história permite compreender que as pessoas trans constroem significados diversos para suas vivências identitárias, com elementos que podem reiterar o binarismo e a heteronormatividade. Torna-se importante reconhecer, no âmbito da família e da saúde, que diferentes performances identitárias são possíveis e que seus sentidos poderão compor o cuidado integral em saúde de cada pessoa trans.
Palavras-chave:
Saúde Pública; Pessoas Transgênero; Travestilidade; Família; Atenção Integral à Saúde
Introdução
A partir do século XX, o movimento feminista evidencia a importância dos aspectos sociais, históricos e culturais na construção do que entendemos pelas categorias identitárias “homem” e “mulher”. A perspectiva de gênero e da performatividade explicita que essas categorias identitárias são construídas como uma repetição de atos dentro de um conjunto altamente regulado de “possibilidades”, em que se cria uma ilusão de um núcleo interno e organizador, de uma essência, de uma identidade imutável, estável, fixa e inquestionável (Butler, 2016BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 11. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.).
Entretanto, a partir da capacidade de agir de cada indivíduo, da agência dos sujeitos, do enfoque nas experiências no campo das relações pessoais e interpessoais e das possibilidades de performance, observa-se uma incompletude na construção dessas categorias identitárias. Isso tem possibilitado uma ruptura, uma subversão, uma inscrição de novos significados e uma mudança de/em práticas e conceitos (Brah, 2006BRAH, A. Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu, Campinas, v. 26, p. 329-376, 2006.; Butler, 2016BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 11. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.; Scott, 1998SCOTT, J. A. Invisibilidade da experiência. Projeto História, São Paulo, n. 16, p. 297-325, 1998.). Nessa perspectiva, as identidades dos sujeitos podem ser consideradas como relacionais, múltiplas, fragmentadas e/ou deslocadas, no sentido de que não há algo fixo e permanente, mas em constante construção, reconstrução e/ou desconstrução (Brah, 2006BORBA, R. Receita para se tornar um “transexual verdadeiro”: discurso, interação e (des)identificação no processo transexualizador. Trabalhos em Linguística Aplicada, Campinas, v. 55, n. 1, p. 33-75, 2016.; Butler, 2016BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 11. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.).
Nesse contexto, a transexualidade se constitui como uma experiência identitária que emerge como resposta inevitável a uma forma de organizar a vida social com base na produção de sujeitos e que situa a verdade das identidades em estruturas corporais (Teixeira, 2016TEIXEIRA, F. B. (Re)encontrando Berenice Bento: uma década de afetações. Cadernos Pagu , Campinas, v. 48, e164818, 2016.). Por isso, pensar a identidade trans a partir da própria experiência dos sujeitos nos permite pensar os limites das normas relacionadas ao que compreendemos como “homem” e “mulher”, especialmente no lócus em que essas construções começam, isto é, na família.
As pessoas trans e suas famílias podem passar por desafios durante a vivência de uma transição de gênero em meio às expectativas sociais de heteronormatividade e cisgeneridade. Isso ocorre, uma vez que as construções e performances identitárias também interferem no contexto da família, em meio à expectativa de que seus membros expressem performances que correspondam às construções sociais esperadas para o sexo biológico masculino ou feminino (Dierckx et al., 2016DIERCKX, M. et al. Families in transition: a literature review. International Review of Psychiatry, Abingdon, v. 28, n. 1, p. 36-43, 2016.).
Além desses problemas no contexto familiar, há diversas outras situações problemáticas enfrentadas pelas pessoas trans no contexto social, como o acesso ao cuidado em saúde, o preconceito escolar, afetivo e profissional e, nesse aspecto, a discriminação é uma constante nos discursos sobre pessoas trans, o que contribui de forma negativa no processo saúde-adoecimento-cuidado dessas pessoas (Carvalho, 2006CARVALHO, E. C. “Eu quero viver de dia”: uma análise da inserção das transgêneros no mercado de trabalho. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL FAZENDO GÊNERO, 7., 2006, Florianópolis. Anais eletrônicos… Florianópolis: UFSC, 2006. p. 1-8. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3kYwdWW >. Acesso em: 15 jun. 2020.
https://bit.ly/3kYwdWW... ). Nesse contexto, é possível perceber como o cuidado no âmbito das relações sociais e, em especial, familiares pode ter impacto, positivo ou negativo, nas pessoas durante o citado processo, particularmente nas pessoas trans.
Quando se fala de cuidado, humanização ou integralidade, quase sempre se faz referência a um conjunto de princípios e estratégias que norteiam, ou devem nortear a relação entre um sujeito e o profissional de saúde que lhe atende (Ayres, 2004AYRES, J. R. C. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 13, n. 3, p. 16-29, 2004.). Assim, reitera-se a proposição de um cuidado que seja reorientado para práticas emancipatórias, rompendo com relações unilaterais em que somente o(a) profissional de saúde determina o cuidado e, consequentemente, promovendo relações mais horizontais (Contatore; Malfitano; Barros, 2017CONTATORE, O. A.; MALFITANO, A. P. S.; BARROS, N. F. Os cuidados em saúde: ontologia, hermenêutica e teleologia. Interface: Comunicação, Saúde e Educação, Botucatu, v. 21, n. 62, p. 553-563, 2017.).
Em relação ao acesso à saúde das pessoas transexuais, este é frequentemente marcado por discriminação e desrespeito, sendo constante a necessidade de educar os(as) profissionais de saúde para entender as especificidades das pessoas transexuais no contexto do processo de determinação social (Monteiro; Brigeiro, 2019MONTEIRO, S.; BRIGEIRO, M. Experiências de acesso de mulheres trans/travestis aos serviços de saúde: avanços, limites e tensões. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 35, n. 4, e00111318, 2019.). Ademais, a literatura indexada sobre a temática tem apontado para a importância de abordagens do cuidado em saúde das pessoas trans que considerem a relação com a família (Dierckx et al., 2016DIERCKX, M. et al. Families in transition: a literature review. International Review of Psychiatry, Abingdon, v. 28, n. 1, p. 36-43, 2016.). O desafio, então, torna-se compreender como promover esse cuidado para as pessoas transexuais, tendo especial atenção às questões da família e das performatividades trans que estão presentes em suas existências.
Ao buscar respostas para enfrentar essa problemática da expressão da performatividade trans na família e sua relação com o cuidado em saúde, observa-se na Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Brasil, 2013aBRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2013a.) que a palavra “família” é mencionada apenas duas vezes. Em uma delas, refere-se às famílias homoparentais e, na outra, aos desafios para os gays expressarem sua orientação sexual no âmbito familiar. Ao mesmo tempo, a referida política pública também aborda a determinação social e cultural da saúde sem, no entanto, abordar as expressões identitárias e sua significação no cuidado em saúde e na relação familiar das pessoas trans (Brasil, 2013aBRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2013a.).
Além disso, desde 2008, o processo transexualizador visa garantir no Sistema Único de Saúde (SUS) o direito das pessoas trans à cirurgia de redesignação sexual, como também expressa uma série de ações necessárias para que o direito à saúde se cumpra no contexto de suas vivências de transição de gênero. Atualmente, a atenção à saúde da população trans no Brasil é regida pela Portaria nº 2.803, de 19 de novembro de 2013, que redefine e amplia o processo transexualizador no SUS, tratando-se da principal normativa para o cuidado em saúde às pessoas transexuais no SUS hoje (Brasil, 2013aBRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2013a., 2013bBRASIL. Portaria nº 2.803, de 19 de novembro de 2013. Redefine e amplia o Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 19 nov. 2013b. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3erPUUn >. Acesso em: 15 jun. 2020.
https://bit.ly/3erPUUn... ). Buscando-se pela palavra “família” na mencionada portaria, não se encontram resultados; também não se identificou relação entre família, performatividade e cuidado em saúde (Brasil, 2013bBRASIL. Portaria nº 2.803, de 19 de novembro de 2013. Redefine e amplia o Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 19 nov. 2013b. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3erPUUn >. Acesso em: 15 jun. 2020.
https://bit.ly/3erPUUn... ).
Nesse sentido, quando se fala desses tópicos concernentes à família, às performatividades e ao cuidado em saúde para as pessoas trans, destaca-se como eles se concretizam na interação entre o individual e o coletivo. Apesar disso, observamos que as políticas públicas nacionais relacionadas à população trans desconsideram a inter-relação entre performatividade, família e saúde. Dessa forma, nosso objetivo é analisar como um dado contexto identitário trans mobiliza formas de construção e expressão da identidade, considerando a inter-relação entre performatividade, família e saúde.
Método
Trata-se de pesquisa etnográfica (Denzin; Lincoln, 2018DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S. (Ed.). The SAGE handbook of qualitative research. 5. ed. Thousand Oaks: Sage Publications, 2018.) que utilizou a observação participante e a entrevista semiestruturada como recursos para abordar uma realidade multifacetada e, assim, explorar e compreender a complexidade dos sentidos e significados relacionados a ela. As atividades de campo foram realizadas entre dezembro de 2017 e julho de 2018, em um serviço vinculado ao SUS e dedicado ao cuidado integral em saúde de pessoas transexuais, o qual recebe os(as) usuários(as) por livre demanda ou encaminhados(as) das Unidades Básicas de Saúde (UBS), oferecendo elementos do cuidado nas áreas de medicina, psicologia, enfermagem e serviço social, fazendo, sempre que necessário, a referência para outros serviços de saúde ou a contrarreferência desses(as) usuários(as) para a Atenção Primária.
Para este artigo, construímos a análise a partir da história de Marilda11 Trata-se de nome fictício, a fim de resguardar a identidade da entrevistada., por esta traduzir a eficácia simbólica de vários elementos que se articulam em torno da perspectiva de análise aqui abordada. Dessa forma, essa história traz reflexões importantes acerca das performances identitárias, em um serviço de saúde, para as pessoas transexuais, seus familiares e profissionais de saúde. A entrevista foi semiestruturada com sete tópicos principais: (1) identificação social; (2) concepções de família, saúde e transexualidade; (3) memórias relacionadas à performatividade trans; (4) memórias relacionadas à família e à performatividade trans; (5) família e cuidado em saúde; (6) perspectivas futuras; (7) feedback em relação à entrevista e possibilidade de abordar algum aspecto relacionado aos temas anteriores e que não tenha sido explorado durante a entrevista. Somado a isso, conduziu-se observação participante, ampliando a compreensão da performance identitária trans na relação com cuidado em saúde, tendo em conta as interações com a família e com o próprio serviço de saúde. Como instrumento de registro das impressões coletadas ao longo das observações, utilizou-se o diário de campo.
Assim, inicialmente, apresentaremos o (des)encontro22Denominamos o encontro de Marilda com o ambulatório como “(des)encontro” devido à expressão de insatisfação por parte dela ao não encontrar resposta à sua demanda no serviço de saúde que considera como seu “porto seguro”. Refletimos sobre o desafio de apreender as performatividades trans no contexto do cuidado em saúde, o que poderia promover um desencontro entre profissionais e usuários(as) do SUS. com Marilda para, em seguida, problematizar as reflexões disparadas por essa história em diálogo com o campo e a literatura. É importante destacar que não pretendemos neste artigo analisar as escolhas de Marilda, suas intenções, seu sentido subjetivo e nem por qual motivo foram tomadas certas decisões em sua vida. Nosso objetivo consiste em compreender como esse contexto identitário trans mobiliza, na articulação com a família e o serviço de saúde, outras formas de construção e expressão de sua identidade e como isso pode potencializar o cuidado integral em saúde, a formação para o cuidado em saúde das pessoas trans e o desenvolvimento de políticas públicas que considerem esses aspectos na sua composição.
A presente pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Resultados e discussão
O (des)encontro com Marilda
Esse serviço é uma farsa! […] estou doente e vocês não fazem nada por mim.
Em frases assertivas em um tom de voz mais elevado, Marilda faz declarações como a observada acima e a médica recém-chegada tenta justificar o seu encaminhamento para outro(a) especialista. Em seguida, Marilda entra na sala de acolhimento com a coordenadora. Marilda havia sido entrevistada na semana anterior pela nossa pesquisa e compartilhou uma história de dolorosa ruptura com a família de origem quando da expressão de sua identidade travesti. Contou-nos também sobre seu arrependimento por não ter levado a sério quando sua mãe compareceu naquele serviço há oito anos.
Chorando, relatou-nos que há dias vinha sofrendo com inchaço no corpo e dificuldade para respirar, sendo que não tinha obtido resolução do seu problema naquele serviço. Em meio ao desabafo consternado, questionou-nos “Se com vocês, que são meu porto seguro, eu não posso contar, quem vai cuidar de mim?” Minutos depois, a coordenadora retornou à sala, trazendo uma resposta em relação ao encaminhamento. Marilda concordava levemente com a cabeça, enquanto despedia-se em silêncio.
Nesse sentido, deve-se levantar alguns questionamentos: “O serviço de saúde e seus/suas profissionais apreendiam as performances identitárias que mobilizavam a busca de Marilda pelo ambulatório?”; “Era possível compreender nesse (des)encontro, que Marilda buscava performar uma identidade que lhe garantisse o cuidado - que no passado foi procurado por sua família naquele mesmo serviço, e por ela recusado enquanto travesti - e que lhe parecia ser negado quando de um encaminhamento a outro profissional?”; “O que se pode aprender sobre a relação entre performatividade, família e cuidado em saúde para as pessoas trans na formação desses(as) profissionais?”; “Como o debate sobre essas questões poderia aprimorar as políticas públicas para as pessoas trans no SUS?”.
Performatividade trans
Marilda contou-nos sua trajetória em relação à expressão de uma identidade trans:
Foi bem complicado. No começo, foi bastante complicado. Minha família não aceitou. Filha única, criada por avós e tios. Então, todo mundo esperava que fosse um menino, saquinho roxo, que ia dar um monte de sobrinhos e netos. Mas, na realidade, não foi. Aí, pra eles, foi muito complicado porque, além de ser homossexual, eu escolhi ser trans, e, além de ser trans, eu ainda escolhi me prostituir. Foi assim que eu saí de casa, eu fui diretamente pra casa de cafetina me prostituir. Então, pra eles, foi muito complicado; pra mim, foi mais complicado ainda porque eu sempre fui muito mimada, eu sempre tive tudo que eu queria, eu não lavava nem o garfo que eu comia, nem a roupa que eu vestia e caí num mundo onde você vive uma realidade completamente diferente. Ser trans não é fácil. Você tem que enfrentar vários desafios, começando dentro de casa, na sua família.
A fala de Marilda permite que problematizemos a expressão da identidade do “homem”, esperada pela sua família, exemplificando o quadro regulatório altamente rígido relacionado às performances das identidades de gênero (Butler, 2016BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 11. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.). Ter “saquinho roxo” e “dar um monte de sobrinhos e netos” representa as expectativas em torno da figura do “masculino”, do “homem”, caracterizada pela genitália e pela sua função reprodutiva construída na relação com a família. Desconsiderando os aspectos sociais, históricos e culturais, o gênero dos sujeitos acaba sendo reiterado por essa “natureza”, reforçando o binarismo e uma heterossexualidade presumida e compulsória (Butler, 2016BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 11. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.).
Mesmo diante dessa identidade aparentemente imutável, estável, fixa e inquestionável projetada sob Marilda em torno da expectativa do “homem heterossexual”, Marilda começa a encontrar brechas e resistências diante de poderes e saberes sobre os corpos e as sexualidades que sua família expressa (Butler, 2016BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 11. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.). A identidade é um local que se assume como uma articulação de posições e contextos em uma dada cultura, tendo, com isso, um caráter político e relacional dentro das relações de poder (Das, 2016DAS, V. Gênero e identidade: mapeando as questões. In: SALLUM JÚNIOR, B. et al. (Org.). Identidades. São Paulo: Edusp, 2016. p. 67-79.).
Assim como em outros relatos em torno da identidade trans (Das, 2016DAS, V. Gênero e identidade: mapeando as questões. In: SALLUM JÚNIOR, B. et al. (Org.). Identidades. São Paulo: Edusp, 2016. p. 67-79.), Marilda se afirma, inicialmente, como um homem homossexual e passa, posteriormente, a reivindicar a expressão de uma identidade feminina, que, vinculada com a prostituição, demarca para ela a identidade travesti. Sua fala retoma um aspecto evidenciado por outros(as) autores(as) nas pesquisas em torno das travestis no Brasil e que ainda permeia esse campo de estudo, em que a prostituição seria uma história recorrente para a construção do que se pode compreender como ter uma identidade “travesti” (Barbosa, 2013BARBOSA, B. C. “Doidas e putas”: usos das categorias travesti e transexual. Sexualidad, Salud y Sociedad, v. 14, p. 352-379, 2013.; Benedetti, 2005BENEDETTI, M. Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.).
Nessa prática de “se nomear” e de “ser nomeado”, de representar, de produzir sentido pela linguagem a partir das performances disponíveis a cada sujeito, tanto a família de Marilda quanto a própria Marilda vão performando, criando e corporificando sujeitos, identidades e categorias que ora se configuram como um lócus de abandono e sofrimento, ora como de proteção (Barbosa, 2013BARBOSA, B. C. “Doidas e putas”: usos das categorias travesti e transexual. Sexualidad, Salud y Sociedad, v. 14, p. 352-379, 2013.; Butler, 2016BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 11. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.). Um dos recursos desse processo de nomeação de “si” e do “outro”, presente na história de Marilda, é a atribuição de características que diferenciam pessoas a partir de normas presumidas e não explicitadas (Scott, 1998SCOTT, J. A. Invisibilidade da experiência. Projeto História, São Paulo, n. 16, p. 297-325, 1998.), as quais podem, inclusive, operar como um processo de estigmatização, de marcação da diferença relacionada a um aspecto “negativo”, a um “status de inferioridade” (Goffman, 2015GOFFMAN, E. Estigma. São Paulo: LTC, 2015.).
Performatividade trans e família
A partir disso, identificamos a posição precária das pessoas trans na comunidade que se agrava quando ocorre juntamente à rejeição familiar (Veldorale-Griffin; Darling, 2016VELDORALE-GRIFFIN, A.; DARLING, C. A. Adaptation to parental gender transition: stress and resilience among transgender parents. Archives of Sexual Behavior, Berlin, v. 45, n. 3, p. 607-617, 2016.), como Marilda relata:
Quando eu resolvi virar travesti, também foi outra batalha, outra dor, tanto da parte deles quanto da minha. Eu fiquei uns dois anos sem conversar com a minha mãe por esse motivo. Eu falei que ia pra outra cidade, ia pra casa de cafetina, ia me prostituir, ia virar travesti, aí eles ficaram com aquele baque. Todo mundo chorou. Eu sumi, não dei notícia pra ninguém da minha família. Morando em outra cidade, sofrendo lá também porque igual eu te falei eu era muito mimada, eu tinha tudo e lá eu tinha que fazer tudo sozinha, além de fazer tudo sozinha eu tinha que ir trabalhar, né? E era uma coisa que eu nunca tinha feito na minha vida, que era vender meu corpo, então foi bem difícil.
Diante desse relato de dor e rompimento, observamos que os valores heteronormativos também interferem no contexto da família. São comuns os relatos de rompimento com a “família de sangue” ou de expulsão de casa no início do processo de “transição” para uma identidade travesti (Sander; Oliveira, 2016SANDER, V.; OLIVEIRA, L. H. “Tias” e “novinhas”: envelhecimento e relações intergeracionais nas experiências de travestis trabalhadoras sexuais em Belo Horizonte. Sociedade e Cultura, Goiânia, v. 19, n. 2, p. 69-81, 2016.), como exemplificado no relato de Marilda. O rompimento com a família parece persistir após a expressão de uma identidade travesti:
E hoje, quem você considera sendo da sua família?
Minha família é só eu e minha mãe, o resto é agregado.
E as outras pessoas?
Não tem mais aquela ligação, não. Minha avó, meus tios, meus primos, são agregados.
Como observado, Marilda descreve sua família, atualmente, como “é só eu e minha mãe, o resto é agregado”. A família pode ser, inicialmente, entendida como um conceito crucial de análise porque define a estrutura inicial e básica da inter-relação entre os indivíduos com seu espaço e o ambiente social (Pareja et al., 2016PAREJA, J. M. D. et al. A produção do espaço e sua relação no processo de saúde-doença familiar. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 25, n. 1, p. 133-144, 2016.). Além disso, é importante considerar o parentesco como um elemento de análise nas (re)combinações, (des)conexões e (des)continuidades nas relações familiares. Segundo Strathern (2015STRATHERN, M. Parentesco, direito e o inesperado: parentes são sempre uma surpresa. São Paulo: Unesp, 2015.), o termo “parentesco”, na sociedade ocidental (euroamericana), refere-se a pessoas conectadas sem uma pressuposição de qual grupo social ou tipo de família se forma, podendo ter conexões específicas (genealogias) e graus de intimidade (graus de conectividade).
A partir da noção de relacionalidade (do inglês, “relatedness”) (Carsten, 2000CARSTEN, J. Cultures of relatedness: new appoaches to the study of kinship. Cambridge: Cambridge University Press, 2000.), importa considerar de que forma o processo pelo qual tanto os laços estabelecidos pela consanguinidade como aqueles forjados a partir de outros contextos sociais, podendo constituir uma certa “família escolhida” pela própria pessoa, se articulam e se transformam mutuamente, permitindo que um projeto de identidade seja construído, promovido, reconhecido e aceito. No caso das travestis, especificamente, há que se levar em consideração a “família da rua”, que pode se constituir a partir das relações intergeracionais de travestis (Sander; Oliveira, 2016SANDER, V.; OLIVEIRA, L. H. “Tias” e “novinhas”: envelhecimento e relações intergeracionais nas experiências de travestis trabalhadoras sexuais em Belo Horizonte. Sociedade e Cultura, Goiânia, v. 19, n. 2, p. 69-81, 2016.).
Em relação à aceitação de travestis e transexuais pelas pessoas de suas famílias, deve-se considerar que ela pode ocorrer a partir de processos que circunscrevem formas de relacionalidade (Carsten, 2000CARSTEN, J. Cultures of relatedness: new appoaches to the study of kinship. Cambridge: Cambridge University Press, 2000.) e não simplesmente como uma questão de “aceitar ou não aceitar” (Oliveira, 2013OLIVEIRA, L. Os sentidos da aceitação: família e orientação sexual no Brasil contemporâneo. 2013. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.). Desse modo, a dinâmica das relações familiares das pessoas trans parece ser complexa, composta por nuances que expressam a busca de pertencimento e reconhecimento em uma dada família, consanguínea ou não.
Performatividade trans, família e cuidado em saúde
Em relação a Marilda, o cuidado da família consanguínea em momentos de adoecimento parece ter sido crucial como um dos elementos processuais, que exemplifica a questão da relacionalidade, para um reconhecimento e pertencimento em seu núcleo familiar, e, talvez por isso, ser cuidada pelo serviço de saúde possa significar, para ela, um certo pertencimento e reconhecimento familiar:
Uma vez ela [mãe] quis vir [ao serviço de saúde], a outra vez eu chamei. Na outra vez ela veio com o meu padrinho, que é o meu tio. Foi a primeira família que veio [ao ambulatório]. Todas as vezes que eu fiquei doente eles nunca me deixaram na mão. Mesmo pra arrancar um dente eu posso ter certeza que eles estão todos ali na porta. Se eu tivesse escutado lá naquela época, hoje em dia tudo teria sido diferente. Mas nunca é tarde pra gente consertar, né? Pôr a vida no eixo certo.
Marilda compartilha a procura que a família fez no passado visando seu cuidado, resgatando uma noção de que o cuidado implica algum tipo de responsabilidade, de compromisso com o outro e mostrando, inclusive, um envolvimento emocional e um despender de energia para efetivá-lo (Tronto, 1997TRONTO, J. C. Mulheres e cuidados: O que as feministas podem aprender sobre a moralidade a partir disso? In: JAGGAR, A. M.; BORDO, S. R. (Org.). Gênero, corpo, conhecimento. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1997. p. 186-203.). Talvez fosse esse cuidado que lhe parecia ser negado quando do pedido de encaminhamento pela médica recém-chegada ao serviço de saúde.
Para compreender o cuidado de que Marilda fala na relação com sua família, o serviço de saúde e sua expressão identitária, dialogamos com Ayres (2004AYRES, J. R. C. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 13, n. 3, p. 16-29, 2004.) ao apontarmos que não apenas os horizontes normativos que orientam os conceitos de saúde e doença são construídos socialmente, mas os obstáculos a um projeto de vida que os mencionados horizontes permitem identificar são também fruto da vida em comum, e só coletivamente se consegue efetivamente construir respostas para superá-los. Somado a isso, a perspectiva de saúde pode ser compreendida a partir das vivências de integralidade da pessoa que produz (re)ações que mobilizam sentido, trazendo à tona significações e ações complexas e distintas, não sendo, portanto, compreendida como um conceito fixo (Duarte, 2003DUARTE, L. F. D. Indivíduo e pessoa na experiência da saúde e da doença. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p. 173-183, 2003.).
Observa-se na fala de Marilda que, para o reconhecimento e o pertencimento em seu núcleo familiar, há uma concepção de “conserto”, de “eixo certo” em sua performance de identidade, em seu projeto de vida, que aciona o cuidado em saúde para concretizar-se:
Pra mim, foi assim: homossexual, travesti e, hoje em dia, trans, independente de eu ter feito a cirurgia ou não. Hoje em dia, eu me vejo como trans, eu não me vejo como travesti. Pelo fato das minhas atitudes, meus hábitos, minhas escolhas. Eu me enquadro mais como trans, entendeu? Não como travesti. A mulher trans ela é mais mulher mesmo, mais da sociedade, é aquela pessoa que busca fazer uma faculdade, busca entrar no mercado de trabalho, busca uma colocação. Agora a travesti não, a travesti infelizmente ela é vista como profissional do sexo. Eu tomei a decisão de ir pra outro caminho, mas nunca é tarde pra gente consertar, né? Pôr a vida no eixo certo. É o que eu tô tentando. É o que eu estou buscando, é o que me fez voltar para o ambulatório, é o que me fez pedir ajuda de volta ao ambulatório, pra que eu resgate isso e consiga colocar minha vida no trilho de volta.
O olhar para o cuidado em saúde das pessoas trans é muitas vezes embasado e reiterado por meio da compreensão da “patologia” presente nos corpos e identidades porque esses corpos não se enquadram nos pressupostos heteronormativos cisgêneros, que demandam uma linearidade sem fissuras entre sexo genital, gênero, desejo e práticas sexuais. Dessa forma, os comportamentos que não estão de acordo com essas normatizações são, muitas vezes, patologizados (Butler, 2016BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 11. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.). É possível identificar a patologização das identidades trans na fala de Marilda, que evidencia a busca por colocar as coisas no “trilho de volta”. Isso, ao que aparece, vincula a expressão de uma performance travesti a uma não linearidade que patologiza esses corpos e identidades. Ao mesmo tempo, a expressão de uma performance binária feminina parece levar ao possível pertencimento familiar e, consequentemente, ao cuidado em saúde por, justamente, enquadrar-se nas normas esperadas, ainda que em corpos trans que parecem buscar transgredi-las.
Marilda expressa uma ideia que se conecta com a leitura social de que a travesti só pode ser profissional do sexo; assim, ela quer negar esse destino e lê o mundo social entendendo que tem que moldar seu desejo. Há, então, uma construção binária entre um polo mais feminino e um menos feminino, definido, por exemplo, pela aparência física, pelo desejo da cirurgia, pelo “uso” do pênis nas relações sexuais, entre outros, que dizem que o “ápice da feminilidade” seria a “mulher heterossexual” (Barbosa, 2013BARBOSA, B. C. “Doidas e putas”: usos das categorias travesti e transexual. Sexualidad, Salud y Sociedad, v. 14, p. 352-379, 2013., p. 366).
Nesse sentido, é pertinente tratar sobre a questão da passabilidade cis, ou seja, diante das violências e estranhamentos vividos por uma pessoa trans, “passar-se como pessoa cisgênera” torna-se objetivo relevante para muitas pessoas transexuais (Vergueiro, 2015VERGUEIRO, V. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. 2015. Dissertação (Mestrado em Cultura e Sociedade) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015.). A essa luz, a expressão de uma identidade mais próxima ao que é esperado de “um homem ou de uma mulher de verdade” habita uma linha tênue entre o respeito e a desconsideração absoluta das vidas trans, não se tratando de mera reprodução das normas vigentes, mas podendo ser entendida como uma forma de resistir e, talvez, uma das únicas possibilidades para sobreviver a um entorno social violento (Vergueiro, 2015VERGUEIRO, V. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. 2015. Dissertação (Mestrado em Cultura e Sociedade) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015.). Destarte, pensar os corpos e identidades trans como fixos, simplesmente saindo de um polo masculino/feminino direto para um polo feminino/masculino, é não admitir as interfaces presentes entre as mais diversas formas de existir e se expressar em relação ao gênero (Teixeira, 2016TEIXEIRA, F. B. (Re)encontrando Berenice Bento: uma década de afetações. Cadernos Pagu , Campinas, v. 48, e164818, 2016.).
Destacamos o uso do termo “travestilidade” como estratégia de ampliar os aspectos da categorização identitária em relação ao termo travesti, na medida em que há inúmeras possibilidades de viver essa identidade (Vergueiro, 2015VERGUEIRO, V. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. 2015. Dissertação (Mestrado em Cultura e Sociedade) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015.). É relevante ponderar que há, no discurso científico e social, disputas, deslizamentos, reconfigurações e um embate político entre as categorias identitárias “travesti” e “transexual” (Leite Junior, 2011LEITE JUNIOR, J. Nossos corpos também mudam: a invenção das categorias “travesti” e “transexual” no discurso científico. São Paulo: Annablume, 2011.), sendo que os sujeitos assumem diferentes posicionamentos identitários para se localizarem dentro dos vários contextos, sistemas sociais, culturais, políticos, econômicos, entre outros, nos quais estamos inseridos (Barbosa, 2013BARBOSA, B. C. “Doidas e putas”: usos das categorias travesti e transexual. Sexualidad, Salud y Sociedad, v. 14, p. 352-379, 2013.; Leite Junior, 2011LEITE JUNIOR, J. Nossos corpos também mudam: a invenção das categorias “travesti” e “transexual” no discurso científico. São Paulo: Annablume, 2011.).
A questão torna-se, então, performar uma identidade que permita o sentimento de reconhecimento e pertencimento; assim, negar uma certa performance identitária não deve ser entendido como uma reprodução acrítica do binarismo e da heteronormatividade, mas como uma possível maneira de sobreviver em um meio social adverso (Vergueiro, 2015VERGUEIRO, V. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. 2015. Dissertação (Mestrado em Cultura e Sociedade) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015.). Destarte, a rejeição familiar e social são aspectos importantes, pois causa sofrimento às pessoas trans e faz que, em algumas situações, elas busquem viver em correspondência às normas sociais esperadas para suas genitálias de nascimento, ou seja, que procurem se proteger de situações de violência e discriminação, ainda que essa condição lhes cause sofrimento, desconforto e desamparo (Sampaio; Coelho, 2012SAMPAIO, L. L. P.; COELHO, M. T. A. D. Transexualidade: aspectos psicológicos e novas demandas ao setor saúde. Interface:- Comunicação, Saúde e Educação, Botucatu, v. 16, n. 42, p. 637-649, 2012.).
Além disso, identifica-se que as mulheres trans têm tido melhor acesso ao processo transexualizador em comparação às travestis, que frequentemente são associadas, de maneira hostil, à marginalização, criminalidade e prostituição (Rocon et al., 2020ROCON, P. C. et al. Vidas após a cirurgia de redesignação sexual: sentidos produzidos para gênero e transexualidade. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 25, n. 6, p. 2347-2356, 2020.). Ser capaz de performar uma “mulher trans verdadeira” por meio da reprodução das normas de gênero, atreladas ao gênero feminino, significa se desvincular da travestilidade e, assim, ter melhor aprovação para o processo transexualizador (Bento, 2008BENTO, B. O que é transexualidade. São Paulo: Brasiliense, 2008.; Rocon et al., 2020).
A noção de resgate da família para Marilda perpassa a expressão de uma performance de mulher trans, em detrimento da performance travesti, que culminou no rompimento das relações familiares; por sua vez, a performance identitária que ela busca lhe legitima como usuária do serviço de saúde e, consequentemente, como tendo direito ao processo transexualizador no SUS. A partir dessa óptica, identidade, família e cuidado em saúde se mostram como domínios extremamente inter-relacionados na experiência trans. O desejo de Marilda de resgatar a família se exterioriza a partir da performance de mulher trans, na tentativa de superar a decepção e o abandono, e, desse modo, sair da margem e existir da forma menos violenta e abjeta possível.
Destarte, sua busca pela família e pelo cuidado em saúde se estruturam a partir de uma concepção binária. O que pode expressar a força da regulação de nossa sociedade em relação às possibilidades existenciais de família, identidade e cuidado em saúde, capaz de conferir um certo grau de legitimidade, bem como a sensação de uma suposta segurança. A entrevista e a observação participante de Marilda exemplificam as negociações com essas normas e ideais morais, que foram demonstrados pela “passabilidade”, buscando se adequar às expectativas hegemônicas.
Contribuições da história de Marilda para a saúde da população trans
No discurso acionado por Marilda, pode-se observar um conjunto de práticas ritualizadas de “purificação”, o que evidencia práticas classificatórias que permeiam um dado contexto social, histórico e cultural em que determinadas práticas de controle, vigilância e punição sobre os corpos são reiteradas para garantir o que, nesse contexto, entende-se como “pureza”, garantir a ordem das coisas, estar em um trilho e o domínio dos riscos poluitivos (Douglas, 1966DOUGLAS, M. Pureza e perigo. Lisboa: Edições 70, 1966.). Uma suposta separação fixa e exata entre transexualidade e travestilidade é reflexo de uma construção que não admite interfaces entre as mais diversas formas de existir e expressar-se em relação ao gênero (Bento, 2008BENTO, B. O que é transexualidade. São Paulo: Brasiliense, 2008.; Teixeira, 2016TEIXEIRA, F. B. (Re)encontrando Berenice Bento: uma década de afetações. Cadernos Pagu , Campinas, v. 48, e164818, 2016.).
A compreensão da transexualidade como experiência identitária também confronta aquela utilizada majoritariamente pela medicina e pelas ciências “psi” (referentes à psicanálise, psicologia e psiquiatria), que relacionam, quase sempre, o campo da sexualidade com a biologia. Mesmo que tensionar a perspectiva de que a expressão das identidades e dos corpos trans são incorretos às genitálias amplie as possibilidades existenciais, ainda se observa um espaço reduzido para a agência dos sujeitos dentro do campo da medicina e das ciências “psi”, o que evidencia a procura das pessoas trans pelo processo transexualizador (Brasil, 2013aBRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2013a.). Trata-se da busca por uma identidade, uma existência reconhecida e/ou autorizada dentro dos discursos médicos e “psi” (Barbosa, 2013BARBOSA, B. C. “Doidas e putas”: usos das categorias travesti e transexual. Sexualidad, Salud y Sociedad, v. 14, p. 352-379, 2013.).
Ainda, é evidente que esse reconhecimento e/ou autorização ocorre por meio de um processo de retroalimentação, entre profissionais e usuários(as) dos serviços de saúde, do que é “ser”, “não ser” ou “ser para além de” uma pessoa trans para o processo transexualizador (Teixeira, 2016TEIXEIRA, F. B. (Re)encontrando Berenice Bento: uma década de afetações. Cadernos Pagu , Campinas, v. 48, e164818, 2016.). Nesse (re)aprendizado de si, uma série de dinâmicas discursivas e práticas inter-relacionais são (re)produzidas e/ou (des)construídas na perspectiva de que há corpos que “necessitam” de uma classificação das ciências médicas e “psi” para terem direitos de um cuidado em saúde efetivado pelo Estado, exemplificando, desse modo, o controle e seleção das vidas que importam ou não importam, existem ou não existem, são possíveis ou não (Butler, 2016BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 11. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.; Teixeira, 2016TEIXEIRA, F. B. (Re)encontrando Berenice Bento: uma década de afetações. Cadernos Pagu , Campinas, v. 48, e164818, 2016.).
Nesse contexto, os sujeitos trans, ao mesmo tempo em que questionam, reiteram e desorganizam a categoria naturalizada do humano denunciam, de forma implícita ou explícita, que as normas de gênero não estabelecem um consenso absoluto na vida social, o que desafia as fronteiras entre a experiência individual e a necessidade de reconhecimento social (Benedetti, 2005BENEDETTI, M. Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.). Assim, é possível observar uma variedade de sentidos sobre o que é ser/ter uma identidade trans na vida prática e a história de Marilda explicita essas negociações (Barbosa, 2013BARBOSA, B. C. “Doidas e putas”: usos das categorias travesti e transexual. Sexualidad, Salud y Sociedad, v. 14, p. 352-379, 2013.; Leite Junior, 2011LEITE JUNIOR, J. Nossos corpos também mudam: a invenção das categorias “travesti” e “transexual” no discurso científico. São Paulo: Annablume, 2011.).
Com isso, o questionamento feito por Borba (2016BORBA, R. Receita para se tornar um “transexual verdadeiro”: discurso, interação e (des)identificação no processo transexualizador. Trabalhos em Linguística Aplicada, Campinas, v. 55, n. 1, p. 33-75, 2016., p. 36) sobre “como um indivíduo se torna um sujeito (transexual) legítimo para os propósitos institucionais do cuidado à saúde trans-específico brasileiro?”, leva-nos a refletir que, por mais que os serviços (o aqui relatado e o por ele estudado) sejam diferentes, o fenômeno da desconstrução-reconstrução e as descontinuidades de identidade de gênero são elementos comuns. Fenômeno este que pode ilustrar como os sujeitos interagem, (re)produzem, (re)criam, (re)confeccionam e/ou resistem às formas de uma identidade fixa, única, homogênea, estável e verdadeira (Borba, 2016BORBA, R. Receita para se tornar um “transexual verdadeiro”: discurso, interação e (des)identificação no processo transexualizador. Trabalhos em Linguística Aplicada, Campinas, v. 55, n. 1, p. 33-75, 2016., p. 67).
Nesse cenário de distintas performances e disputas, os serviços e profissionais da saúde se apresentam como um lócus possível de encontros e desencontros para o cuidado integral em saúde (Ayres, 2004AYRES, J. R. C. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 13, n. 3, p. 16-29, 2004.), portanto, esses serviços e profissionais poderiam contribuir com o processo de (des)construção identitária e de expectativas do sujeito e de sua família. A diferença, nessa perspectiva, vai para além de um marcador exclusivo de hierarquia e opressão, sendo necessária a problematização de como as diferenças têm operado em cada contexto para que, diante de situações de opressões, sejam formuladas estratégias para enfrentá-las (Brah, 2006BRAH, A. Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu, Campinas, v. 26, p. 329-376, 2006.), compreendendo, então, que “nossas lutas sobre significado são também nossas lutas sobre diferentes modos de ser: diferentes identidades” (Brah, 2006BORBA, R. Receita para se tornar um “transexual verdadeiro”: discurso, interação e (des)identificação no processo transexualizador. Trabalhos em Linguística Aplicada, Campinas, v. 55, n. 1, p. 33-75, 2016., p. 371).
A partir dessa trajetória, entendemos que é necessário enriquecer a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Brasil, 2013aBRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2013a.) com reflexões sobre as diferentes performances identitárias, sua relação com o processo transexualizador e o reflexo disso no serviço e no cuidado integral em saúde das pessoas trans. Acreditamos que a discussão da expressão identitária para as pessoas trans, em interface com a família e o cuidado em saúde, é um importante ponto de aprimoramento para a mencionada política pública e para a atenção integral à saúde da população trans. Diante disso, faz-se necessário um processo de sensibilização e (des)construção para com os próprios serviços, profissionais e estudantes da saúde para problematização dos “reducionismos” biologicistas na/da formação e atuação profissional, entendendo, também, que o cuidado é uma prática relacional baseada em uma concepção de diferença e interdependência que afeta aquele que cuida e quem está sendo cuidado e, por isso, é permeado por uma série de questões morais como o que significa “cuidar de” outros (Tronto, 1997TRONTO, J. C. Mulheres e cuidados: O que as feministas podem aprender sobre a moralidade a partir disso? In: JAGGAR, A. M.; BORDO, S. R. (Org.). Gênero, corpo, conhecimento. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1997. p. 186-203.).
Considerações finais
Destacamos a partir do diálogo com a história de Marilda os elementos que permitem correlacionar performatividades identitárias e família no contexto da atenção à saúde. As noções de parentalidade e relacionalidade se expressam no processo de (re)construção identitária a partir dos laços estabelecidos, indicando sua relação com a família e o cuidado em saúde. Esse processo, na história aqui analisada, acaba evidenciando a reiteração e a proposição de construções identitárias baseadas em processos hierárquicos de poder e saber, que buscam enrijecer identidades a partir de determinados estereótipos. Sendo isso acionado, aparentemente, como um recurso de sobrevivência e de possibilidade de existência em um local em se que possa vivenciar a aceitação, o reconhecimento e o pertencimento, como a família e/ou o serviço de saúde.
A história de Marilda tem situacionalidade e contingencialidade específica em um dado tempo e espaço, e traz consigo um poder simbólico em relação a muitas experiências identitárias trans. Nesse sentido, apesar de haver um debate mais ampliado sobre o tema e a existência de uma política pública específica, ainda se identifica a permanência de narrativas próximas àquelas observadas nos primeiros estudos sobre a população trans e travesti no Brasil. A essa luz, é importante que os serviços e os(as) profissionais de saúde estejam atentos(as) para que possam reconhecer como a expressão identitária de cada usuário(a) se articula e se negocia com os laços de consanguinidade e de pertencimento em uma determinada família, compreendendo sua relação com o processo saúde-adoecimento-cuidado das pessoas trans. Assim, poderão estabelecer vínculos com usuários(as) e famílias que permitam a (res)significação das relações e do cuidado a partir da (re)construção das identidades trans, visando o acolhimento na perspectiva da integralidade dos sujeitos e promovendo a performatividade de identidades relacionais e dinâmicas.
Agradecimentos
Agradecemos às/aos profissionais do serviço de saúde que acolheram nossa pesquisa e, em especial, às pessoas trans e seus familiares, que generosamente participaram e contribuíram com este estudo. Agradecemos também ao professor Gustavo Antonio Raimondi por suas reflexões que permitiram aprimorar este texto. Aproveitamos para agradecer ao Colegio Doctoral Tordesillas de Salud Pública e Historia de la Ciencia pelo apoio dado ao primeiro autor durante o ano em que esteve na Universidad Miguel Hernández de Elche, na Espanha, conduzindo seus estudos doutorais, o qual recebeu uma bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (Capes) no Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior nº 88881.187710/2018-01.
Referências
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- 1Trata-se de nome fictício, a fim de resguardar a identidade da entrevistada.
- 2Denominamos o encontro de Marilda com o ambulatório como “(des)encontro” devido à expressão de insatisfação por parte dela ao não encontrar resposta à sua demanda no serviço de saúde que considera como seu “porto seguro”. Refletimos sobre o desafio de apreender as performatividades trans no contexto do cuidado em saúde, o que poderia promover um desencontro entre profissionais e usuários(as) do SUS.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
18 Jan 2021 - Data do Fascículo
2020
Histórico
- Recebido
19 Jun 2020 - Aceito
22 Jul 2020