Reflexões sobre a coleta do quesito raça/cor na Atenção Básica (SUS) no Sul do Brasil

Raquel Silveira Ricardo Rosa Giorgia Fogaça Lisiane Santos Henrique Nardi Míriam Alves Fernanda Bairros Sobre os autores

Resumo

Este artigo analisa a forma e os efeitos da coleta do quesito raça/cor na pesquisa “Racismo, relações de saber-poder e sofrimento psíquico”. A pesquisa foi realizada em uma parceria entre as Universidades Federais do Rio Grande do Sul e de Pelotas e as Secretarias Municipais de Saúde de Porto Alegre e de Pelotas, com foco na Atenção Básica do Sistema Único de Saúde (SUS). Trata-se de uma pesquisa elaborada em conjunto com profissionais da rede. O referencial teórico-metodológico se sustenta na psicologia social e na pesquisa-intervenção. Foram entrevistados(as) 580 usuários(as) e realizados 11 grupos focais com usuários(as) e profissionais da saúde. Os resultados apontam que 53% dos(as) usuários(as) entrevistados(as) se autodeclararam negros(as), corroborando outros estudos que demonstram que os(as) usuários(as) do SUS são majoritariamente negros(as). Na análise dos grupos focais, identificamos três aspectos principais: (1) existe a dificuldade em perguntar/responder a autodeclaração racial; (2) o racismo se expressa na coleta do quesito raça/cor; (3) os(as) profissionais de saúde têm dificuldade em reconhecer a utilidade do quesito raça/cor. Assim, é preciso fortalecer as práticas de educação continuada sobre as relações entre racismo e saúde.

Palavras-chave:
Raça/Cor; Racismo; Atenção Básica

Introdução

O quesito raça/cor na saúde é um tema central para o enfrentamento do racismo, pois é a partir da desagregação racial das informações epidemiológicas que se pode visibilizar e analisar as iniquidades em saúde. Por isso esse quesito está presente nas normativas das políticas públicas, da saúde coletiva e das práticas dos serviços de saúde. No âmbito da produção científica em ciências da saúde, a temática ainda precisa ser incorporada. Mesmo no campo das práticas de cuidado na Atenção Básica do Sistema Único de Saúde (SUS) essa incorporação efetiva também não se realizou (Sacramento; Nascimento, 2011SACRAMENTO, A. N.; NASCIMENTO, E. R. Racismo e saúde: representações sociais de mulheres e profissionais sobre o quesito cor/raça. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 45, n. 5, p. 1142-1149, 2011. DOI: 10.1590/S0080-62342011000500016
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), o que pode ser observado na Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), que tem encontrado dificuldades em sua implementação.

Estudo recente mostra que somente a partir de 2008 houve uma maior publicação de artigos brasileiros sobre essa temática (Kabad; Bastos; Santos, 2012KABAD, J. F.; BASTOS, J. L.; SANTOS, R. V. Raça, cor e etnia em estudos epidemiológicos: sobre populações brasileiras, revisão sistemática na base PuBmed. Physis, Rio de Janeiro, v. 22, n. 3, p. 895-918, 2012. DOI: 10.1590/S0103-73312012000300004
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). Esse aumento de pesquisas está relacionado ao período histórico recente de conquistas do movimento negro, impulsionadas pela III Conferência Mundial contra o Racismo, em Durban, na África do Sul, em 2001. Mesmo com o acréscimo na pesquisa acadêmica e a permanência das iniquidades raciais nas análises estatísticas desagregadas por raça/cor, os achados continuam sendo lidos e interpretados como se fossem um mero acidente na trajetória das pessoas negras (Werneck, 2016WERNECK, J. Racismo institucional e saúde da população negra. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 25, n. 3, p. 535-549, 2016. DOI: 10.1590/S0104-129020162610
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).

Em Porto Alegre, as maiores taxas de incidência de mortalidade materna, por causas externas, por acidentes e por violência estão reservadas à população negra (Porto Alegre, 2018PORTO ALEGRE. Plano Municipal de Saúde da Secretaria Municipal de Sáude 2018-2021. Porto Alegre: Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 2018.). Assim, pretendemos contribuir para a temática do quesito raça/cor, reafirmando sua importância no enfrentamento ao racismo enquanto determinação social em saúde. Este artigo é fruto da pesquisa “Racismo, relações de saber e sofrimento psíquico” (CNPQ 2015-2018), que foi executada numa parceria entre as Universidades Federais do Rio Grande do Sul e de Pelotas e as Secretarias Municipais de Saúde de Porto Alegre e de Pelotas. Durante esse percurso de trocas e vivências com os(as) profissionais de saúde do SUS, acompanhamos a mudança dos governos municipal, estadual e federal. Vivenciamos, coletivamente, as dificuldades de continuidade da pesquisa, pois as mudanças na gestão impunham novas negociações e autorizações. Aliado a isso, presenciamos as incertezas, as tristezas e as angústias dos(as) profissionais de saúde, pois a perspectiva da Atenção Básica foi sendo alterada para a da Atenção Primária, impactando nas práticas de cuidado e no próprio trabalho.

A troca de perspectiva dos princípios do SUS (Atenção Básica) para um modelo mais epidemiológico, de vertente norte-americana (Atenção Primária) produz o afastamento dos princípios da equidade e da integralidade da Reforma Sanitária da América Latina (Giovanella; Franco; Almeida, 2020GIOVANELLA, L.; FRANCO, C. M.; ALMEIDA, P. F. Política Nacional de Atenção Básica: para onde vamos? Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 4, p. 1475-1482, 2020. DOI: 10.1590/1413-81232020254.01842020
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). Além disso, a Atenção Básica propõe o trabalho de prevenção e de promoção à saúde através de um conjunto de ações de saúde individuais, coletivas e familiares (Brasil, 2018BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria No 2436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União: Brasília, DF, 22 set. 2018.). Nessa perspectiva, a Estratégia da Saúde da Família, com sua atuação nos territórios e fortalecimento de vínculos com a comunidade, aumentava a promoção de estratégias de cuidado da população negra.

Em setembro de 2019, ocorreu a extinção do Instituto Municipal de Estratégia de Saúde da Família (IMESF) de Porto Alegre, fundação pública de direito privado responsável pela Atenção Básica (Hamerski, 2018HAMERSKI, B. A presença do setor privado na saúde pública no município de Porto Alegre: o caso do IMESF. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Administração) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018.). Esse acontecimento foi fruto de uma longa disputa judicial sobre a legitimidade para execução da política pública de saúde, a qual resultou na demissão de muitos(as) profissionais e desarticulação das ações da Atenção Básica e dos(as) Agentes Comunitários(as) de Saúde (CMS, 2020CMS - CONSELHO MUNICIPAL DE SAÚDE. Nota pública sobre a demissão dos trabalhadores do IMESF. Sul21, Porto Alegre, 23 abr. 2020. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3mud8gU . Acesso em: 25 fev. 2021.
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). As consequências ainda não foram mensuradas, mas certamente prejudicam em maior medida a população negra, majoritariamente usuária do SUS. Foi nesse contexto de perdas que o coletivo universidade-serviços de saúde construiu e trabalhou para a elaboração deste artigo.

Cabe destacar que a capital gaúcha foi pioneira na implementação das diretrizes da PNSIPN, iniciando em 2012 o Curso de Promotor@s da Saúde da População Negra11A utilização do símbolo @ no título do curso foi escolhida pela gestão da equidade racial da SMS para explicitar seu alinhamento por uma linguagem inclusiva e antissexista.. Enquanto ação de educação permanente, o curso tem o objetivo de preparar trabalhadores(as) da saúde e comunidade para o enfrentamento ao racismo institucional no SUS através de práticas que promovam a ampliação do acesso aos serviços de saúde à população negra (Soares et al., 2018SOARES, E. O. et al. (Ed.). Semeando o baobá: implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Porto Alegre: Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 2018.).

Em diálogo com a Saúde Coletiva, acreditamos ser essencial incluir o quesito raça/cor na compreensão dos processos saúde-doença, compreendendo que existem determinações sociais em saúde que atuam durante todo o ciclo de vida das pessoas (Garbois; Sodré; Dalbello-Araujo, 2017GARBOIS, J. A.; SODRÉ, F.; DALBELLO-ARAUJO, M. Da noção de determinação social à de determinantes sociais da saúde. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 41, n. 112, p. 63-76, 2017. DOI: 10.1590/0103-1104201711206
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). Desde 2005, a Organização Mundial de Saúde reconhece a multifatoriedade de dinâmicas sociais, econômicas, políticas, de gênero/sexualidade, raça/etnia, deficiências, entre tantas outras, que precisam ser consideradas na atenção e cuidado à saúde. Entretanto, as formações acadêmicas das áreas da saúde continuam privilegiando uma formação biomédica, fundada na concepção de sujeito universal, com enfoque nos aspectos biológicos (Amoretti, 2005AMORETTI, R. A Educação médica diante das necessidades sociais em saúde. Revista Brasileira de Educação Médica, Brasília, DF, v. 29, n. 2, p. 136-146, 2005. DOI: 10.1590/1981-5271v29.2-020
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).

Desta forma, as relações raciais são ainda invisibilizadas por aqueles(as) que utilizam os jalecos brancos. Na negação das desigualdades nas relações de saber-poder entre pessoas brancas e negras, os(as) profissionais da saúde de nível universitário, em sua maioria pessoas brancas, acreditam não compactuar com o racismo, pois, conscientemente, afirmam não diferenciar os(as) usuários(as). O enunciado “trato todo mundo igual” é uma afirmativa recolhida inúmeras vezes nos nossos diários de campo, bem como nas experiências de trabalho destes(as) autores(as).

Apesar do declarado, essa crença na igualdade de tratamento e de cuidado aos(as) usuários(as) é uma falácia sob muitos aspectos. As relações interpessoais nunca são neutras, pois somos constituídos numa produção de subjetividade atravessada por inúmeras relações de saber-poder e diferentes afetos, que serão acionados no encontro profissional-usuário(a). Aliado a isso, o mito da democracia racial (Guimarães, 2006GUIMARÃES, A. S. A. Depois da democracia racial. Tempo Social, São Paulo, v. 18, n. 2, p. 269-287, 2006. DOI: 10.1590/S0103-20702006000200014
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) ainda sustenta a produção de conhecimentos científicos supostamente neutros e universais, produzindo negligência e invisibilidade do racismo enquanto uma determinação social em saúde.

A própria concepção de racismo não é algo que se discuta nas formações acadêmicas (Santana et al., 2019SANTANA, R. A. R. et al. A equidade racial e a educação das relações étnico-raciais nos cursos de Saúde. Interface, Botucatu, v. 23, p. 1-15, 2019. DOI: 10.1590/interface.170039
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) e frequentemente o racismo é entendido como um ato discriminatório explícito e individual, restrito ao campo da moral. Contrapomos a essa ideia a definição de racismo em sua dimensão simbólica e material das relações raciais instituídas. Racismo compreendido como uma estrutura social que constituiu, historicamente, uma profunda desigualdade na distribuição dos recursos materiais e simbólicos em favor dos povos brancos (Moore, 2007MOORE, C. Racismo e Sociedade: novas bases epistemológicas para entender o racismo. Belo Horizonte: Mazza, 2007.). No caso específico deste artigo, o foco se dá na forma como ele se apresenta na sociedade brasileira.

Uma vez que nosso objetivo é discutir a saúde da população negra, não abordaremos aqui a categoria etnicidade, que remete às questões de origem, de lugar/território/país/tribo, língua, costumes, alimentação e crenças. Raça e etnicidade são conceitos diferentes, mas não separados completamente. Nessa direção, quando nos referimos à raça, estamos falando explicitamente de colonialismo e de relações de dominação (Rios; González-Zambrano, 2014RIOS, F.; GONZÁLEZ-ZAMBRANO, C. Ciência e política na produção das diferenças: entrevista com Peter Wade. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 57, n. 2, p. 485-505, 2014. DOI: 10.11606/2179-0892.ra.2014.89121
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).

Na pesquisa, utilizamos a categoria negro(a) em sua dimensão de identidade política, construída como positivação pelo movimento negro em resistência aos processos de dominação (Gomes, 2011GOMES, N. L. O movimento negro no Brasil: ausências, emergências e a produção dos saberes. Política & Sociedade, Florianópolis, v. 10, n. 18, p. 133-154, 2011. DOI: 10.5007/2175-7984.2011v10n18p133
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). Cabe lembrar que, para o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as autodeclarações como preto(a) e pardo(a), somadas, compõem a população negra.

A incorporação do quesito raça/cor nas formações acadêmicas está em consonância com legislações nacionais (Lei 10.639/2003; CNE/CP Resolução 1/2004, Lei 11.645/2008). Por isso, é preciso que as formações em saúde se responsabilizem pelo estudo dos indicadores de saúde sem deixar de analisar as iniquidades raciais e seus efeitos na saúde.

De acordo com Jurema Werneck (2016WERNECK, J. Racismo institucional e saúde da população negra. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 25, n. 3, p. 535-549, 2016. DOI: 10.1590/S0104-129020162610
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), no campo da saúde ainda prevalece a formação biomédica, a branquitude dos(as) pesquisadores(as) de saúde, o mito da democracia racial, entre outros fatores que dificultam práticas antirracistas. O conceito de “branquitude” se inscreve nos estudos das relações raciais, apontando o lugar de privilégio que as pessoas brancas usufruem nas sociedades (Bento, 2017BENTO, M. A. Branqueamento e branquitude no Brasil. In: BENTO, M. A. S.; CARONE, I. (Org.). Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2017. p. 189.).

Apesar do Rio Grande do Sul ser um dos estados com o menor percentual de população negra, com 16,13% (PESQUISA, 2019PESQUISA nacional por amostra de domicílios contínua anual: Tabela 6408 - população residente, por sexo e cor ou raça, 2019. IBGE, 2019. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3cVEIAb . Acesso em: 01 abr. 2021.
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), em nossa amostra, identificamos que 53% de usuários(as)da Atenção Básica do SUS se autodeclaram negros(as), dado que corrobora outros estudos sobre as características da população que utiliza esse serviço (Guibu et al., 2017GUIBU, I. A. et al. Características principais dos usuários dos serviços de atenção primária à saúde no Brasil. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 51, supl. 2, 17s, 2017. DOI: 10.11606/S1518-8787.2017051007070
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). Neste contexto, o objetivo deste artigo é analisar a forma e os efeitos da coleta do quesito raça/cor na pesquisa “Racismo, relações de saber-poder e sofrimento psíquico”, realizada na Atenção Básica do SUS.

Método

Tratou-se de uma pesquisa-intervenção (Rocha, 2006ROCHA, M. L. Psicologia e as práticas institucionais: a pesquisa-intervenção em movimento. Psico, Porto Alegre, v. 37, n. 2, p. 169-174, 2006.), desenhada e elaborada em conjunto com a rede de serviços para a produção de informações quanti-qualitativas, nas cidades de Porto Alegre e de Pelotas. A pesquisa-intervenção problematiza a forma como os processos de mudança podem ser acionados pelo encontro de saberes da academia com a comunidade. Do ponto de vista ético da pesquisa com seres humanos, este estudo foi aprovado pelo Parecer Consubstanciado de nº CAAE 44949315.3.3001.5338.

Em Porto Alegre, contamos com o apoio da Gestora da Equidade Racial da Secretaria Municipal de Saúde do município. Em Pelotas não havia ações específicas para a população negra, mas houve parceira na realização da pesquisa. O trabalho de campo ocorreu na Atenção Básica do SUS. Foram entrevistados(as) 580 usuários(as) e realizados 11 grupos focais, com usuários(as) e multiprofissionais da saúde (agentes comunitárias de saúde, enfermeiras, técnicas de enfermagem, técnicas de vigilância sanitária, médicos(as), dentistas).

As entrevistas individuais contaram com a aplicação de um único instrumento, o qual continha: dados sociodemográficos, dados de saúde geral e a Escala de Discriminação Explícita - EDE (Bastos et al., 2012BASTOS, J. L. et al. Explicit discrimination and health: development and psychometric properties of an assessment instrument. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 46, n. 2, p. 269-278, 2012. DOI: 10.1590/S0034-89102012000200009
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). Os itens de autodeclaração racial e de gênero/sexualidade foram perguntados no final do questionário, pois são marcadores sociais (Brah, 2006BRAH, A. Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu, Campinas, v. 26, p. 329-376, 2006. DOI: 10.1590/S0104-83332006000100014
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) que, em razão de serem fortemente atravessados por relações de poder, desencadeavam afetos e reflexões importantes.

A EDE é constituída por 18 situações de tratamento discriminatório, tais como ser tratado(a) com desprezo ao tentar namorar alguém, ser avaliado(a) injustamente em atividades no trabalho ou estágio e ser excluído(a) ou deixado(a) de fora por um grupo de amigos(as) da escola/faculdade. Em cada uma das situações é solicitado ao(a) respondente que indique a frequência de ocorrência do tratamento discriminatório descrito e o(s) motivo(s) para o tratamento discriminatório escolhido(s) em uma lista com 17 sugestões (e.g., condição socioeconômica, raça, idade, gênero e outros). O tempo médio de entrevista com os(as) usuários(as) negros(as) foi em torno de 50-60 minutos comparado com o tempo de 20-30 minutos com as pessoas brancas.

Foi considerada população alvo da pesquisa todos(as) os(as) usuários(as) das Unidades de Saúde nas cidades de Porto Alegre-RS e de Pelotas-RS. Ambas as cidades apresentam percentuais ao redor de 20% da população geral autodeclarada negra, ou seja, preta ou parda (PESQUISA, 2019PESQUISA nacional por amostra de domicílios contínua anual: Tabela 6408 - população residente, por sexo e cor ou raça, 2019. IBGE, 2019. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3cVEIAb . Acesso em: 01 abr. 2021.
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). As duas cidades estavam divididas em oito e seis Regiões de Saúde, respectivamente. As Unidades de Saúde estão distribuídas de acordo com o Índice de Desenvolvimento Humano, ou seja, há mais equipamentos de saúde nas regiões periféricas e com maior vulnerabilidade.

O cálculo amostral considerou uma proporção da população de 0,5, a ser estimada, com um nível de confiança de 95% e uma margem de erro de 0,042. Obtivemos uma amostra de tamanho mínimo de 545 pessoas. No cálculo foi utilizado o software Winpepi em sua versão 11.37. Em Porto Alegre, cobrimos todas as Regiões de Saúde, atingindo 76 das 142 Unidades de Saúde (US). Em Pelotas, não cobrimos todas as Regiões de Saúde por falta de recursos. Atingimos 21 das 51 US de Pelotas. Na capital, os grupos aconteceram em três regiões de saúde: zona sul/periferia; zona leste/nordeste/periferia e zona central. Em Pelotas, os grupos ocorreram em três regiões urbanas e em uma área rural da cidade.

Para realizar a abordagem, os(as) entrevistadores(as) foram treinados(as) para informar ao(a) usuário(a) dos riscos e benefícios da pesquisa e dos itens constantes no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), bem como coletar a assinatura do(a) participante no respectivo termo. A aplicação do questionário durou entre 20 e 60 minutos.

As coletas ocorreram nas salas de espera das Unidades de Saúde. Os critérios de inclusão na pesquisa foram ser maior de 18 anos e não apresentar transtornos mentais ou alterações visíveis no estado mental. O(a) usuário(a) era convidado(a) a participar de uma pesquisa sobre “discriminação e saúde”; caso aceitasse, era lido o TCLE, colhida a assinatura do(a) entrevistado(a) e iniciada a aplicação do questionário face a face. Caso o(a) usuário(a) não aceitasse, outra pessoa era convidada, até o cumprimento da meta estabelecida pelo cálculo amostral de seis entrevistas por US. A orientação aos(as) entrevistadores(as) era que abordassem pessoas de perfis diversos (etários, de gêneros, raciais). As equipes de pesquisadores(as) eram inter-raciais. Estudos apontam que as relações raciais podem interferir nas respostas quando as cores do entrevistado(a) e do pesquisador(a) são diferentes (Bastos et al., 2009BASTOS, J. L. et al. Does the way I see you affect the way I see myself? Associations between interviewers’ and interviewees’ “color/race ” in southern Brazil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 25, n. 10, p. 2111-2124, 2009. DOI: 10.1590/S0102-311X2009001000003
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).

Assim, construímos um texto introdutório antes da pergunta sobre a autodeclaração racial. O Quadro 1 apresenta a forma como o quesito raça/cor foi utilizado nesta pesquisa.

Quadro 1

Os grupos focais foram utilizados em virtude de sua potência em proporcionar trocas de experiências e discussões coletivas, dificilmente emergentes em entrevistas individuais (Trad, 2009TRAD, L. A. B. Grupos focais: conceitos, procedimentos e reflexões baseadas em experiências com o uso da técnica em pesquisas de saúde. Physis, Rio de Janeiro, v. 19, n. 3, p. 777-796, 2009. DOI: 10.1590/S0103-73312009000300013
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). Esses grupos aconteceram nas Unidades de Saúde selecionadas, com um único encontro, em virtude da dificuldade de liberação dos(as) profissionais visando sua participação, bem como a dificuldade em se organizar a participação dos(as) usuários(as). Em Porto Alegre, a condução dos grupos focais foi mediada por uma pesquisadora, e, em Pelotas, a mediação foi feita por duas pesquisadoras. Em média, os grupos duraram uma hora, com uma participação média de nove pessoas. Foi utilizada a Análise do Discurso em virtude de sua potência em analisar a linguagem como um sistema, no qual os significados construídos estão inscritos sócio-historicamente em relações de saber-poder (Damico, 2006DAMICO, J. Corpo a corpo com as jovens: grupos focais e análise de discurso na pesquisa em educação física. Movimento, Porto Alegre, v. 12, n. 2, p. 35-67, 2006. DOI: 10.22456/1982-8918.2905
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). Na análise, selecionamos as passagens dos grupos focais em que o tema raça/cor emergiu. Posteriormente, identificamos os aspectos principais do debate, os quais serão discutidos nos resultados.

A ferramenta NVIVO 12 foi utilizada para organização e análise dos grupos focais. Os nomes das pessoas que participaram dos grupos foram trocados por nomes de intelectuais brancas e negras. Foi feita a identificação se profissional da saúde ou usuário(a) e a cidade. As regiões de saúde foram omitidas para preservar o sigilo dos(as) participantes.

Resultados e discussão

Como já afirmado, responderam ao instrumento 580 usuários(as), sendo que 53% se autodeclararam negras, apenas 1,8% se autodeclararam indígenas e 0,4% amarelas. Assim, as autodeclarações indígenas e amarelas foram excluídas e analisamos somente as populações brancas e negras. A maioria (79,8%) eram mulheres e a renda pessoal de 83,6% era de no máximo 2 salários-mínimos (Silveira et al., 2018SILVEIRA, R. S. et al. Racismo, relações de saber-poder e sofrimento psíquico. In: SOARES, E. O. et al. (Ed.). Semeando o baobá: implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Porto Alegre: Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 2018. p. 33-45.).

Como informado anteriormente, estudos apontam que o perfil nacional dos(as) usuários(as) da Atenção Básica é majoritariamente negro(a) (Guibu et al., 2017GUIBU, I. A. et al. Características principais dos usuários dos serviços de atenção primária à saúde no Brasil. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 51, supl. 2, 17s, 2017. DOI: 10.11606/S1518-8787.2017051007070
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). Esta é uma situação decorrente da profunda desigualdade econômica a que a população negra foi relegada. O racismo articulou raça/cor com classe social de tal forma que a pobreza continua concentrada nas pessoas de cor, sejam negras, sejam indígenas. Assim, com menos recursos materiais e econômicos, essas populações vivem nos lugares mais vulneráveis dos centros urbanos. Como a equidade é um dos princípios basilares do SUS, a gestão pública de saúde distribuiu um maior número de unidades de saúde nos territórios mais vulneráveis, os quais apresentam uma maior concentração de população negra.

Aliado a isso, o resultado encontrado de 53% de usuários(as) negros(as) da Atenção Básica na capital e em Pelotas reflete o aumento na autodeclaração da população negra, que pode ser efeito das políticas públicas e dos movimentos sociais negros (Alves; Jesus; Diaz, 2017ALVES, M. C.; JESUS, J. P.; DIAZ, L. A. F. Autodeclaração da raça/cor no SUS: reflexões conceituais a partir da campanha realizada pelo estado do Rio Grande do Sul. Identidade, São Leopoldo, v. 22, n. 1, p. 5-15, 2017.). Em Porto Alegre, houve a forte atuação das mais de 600 Promotor@s da Saúde da População Negra, as quais desenvolvem diversas ações de promoção da saúde desse grupo na Atenção Básica, desde rodas de conversas, palestras, feiras e comemorações na Semana da Consciência Negra (Soares et. al, 2018SOARES, E. O. et al. (Ed.). Semeando o baobá: implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Porto Alegre: Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 2018.). Ao mesmo tempo, a nova geração do movimento negro tem tido um protagonismo forte na divulgação de conteúdos da negritude. A potência das redes sociais e o aumento da inserção de estudantes negros(as) pelas cotas raciais nas universidades produziram mudanças significativas na produção de conhecimentos e na construção das identidades negras. Muitas vezes presenciamos o orgulho de se autodeclarar negro(a) por parte dos(as) entrevistados(as), principalmente os(as) mais jovens. Num dos grupos focais, encontramos o seguinte relato de uma profissional de saúde:

Quando eu terminei o curso (Promotor@ s da Saúde da População Negra), eu fui fazer numa família o quesito da raça/cor. A família era uma família de negros. Só que, menina, era negra de cabelo liso e, quando a avó falou, tudo direitinho, e quando foi a menina e falou ‘Não, eu me considero negra ’, a vó dela disse: ‘Não, não, tu não é negra, tu é branca’. Eu fiquei olhando. Ela disse ‘Não, vó, sou negra’ (Patrícia, 57 anos, negra, profissional da saúde de Porto Alegre).

Esta fala aponta a complexidade das relações raciais no Brasil, pois os processos de branqueamento e as relações inter-raciais produziram uma nação “mestiça” que dificulta o reconhecimento da identidade negra. Atualmente, o termo “colorismo” tem sido utilizado para refletir sobre o preconceito de cor que persiste na nossa sociedade e prejudica de forma mais violenta as pessoas negras de pele escura (Francisco, 2018FRANCISCO, M. S. Discursos sobre colorismo: educação étnico-racial na contemporaneidade. Ensaios Filosóficos, Rio de Janeiro, v. 18, p. 97-109, 2018.).

Apesar das conquistas do movimento negro e de políticas públicas pela equidade racial, a coleta do quesito raça/cor ainda é um tema sensível. O instrumento utilizado era longo e o tempo de resposta variava, principalmente, em virtude da raça/cor da pessoa entrevistada. Os questionamentos iniciavam com os dados sócio demográficos, passavam por questões de saúde e, finalmente, chegavam às situações de discriminação vividas. As pessoas brancas respondiam mais rapidamente ao instrumento, enquanto as pessoas negras demoravam mais, pois relatavam mais experiências de discriminação e de racismo.

Cabe salientar que a EDE foi inicialmente construída para visibilizar as especificidades do “racismo à brasileira”, porém, ela abre a possibilidade de que a pessoa identifique muitas variáveis na discriminação vivida, desde questões de classe, gênero, deficiência etc. Assim, muitos(as) usuários(as) brancos(as) do SUS identificaram situações de discriminação pela condição de pobreza. Já a população negra entrevistada sempre identificou a raça como uma das principais causas da discriminação, seguida das questões de classe. A frequência de situações de discriminação foi maior nas pessoas negras do que nas pessoas brancas (Silveira et al., 2018SILVEIRA, R. S. et al. Racismo, relações de saber-poder e sofrimento psíquico. In: SOARES, E. O. et al. (Ed.). Semeando o baobá: implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Porto Alegre: Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 2018. p. 33-45.).

Durante as entrevistas, era comum que as pessoas negras contassem suas histórias de discriminação racial, fazendo com que as entrevistas se alongassem. Nós líamos a introdução da coleta do quesito raça/cor, explicando para a pessoa o significado desta informação para as políticas públicas. Certamente a experiência da entrevista mobilizava lembranças de racismo sofrido e, aliado a isso, grande parte dos(as) entrevistadores(as) era negra, o que possibilitava uma identificação e cumplicidade no momento da coleta. Muitas vezes a nossa equipe, em especial estudantes negros(as), saíam do campo com inquietações e sentimentos de tristeza, por testemunharem a dimensão do racismo na vida dos(as) usuários(as) do SUS e se reconhecerem nas mesmas situações.

Os grupos focais nas duas cidades apresentaram diferenças em relação ao quesito raça/cor, com maior visibilidade na cidade de Porto Alegre. Entendemos que a ausência de ações relacionadas à PNSIPN em Pelotas minimizou sua importância nos grupos. Identificamos três aspectos principais sobre o quesito raça/cor na análise dos grupos focais: (1) que existe dificuldade em perguntar/responder a autodeclaração racial; (2) que o racismo se expressa no processo de branqueamento da população na coleta do quesito raça/cor; (3) que os(as) profissionais de saúde têm dificuldade em reconhecer a utilidade do quesito raça/cor.

O primeiro aspecto que emergiu foi a dificuldade no processo da coleta do quesito raça/cor, tanto para quem pergunta como para quem responde.

Então... tanto do paciente, que também quando chega lá, quando pergunta: - ‘ Ah, tua cor?’ - ‘Ah, põe a que tu quiser ’. Ele tem aquela dificuldade de falar ‘Ah, senhor, mas é autodeclarado ’. - ‘Ah, que que tu acha que eu sou? Tu não tá vendo?’. Então, vem aquela violência e, às vezes, parte do próprio funcionário, como do usuário também. Às vezes, tu também fica encabulada e tu não pergunta, até pela agressão que ele vai te dar. - ‘Que cor tu acha que eu sou? Tu não tá vendo? Por que tu tá perguntando isso?’ (Carolina, 42 anos, negra, profissional de saúde de Porto Alegre)

As expressões “Tu não tá vendo? Põe o que tu quiser” foram recorrentes nas falas nos grupos. Essa fala ilustra a dificuldade que temos para explicitar as classificações raciais. Por um lado, temos a formação dos(as) profissionais de saúde, majoritariamente, no modelo biomédico, em que as determinações sociais de saúde estão minimizadas. Por outro lado, o racismo brasileiro produziu desumanização e exclusão da população negra em todos os âmbitos da sociedade. O mito da democracia racial é uma marca da singularidade da nossa história racista, em que o silêncio sobre raça e cor sustenta o discurso de que “somos todos iguais”.

Constatamos nas discussões dos grupos com os(as) profissionais que o desconforto com a coleta do quesito raça/cor é evidente quando a pessoa questionada é negra. No caso do(a) usuário(a) branco(a), o conflito não aparece. Os sentimentos de violência, agressividade, medo e vergonha afloram quando questões que evocam o racismo emergem. O questionamento sobre a raça/cor vira conflito diante da pessoa negra, pois explicita uma hierarquização entre o(a) branco(a) e o(a) negro(a). Dizer a raça/cor negra impede que se silencie.

Temos profundas iniquidades em nossas vidas, em nossa sociedade, as quais emergem na linguagem (Fanon, 2008FANON, F. Pele negra máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.). Nas discussões grupais aparecem expressões como “negrinha” e “moreninha”, explicitando a suposta superioridade do “branco/adulto” em relação ao “negro/criança”. A utilização do diminutivo para infantilizar a pessoa negra tem sido objeto de análise sobre os impactos do racismo na produção de subjetividade.

Quando a pessoa quer falar aquela negra, ele vai dizer ‘aquela negrinha’ ou ‘aquela moreninha’. Aí acaba com a negritude da pessoa, porque se chamar ‘aquela moreninha’, ou, exemplo, uma ‘moreninha de cabelo’, eu falo, mas é branca ou negra? Mas tu não é negra. E eu pergunto, como assim? Tem uma pessoa que é mais escura. E então fica aquela função, uma percepção que vemos muito. (Jurema, 55 anos, negra, profissional da saúde de Pelotas)

A pessoa tem medo de dizer porque acham que vão ofender a pessoa negra. (Neusa, 38 anos, negra, profissional de saúde de Pelotas)

Cuti22Pseudônimo de Luiz Silva, intelectual negro contemporâneo, nascido em 1951 na cidade de Ourinhos, São Paulo. (2017CUTI, L. S. Quem tem medo da palavra negro? In: NAOMI, M. K.; SILVA, M. L.; ABUD, C. A. (Ed.). O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise. São Paulo: Perspectiva, 2017. p. 197-212.) analisa o medo que a sociedade branca tem de utilizar a palavra negro, pois, ao pronunciá-la, emerge toda a perversidade do nosso passado escravocrata e do abandono da população negra. Reconhecer as iniquidades raciais é algo desestabilizador para a negação do racismo e a ideologia da meritocracia que nos constitui como sociedade. Como já dito anteriormente, o processo de branqueamento e mestiçagem do Brasil produziu uma fratura nas identidades da população negra. Diferente da segregação racial jurídica dos EUA, em que o tom de pele não diferenciava a população negra entre si, no Brasil, quanto mais distante da pele preta, maior a probabilidade de aceitação na sociedade. Esse autor aponta a questão do sofrimento psíquico que a negação da identidade racial produz na população negra.

O segundo aspecto que destacamos é que o racismo se expressa no processo de branqueamento da população na coleta do quesito raça/cor. O Brasil promoveu uma política pública de imigração europeia com intuito de clarear a população brasileira (Schwarcz, 1994SCHWARCZ, L. M. Espetáculo da miscigenação. Estudos Avançados, São Paulo, v. 8, n. 20, p. 137-152, 1994. DOI: 10.1590/S0103-40141994000100017
https://doi.org/10.1590/S0103-4014199400...
). Paralelo a isso, os discursos de valorização da cultura europeia, dos traços fenotípicos das pessoas brancas como sinônimo de beleza e de humanidade produziram sentimentos de inferioridade e desumanização na população negra. Uma das expressões desse processo apareceu nos relatos das profissionais sobre situações de coleta do quesito raça/cor em que há uma discordância entre a autodeclaração do(a) usuário(a) e a percepção da profissional.

Só que tem aquela função assim, quando a gente chega na família, a gente tem um cadastro, a gente tem a pergunta ‘a cor que a pessoa é?’. Muitas vezes eu estou vendo que a pessoa é negra, mas a pessoa não se acha negra... Eu já cheguei para pessoas para perguntar a cor e elas dizem pra mim: - ‘Eu sou a cor que tu tá vendo’. Eu estou vendo uma coisa, mas ela se acha outra. Tu pega uma pessoa com tom de pele mais claro, a família toda é negra, mas ela se acha branca, aí tu tens que colocar o que a pessoa se acha... (Angela, 42 anos, negra, profissional da saúde de Pelotas)

A falta de reflexão sobre o fenômeno do branqueamento gera mais uma violência racial, pois joga o embranquecimento para o plano individual, como se fosse somente um problema na autoimagem do(a) usuário(a). Essa situação poderia ser utilizada como uma informação a ser trabalhada na perspectiva da integralidade na saúde. Que efeitos esse branqueamento produz na população negra? Qual o custo psíquico desse branqueamento? Que atores e atrizes na comunidade podem ser acionados para atuar no fortalecimento das identidades negras?

Outro elemento presente nos momentos de questionamento sobre o quesito raça/cor é a violência do branqueamento por parte dos(as) trabalhadores(as) que perguntam.

Hoje em dia, eu acho, que nem hoje em dia eles botam assim ó, quando tu vai num lugar: - ‘Que cor tu é?’. Aí tu bota a cor que tu quiser. Eu achei legal! Se eu quiser botar que eu sou branca, eu sou branca! [...] Não... mas aí eu boto a minha cor! Mas a pessoa hoje, por exemplo, a pessoa escolhe. Já é dito assim ó: - ‘Tu bota a cor que tu quiser aí, é tu que decide a cor que teu filho, que tu acha que teu filho é’. Aí eu olhei assim pra mulher do cartório, quando fui registrar meu pequeno... Quando eu tive meus dois grandes não era assim [...]. - ‘É a senhora que tá dizendo que ele é preto? A senhora então bota preto, mas, na verdade, ele não é preto’. Eu digo ‘Não, ele é preto’. (Virginia, 39 anos, negra, profissional de saúde de Porto Alegre)

Nessa fala repleta de tensão, num primeiro momento, a usuária se mostra contente com a possibilidade de responder “o que quiser”, podendo assim assumir a responsabilidade sobre a própria identidade. Ao registrar o filho, no entanto, há uma tentativa, por parte da atendente, de negar a cor da criança. A mãe é obrigada a se impor para garantir o registro correto do próprio filho. Chama a atenção a manifestação da profissional em expressar o desejo de embranquecimento da criança, se inscrevendo no ideal de branqueamento do Estado brasileiro. O trecho acima aborda uma família com traços inter-raciais, em que um dos filhos tem a pele um pouco mais clara que os irmãos, tendo sido classificado como branco pela profissional. Todavia, a mãe reconhece que ele não deixa de ser negro, assim como o resto de sua família, desta forma, essa mãe garantiu o registro da criança como negra. Esse é um caso interessante para pensarmos o direito da autodeclaração. Caso ele não estivesse garantido, talvez a criança tivesse sido registrada de outra forma.

O terceiro ponto que emergiu é que os(as) profissionais de saúde têm dificuldade em reconhecer a utilidade do quesito raça/cor. Para que mesmo serve essa informação? Elas serão utilizadas para ações efetivas para a população?

Nos grupos de profissionais de Porto Alegre esse questionamento sobre a utilidade do quesito raça/cor apareceu em duas dimensões. A primeira reconhecendo que antes do curso de Promotor@s da Saúde da População Negra, iniciado em 2012, não tinham conhecimento do significado do quesito raça/cor. Era uma informação coletada apenas por obrigação, quando era coletada.

[...] a gente passou muito trabalho em relação a isso porque os pacientes chegavam furiosos: - Tu não tá vendo que cor eu sou?”. - “Sim, a gente precisa saber pra anotar”. - “Pra que que vocês querem saber isso?”. Assim, olha eu confesso, eu dizia assim: - ó, “Eu não sei. Eu simplesmente tô perguntando por que tá no questionário”. (Lélia, 35 anos, negra, profissional de saúde de Porto Alegre)

Por outro lado, atualmente, sabem da importância em Porto Alegre, porém, não percebem retorno da gestão sobre o trabalho da coleta do quesito raça/cor. Essas profissionais reconhecem uma falha, pois não são produzidas informações adequadas ao serviço a ser realizado pelos(as) profissionais, tampouco são repassadas informações aos(as) usuários(as). Não têm sido produzidas análises desagregadas por raça/cor para direcionamento de políticas públicas para a população negra, segundo as entrevistadas.

Quantos homens negros atendemos, quantas mulheres brancas? a gente não tem, até pra ver se a gente tá conseguindo atingir. (Simone, 55 anos, negra, profissional de saúde de Porto Alegre)

Tu preenches e não tem retorno (do quesito raça/cor), a gente gostaria de ter um retorno do órgão, que a mulher negra tem isso, aquilo ... por que não? A gente não tem retorno de nada, pra dizer a verdade. (Edith, 60 anos, branca, profissional de saúde de Porto Alegre)

Se essas ações fossem realizadas, as entrevistadas acreditam que a informação teria um significado nas práticas de saúde, e o preenchimento dos dados de prontuário poderia ser mais bem realizado, além disso, sensibilizaria um maior número de profissionais da saúde. Na cidade de Pelotas, as formações sobre a PNSIPN e o quesito raça/cor ainda são incipientes.

Considerações finais

O percurso trilhado até aqui reforça a importância de qualificar a coleta do quesito raça/cor, produzindo dados epidemiológicos desagregados por raça/cor. Esse posicionamento teórico-político contribui para o enfrentamento do racismo enquanto determinação social em saúde, pois fornece visibilidade às iniquidades raciais. Desta forma, podem-se traçar estratégias para promoção, prevenção e cuidado em saúde da população negra de forma fundamentada nos indicadores de saúde. No campo das formações, é fundamental que os currículos abordem a temática do racismo na saúde, fomentando reflexões sobre as práticas profissionais para seu enfrentamento. Na Atenção Básica, seria importante o planejamento de ações e metas para melhorar as iniquidades raciais nos indicadores de saúde, por exemplo, com monitoramento e indicação de participação de usuários(as) negros(as) nos diferentes grupos de promoção da saúde. Além disso, seria importante a disseminação do Curso das Promotor@s da Saúde da População Negra (ou atividade semelhante) para outras regiões do Brasil, com a incorporação dos(as) promotores(as) nos espaços de gestão e de monitoramento da saúde da população negras nas suas regiões. Acreditamos ser importante fortalecer as práticas de educação continuada para profissionais da saúde sobre a população negra como forma de enfrentamento ao racismo na saúde.

Para finalizar, assinalamos que o campo desta pesquisa, a Atenção Básica do SUS, está inserido em um ambiente de confronto, com um aumento exponencial da demanda por serviços de saúde e a redução de investimentos de toda ordem (financeiro e estrutural) (Hamerski, 2018HAMERSKI, B. A presença do setor privado na saúde pública no município de Porto Alegre: o caso do IMESF. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Administração) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018.). Essa realidade pode inviabilizar uma coleta do quesito raça/cor adequada. Essa produção e reprodução de desigualdades raciais implicam em elevados custos subjetivos e sociais à população negra, exigindo a incorporação do debate nas formações acadêmicas na área da saúde e um estímulo na produção científica. Cabe ressaltar que a proposta da Atenção Primária, aliada ao desmonte do IMESF e à privatização da contratualização dos recursos humanos, desmonta todo o trabalho investido em educação permanente com as Promotor@s da Saúde da População Negra e demais profissionais que estavam em pleno processo de formação relacionada à temática de saúde da população negra.

Os desdobramentos desta pesquisa seguirão sendo analisados e publicizados de forma a contribuir para o enfrentamento do racismo e seus efeitos deletérios na população negra.

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    » https://doi.org/10.1590/S0104-129020162610

  • 1
    A utilização do símbolo @ no título do curso foi escolhida pela gestão da equidade racial da SMS para explicitar seu alinhamento por uma linguagem inclusiva e antissexista.
  • 2
    Pseudônimo de Luiz Silva, intelectual negro contemporâneo, nascido em 1951 na cidade de Ourinhos, São Paulo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Set 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    09 Set 2020
  • Revisado
    09 Nov 2020
  • Aceito
    03 Dez 2020
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br