As vivências interseccionais da violência em um território vulnerável e periférico11Este estudo é um desdobramento das pesquisas “Ética do cuidado e construção de direitos: acolhimento psicossocial em práticas da saúde da família em situações de exclusão social” (fomentada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), nº 2016/23973-2), “Desigualdade social e subjetividade: trajetórias de vida e lutas por melhores condições de vida e saúde em território vulnerável da Baixada Santista” (apoiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), nº 407836/2016-0), que foram aprovadas pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo, pareceres 2.198.202 e 2.047.444, e “Ética do cuidado e processos psicossociais de participação social em práticas da saúde da família em situações de exclusão social” (Bolsa Produtividade CNPq nº 308730/2019-4).

Milena Dias Corrêa Ludmila de Moura Luciane Pinho de Almeida Ilze Zirbel Sobre os autores

Resumo

A violência é um fenômeno sociocultural que viola direitos e acentua desigualdades sociais. Suas implicações são perceptíveis na vida cotidiana e na saúde da população. Sob o referencial teórico da interseccionalidade e da psicologia sócio-histórica, este artigo discute formas de violência produzidas na intersecção de gênero, raça e classe em uma comunidade periférica e em situação de alta vulnerabilidade localizada na cidade de Cubatão/SP, a partir do relato de quatro lideranças comunitárias. Os dados foram obtidos por meio de três pesquisas realizadas anteriormente e concomitantemente ao contexto da pandemia da covid-19, de junho de 2017 a novembro de 2020, extraídos mediante entrevistas e diários de campo para, depois, serem analisados segundo a Hermenêutica de Profundidade. Os resultados apontam para violências estruturais articuladas a raça, classe e gênero, expressas na inacessibilidade a condições dignas de moradia, alimentação e renda básica. A violência contra mulheres, destacada como resultado, aparece intermediada pelo Estado ou pelo tráfico organizado. Os dados sugerem que as violências são agravadas pela ineficiência da operacionalização das políticas públicas, no que tange à promoção do cuidado à população majoritariamente negra e pobre, indicando que a interseccionalidade é uma ferramenta essencial para a análise e o enfrentamento das desigualdades sociais.

Palavras-chave:
Interseccionalidade; Violência; Violência contra a Mulher; Covid-19; Psicologia Sócio-histórica

Introdução

A violência é um fenômeno recorrente na história da humanidade. É produzida em meio aos arranjos sociais e altera a realidade desses. Saffioti (2004SAFFIOTI, H. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.) define violência como a ruptura de qualquer forma de integridade de uma pessoa: física, psíquica, sexual e/ou moral. Ela pode se dar de forma explícita ou velada e estar, inclusive, de acordo com as normas sociais de determinada cultura.

No Brasil a violência apresenta traços estruturais. O processo de colonização do país foi construído com base na escravização de índios e africanos e na violência sexual contra mulheres. No caso desta o Estado concedeu a seus cidadãos o direito de ferir, castigar ou executar suas cônjuges.22Conforme consta no Código Filipino, uma compilação jurídica vigente em Portugal e em seus territórios ultramarinos desde o final do século XVI até o século XIX (Brasil, 1870). No Brasil, o código seguiu vigente, em matéria civil, até 1916, quando foi revogado pelo Código Civil brasileiro (Brasil, 1916). É somente após as lutas coletivas de mulheres contra a opressão, durante o século XX, que esse tipo de violência passou a ser combatida e denunciada como violação dos direitos humanos (Brasil, 2006BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, e dá outras providências. Diário Oficial da União , Brasília, DF, 8 ago. 2006. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3dISzch >. Acesso em: 7 abr. 2021.
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). Ainda assim, sua prática persiste tanto nas relações pessoais, quanto institucionais, denotando uma “violência estrutural”.

A violência estrutural é um tipo de violência “embutida” na estrutura política, econômica e simbólica da sociedade e manifesta-se, geralmente, por meio da dominação e da exploração, suas faces mais visíveis, mas também mediante o fomento da desigualdade e das práticas de marginalização, abandono e descaso (Galtung, 1969GALTUNG, J. Violence, peace, and peace research. Journal of Peace Research, Oslo, v. 6, n. 3, p. 167-191, 1969.). Seus efeitos podem ser múltiplos, a depender da articulação entre sistemas de opressões como o racismo, o sexismo e a pobreza. É comum que afete a disponibilidade de cuidados de saúde e educação, o acesso a bens básicos e a liberdade de indivíduos e grupos. Para Galtung ela está na base de outros tipos de violência, sendo a violência visível e direta (envolvendo atos e comportamentos violentos) apenas uma parte de um sistema (cultural e estrutural) que a legitima. A violência estrutural é, por vezes, difícil de ser detectada ou corretamente associada às formas de violência direta que vemos nas comunidades e lares.

Em 1996, a Organização Mundial de Saúde reconheceu a questão da violência como uma questão de saúde pública (WHO, 2014WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Global status report on violence prevention 2014. Geneva, 2014. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2RfqS3r >. Acesso em: 10 nov. 2020.
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). No Brasil essa abordagem foi considerada apenas em 2001, sendo incluída na Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências (Brasil, 2001BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 737, de 16 de maio de 2001. Aprova a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências. Diário Oficial da União , Brasília, DF, 18 maio 2001. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/31Tm45P >. Acesso em: 7 abr. 2021.
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).

Embora seja considerada um fenômeno universal, é nas camadas historicamente excluídas e vulnerabilizadas, como a dos negros, indígenas, mulheres e grupos LGBTQIA+, que a violência produz seus piores efeitos (Agostini, 2015AGOSTINI, M. Agravos à saúde decorrentes da violência. In: FLEURY-TEIXEIRA, E.; MENEGHEL, S. N. (Org). Dicionário feminino da infâmia: acolhimento e diagnóstico de mulheres em situação de violência. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2015. p. 28-30.). Em relação à violência contra mulheres, o patriarcado33É uma forma de construção social baseada e centralizada no poder dos homens por causa de um pacto masculino que garante a opressão e a sujeição das mulheres (Delphy, 2009; Saffioti, 2004). a sustenta e mantém, estabelecendo relações de poder e dominação dos homens (socialmente mais valorizados) sobre as mulheres (Aguiar, 2015AGUIAR, N. F. Patriarcado. In: FLEURY-TEIXEIRA, E.; MENEGHEL, S. N. (Org). Dicionário feminino da infâmia: acolhimento e diagnóstico de mulheres em situação de violência. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz , 2015. p. 270-272.), tendo consequências mais graves sobre mulheres negras e pobres (Agostini, 2015AGOSTINI, M. Agravos à saúde decorrentes da violência. In: FLEURY-TEIXEIRA, E.; MENEGHEL, S. N. (Org). Dicionário feminino da infâmia: acolhimento e diagnóstico de mulheres em situação de violência. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2015. p. 28-30.).

Movimentos feministas e negros têm apontado desde 1960 para a importância da articulação entre marcadores sociais na compreensão da realidade, o que posteriormente foi conceituado e popularizado como interseccionalidade: uma maneira de “capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação” (Crenshaw, 2002CRENSHAW, K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-188, 2002., p. 177), tais como o racismo, classismo e patriarcalismo. Esse conceito é uma importante ferramenta de análise das interações sociais e, nos últimos anos, passou a compor o campo teórico-metodológico das pesquisas em saúde na América Latina, contribuindo para o mapeamento das desigualdades sociais (Luiz et al., 2020LUIZ, O. et al. Inequality in health, social determinants, and intersectionality: a systematic review. Brazilian Journal of Health Review, São José dos Pinhais, v. 3, n. 5, p. 11827-11841, 2020.).

Este artigo objetiva apontar e discutir algumas das formas de violência vividas na intersecção de raça, gênero e classe em um território de vulnerabilidade social durante o período da pandemia da covid-19 e anterior a ele. Inicialmente, serão apresentados o percurso metodológico e os instrumentos da pesquisa para, posteriormente, serem abordados os resultados e discussões suscitadas.

Percurso metodológico e instrumentos de pesquisa

Este artigo resulta de uma abordagem qualitativa, sendo esta delineada a partir da pesquisa participante focada em questões interseccionais e na psicologia sócio-histórica44A psicologia sócio-histórica busca compreender a saúde como indicador de inserção social, sendo o corpo o lugar de expressão das relações de inclusão/exclusão (Sawaia; Maheirie, 2014). aplicadas ao campo da saúde coletiva. A pesquisa participante serviu de alicerce para o desenvolvimento de uma postura de valorização do diálogo e distribuição democrática do poder entre os participantes (Schmidt, 2008SCHMIDT, M. L. S. Pesquisa participante e formação ética do pesquisador na área da saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, p. 391-398, 2008. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3wAVhJO >. Acesso em: 7 abr. 2021.
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), articulando-se a valorização da intersubjetividade (González-Rey, 2005GONZÁLEZ-REY, F. L. Pesquisa qualitativa em psicologia: caminhos e desafios. São Paulo: Cengage Learning, 2005.) como ferramenta de aproximação à realidade social.

O recorte de dados refere-se à questão da violência e o material coletado teve ligação com dois grandes projetos de pesquisa: “Ética do cuidado e construção de direitos: acolhimento psicossocial em práticas da Saúde da Família em situações de exclusão social” e “Desigualdade social e subjetividade: trajetórias de vida e lutas por melhores condições de vida e saúde em território vulnerável da Baixada Santista”. Deste houve o desdobramento de um terceiro projeto - “Participação social de lideranças comunitárias na busca de melhores condições de vida: experiências pela promoção de cidadania” - que permitiu atualizações sobre a vivência da pandemia da covid-19 no território estudado. A junção das informações coletadas nessas pesquisas permitiu uma análise aprofundada da temática deste artigo, devido à inserção gradual dos pesquisadores no campo durante o período de três anos, construindo uma compreensão ampliada do território e da trajetória de vida dos participantes.

As pesquisas foram desenvolvidas na cidade de Cubatão, entre junho de 2017 e novembro de 2020, em uma comunidade de alta vulnerabilidade social. Foram seguidos todos os procedimentos éticos exigidos pelo Comitê de Ética, bem como houve autorização da Secretaria Municipal de Saúde da cidade.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, em 2010, 3.041 domicílios particulares dessa comunidade eram aglomerados subnormais, que seriam ocupações irregulares localizadas em áreas restritas que carecem de serviços públicos essenciais (IBGE, 2010aIBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo demográfico 2010: aglomerados subnormais: primeiros resultados. Rio de Janeiro, 2010a. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3s3WIgo >. Acesso em: 7 abr. 2021.
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). As moradias são de madeira, majoritariamente, palafitas. Dentre os habitantes, a maioria se autodeclarou negra (66,1%) e há uma prevalência de mulheres na região (IBGE, 2010bIBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Setor 351350405000136: síntese dos dados. Censo 2010, Rio de Janeiro, 2010b. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2RhuSjV >. Acesso em: 7 abr. 2021.
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).

Para a pesquisa foram utilizados dois instrumentos fundamentais: a observação participante, grafada em diários de campo, e entrevistas semidirigidas com as lideranças comunitárias. Todas as entrevistas foram gravadas por aúdios e transcritas na íntegra com o consentimento dos participantes. Quatro lideranças55As lideranças trabalham em diferentes campos: um dos participantes atua na pesca e as demais em instituições comunitárias. participaram da pesquisa: três mulheres e um homem, cujas idades estão entre 37 e 65 anos, citados no texto por meio de pseudônimos. Na comunidade, as lideranças assumem um papel de grande importância na medida em que contribuem para melhorias expressas na relação dialética de inclusão/exclusão social dos moradores.

A análise dos dados deu-se segundo a Hermenêutica de Profundidade (Thompson, 2011THOMPSON, J. B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes , 2011.) e seguiu três etapas: (1) contextualização sócio-histórica; (2) análise formal dos discursos; e (3) processo de interpretação/reinterpretação baseado na articulação entre os dados e os referenciais teóricos da interseccionalidade e da psicologia sócio-histórica.

O uso do software Atlas TI possibilitou a identificação de categorias analíticas transversais nos trechos das entrevistas e diários de campo, dentre elas a categoria “violência”, aqui analisada. Trata-se de algo que perpassa os sentidos e os significados de vida dos sujeitos desse território e relaciona-se com o cotidiano da comunidade.

Resultados e discussão

A violência estrutural e suas intersecções

Na comunidade estudada a violência estrutural está presente desde sua fundação. Ela é visível no descaso estatal manifesto em escassas políticas públicas e na inviabilidade de algumas delas, o que foi acentuado durante a pandemia. Um exemplo é o da política de distribuição de marmitas no Poupatempo:66Implantado pelo governo do estado de São Paulo, desde 1996, para oferecer em um mesmo local vários serviços à população (emissão de cédulas de identidade, carteiras de habilitação, licenciamento veicular etc.). é uma ação vital para muitas das famílias, mas, na prática, falha por conta da burocracia ou da falta de medidas complementares, como a de um transporte gratuito.

pra ir buscar a marmita lá no Poupatempo… imagina, tu paga R$3,40 pra ir, R$3,40 pra voltar, pra pagar R$1,00 na marmita. Não tem como, né? Então, a gente tem que ficar mendigando um pouco e falar: “gente, eu sei que é uma [marmita] por pessoa, mas eu tenho que levar cinco, porque a gente conseguiu fazer um rateio pra condução…” E a gente não sentiu muito esse apoio da prefeitura. (Ángeles)

Além desse exemplo, há o das insuficientes ou péssimas cestas básicas fornecidas durante a pandemia e o (não) acesso ao Auxílio Emergencial. Nesse período, a prefeitura lançou kits de alimentação escolar para todos os alunos da rede pública. No entanto, como comenta Ángeles “a cesta básica que foi entregue da educação, não dá dois dias. Fora […] [o fato] das condições dos alimentos. Então: feijão ruim, cheio de bichinho, um leite que o pessoal passava mal e uma cesta que não dava dois, três dias”. No caso do Auxílio Emergencial, ele não chegou aos municípios com a rapidez necessária e, além disso, não incluiu quem foi demitido. Isso demonstra o quanto muitas das políticas públicas são instauradas como medidas paliativas e sem que haja análise da viabilidade e do acesso pela população que delas necessitam.

A campanha “Fica em casa” durante a pandemia foi uma medida adotada para reduzir a transmissão do vírus por meio de práticas como o distanciamento social. Foram criados decretos, a exemplo da suspensão de eventos e incentivo à prática do home office (cf. Cubatão, 2020CUBATÃO. Prefeitura Municipal. Decreto nº 11.190, de 16 de março de 2020. Dispõe sobre a adoção, no âmbito da administração pública direta e indireta, de medidas temporárias e emergenciais em saúde pública no enfrentamento e prevenção de contágio pelo covid-19, bem como sobre recomendações. Diário Oficial da Prefeitura Municipal de Cubatão, Cubatão, 16 mar. 2020.) que, entretanto, nem todos puderam aderir e, para quem podia, implicava, muitas vezes, permanecer em ambientes insalubres. Nas palavras de Ángeles, “é muito ruim você ficar em casa quando você não tem espaço… espaço pra respirar. Você não tem quase uma janela […] você tem mosquito pra caramba… Então é difícil”.

A questão do descaso, concretizada nos problemas vividos pela periferia por conta do seu distanciamento das áreas centrais, sempre esteve presente em comunidades como esta:

gente, essa questão do distanciamento, quem mora na periferia sempre passou. A gente sempre teve distante das políticas. Ponto. Essa questão de passar algumas dificuldades, não foi a pandemia, a gente já passava. Então dentro da Vila a gente não tem saneamento básico e não foi a pandemia que proporcionou isso. Pandemia talvez escancarou, tirou a venda de algumas pessoas, mas a gente sempre passou por essa situação. (Ángeles)

A pandemia evidenciou o quanto os direitos humanos das populações mais periféricas são constantemente violados. Em momentos como esse é possível reconhecer o caráter ilusório da inclusão e o fato de estar-se imerso em privações e injustiças sociais (Sawaia, 2001SAWAIA, B. (Org.). As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis: Vozes, 2001.). Viver na periferia é viver a inacessibilidade de direitos.

quando eu falo pra você “comunidade”, que que vem pra você? Aquela imagem de pobreza na tua cabeça! […] aquela situação foi criada ali, entendeu? […] Quando fala favela a gente já logo pensa: “puta, mano… pouco estudo, pessoas ignorante, casas malfeita, né. Lugar precário”, entendeu? (Barreto)

Além da questão do abandono do Estado, há também um conjunto de fatores sociais, políticos e geográficos que interagem entre si e refletem o sexismo, o racismo e as exclusões econômicas produzidas no capitalismo. Há, igualmente, uma demarcação racial da comunidade. A cor comum da pele dos moradores basta para que sejam considerados iguais ou muito parecidos, conforme aponta Petra: “Eu vim pra cá sozinha, tanto que eu não tenho parente nenhum aqui. [No entanto,] todo mundo acha que: ‘nossa, tu é parecida com num sei quem, tu é irmã…?’. Falo: ‘gente, é tudo preto, mas nós não somos parentes, não’”.

No Brasil, territórios em situação de vulnerabilidade social são comumente formados por negros que, após a abolição, foram obrigados a disputar sua sobrevivência em uma sociedade pautada pelo racismo, que utiliza técnicas sociais e políticas para mantê-los em posições de subalternidade (Moura, 1994MOURA, C. Dialética radical do Brasil negro. São Paulo: Anita, 1994.). O privilégio racial atua fortemente para a divisão do trabalho e tem inserido a população negra em uma massa crescente de desemprego e trabalhos ocasionais. De igual forma, traz implicações para as demais circunstâncias de vida desses sujeitos, como na saúde, educação e moradia. Dessa maneira, a pobreza acaba sendo racializada na medida em que a população negra permanece em situação de desvantagem competitiva em termos materiais e simbólicos diante da população branca também empobrecida. Ocorre, assim, uma intersecção entre racismo e classismo (Gonzalez, 2020GONZALEZ, L. A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem político-econômica. In: RIOS, F.; LIMA, M. Por um feminismo afro-latino-americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. p. 49-64.).

O abandono do poder público dificulta que a população negra em situação periférica consiga organizar-se, melhorar suas condições de vida. Isso fica evidente no depoimento de Ángeles sobre as dificuldades de proteger o ambiente em que vive:

Porque é fácil falar da questão do meio ambiente, mas quando a gente fala de palafita, é diferente, né? […] Como incentivar, por exemplo, a questão da reciclagem, sendo que [aqui] […] passa uma vez na vida, outra na morte, o caminhão da reciclagem? E é fácil pra quem tem uma casa que tem quintal: você vai lá e guarda, né? O material pra reciclar. Agora, quem mora num barraquinho é difícil, num tem nem lugar pra armazenar nem nada. E dependendo daonde você mora tem toda uma distância pra chegar lá na frente, na caçamba, né? E aí a gente vem discutindo isso, como fazer.

Mesmo quando uma medida estatal de apoio à população é implementada, como é o caso da Unidade de Saúde da Família, é comum ter de lidar com constantes cortes de verba. Os últimos anos foram marcados por grande redução do financiamento destinado à saúde verificado por meio do enfraquecimento da Estratégia Saúde da Família e da mercantilização dos serviços prestados na Atenção Primária por causa da contratação de Organizações Sociais para exercê-los, por exemplo (Medina et al., 2020MEDINA, M. G. et al. Atenção primária à saúde em tempos de covid-19: o que fazer? Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 8, e00149720, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/31UtKEY >. Acesso em: 7 abr. 2021.
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). Este também foi o caso da comunidade pesquisada.

A insuficiência dos recursos destinados a saúde pública resultou em parcerias com organizações comunitárias que, algumas vezes, são tocadas pelas igrejas, como nos conta Petra, que atua em uma delas.

Aqui na Vila tem um aumento muito grande de crianças e adolescentes que tavam tentando suicídio, que… tá com depressão, não tá querendo sair de casa […] E o Pamos,77Posto de Atendimento Médico e Odontológico e Social, chamado de “Pamos” pelos moradores locais. Nessa região, o primeiro Posto foi criado em 1998 e, desde 2006, a instituição atua como Unidade de Saúde da Família (USF).quando chega alguma coisa assim pra eles, eles pedem a nossa ajuda, né? Porque aqui na comunidade o único lugar que tem atividade pras crianças somos nós. Então eles pedem ajuda.

Ao ser oferecido por elas,88A maioria das associações na comunidade foram fundadas por moradores(as) e comumente fazem parcerias com a USF. Atualmente, a Unidade é gerenciada por uma Organização Social, o que vem produzindo, além da mercantilização, a fragilidade do vínculo e a fragmentação do cuidado. o cuidado pode ser ampliado, mas também pode perder a universalidade preconizada pelo Sistema Único de Saúde e pelo Sistema Único de Assistência Social, deixando certa parcela da população à margem das escolhas de quem coordena essas associações. É o caso de crianças e adolescentes envolvidos com o tráfico que, em razão disso, podem ser desqualificados para inserção nas atividades desenvolvidas pelas instituições sem fins lucrativos, permanecendo em um “não-lugar”:

uma vez o Cras [Centro de Referência de Assistência Social] queria nos mandar um adolescente que foi pego roubando de mão armada e nós não aceitamos. Falamos que a gente não tem condições de tá aceitando um adolescente que foi pego, já não era a primeira vez, com um revólver assaltando. Então a gente vê o caso, a gente avalia e se for possível pegar, a gente pega essa criança no projeto, sim. (Petra)

Outra questão importante é a do vínculo entre associações privadas e partidos políticos para a obtenção de recursos financeiros, como indica Petra: “É esse o nosso problema, de receber o nosso dinheiro. Porque para as ONGs que têm partido fixo, o dinheiro sai assim ó: rapidinho! O dinheiro sai mesmo com documentação atrasada […]. Aí, nós que não temos, a gente fica lá penando…”. As facilidades podem significar a sujeição a intenções e preceitos partidários e, consequentemente, converter suas atividades em práticas meramente assistencialistas e de interesse privado.

A violência contra as mulheres

A violência estrutural contra mulheres intensificou-se no período da pandemia. As desigualdades raciais, de renda e gênero aprofundaram-se no país, marcando, especialmente, a vida das mulheres negras e periféricas. As atividades de cuidado tornaram-se ainda mais centrais, não apenas nos sistemas de saúde, mas nos domicílios “dada a necessidade de interromper o funcionamento presencial de instituições fundamentais para o cuidado, como creches e as escolas” (SOF, 2020SOF - SEMPREVIVA ORGANIZAÇÃO FEMINISTA. Sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia. São Paulo, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3mq2Eig >. Acesso em: 7 abr. 2021.
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, p. 5).

Segundo os dados da pesquisa, 50% das brasileiras passaram a cuidar de alguém na pandemia e, entre as que cuidam, 72% tiveram suas responsabilidades de monitoramento e demandas por companhia aumentadas (SOF, 2020SOF - SEMPREVIVA ORGANIZAÇÃO FEMINISTA. Sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia. São Paulo, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3mq2Eig >. Acesso em: 7 abr. 2021.
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). O desemprego foi maior para mulheres, principalmente para as negras, que enfrentaram dificuldades com o pagamento de contas básicas, como aluguel e alimentação.

A sobrecarga das mulheres foi imensa, tanto para as que puderam ficar em casa, quanto para as que não puderam. No âmbito desta pesquisa, algumas permaneceram trabalhando com serviços domésticos e suas patroas e patrões não se solidarizaram com elas.

Eu não sei precisar pra você o número de pessoas que trabalham em casa de família, mas assim, você vê de manhã as mulheres saindo pra trabalhar. Antes e até hoje saindo pra trabalhar. E tão recebendo telefonemas: “ó, tem que ir”. Não deixaram de trabalhar. Não teve esse apoio das patroas assim “ó, fica em casa”. (Ángeles)

Historicamente, as mulheres empobrecidas trabalham para sustentar suas famílias de maneira complementar ou integralmente. Como se não bastasse, são também responsáveis pela educação dos filhos e pelo trabalho doméstico: uma dupla jornada de trabalho que as sobrecarrega de responsabilidades e atribuições. Na pandemia, devido ao não funcionamento das escolas e creches, aliado à questão da falta da alimentação escolar, as mulheres foram ainda mais sobrecarregadas. Além disso, a permanência de todos dentro das pequenas casas só contribuiu para o acirramento de casos de estresse, depressão e angústia, aumentando a tensão por causa do desemprego e contribuindo sobremaneira para o aumento da violência intrafamiliar.

Muitas mulheres, sobretudo negras, não possuem reais possibilidades de escolha sobre os rumos de suas vidas. Várias não têm acesso à educação de qualidade, o que lhes possibilitaria ingressar em campos de trabalho assalariado com direitos trabalhistas garantidos. E mesmo as que conseguem um bom estudo são, por vezes, barradas pelo racismo. Como pontuou Lélia Gonzalez (2020GONZALEZ, L. A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem político-econômica. In: RIOS, F.; LIMA, M. Por um feminismo afro-latino-americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. p. 49-64.), na intersecção entre o racismo e o sexismo a mulher negra é quem está nas bases da prestação de serviços de baixa remuneração na sociedade. A associação entre elas e serviços domésticos é muito forte em razão de um passado histórico escravista, como o do Brasil. O fato de ser negado a esta mulher, possivelmente negra, que fique em casa em uma situação como a da pandemia aponta para o grave descaso com sua vida e saúde.

Nas famílias brasileiras de classe média e alta a imagem das mulheres negras como domésticas persiste, o que alimenta a irresponsabilidade desses grupos socialmente privilegiados para com os afazeres de cuidado e da casa. A mulher negra, por sua vez, internaliza a ideia de inferioridade, mesmo que ela seja a responsável por possibilitar a produção econômica de suas “patroas” (Gonzalez, 2020GONZALEZ, L. A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem político-econômica. In: RIOS, F.; LIMA, M. Por um feminismo afro-latino-americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. p. 49-64.). Assim, a violência estrutural endereçada às mulheres negras no Brasil é atravessada por questões de gênero, raça e classe.

Além da violência vivenciada no âmbito das atividades de trabalho e cuidado, as mulheres de territórios de grande vulnerabilidade social também enfrentam questões de gênero que podem desembocar no feminicídio. Essa realidade está presente em todas as classes das sociedades patriarcais. O sentimento de posse que homens têm com mulheres são manifestadas nas crises de ciúmes. Nesse sentido, Petra relata: “[o homem] achou ela, e passou ela por aqui [um beco que cerca a ONG], puxando os cabelos, puxando os cabelos dela. E ele falava pra ela: ‘para de gritar’. E ela falava: ‘não me mata, deixa eu criar a minha filha, não me mata, deixa eu criar a minha filha’”.

O Brasil ocupa o quinto lugar em casos de feminicídio em relação a 83 países. Em 2018, a cada duas horas uma mulher foi assassinada no país, sendo que 68 % dessas eram negras (IPEA, 2020IPEA - INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Atlas da violência 2020. Brasília, DF, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/39Lvepp >. Acesso em: 20 nov. 2020.
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). Esse dado demonstra a necessidade de considerar a questão interseccional na análise das violências cotidianas vividas pelas brasileiras.

Outra face da violência é a que ocorre dentro dos lares, envolvendo laços afetivos e pessoas violadas dentro de suas próprias casas. Infelizmente, para muitas mulheres, essa é uma forma de violência corriqueira, como aparece neste relato: “Ela já sofre com esse rapaz desde quando ela foi morar com ele. Ela tomou uma surra dele de garrafa de Coca-Cola que a ambulância veio buscar ela, ele machucou ela todinha… E aí, ela ficou um tempo sem ele e voltou de novo. Nesse vai e volta […] ela já tá com ele 10 anos” (Petra).

Algumas mulheres, dadas as violências cometidas por seu parceiro íntimo, encontram no suicídio a única saída: “Elas se cansam de apanhar, algumas tomam remédio e a gente sabe ‘por que que tomou remédio?’, ‘tomou remédio pra se matar por causa do marido’” (Petra). O sofrimento ultrapassa os limites das marcas corporais da violência, constituindo um sofrimento psíquico capaz de demarcar os limites da alma, levando a enfraquecer substancialmente, como nos diz Espinosa (1989ESPINOSA, B. Ética. São Paulo: Nova Cultural, 1989.), o conatus, a capacidade de lidar com os enfrentamentos da vida e, mais que isso, de lutar para a permanência dela.

Para enfrentar os casos de violência doméstica e familiar contra mulheres foi elaborada e ratificada a Lei Maria da Penha (Brasil, 2006BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, e dá outras providências. Diário Oficial da União , Brasília, DF, 8 ago. 2006. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3dISzch >. Acesso em: 7 abr. 2021.
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). Nela esse tipo de violência é definido como “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial” seja “no âmbito da unidade doméstica, […], no âmbito da família […] ou em qualquer relação íntima de afeto”. Dentre as formas de violência contra mulheres, a física é a mais visível, mas costuma ser acompanhada de outras, como a psicológica, a sexual, a moral e a patrimonial.

Os dados coletados pelo artigo indicam que algumas mulheres vítimas de violência doméstica têm dificuldades para sair de relacionamentos abusivos. Diante de uma cultura patriarcal que tipifica homens como “naturalmente” violentos e opressores e mulheres como precisando da proteção de um homem contra os demais (Zirbel, 2020ZIRBEL, I. Cuidado, masculinidades e responsabilidade social. Revista Mais que Amélias, União da Vitória, n. 7, p. 1-24, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3t39cWI >. Acesso em: 7 abr. 2021.
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), construiu-se historicamente uma normalização da violência que é imposta a elas, fazendo com que permaneçam em relacionamentos mesmo quando submetidas aos abusos dos companheiros.

Uma das faces do patriarcado é, justamente, uma espécie de pacto entre homens para garantir a sujeição e exploração das mulheres. O pacto implica que todos eles se coloquem no lugar de dominadores e que todas as mulheres sejam submetidas. As exceções são punidas com variados graus de violência. O poder político também é estabelecido de forma a manter este pacto (Pateman, 1993PATEMAN, C. O contrato sexual. São Paulo: Paz e Terra, 1993.; Zirbel, 2020ZIRBEL, I. Cuidado, masculinidades e responsabilidade social. Revista Mais que Amélias, União da Vitória, n. 7, p. 1-24, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3t39cWI >. Acesso em: 7 abr. 2021.
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), favorecendo os homens de variadas maneiras como: os isentando das atividades de cuidado e reservando os melhores cargos e salários a eles.

Infelizmente, a falta da apropriação do conceito de interseccionalidade pelas políticas públicas afeta a assistência em saúde prestada às mulheres, visto conceberem que há uma homogeneidade na população atendida, fazendo com que as lideranças comunitárias e mesmo as agentes de saúde, muitas vezes, julguem o comportamento daquelas que permanecem em relacionamentos identificados como abusivos (Moura; Castro-Silva, 2017MOURA, L.; CASTRO-SILVA, C. R. A violência de gênero na percepção de agentes comunitários de saúde. Revista Sociais & Humanas, Santa Maria, v. 30, n. 3, p. 31-54, 2017. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3wD33CE >. Acesso em: 7 abr. 2021.
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). Mesmo quando há uma consciência de que é preciso auxiliar a mulher, “empoderando-a”, esse empoderamento é pensado por um viés individualista. Como neste relato:

Que nem a Anielle, que veio aqui toda roxa: “Tô passando uma situação difícil.” E eu falei: “filha, você passa porque você quer. Tu tem o apoio da tua mãe e você vive com ele porque você quer […]. A gente já te deu todo o norte pra você seguir, mas você separa e fica dois meses na tua mãe, depois você volta pra ele de novo!”

São famílias nossas, mas são mulheres que ainda precisam… é, ser educadas, precisam ser empoderadas, porque… pelo [fato do] marido trabalhar, colocar as coisas dentro de casa, então elas aguentam. Ficam desesperadas no momento [da violência], pedem ajuda, e aí a gente começa a ajudar [mas, depois] elas param com tudo: “Não vou fazer mais nada, porque é meu marido, deixa pra lá.” (Petra)

Na busca por estratégias de enfrentamento da violência, as mulheres parecem recorrer primeiramente a espaços de acolhimento, encontrando-os nas igrejas, projetos e atividades comunitárias. Em um segundo momento, procuram intervenções oferecidas por meio de duas organizações distintas: a Delegacia da Mulher e o tráfico local.

Apesar da inegável importância e conquista política das Delegacias da Mulher, recorrer a elas envolve muitos obstáculos. A inobservância da abordagem interseccional é evidenciada mediante os horários restritos e a distância da periferia, contribuindo para a permanência da violência em territórios vulneráveis (Akotirene, 2019AKOTIRENE, C. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro, 2019.). A questão da classe e cor da pele traz consigo dificuldades extras para que a mulher vítima de violência doméstica consiga sair do seu meio de violência, sozinha ou acompanhada de suas crianças e demais familiares, implicando, inúmeras vezes, um novo problema para ela.

A quem recorrer?

Uma das faces mais visíveis da violência estrutural em territórios como este é o da ação da polícia. Há uma espécie de violência naturalizada enquanto prática sistemática de repressão policial que objetiva intimidar e causar submissão (Gonzalez, 1984GONZALEZ, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, São Paulo, n. 2, p. 223-244, 1984.). A polícia faz uso de uma imagem violenta, enfatizando que possui um poder capaz não apenas de reprimir, mas de matar. Sua prática é comumente pautada no racismo, sexismo e classismo, sendo os jovens e homens negros os mais afetados. A impotência da população diante da ação policial é comum nos depoimentos: “E a gente sofreu junto com o menino. E a polícia botou o pé no pesc…, na garganta do menino pro menino parar de gritar… E a mãe tava lá de fora! […] A polícia fez um paredão, não deixou ninguém entrar […] Quem tinha que julgar não era aquelas pessoas que estava ali” (Martina).

A percepção de que a polícia e o Estado não agem de maneira justa ou visando a proteção dos moradores faz do tráfico uma opção para a organização e, em certos casos, melhoria das condições de vida local. Além disso, o comando destes homens impõe à população regras sociais que restringem o acionamento da polícia no local. Contudo, esta não é uma opção democrática ou isenta de violências, como se evidencia no caso das mulheres. Por causa da cultura patriarcal, elas podem ser violentadas por agentes do tráfico e mesmo assassinadas por não se submeterem a eles ou decidirem ter alguma relação afetiva com outro homem, como apontado anteriormente (Moura; Castro-Silva, 2017MOURA, L.; CASTRO-SILVA, C. R. A violência de gênero na percepção de agentes comunitários de saúde. Revista Sociais & Humanas, Santa Maria, v. 30, n. 3, p. 31-54, 2017. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3wD33CE >. Acesso em: 7 abr. 2021.
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).

Em meio a tantas adversidades, a população parece desenvolver estratégias de sobrevivência, seja pela tomada do poder local pelo tráfico, seja por meio das organizações comunitárias. Estas procuram ampliar o acesso ao cuidado para os munícipes, criando alternativas para compensar os obstáculos no alcance aos direitos oferecidos, mas não garantidos, pelo Estado.

Considerações finais

Neste artigo foram propostas reflexões sobre o caráter multifacetado e interseccional da violência em uma comunidade periférica em Cubatão. Percebeu-se que enquanto a articulação entre marcadores sociais como o racismo, o patriarcado e o classismo não for considerada, não se caminhará rumo ao enfrentamento das desigualdades. A ordem social parece naturalizar as opressões vivenciadas pela população periférica dos grandes centros urbanos, em especial pelas mulheres negras, ocorrendo, inclusive, por meio das políticas públicas oferecidas, uma vez que vêm comumente acompanhadas de entraves ao acesso, seja na questão da mobilidade, seja na da distribuição de verbas. Tornam-se, por isso, insuficientes e servem como uma das muitas ferramentas de manutenção da ordem excludente, transferindo aos sujeitos a responsabilidade pela exclusão e a culpa por suas estagnações socioeconômicas.

No período que marca a pandemia, a violência estrutural e intersecional intensificou-se mediante a dificuldade de obtenção de cestas básicas, a lentidão no pagamento do Auxílio Emergencial e a necessidade de permanecer por longos períodos em domicílios e espaços coletivos insalubres. Articula-se a isso a violência materializada na força policial que, diante da intersecção de gênero, raça e classe social, reproduz ações calcadas no racismo, sexismo e classismo, enquadrando violentamente homens, jovens e negros em territórios vulneráveis de maneira desproporcional ao delito supostamente cometido.

O sucateamento da saúde pública no país aparece por meio de cortes nos orçamentos destinados ao Sistema Único de Saúde e, especialmente, à Atenção Primária, interferindo diretamente na limitação das práticas de cuidado exercidas pela USF. Isso culmina em articulações com instituições filantrópicas que, por vezes, desempenham um cuidado seletivo. Este descompromisso político em meio às injustiças sociais favorece o fortalecimento do patriarcado mediante a organização do tráfico e a violência contra as mulheres.

As lideranças comunitárias apresentam formas de resistência e enfrentamento das violências e condições adversas vivenciadas pela população. Isto se dá, em geral, por meio de articulações coletivas que visam ampliar o fornecimento de cuidados que o Estado deixa de fornecer. Esta é uma questão a ser aprofundada futuramente.

É preciso questionar: até quando será permitido que as políticas públicas sirvam à manutenção de privilégios de gênero, raça e classe ao invés de atuarem como instrumento de transformação social? Neste sentido, com especial destaque para o tema da violência estrutural, torna-se interessante a adoção da interseccionalidade na agenda legislativa a fim de produzir políticas públicas atentas às necessidades concretas dessa parcela da população e ao combate efetivo das desigualdades sociais.

Referências

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    » https://bit.ly/3t39cWI

  • 1
    Este estudo é um desdobramento das pesquisas “Ética do cuidado e construção de direitos: acolhimento psicossocial em práticas da saúde da família em situações de exclusão social” (fomentada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), nº 2016/23973-2), “Desigualdade social e subjetividade: trajetórias de vida e lutas por melhores condições de vida e saúde em território vulnerável da Baixada Santista” (apoiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), nº 407836/2016-0), que foram aprovadas pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo, pareceres 2.198.202 e 2.047.444, e “Ética do cuidado e processos psicossociais de participação social em práticas da saúde da família em situações de exclusão social” (Bolsa Produtividade CNPq nº 308730/2019-4).
  • 2
    Conforme consta no Código Filipino, uma compilação jurídica vigente em Portugal e em seus territórios ultramarinos desde o final do século XVI até o século XIX (Brasil, 1870BRASIL. Ordenações e leis do Reino de Portugal: recopiladas por mandado d’el-Rei D. Filipe I. Brasília, DF: Senado Federal, 1870.). No Brasil, o código seguiu vigente, em matéria civil, até 1916, quando foi revogado pelo Código Civil brasileiro (Brasil, 1916BRASIL. Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 jan. 1916. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/ 3cXa09X >. Acesso em: 8 abr. 2021.
    https://bit.ly/ 3cXa09X...
    ).
  • 3
    É uma forma de construção social baseada e centralizada no poder dos homens por causa de um pacto masculino que garante a opressão e a sujeição das mulheres (Delphy, 2009DELPHY, C. Patriarcado (teorias do). In: HIRATA, H. et al. (Org.). Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: Editora Unesp, 2009. p. 173-178.; Saffioti, 2004SAFFIOTI, H. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.).
  • 4
    A psicologia sócio-histórica busca compreender a saúde como indicador de inserção social, sendo o corpo o lugar de expressão das relações de inclusão/exclusão (Sawaia; Maheirie, 2014SAWAIA, B.; MAHEIRIE, K. A psicologia sócio-histórica: um referencial de análise e superação da desigualdade social. Psicologia & Sociedade, Belo Horizonte, v. 26, p. 1-3, 2014. Número especial 2. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3wD3jBC >. Acesso em: 7 abr. 2021.
    https://bit.ly/3wD3jBC...
    ).
  • 5
    As lideranças trabalham em diferentes campos: um dos participantes atua na pesca e as demais em instituições comunitárias.
  • 6
    Implantado pelo governo do estado de São Paulo, desde 1996, para oferecer em um mesmo local vários serviços à população (emissão de cédulas de identidade, carteiras de habilitação, licenciamento veicular etc.).
  • 7
    Posto de Atendimento Médico e Odontológico e Social, chamado de “Pamos” pelos moradores locais. Nessa região, o primeiro Posto foi criado em 1998 e, desde 2006, a instituição atua como Unidade de Saúde da Família (USF).
  • 8
    A maioria das associações na comunidade foram fundadas por moradores(as) e comumente fazem parcerias com a USF. Atualmente, a Unidade é gerenciada por uma Organização Social, o que vem produzindo, além da mercantilização, a fragilidade do vínculo e a fragmentação do cuidado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    11 Fev 2021
  • Aceito
    08 Mar 2021
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br