Impacto psicossocial do isolamento durante pandemia de covid-19 na população brasileira: análise transversal preliminar11Agradecemos à Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap) pela concessão de bolsas de formação acadêmica às autoras Débora Rosana Alves Braga, Edla Helena Salles de Brito e Camila de Brito Pontes.

Carina Bandeira Bezerra Maria Vieira de Lima Saintrain Débora Rosana Alves Braga Flaviano da Silva Santos Ana Ofélia Portela Lima Edla Helena Salles de Brito Camila de Brito Pontes Sobre os autores

Resumo

Este artigo trata de uma pesquisa quantitativa, descritiva e analítica da população brasileira em isolamento social (IS) durante pandemia do novo coronavírus, com o objetivo de identificar preditores de estresse psicossocial com dados recolhidos por questionário on-line nas redes sociais em abril de 2020. Do total de 3.836 pessoas participantes, prevaleceram: mulheres (2.821; 73,5%); faixa etária de 30 a 39 anos (1.101; 28,7%); com pós-graduação (2075;54,1%); estando em IS (3.447; 89,9%). Houve diferença significativa pelo fato de as pessoas estarem em IS: sentir medo de serem infectadas pelo coronavírus (p<0,001); preocupação se alguém precisava sair de casa (p<0,001); rotina modificada após o IS, destacando “entretanto conseguiram se adaptar à nova realidade”, comparado aos que “tiveram a rotina alterada sem conseguir se adaptar” (p<0,001); tristeza ou preocupação, fazendo outras atividades como exercício físico, práticas religiosas, atividades lúdicas (p<0,001); e não pensaram numa solução para esse problema (p<0,001); além de mudança no padrão de sono (p=0,006). Os achados revelam a necessidade de discussão ampliada dos determinantes sociais da saúde, que devem envolver não só a doença, mas levar em consideração as relações sociais, as manifestações culturais e a economia, que podem impactar a saúde mental das pessoas.

Palavras-chave:
Novo Coronavírus; Pandemia; Estresse Psicossocial; Isolamento Social

Introdução

O mundo enfrenta a terceira crise de coronavírus em menos de vinte anos. O primeiro deles, o SARS-CoV (2002), causou o surto da Síndrome Respiratória Aguda Grave e o segundo, o MERS-CoV (2012), foi determinante para a Síndrome Respiratória do Oriente Médio. No final de 2019, em Wuhan, na China, surgiu o SARS-CoV-2, um novo coronavírus, cuja doença (a covid-19) se tornou um grande desafio de saúde pública mundial (Wang, D. et al., 2020WANG, D. et al. Clinical characteristics of 138 hospitalized patients with 2019 novel coronavirus: infected pneumonia in Wuhan, China. Journal of the American Medical Association, Chicago, v. 323, n. 11, p. 1061-1069, 2020.).

Desde então, a doença se propagou por 34 regiões da China, demonstrando alta transmissibilidade e, no final do mês de janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou estado de emergência na saúde pública de interesse internacional, devido à covid-19 (Mahase, 2020MAHASE, E. China coronavirus: WHO declares international emergency as death toll exceeds 200. British Medical Journal, Londres, v. 368, m408, 2020.).

O SARS-CoV-2 é um beta-coronavírus que pode ser transmitido aos seres humanos por meio de hospedeiros intermediários, como morcegos (Chiroptera - mus caecus), por exemplo (Paules; Marston; Fauci, 2020PAULES, C. I.; MARSTON, H. D.; FAUCI, A. S. Coronavirus infections: more than just the common cold. Journal of the American Medical Association, Chicago, v. 323, n. 8, p. 707-708, 2020.). A transmissão de humano para humano foi observada por meio de gotículas respiratórias contaminadas pelo vírus em contato com a conjuntiva, mucosa nasal, boca ou material fecal (Li, Q. et al., 2020LI, Q. et al. Early transmission dynamics in Wuhan, China, of novel coronavirus-infected pneumonia. New England Journal of Medicine, Waltham, v. 382, p. 1199-1207, 2020.). Esse fato explica o número crescente de pessoas que não haviam sido expostas a animais vetores e contraíram a doença, assim como os casos em que profissionais de saúde foram acometidos quando em contato direto com pessoas infectadas pelo vírus (Huang et al., 2020HUANG, C. et al. Clinical features of patients infected with 2019 novel coronavirus in Wuhan, China. The Lancet, Londres, v. 395, n. 10223, p. 497-506, 2020.). Com efeito, a transmissibilidade da covid-19, indicada pelo seu número reprodutivo, foi estimada em 4,08 (Cao et al., 2020CAO, Z. et al. Estimating the effective reproduction number of the 2019-nCoV in China. MedRxiv, [s. l.], 2020. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3jyakgu >. Acesso em: 9 maio 2020.
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), sugerindo que, em média, cada caso acarrete até quatro novos, podendo haver disseminação assintomática (Rothe et al., 2020ROTHE, C. et al. Transmission of 2019-nCoV infection from an asymptomatic contact in Germany. New England Journal of Medicine, Waltham, v. 382, p. 970-971, 2020.).

Desde o surto, o isolamento social (IS) está sendo proposto pelos governos locais como medida de saúde pública fundamental para controle da disseminação da covid-19 (Adalja; Toner; Inglesby, 2020ADALJA, A. A.; TONER, E.; INGLESBY, T. V. Priorities for the US Health community responding to covid-19. Journal of the American Medical Association, Chicago, v. 323, n. 14, p. 1343-1344, 2020.). Apesar de ser uma das medidas mais eficazes no combate à propagação da pandemia, o distanciamento pode ter influências sociais e psicológicas diretas e indiretas agora e no futuro, o que requer atenção das autoridades de saúde (Holmes et al., 2020HOLMES, E. A. et al. Multidisciplinary research priorities for the covid-19 pandemic: a call for action for mental health science. The Lancet Psychiatry, Londres, v. 7, n. 6, p. 547-560, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/30B0xhk >.Acesso em: 2 maio 2020.
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).

O distanciamento social ocasiona mudanças no padrão de convivência nos ambientes de trabalho e loci familiares, despertando sentimentos de solidão, medo e ansiedade generalizada, juntamente ao temor ocasionado pela alta taxa de transmissão viral, em decorrência de rapidez, invisibilidade, e morbimortalidade da covid-19. Isso ainda leva a outros desafios psicossociais, incluindo estigmatização e discriminação de pessoas infectadas (Lin, 2020LIN, C. Y. Social reaction toward the 2019 novel coronavirus (covid-19). Social Health and Behavior, Gazvim, v. 3, n. 1, p. 1-2, 2020., Pappas et al., 2009PAPPAS, G. et al. Psychosocial consequences of infectious diseases. Clinical Microbiology and Infection, Paris, v. 15, n. 8, p. 743-747, 2009.), além de desenvolver desumanização alimentada pela distância entre as pessoas (Huang; Zhao, 2020HUANG, Y.; ZHAO, N. Generalized anxiety disorder, depressive symptoms and sleep quality during covid-19 outbreak in China: a web-based cross-sectional survey. Psychiatry Research, Amsterdã, v. 288, p. 112954, 2020.). Com isso, é preciso incitar uma compreensão oportuna de que manter o status da saúde mental é urgentemente necessário para a sociedade (Xiang et al., 2020XIANG, Y. T. et al. Timely mental healthcare for the 2019 novel coronavirus outbreak urgently needed. Lancet Psychiatry, Londres, v. 7, n. 3, p. 228-229, 2020.).

Durante o surto de SARS, muitos estudos investigaram o impacto psicológico na comunidade não infectada, revelando morbidades psiquiátricas significativas que se associaram à idade mais jovem. Além disso, em razão do fechamento de escolas e empresas, emoções negativas experimentadas por pessoas foram agravadas (Wang, C. et al., 2020WANG, C. et al. Immediate psychological responses and associated factors during the initial stage of the 2019 Coronavirus Disease (covid-19) epidemic among the general population in China. International Journal of Environmental Research Public Health, Basileia, v. 17, n. 5, p. 1729, 2020.).

Igualmente, um estudo realizado com a população chinesa nas duas primeiras semanas do surto de covid-19 mostrou que 53,8% dos entrevistados classificaram o impacto psicológico como moderado ou grave. Outros 28,8% relataram sintomas de ansiedade de moderados a graves e 8,1% relataram níveis de estresse de moderado a grave (Wang, C. et al., 2020WANG, C. et al. Immediate psychological responses and associated factors during the initial stage of the 2019 Coronavirus Disease (covid-19) epidemic among the general population in China. International Journal of Environmental Research Public Health, Basileia, v. 17, n. 5, p. 1729, 2020.).

Portanto, as evidências mostram os efeitos psicológicos negativos causados pelo distanciamento social em pandemias anteriores, sendo necessária uma síntese de informações sobre o impacto epidemiológico e psicológico da pandemia de covid-19 na sociedade em distintas populações, para que se possa formular políticas públicas adequadas para tratar do problema em cada contexto. Ante o exposto, este estudo teve como objetivo caracterizar o perfil da população brasileira que está em IS e identificar preditores de estresse psicossocial.

Material e método

Tratou-se de uma pesquisa quantitativa, descritiva e analítica, cuja coleta de dados ocorreu publicamente pelas redes sociais WhatsApp e Instagram, em um período de 72 horas, incluindo os dias 10, 11 e 12 do mês de abril de 2020. Os dados foram coletados por meio de questionário on-line desenvolvido no Formulários Google®, contendo questões abertas e de múltipla escolha. O instrumento incluiu perguntas sobre dados sociodemográficos (faixa etária, sexo, estado civil, local de residência, escolaridade, renda familiar e redução de renda familiar após isolamento social, vínculo empregatício, número de moradores em domicílio), bem como aspectos relacionados ao impacto psicossocial consequente do distanciamento social, os quais versaram sobre: medo de ser infectado pelo vírus; preocupação se alguém tem que sair do domicílio; interferência do isolamento social na rotina diária; como lidam com o sentimento de tristeza ou preocupação; se procuraram ajuda profissional, se realizam outras atividades se pensaram em uma solução; se houve mudança no padrão de sono; se sintomas físicos afetam a rotina diária; dificuldade de concentração ou “branco na mente” durante isolamento social.

O critério de inclusão considerou pessoas com idade de 18 anos ou mais, residentes no Brasil, e que completaram o questionário. Por se referir a pesquisa pública, os princípios éticos obedeceram às normas das Resoluções CNS/MS nº 466/2012 e 510/2016, que estavam vigentes na época da coleta de dados, não sendo, portanto, necessária a submissão ao Comitê de Ética e Pesquisa (CEP/Conep). Ao se manipular os dados, entretanto, guardou-se o cuidado de seguir os preceitos éticos da pesquisa científica, conforme ditam as normas do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 2016BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução no 510, de 7 de abril de 2016. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 maio 2016. Seção 1, p. 44. Disponível em: <https://bit.ly/39h4qMi>. Acesso em: 26 mar. 2020.).

Os dados foram analisados por meio do software SPSS® versão 24.0, sendo calculadas as frequências absoluta e relativa de todas as variáveis do estudo. A associação entre variáveis foi verificada por meio do teste do qui-quadrado, tendo sido considerado o nível de significância de 5% para os procedimentos inferenciais.

Resultados

O total de 3.836 pessoas de 24 estados federados das cinco regiões do Brasil respondeu ao questionário, prevalecendo: mulheres (2.821;73,5%); faixa etária de 30 a 39 anos (1.101; 28,7%); casados ou em união estável (2.080; 54,2%), com pós-graduação (2.075; 54,1%). (Tabela 1).

Tabela 1
Características sociodemográficas dos respondentes da amostra

No concernente às perguntas específicas sobre o impacto psicossocial do IS na pandemia da covid-19, 89,9% (3.447) dos respondentes estão em IS, dos quais 89,6% (3.090) estão há mais de 14 dias. Em maioria (3.351; 87,4%), referiram medo de serem infectados e preocupados se alguém do domicílio precisar sair de casa; 2.945 (76,8%) pessoas afirmaram que o IS modificou sua rotina, mas que conseguiram se adaptar à nova realidade; 3.097 (80,7%) relataram sentimento de tristeza e preocupação em decorrência da pandemia; 2.180 (70,4%) estão fazendo atividades para lidar com a situação - como atividade física, práticas religiosas, ações lúdicas; contudo, 924 (29,8%) ainda não pensaram em uma resolução para lidar com esse problema.

Após o IS, 2.432 (63,4%) entrevistados expressaram mudança no padrão de sono; 2.363 (61,6%) sentiram inquietação, tensão ou nervosismo; 952 (58,6%) experimentaram dificuldade para o desempenho nas atividades diárias; e, para 1.758 (45,8%), foi difícil se concentrar nas atividades do dia a dia, com sensação de “branco na mente” (Tabela 2).

Tabela 2
Fatores associados ao estresse psicossocial durante a pandemia da covid-19

A Tabela 3 exprime os resultados da análise bivariada referente ao fato de o participante estar ou não em isolamento social.

Tabela 3
Comparativo entre pessoas que estão ou não em isolamento social durante a pandemia da covid-19

Observam-se diferenças estatisticamente significantes entre o fato de o respondente estar ou não em isolamento social nas seguintes variáveis: as pessoas que estão em IS sentiam mais medo de serem infectadas pelo SARS-Cov-2 (p<0,001); aquelas que estão em distanciamento social exprimiram maior preocupação se alguém precisa sair de casa (p<0,001). Houve diferença significativa entre o fato de ter tido sua rotina modificada após o IS, destacando a variável “entretanto conseguiram se adaptar à nova realidade”, em comparação aos que “tiveram a rotina alterada sem conseguir se adaptar” (p<0,001). Das pessoas que se sentem tristes ou preocupadas com a pandemia durante o IS, 65,5% estão fazendo outras atividades - como exercício físico, práticas religiosas, atividades lúdicas (p<0,001) - e 26,7% ainda não pensaram numa solução para esse problema (p<0,001). O quantitativo de 64,1% das pessoas que estão em IS teve mudança no padrão de sono (p=0,006).

Discussão

Em pleno século XXI, quando o mundo está orientado pela velocidade tecnológica e direcionado a sanar problemas de saúde focados nas doenças crônicas não transmissíveis, surge um problema inusitado: uma pandemia ocasionada por uma doença infectocontagiosa, a covid-19 (Velavan; Meyer, 2020VELAVAN, T. P.; MEYER, C. G. The covid-19 epidemic. Tropical Medicine & International Health, Oxford, v. 25, n. 3, p. 278-280, 2020.).

Consequentemente, foram utilizadas estratégias globais, na tentativa de reduzir a propagação da infecção por covid-19, incluindo o recolhimento voluntário em casa, restrição à reunião de grupos de pessoas, cancelamento de eventos sociais e fechamento de sistemas de transporte de massa (Usher; Bhullar; Jackson, 2020USHER, K.; BHULLAR, N.; JACKSON, D. Life in the pandemic: social isolation and mental health. Journal of Clinical Nursing, Oxford, v. 25, n. 15-16, p. 2756-2757, 2020.).

Com efeito, a pesquisa realizada teve maior representatividade de mulheres, o que confere a sua participação muito ativa nas pesquisas, tendo como explicação o fato de que elas tendem a relatar mais problemas relacionados à saúde do que os homens (OMS, 2009OMS - ORGANISATION MONDIALE DE LA SANTÉ. Les femmes et la santé: réalité d’aujourd’hui le programme de demain. Genebra, 2009. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2X2zhYb >. Acesso em: 3 abr. 2020.
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). A prevalência da faixa etária de 30 a 39 anos e a situação de casados ou em união estável (2.080; 54,2%), residindo com duas a quatro pessoas (3.022; 78,8%) corrobora estudos de Zhang e Ma (2020ZHANG, Y.; MA, Z. F. Impact of the covid-19 pandemic on mental health and quality of life among local residents in Liaoning province, China: a cross-sectional study. International Journal Environmental Research Public Health, Basileia, v. 17, n. 7, p. 2381, 2020.), em que a média de idade dos respondentes foi de 37,7 anos e 160 (60,8%) disseram ser casados; e de Xiao et al. (2020XIAO, H. et al. Social capital and sleep quality in individuals who self-isolated for 14 days during the coronavirus disease 2019 (covid-19) outbreak in January 2020 in China. Medical Science Monitor, Varsóvia, v. 26, p. e923921, 2020.), em que a média de idade foi de 37,78±4,12 anos e 110 (64,7%) eram casados.

Além disso, Huang e Zhao (2020HUANG, Y.; ZHAO, N. Generalized anxiety disorder, depressive symptoms and sleep quality during covid-19 outbreak in China: a web-based cross-sectional survey. Psychiatry Research, Amsterdã, v. 288, p. 112954, 2020.) demonstraram em estudo a partir de coleta de dados semelhante a esta que pessoas com idade média de 35,3±5,6 anos têm maior probabilidade de desenvolver ansiedade e sintomas depressivos durante o surto de covid-19 do que os participantes mais velhos.Isso pode explicar a maior predileção, desse público, em participar de pesquisa com esta temática, justificando-se também pela familiaridade na conformação metodológica da pesquisa.

O nível de escolaridade prevalente dos respondentes foi pós-graduação, o que pode ter influenciado no fato de a renda não ter sido reduzida em decorrência da pandemia (67,2%) nesta parcela da população, e de terem aderido em maior número à pesquisa. Este achado é corroborado por estudo indiano, no qual 90% dos participantes tinham nível educacional elevado (graduação e pós-graduação), atribuindo o fato de que o grupo de maior escolaridade é mais afeito a esse formato de busca ordenada. Os autores, contudo, enfatizam que, mesmo havendo menor impacto financeiro, o próprio contexto da doença é suficiente para ensejar problemas psicológicos (Roy et al., 2020ROY, D. et al. Study of knowledge, attitude, anxiety & perceived mental health care need in Indian population during covid-19 pandemic. Asian Journal of Psychiatry, Amsterdã, v. 51, p. 102083, 2020.).

Quando relataram que se sentiam inquietos, tensos ou nervosos, os entrevistados denotaram dificuldades em desempenhar suas atividades diárias (61,6%) e de concentração (58,6%), ou até mesmo a sensação de “branco na mente” (45,8%), achados com respaldo em pesquisas científicas.

Autores como Roemer e Orsillo (2016ROEMER, L.; ORSILLO, S. M. Uma terapia comportamental baseada em aceitação para o transtorno de ansiedade generalizada. In: BARLOW, D. H. Manual clínico dos transtornos psicológicos: tratamento passo a passo. Porto Alegre: Artmed, 2016. p. 206-236.) enfatizam que o transtorno de ansiedade generalizada pode acarretar outros sintomas associados, como irritabilidade, dificuldade de concentração ou brancos mentais, tensão muscular, cansaço e dificuldades para dormir. Sua principal característica, porém, é a preocupação em demasia, ou pensar muitas vezes sobre os piores cenários de algo ruim que possa vir a acontecer.

De acordo com o estudo de Wang, C. et al. (2020WANG, C. et al. Immediate psychological responses and associated factors during the initial stage of the 2019 Coronavirus Disease (covid-19) epidemic among the general population in China. International Journal of Environmental Research Public Health, Basileia, v. 17, n. 5, p. 1729, 2020.), a maioria dos participantes (84,7%) passou de 20 a 24 horas por dia em casa, não relatou nenhum sintoma físico (60,81%) e demonstrou bom estado de saúde (68,3%). Considerando que 70% dos respondentes estavam preocupados com a possibilidade de seus componentes familiares contraírem a covid-19, acreditavam, entretanto, que sobreviveriam se infectados. Tais achados coincidem com este experimento, uma vez que 42,3% (1.624) expressaram algum sintoma físico sem causa aparente.

A pandemia da covid-19, ao produzir sérias implicações clínicas e sociais, evidencia também a necessidade de pesquisas sobre o seu impacto psicológico na sociedade, tendo como relevância o subsídio para as ações de políticas públicas, no que tange à promoção, prevenção e recuperação do equilíbrio emocional das comunidades. Nesse momento, é impositivo que se mantenha a serenidade, porém é preciso ter ciência de que existe o risco do contágio (Qiu et al., 2020QIU, J. et al. A nationwide survey of psychological distress among Chinese people in the covid-19 epidemic: implications and policy recommendations. General Psychiatry, Londres, v. 33, n. 2, e100213, 2020.).

Desta feita, do total de pessoas que responderam o questionário, 89,9% (3.447) assinalaram estar em isolamento social e sentiam medo de serem infectadas pelo Sars-Cov-2 (p<0,001). Evidentemente, o distanciamento social fomenta muitas sequelas de saúde mental, mesmo em pessoas que estavam bem. Podem ser incluídos distúrbios agudos, como irritabilidade, insônia, angústia emocional, transtornos do humor, sintomas depressivos, medo e pânico, ansiedade e estresse em consequência de preocupações financeiras, frustração e tédio, solidão, falta de suprimentos, medicamentos, restrição de atividades diárias de rotina e redução, e até falta de comunicação (Brooks et al., 2020BROOKS, S. K. et al. The psychological impact of quarantine and how to reduce it: rapid review of the evidence. The Lancet, Londres, v. 14, n. 395, p. 912-920, 2020.).

Os achados sobre as pessoas em distanciamento social e que exprimiram maior preocupação de sair de casa, seja ela ou algum familiar (p<0,001), demonstram que, embora o IS seja exigido nesta situação, no momento atual o isolamento imposto é uma experiência desconhecida e desagradável, envolvendo separação dos amigos e da família, bem como afastamento das rotinas comuns do dia a dia, restrições que alteram os aspectos da vida cotidiana. Para muitas pessoas, a vida diária muda drasticamente e os modos de viver “normais”, exigências da sociedade moderna, são suspensos indefinidamente (Usher; Bhullar; Jackson, 2020USHER, K.; BHULLAR, N.; JACKSON, D. Life in the pandemic: social isolation and mental health. Journal of Clinical Nursing, Oxford, v. 25, n. 15-16, p. 2756-2757, 2020.).

O fato de a rotina ter sido modificada após o IS, tendo as pessoas conseguido ou não se adaptar à nova realidade (p<0,001), exprime a condição de que, quanto mais uma pessoa fica confinada, mais intensas são as consequências sobre a saúde mental. Especificamente, podem ser observados sintomas de transtorno de estresse pós-traumático, comportamento de reclusão e raiva (Brooks et al., 2020BROOKS, S. K. et al. The psychological impact of quarantine and how to reduce it: rapid review of the evidence. The Lancet, Londres, v. 14, n. 395, p. 912-920, 2020.).

Dos participantes que denotaram tristeza e preocupação com a pandemia durante o IS, 65,5% estão fazendo outras atividades - como exercício físico, práticas religiosas e atividades lúdicas (p<0,001). Esses são achados corroborados pela pesquisa de Zhang e Ma (2020ZHANG, Y.; MA, Z. F. Impact of the covid-19 pandemic on mental health and quality of life among local residents in Liaoning province, China: a cross-sectional study. International Journal Environmental Research Public Health, Basileia, v. 17, n. 7, p. 2381, 2020.), a qual teve como objetivo contornar os sintomas aparentes de tristeza e preocupação durante o IS, mostrando que as pessoas, ao aproveitarem o momento inicial de pandemia com atividades que promoviam descanso e relaxamento, além de exercícios físicos, exibiram menores índices de estresse, mesmo lidando com uma situação de saúde tão delicada. Igualmente, aquelas que responderam à situação de estresse produzido pela pandemia por meio da religião indicaram menor tensão, melhor humor e emoções mais positivas (Li, S. et al., 2020LI, S. et al. The impact of covid-19 epidemic declaration on psychological consequences: a study on active Weibo users. International Journal Environmental Research Public Health, Basileia, v. 17, n. 6, p. 2032, 2020.).

Em decorrência da magnitude da epidemia da covid-19, as informações sobre o impacto psicológico e a saúde mental durante o pico ainda são incipientes. Pesquisas anteriores, entretanto, revelaram ampla e profunda gama de consequências psicossociais nos níveis individual e comunitário durante surtos de infecção. No plano individual, é provável que as pessoas experimentem medo de adoecer ou morrer, sentimentos de desamparo e estigma (Hall; Hall; Chapman, 2008HALL, R. C.; HALL, R. C.; CHAPMAN, M. J. The 1995 Kikwit Ebola outbreak: lessons hospitals and physicians can apply to future viral epidemics. General Hospital Psychiatry, Nova York, v. 30, n. 5, p. 446-452, 2008.). Durante um surto de gripe, cerca de 10% a 30% do público geral ficaram muito ou bastante preocupados com a possibilidade de contrair o vírus (Rubin; Potts; Michie, 2010RUBIN, G. J.; POTTS, H. W.; MICHIE, S. The impact of communications about swine flu (influenza A H1N1v) on public responses to the outbreak: results from 35-national telephone surveys in the UK. Health Technology Assessment, Winchester, v. 14, n. 34, p. 183-266, 2010.). Consequentemente, ocorrem intolerância à incerteza, sentimento de vulnerabilidade à doença, preocupação excessiva e ansiedade (Taylor, 2019TAYLOR, S. (Org.). The psychology of pandemics: preparing for the next global outbreak of infectious disease. Newcastle upon Tyne: Cambridge Scholars Publishing, 2019.).

A significativa estatística (p=0,006) quanto à mudança no padrão de sono dos que estão em IS instiga mencionar que a qualidade do sono pode interferir na imunidade, possibilitando o aumento do risco de infecção pelo vírus (Xiao et al., 2020XIAO, H. et al. Social capital and sleep quality in individuals who self-isolated for 14 days during the coronavirus disease 2019 (covid-19) outbreak in January 2020 in China. Medical Science Monitor, Varsóvia, v. 26, p. e923921, 2020.). Esta observação vem ao encontro de um aspecto preocupante, quando, nesta pesquisa, ao mesmo tempo em que os achados mostraram um percentual de 88,1% das pessoas em IS terem medo de contrair a doença, também veio à tona o fato de que o IS modificou o padrão de sono de 63,4% destes participantes.

De efeito, o transtorno do sono produzido pelas circunstâncias impostas como prevenção ao contágio da covid-19 pode ensejar outro questionamento sobre até que ponto o isolamento possa estar causando outros problemas de saúde, haja vista o fato de as relações entre insônia e ansiedade e insônia e depressão serem consideradas bidirecionais (Bjorøy et al., 2020BJORØY, I. et al. The prevalence of insomnia sub types in relation to demographic characteristics, anxiety, depression, alcohol consumption and use of hypnotics. Frontiers in Psychology, Pully, v. 24, n. 11 p. 527, 2020.).

O estudo denota viés metodológico no que concerne ao processo de amostragem, uma vez que a distribuição do questionário foi realizada em maioria pelas redes sociais, podendo ter influenciado no perfil sociodemográfico da população partícipe do experimento.

Além disso, é importante destacar o fato de que o estudo não teve como objetivo realizar um diagnóstico de transtornos mentais específicos, mas sim identificar sinais e sintomas, tais como dificuldade de concentração ou sensações de “branco” na mente, irritabilidade, tensão muscular e perturbação do sono, utilizados como critérios diagnósticos para diversas condições descritas no DSM-5, como varia dos transtornos de ansiedade, bipolar, depressivo maior, dentre outros (Vahia, 2013VAHIA, V. N. Diagnostic and statistical manual of mental disorders 5: a quick glance. Indian Journal of Psychiatry, Mumbai, v. 55, n. 3, p. 220-223, 2013.), que sugerem, em certo grau, algum nível de sofrimento psíquico. É importante evidenciar também o fato de que não foi investigado se os participantes tinham transtornos mentais antes da epidemia.

Considerações finais

Os achados revelam a necessidade veemente de a academia, em conjunto com todos os setores públicos e privados, considerar e trazer à tona uma discussão dos determinantes sociais da saúde, que envolvem não só a enfermidade no processo da saúde-doença, mas também as relações sociais, as manifestações culturais, a economia e a nova forma de vivenciar o luto, sem despedida.

Quem está em isolamento social refere medo de infecção pelo vírus, sente-se preocupado com a necessidade de sair de casa, faz referência à sua rotina modificada com alteração no padrão de sono, havendo, ainda, aqueles que mencionaram sentimento de tristeza ou preocupação, os quais realizam outras atividades para amenizar e lidar com a situação da pandemia.

A pesquisa pretende trazer à sociedade uma reflexão sobre o impacto de uma pandemia em um mundo globalizado, haja vista o fato de a expansão da doença ter se dado em alta velocidade, provocando o colapso dos sistemas de saúde pública em vários países.

Muitos estudos ainda serão necessários para elucidar a relação entre a pandemia da covid-19 e os fatores associados ao estresse psicossocial vivenciado pela população mundial.

Referências

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  • 1
    Agradecemos à Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap) pela concessão de bolsas de formação acadêmica às autoras Débora Rosana Alves Braga, Edla Helena Salles de Brito e Camila de Brito Pontes.

  • Contribuição dos autores
    Saintrain definiu o tema, delineou a pesquisa e realizou a revisão crítica do artigo. Bezerra e Santos revisaram o instrumento de coleta de dados, coordenaram a coleta dos dados, elaboraram as análises estatísticas e revisaram todas as seções do artigo. Lima, Brito, Pontes e Braga desenvolveram o instrumento de coleta de dados e a discussão, formataram as referências e revisaram a versão final do manuscrito, aprovada por todos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    27 Jun 2020
  • Aceito
    08 Jul 2020
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br