Saúde quilombola: percepções em saúde em um quilombo do agreste de Pernambuco/Brasil11 A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto Aggeu Magalhães (CEP IAM/Fiocruz), sendo aprovada com a CAAE: 83178018.0.0000.5190.

Wanessa da Silva Gomes Idê Gomes Dantas Gurgel Saulo Luders Fernandes Sobre os autores

Resumo

Este estudo analisa a percepção de saúde dos quilombolas de uma comunidade no agreste de Pernambuco à luz da determinação social da saúde. A comunidade apresenta uma população de aproximadamente 250 famílias, sendo a agricultura e o trabalho na casa de farinha suas principais fontes de subsistência. Trata-se de uma pesquisa-ação, de caráter analítico, baseada na abordagem qualitativa na coleta e análise dos dados, a partir de entrevistas em profundidade, círculo de cultura e observação participante. Os dados foram analisados pela técnica do discurso do sujeito coletivo. Destaca-se, nos resultados, que a compreensão da saúde se insere num contexto de complexidade integrando a qualidade da alimentação, o trabalho desenvolvido e a relação com a terra. O olhar por meio da perspectiva sistêmica proporcionada pela determinação social da saúde, contribuiu para a compreensão da saúde em sua totalidade, onde o território aparece como elemento central na reprodução dos modos de vida e de saúde da população quilombola, estando esta, em constante luta pela demarcação e titulação de suas terras, condição fundamental para o viver saudável na comunidade quilombola.

Palavras-chave:
Saúde, Determinação social da Saúde, Comunidade quilombola; Saúde e Ambiente

Introdução

Em uma sociedade estruturalmente desigual as diferenças presentes em grupos minoritários se expressam no cotidiano como vivências de exclusão. A sociedade capitalista é nutrida pelas iniquidades, que produzem diferenças nas condições de vida e se expressam nos diferentes perfis de saúde, doença e de atenção à saúde. Elas são geradas primordialmente pela apropriação do poder, ou seja, pela apreensão privada da riqueza que originou as classes sociais, pela detenção patriarcal do poder - expressas nas diversas formas de discriminação de gênero e pela apropriação por parte de grupos étnicos-raciais situados em posição de vantagem aos demais (como no caso do eurocentrismo) - evidenciado nas diversas relações coloniais produzidas pelo racismo (Breilh, 2008BREILH, J. Uma perspectiva emancipadora da pesquisa e da ação baseadas na Determinação Social da Saúde. In: Taller Latinoamericano de Determinantes Sociais de la Salud. Cidade do México: Universidade Autônoma do México, 2008.).

Esta discussão é a base para a compreensão da determinação social da saúde que, para além dos estilos de vida insalubres, incorpora os modos de vida em iniquidade (Breilh, 2010BREILH, J. Las três ‘S’ de la determinación de la vida: 10 tesis hacia uma visión crítica de la determinación social de la vida y la salud. In: NOGUEIRA, R. P. (Org.). Determinação social da saúde e reforma sanitária. Rio de Janeiro: CEBES, 2010.), sendo ela uma ferramenta usada para repensar a epidemiologia, bem como repensar a organização da sociedade, ou seja, a civilização do egoísmo radical que nos leva à destruição da vida. Essa perspectiva compreende rupturas em cosmovisão que permitem superar o antropocentrismo, reivindicando os direitos da natureza e superando o uniculturalismo eurocêntrico relacionado a uma medicina alopática convencional, bem como o uniculturalismo de gênero, étnico e racial (Breilh, 2017BREILH, J. Matriz de procesos críticos: fundamentos teórico explicativos. Quito: Dirección Nacional de Derechos de Autor y Conexos, 2017.).

A determinação social da saúde - oriunda da corrente de pensamento da medicina social latino-americana - permite a compreensão da saúde em sua complexidade e, por meio de uma perspectiva integral, rompe com a hegemonia biomédica e a lógica liberal. Além disso, aponta para a necessidade de observação das leis históricas de produção e organização social, dando ênfase aos processos sociais da saúde.

De acordo com Breilh (2010BREILH, J. Las três ‘S’ de la determinación de la vida: 10 tesis hacia uma visión crítica de la determinación social de la vida y la salud. In: NOGUEIRA, R. P. (Org.). Determinação social da saúde e reforma sanitária. Rio de Janeiro: CEBES, 2010.), a saúde se desenvolve como um processo articulado entre as dimensões espaciais geral, particular e singular. A dimensão geral corresponde às políticas do Estado, à determinação do sistema de acumulação e de produção e aos processos gerais de cultura e determinantes epistêmicos. Já o domínio do particular está relacionado aos modos de vida dos grupos, com seus modelos de exposição a processos lesivos à saúde coletiva, e às vulnerabilidades grupais. Por último, o domínio singular refere-se aos fenótipos e genótipos de cada indivíduo, bem como a determinação do estilo de vida de cada um (Breilh, 2011BREILH, J. Aceleración agroindustrial: peligros de la nueva ruralidade del capital. In: BRASSEL, F.; ZAPATTA, A.; BREILH, J. (Ed.). ¿Agroindustria y soberanía alimentaria?: hacia una nueva Ley de Agroindustria y Empleo Agrícola. Quito: Sipae ediciones, 2011.).

Os processos de cada uma dessas dimensões tendem a reproduzir e conservar suas condições. Isso ocorre de maneira hierárquica, pois, apesar de terem suas margens de autonomia que lhes permitem gerar mudanças, os processos mais específicos e locais se encontram subsumidos nos processos mais gerais, ou seja, o biológico e o social estão conectados não apenas por um vínculo externo, mas, também, por um essencial vínculo interno, dado pelo movimento de subsunção. Assim, o biológico se desenvolve sob subsunção ao social, ao mesmo tempo que possui autonomia relativa referente ao mesmo (Breilh, 2010BREILH, J. Las três ‘S’ de la determinación de la vida: 10 tesis hacia uma visión crítica de la determinación social de la vida y la salud. In: NOGUEIRA, R. P. (Org.). Determinação social da saúde e reforma sanitária. Rio de Janeiro: CEBES, 2010.).

Neste sentido, os problemas de saúde não podem ser limitados apenas a fenômenos individuais, pois os fatores que levam as pessoas a adoecerem afetam potencialmente toda a comunidade, e se produzem e se estendem por toda uma sociedade. Dessa forma, a saúde precisa ser compreendida em sua complexidade.

Analisar a concepção de saúde de uma determinada população na perspectiva da determinação social da saúde requer, portanto, compreender o processo de formação destes povos, a história de vida individual das pessoas e como parte integrante de um coletivo. Aspectos que dão significado à saúde na medida em que se relacionam diretamente com as vivências de iniquidade para essa população.

A determinação social nos ajudará a compreender os modos de vida e a forma de organização das populações quilombolas em estudo, permitindo uma visão detalhada das questões presentes nos espaços macro e micro, e como a saúde é reproduzida nos espaços geral, particular e singular, e como se relacionam.

As comunidades quilombolas são frutos de um processo histórico de resistência contra a ideologia racista, que escravizou, desumanizou e objetificou o negro, tendo início com a colonização das terras brasileiras e estendendo-se até os dias de hoje na exploração de seus territórios por multinacionais ou pelas oligarquias locais. Neste local de confronto, essas comunidades buscam o reconhecimento de seus modos de vida, a titulação de suas terras e a garantia de seus direitos fundamentais (Fernandes, 2016FERNANDES, S. L. Itinerários terapêuticos e política pública de saúde em uma comunidade quilombola do Agreste de Alagoas, Brasil. 2016. Tese (Doutorado em Psicologia Social) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.).

Essas populações carregam uma história de privação, injustiça e invisibilidade perante a sociedade e o poder público. Os quilombolas possuem processos determinantes de sua saúde relacionados à história de exploração do seu povo, suas vidas e seu território. Estando assim inseridos em um sistema excludente, que não respeita sua cultura e modo de vida e que ainda busca impor, por meio de uma lógica racista estrutural branca hegemônica, outra cultura e outras formas de viver.

É importante o reconhecimento das práticas tecidas nas comunidades quilombolas, “considerando a complexidade histórica, social, cultural, étnica e política da construção de seus modos de viver” (Rezende, 2015REZENDE, L. C. O cotidiano de uma comunidade quilombola: a (des)construção da integralidade na visão de moradores e equipe de saúde. 2015. Tese (Doutorado em Enfermagem) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015., p. 33). Dessa forma, é necessária a compreensão dessas comunidades a partir da luta política e social, inseridas no contexto de um país que ainda precisa reconhecê-las como história viva e valiosa, criando políticas e práticas de saúde que atendam às necessidades de saúde dessas comunidades, com base no atendimento integral e por meio da aceitabilidade de sua cultura e práticas cotidianas.

Para discutir saúde em comunidades quilombolas é necessário pautar os conflitos étnico-raciais e a luta pela terra - esses são marcadores de base para as desigualdades históricas vividas pelos quilombolas no Brasil. Como afirma Martins (2009MARTINS, J. S. Exclusão e a nova desigualdade. São Paulo: Paulus, 2009., p. 66) quando fala do sistema de posse e compra de terras no regime das sesmarias colonial: “Só podia tornar-se senhor de terras quem fosse branco e livre, e até uma certa época católico. Havia uma interdição racial e religiosa no acesso à terra”. Essa afirmação torna nítidas as lógicas de dominação que recaem historicamente aos povos negros e às suas lutas pela terra e território. Lutas estas que convergem diversos marcadores da dominação entre eles: os étnico-raciais, gênero, classe e religiosidade.

Assim, é necessário conhecer o cotidiano das comunidades, suas práticas de resistência e afirmação para apreender as particularidades de sua cultura e do seu modo de viver em uma sociedade estruturalmente excludente (Rezende, 2015REZENDE, L. C. O cotidiano de uma comunidade quilombola: a (des)construção da integralidade na visão de moradores e equipe de saúde. 2015. Tese (Doutorado em Enfermagem) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015.). Dessa forma, as políticas de saúde, para que efetivamente tenham ações afirmativas para as condições de saúde da população, precisam incorporar em sua formulação as particularidades vividas em cada contexto, tendo a participação dos que mais conhecem essas especificidades: os quilombolas.

Este artigo tem o objetivo de analisar a percepção de saúde dos quilombolas de uma comunidade no agreste de Pernambuco, sob a perspectiva da determinação social da saúde.

Estratégias metodológicas

Trata-se de uma pesquisa-ação, de caráter analítico, com abordagem qualitativa na coleta e análise dos dados. Esta abordagem é apropriada para explicar realidades complexas, que segundo Minayo (2014MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14. ed. São Paulo: Hucitec, 2014.), se aplica ao estudo da história, das relações, das representações, das crenças, das percepções e das opiniões, produtos das interpretações que os humanos fazem a respeito de como vivem, sentem e pensam.

O estudo foi realizado no período de 2015 a 2018, numa comunidade rural quilombola localizada no agreste pernambucano. Residem nessa comunidade em torno de 250 famílias, que identificam suas origens a partir da destruição do quilombo de Palmares, reduto quilombola da região, símbolo de resistência e organização, situado ao sul do estado de Pernambuco e norte do estado de Alagoas. As famílias dessa comunidade vivem predominantemente da agricultura e cultivam, principalmente, mandioca, milho, feijão e hortaliças. A mandioca é utilizada na produção de farinha, massa, beiju e goma, produtos que são comercializados na cidade.

Os dados foram obtidos por meio de observação participante, entrevistas em profundidade e também um encontro grupal com base na pedagogia freireana dialógica dos círculos de cultura.

Para a observação participante, os dados foram construídos a partir da participação do pesquisador na vida dos observados, em seu cenário cultural (Minayo, 2014MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14. ed. São Paulo: Hucitec, 2014.). Em conversas com os membros da associação quilombola, fomos identificando os participantes do estudo. Durante a pesquisa fortalecemos o vínculo com a comunidade e participamos de reuniões da associação quilombola, de velório e de festas, andamos pelo território, e junto com as lideranças quilombolas conversamos com alguns moradores e famílias, conhecemos árvores e plantas importantes no território, bem como os equipamentos sociais. Todas as observações foram registradas em diário de campo.

Foram realizadas dez entrevistas em profundidade com quilombolas, nas quais convidamos os informantes a falarem livremente sobre o assunto, fazendo perguntas apenas em busca de aprofundar as reflexões dos entrevistados (Minayo; Romeu Gomes, 2011MINAYO, M. C. S. (org.); ROMEU GOMES, S. F. D. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 30.ed. Petrópolis: Vozes, 2011.). Os entrevistados foram definidos a partir das indicações das lideranças (membro da associação dos moradores; representante do grupo Guerreiras Quilombolas - coletivo de mulheres; representantes dos grupos culturais existentes; sujeitos ligados às religiões presentes no território; sujeito que manuseia e faz uso de plantas medicinais; sujeito ligado à reza; sujeito ligado ao partejar).

O círculo de cultura (CC) é uma ferramenta metodológica, desenvolvida por Paulo Freire, “de caráter dialógico de aprendizagem e de troca mútua de conhecimentos, fundamentado na pedagogia libertadora e problematizadora proposta pelo teórico” (Cavalcante et al., 2016CAVALCANTE, A. S. P. et al. Círculos de cultura como ferramenta de construção de consenso: diálogos sobre avaliação de risco e vulnerabilidade. Revista Brasileira de Pesquisa em Saúde, Vitória, v. 18, n. 4, p. 124-131, 2016.). Dentro do círculo de cultura todos são colaboradores na construção do conhecimento, e a proposta é favorecer um espaço para a troca de experiência e de aprendizado.

A intervenção do pesquisador leva à construção de caminhos e contribui para a pesquisa da realidade, não sendo simplesmente uma maneira de coleta de dados para a pesquisa, mas de produção de saberes coletivos para a compreensão crítica do território.

Esse método conta com um facilitador do grupo, no caso, a pesquisadora que foi responsável pela condução do processo. O encontro foi realizado na sede da Associação quilombola, com a participação de nove sujeitos, que foram convidados previamente.

O primeiro encontro teve início com a explicação quanto ao método e todos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). No momento seguinte tivemos a investigação temática, quando os membros do círculo de cultura elencam as palavras e temas centrais a serem trabalhados. Essas temáticas partem da realidade e universo dos participantes, essas palavras e temas levantados são denominadas de “temas dobradiça” ou “palavras geradoras” que são fundamentais para a compreensão do contexto da temática escolhida (Freire, 2006FREIRE, P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. 10. ed. São Paulo: Paz e terra, 2006.). Nesse encontro discutimos a percepção de saúde e tiramos os temas que foram trabalhados nos encontros posteriores, porém, neste artigo estamos trabalhando com os resultados apenas do primeiro encontro, em que foram debatidas as percepções de saúde dos quilombolas participantes. E o último encontro, o sexto, no qual os resultados das análises foram validados pelos participantes.

Para análise das entrevistas (individuais ou no grupo participante do círculo de cultura), o método utilizado foi o Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), conforme Lefèvre e Lefèvre (2005LEFÈVRE, F; LEFÈVRE, A. M. C. Discurso do Sujeito Coletivo: Um novo enfoque em pesquisa qualitativa (desdobramentos). 2. ed. Caxias do Sul: Educs, p. 256, 2005.), pelo qual fizemos a organização e tabulação dos dados de natureza verbal.

O DSC consiste na análise do material verbal coletado, extraindo-se de cada uma das ideias centrais e/ou ancoragens as suas expressões-chave. “Com as expressões-chave das ideias centrais ou ancoragens semelhantes compõe-se um ou vários discursos-síntese na primeira pessoa do singular” (Lefèvre; Lefèvre, p. 16, 2005LEFÈVRE, F; LEFÈVRE, A. M. C. Discurso do Sujeito Coletivo: Um novo enfoque em pesquisa qualitativa (desdobramentos). 2. ed. Caxias do Sul: Educs, p. 256, 2005.).

Resultados e discussão

A percepção da saúde pelos quilombolas está diretamente relacionada a elementos centrais do seu cotidiano: a alimentação, o trabalho e a terra. Estes são os elementos construtores do seu modo de vida e essenciais na discussão sobre a saúde quilombola.

Concepção de saúde quilombola

Durante o estudo tivemos dois momentos em que solicitamos aos participantes que falassem o que era saúde para eles: durante o primeiro diálogo do círculo de cultura e nas entrevistas individuais. No primeiro diálogo cada um falou o que entendia por saúde de forma coletiva, e as falas foram se complementando entre os participantes. As falas foram analisadas por meio do DSC e apresentadas no último diálogo do círculo de cultura, em que validamos coletivamente o que seria saúde para os quilombolas da comunidade em estudo. Dessa forma, a concepção de saúde construída foi a seguinte:

Saúde é você está bem fisicamente, psicologicamente e socialmente. É conviver com a natureza, fazer exercício físico, ter uma boa alimentação, ter uma água de qualidade, ter educação, saúde, tudo isso faz parte de uma saúde.

Saúde é… a gente se alimentar bem, é a gente ter saneamento, é… e viver em paz com a sua família e com a sua comunidade. É você ter o ar de boa qualidade, ter uma boa convivência com as pessoas, na parte de saúde mental também que é importante, você convivendo, você conversar com o pessoal, ter um relacionamento ali entre amigos, é uma série de fatores, né, que leva, né, à saúde.

Não usar agrotóxico no que se planta para não prejudicar a saúde da própria terra e ela não trazer um alimento de má qualidade pra nossa saúde. Tudo que se tem dentro do meio ambiente de mau, prejudica nossa saúde. E às vezes um simples ar sadio já ajuda muita gente. (DSC 1)

A concepção apresentada remete ao entendimento amplo da saúde, ou seja, ao conceito ampliado de saúde, presente no relatório da VIII Conferência Nacional de Saúde, que trata a saúde como resultante das condições de vida relacionadas a “alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde” (Brasil,1986BRASIL. Ministério da Saúde. Relatório final da 8ª Conferência Nacional de Saúde. Brasília, DF, 1986., p. 4). Ainda, segundo o relatório, o conceito de saúde é determinado no contexto histórico de cada sociedade, dessa forma, a concepção acima apresentada refere-se a um conjunto de atributos compartilhados pelos sujeitos/participantes da pesquisa em seus contextos de vida.

A concepção de saúde construída durante o círculo de cultura, leva em consideração não apenas questões referentes à dimensão biológica, mas agrega a ela questões sociais, psíquicas, políticas e contextuais. Saúde se relaciona com o modo de vida, estilos de vida, com o acesso a políticas públicas e com o convívio com a natureza e as vivências com o território. Além disso, se relaciona também com a qualidade e o desfrute da alimentação, como o não uso de agrotóxicos que afetam a saúde das pessoas e da natureza. Essa percepção de saúde encontrada nas discussões do círculo de cultura é ratificada nas entrevistas, como vemos no DSC 2:

Saúde pra mim é você ter uma vida boa, é você ter uma alimentação boa, você ter um suporte médico na hora que preciso for.Saúde é você viver bem, se alimentar bem, é você ter uma diversão, é você ter um lazer, você poder sair… a educação, então, saúde tá ligada também a várias áreas. (DSC 2)

A compreensão de saúde dos quilombolas está relacionada ao conceito de saúde integral, considerando a totalidade dos elementos que se relacionam e modificam o estado de saúde das pessoas, como mostra o DSC 3: “Saúde tem a ver com o seu bem-estar interior, sua paz espiritual. Saúde é assim, é um conjunto, vêm muitas coisas envolvidas na questão da saúde, não é só a saúde do meu corpo em si, é a saúde do que está em volta de mim também, faz parte da minha saúde”.

Essa vontade de viver do quilombola se reflete na percepção que tem de sua saúde, pois mesmo tendo consciência de ter alguma doença, esta é menor do que a sua saúde, ou seja, a doença é apenas um desequilíbrio em um dos aspectos da saúde, o biológico/fisiológico, e não no todo. Como falamos anteriormente a saúde aqui foi conceituada em sua complexidade, portanto, não é o oposto de doença, ela é apresentada como parte de uma compreensão ampliada de mundo, um mundo no qual os moradores quilombolas se conectam, se reconhecem e se vinculam. A saúde está atravessada por formas de convivência coletiva, garantia de direitos, relação com a natureza e a espiritualidade. Exemplo disso é o DSC 4: “Eu me considero, com toda doença que eu tenho, eu me considero que sou sadia. Eu tomo remédio controlado e graças a Deus eu sou sadio, eu não posso dizer que sou doente”. (DSC 4)

A saúde resulta da experiência vivida pela sociedade e pelos sujeitos, relacionando-se ao modo de vida, à organização social, à afetividade e subjetividade, bem como à cultura, lazer e às relações com a natureza (Silva Junior, 2006SILVA JUNIOR, A. G. Modelos tecnoassistenciais em saúde: o debate no campo da saúde coletiva. São Paulo: Hucitec , 2006.). A concepção de saúde apresentada rompe com as lógicas patologizantes e produz uma ética do saudável que não é antagônico à doença. Ao contrário, conduz a uma compreensão de saúde que supera as dicotomias tão marcadas nas ciências médicas entre o normal e o patológico. Como diria Canguilhem (2009CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.) a superação das concepções de normalidade para além dos critérios patológicos são possibilidades para a construção da saúde pautadas em produções éticas do viver.

A saúde para o quilombola é vista de forma integral, em sua totalidade, estando de acordo com o que a teoria da determinação social da saúde chama de princípios para uma sociedade saudável ou uma sociedade da vida. Esses princípios, de acordo com Breilh (2017BREILH, J. Matriz de procesos críticos: fundamentos teórico explicativos. Quito: Dirección Nacional de Derechos de Autor y Conexos, 2017.), são os “4S”, sustentabilidade, soberania, solidariedade e ser saudável/biossegurança - elementos essenciais para a construção de uma sociedade comprometida com a vida e com a saúde de seu povo.

Assim, o conceito de saúde quilombola apresenta elementos que apontam para esses princípios. A saúde é vista como uma série de elementos articulados que são necessários para viver bem, na concepção dos entrevistados, e em meio à complexidade que é a saúde destacamos alguns elementos que aparecem fortemente nos discursos e que estão ligados ao se sentir bem, como é o caso da alimentação saudável, a relação da saúde com o trabalho e com a natureza.

Saúde é ter uma alimentação segura e de qualidade

Para os quilombolas a alimentação é um elemento bastante presente ao tratarmos da temática da saúde. A alimentação é uma prática cotidiana relacionada aos vínculos comunitários e familiares, às memórias, à terra e ao fazer do dia a dia na preparação das refeições. Para compreender o sentido da alimentação, na cultura e tradição quilombola, é necessário considerar que essas comunidades têm suas vidas construídas em um território étnico-cultural, e nele não apenas residem, mas trabalham, se socializam e também é onde, na maioria das vezes, têm seus momentos de lazer, ou seja, é nessa terra ancestral que eles reproduzem sua cultura e modo de vida, bem como produzem novas formas de conhecimentos e existência. É nessas terras que os quilombolas cultivam, criam e produzem grande parte de seus alimentos (Silva; Baptista, 2016SILVA, R. P.; BAPTISTA, S. R. A comida em comunidades quilombolas: reflexões sobre saberes e mercados solidários. Ágora. Santa Cruz do Sul, v. 18, n. 1, p 68-77, 2016.).

O cuidado com a alimentação aparece com frequência nos discursos dos sujeitos/participantes ao tratarmos da saúde, como no DSC 5:

Saúde pra mim, é a pessoa se tratar bem, né? Ter as suas comidas nas horas certas, né? Não exagerar com as coisas porque comer pouco é ruim e comer demais também prejudica a saúde, saber o que é que vai comer para não comer qualquer tipo de coisa. A saúde que eu acho é até a comida mesmo, se você come uma comida saudável, já tá tratando da saúde. Plantar sempre uns pezinhos de frutas né? Pra gente não só comer os da feira, quando quiser uma laranja, vai chegar ali e é só tirar e comer, quer uma jaca é só ali, ó, e tirar uma jaca aí, come, quer dizer, aquela fruta é saudável porque é fruto da natureza, ele é saudável, ele não faz mal. (DSC 5)

Esse DCS mostra a importância de uma alimentação regrada para a saúde, seja referente à quantidade do alimento ingerido, como na procedência do alimento, seja prezando pela qualidade da alimentação e sua consequência direta na saúde. Um elemento importante é a relação de pertencimento do alimento ao território ao qual eles fazem parte, para “não só comer os da feira”. O cuidado com a alimentação é também um cuidado com a saúde, como mostra o próximo DSC:

O que eu faço? Num cumer tudo que é de pocaria, tem as coisinha deu cumer, tem as frutinha deu chupar, aí, pronto, é o que eu faço. Eu faço de tudo para cuidar da minha alimentação, pra mim não comer tudo e qualquer tipo de comida pra não prejudicar a minha saúde. Eu não como carne gorda, não como óleo, não como carne de galinha de granja, não como ovos de granja, pra mim é um forte pra não tá adoecendo tanto, que tem gente que come todo tipo de comida e se alimenta com todo tipo de comida e acha que se alimenta bem e não é. Você tem que fazer uma escolha, que é a qualidade de alimentação para ter o melhor para sua saúde. Você pode colocar pra mim uma comida a melhor do mundo e eu não uso ela pra eu comer pra ficar cheio não, eu não posso comer em excesso, eu tenho que comer aquele tanto que eu como. (DSC 6)

O DSC 6 mostra o cuidado com a origem do alimento, para que não sejam consumidos alimentos inseguros e o cuidado com uma dieta regular e moderada. Para isso, faz-se necessário trazer o debate da sustentabilidade, um dos “4S” conceituados por Breilh (2017BREILH, J. Matriz de procesos críticos: fundamentos teórico explicativos. Quito: Dirección Nacional de Derechos de Autor y Conexos, 2017.), que se refere a uma relação harmoniosa entre o ser humano e a natureza, mantendo o equilíbrio do metabolismo sociedade-natureza, sendo esta uma relação de respeito e proteção.

De acordo com o relatório do IPES-FOOD (2017)IPES food. Unravelling the food-health nexus: addressing practices, political economy, and power relations to build healthier food systems. Brussels: The Global Alliance for the Future of Food; IPES Food, 2017. os sistemas alimentares atuais têm acometido a saúde de diferentes formas, causando prejuízos à população e à natureza. Esses prejuízos e riscos à saúde estão presentes quando as pessoas consomem alimentos inseguros ou contaminados, que contêm vários agentes patogênicos, ou mesmo alterados em sua composição, como, por exemplo, os alimentos transgênicos. Outra forma de afetar negativamente a saúde é a partir de padrões alimentares não saudáveis, que ocorrem por meio do consumo de alimentos específicos ou grupos de alimentos prejudiciais à saúde.

O modelo dominante de sociedade vai no sentindo contrário à sustentabilidade e destrói o equilíbrio do metabolismo S-N, necessário para a reprodução da vida e para a produção da saúde. Este modelo, de visão antropocêntrica, trata a natureza como algo exterior à vida humana e de menor importância do que esta. A mãe terra perdeu seu caráter sagrado e foi reduzida pela ciência moderna à mercadoria. Esta lógica é contrária à relação construída pelos quilombolas com a natureza, a qual está intimamente articulada com a cultura, gerando os modos de vida comunitários

Saúde tem a ver com trabalho

Outro elemento importante presente nos discursos dos sujeitos-participantes da pesquisa é a saúde relacionada com o trabalho. O trabalho está presente na vida dos quilombolas desde muito cedo, o trabalho na agricultura, na casa de farinha, com a venda de seus produtos na feira da cidade. O trabalho é estruturador do modo de vida quilombola, e poder trabalhar é sinônimo de saúde, como observamos no DSC abaixo:

Quanto mais nós trabalha, melhor é. Saúde tem a ver com trabalho porque uma pessoa também que não está trabalhando fica muito preocupada, aí já começa adoecer. Eu só tive saúde inté quando eu podia trabalhar, mas depois que eu perdi a saúde, não deu mais pra eu, nada. Eu não queria a aposentadoria, eu queria trabalhar, porque eu tinha prazer de trabalhar. (DSC 7)

O trabalho para Marx (2013MARX, K. O capital: crítica da economia política (livro 1). São Paulo: Boitempo, 2013., p. 255) “é, antes de tudo, um processo entre o homem e a natureza. (…) Agindo sobre a natureza externa e modificando-a por meio desse movimento, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza”. De acordo com o autor podemos afirmar que o quilombola transforma a natureza por meio do trabalho e, ao fazê-lo, transforma a si mesmo, sendo o trabalho parte importante para sua reprodução física, social, econômica e cultural, atuando, assim, como promotor da condição de existência quilombola ao conectar seu corpo e sua mente, bem como a natureza com sua cultura (Sousa; Santos, 2019SOUSA, M. S. R.; Santos, J. J. F. Territorialidade quilombola e trabalho: relação não dicotômica cultura e natureza. Katálysis. Florianópolis, v. 22, n. 1, p. 201-209, 2019.).

Ainda de acordo com Marx (2013MARX, K. O capital: crítica da economia política (livro 1). São Paulo: Boitempo, 2013.), o trabalho é uma condição de existência do homem e possibilita ao ser humano se construir como tal, uma vez que é necessária a reflexão sobre a ação executada, o que leva à reflexão sobre si. O trabalho não alienado permite o reconhecimento de si sobre a vida produzida, sobre a realidade em que se vive e transforma.

Desse modo, o trabalho para o quilombola é parte essencial da vida, algo além do sustento da família, sendo visto como algo prazeroso, que os permite esquecer os problemas e gera bem estar, relacionando-se assim com a sensação de saúde, ou seja, mesmo compreendendo a saúde de maneira mais ampla, como vimos nas falas, ao perguntarmos aos sujeitos-participantes se eles se consideravam saudáveis, obtivemos respostas afirmativas quase que por unanimidade. Apenas dois entrevistados responderam que não se sentiam saudáveis, pois não podiam mais trabalhar, o que nos remete novamente à forte relação da saúde com o trabalho para essa comunidade e, dessa forma poder trabalhar traz a sensação de saúde, como podemos ver no DSC seguinte.

Eu me considero (saudável), pelo trabalho que a gente tem realizado (na associação quilombola), eu me sinto muito feliz.

Eu me considero saudável porque, graças a Deus eu vou completar setenta anos e eu ainda tenho uma disposição pra trabalhar, tenho coragem graças a Deus, e pra mim eu me considero sadio. Porque enquanto eu tenho um problemazinho, mas eu trabalho, pego no pesado e trabalho que a pessoa pensa que eu sou ainda novo e eu estou velho já, mas eu ainda tenho aquela vontade de trabalhar, eu não sou emurecido, se botar eu pra limpar mato eu limpo, se botar eu pra cortar pau eu corto, o que mandar eu faço, eu tenho que agradecer a Deus por isso, né? Pela minha idade e pela disposição que eu tenho.

Oh minha fia eu mim sintia saudáve, mas agora eu não mim sinto mais muito boa não, né, de vez inquando eu tô mim dando tontiça, de vez inquando mim dá aquelas dor nos espinhaço que num posso andar, eu vindia goma na feira, eu vindia massa, vindia tapioca, tudo eu vindia na feira, mas hoje num posso mais, parei. Fazia farinha, fazia quinhentos, seiscentos quilos de mandioca, comprava ao pessuá, agora num posso mais. Vivia cum saúde (quando trabalhava) mais agora não… eu era uma nêga com saúde, andava por todo canto, andava com os balai de coisa, andava com cinquenta quilo na cabeça, hoje num posso mais fazer isso, fiz um fêche de lenha tá cum duas semana quase que morro do fêche( risos baixinho), num posso mais buta nada não. (DSC 8)

Não é apenas o trabalho para o sustento familiar que traz a percepção de saúde e bem-estar, é também o trabalho desenvolvido em prol da comunidade, seja na associação ou em pequenas ações desenvolvidas para melhorias na mesma. Dessa forma, o trabalho aqui se relaciona com o conceito de solidariedade de Breilh (2017BREILH, J. Matriz de procesos críticos: fundamentos teórico explicativos. Quito: Dirección Nacional de Derechos de Autor y Conexos, 2017.), na busca por justiça cultural, de gênero, étnica e racial.

O trabalho faz parte do modo de vida quilombola, e estar em atividade, em movimento, leva ao sentimento de ser saudável, como mostra o DSC 9: “Eu me considero saudável porque eu tenho uma vontade de viver danada, eu gosto de viver… eu sou uma pessoa muito ativa”.

É importante relatar que o trabalho não está restrito ao âmbito econômico, e apesar de ser indispensável para sua compreensão, ele refere-se ao modo de ser da sociedade e dos sujeitos (Paulo Netto; Braz, 2012PAULO NETTO, J.; BRAZ, M. Economia política: uma introdução crítica. São Paulo: Cortez, 2012.), ou seja, é a partir do trabalho que o ser humano se constrói e se apresenta em uma sociedade. Assim, para o quilombola, o trabalho - geralmente desenvolvido no cultivo, na criação de animais, no trabalho na casa de farinha - está relacionado à sua identidade quilombola, fortalecendo seus laços com a natureza, perpetuando suas práticas ancestrais e transformando-os enquanto sujeitos.

O trabalho para o povo quilombola é um bem coletivo, que promove saúde e leva ao fortalecimento do vínculo com a natureza e consequentemente, fortalece a identidade quilombola nos sujeitos e famílias. O trabalho nessa perspectiva está relacionado ao conceito de soberania, e esta se faz presente quando há um povo empoderado e que tome suas próprias decisões, possuindo um território em conveniência do bem comum (Breilh, 2019).

O fato de não poder mais trabalhar, nos casos apresentados devido à idade avançada, leva ao sentimento de inanição e de perda da saúde, pois, como vimos, é através do trabalho que o quilombola se reproduz e reproduz seu modo de vida, além de ser um espaço de prazer e de encontros entre eles.

A terra é a nossa saúde

Outro elemento fundamental para a saúde dos quilombolas refere-se à sua relação com a natureza e com o território. Em muitas falas encontramos a importância do cuidado com a natureza e do contato direto com ela para a saúde e para a vida, como vemos no DSC abaixo:

A terra é saúde, sem essa terra eu não tenho saúde, porque dentro dessa terra a gente constrói tudo de bom e melhor. Tudo de plantas medicinais vem da nossa terra, então, eu considero que a terra é a nossa saúde e sem essa terra eu não tenho saúde. A gente só vai tá bem se o meio ambiente em que vivemos está, porque se ele tiver adoecido, nós também vamos adoecer. Porque o meio ambiente pra gente hoje é saúde, quando a gente cuida do meio ambiente, tem um ambiente sadio, tem um ambiente com um certo cuidado.

A natureza tem relação com a saúde, porque esse ar puro que tá vindo pra gente, que nós tamos respirando ele, é por conta que a natureza que tem tudo de bom e melhor pra gente.

Esses pezinhos de árvores que a gente tá aqui, que a gente fica embaixo desse pé de pau, recebe um ar, um ar sadio,(…) e aqueles ventos também que a gente recebe dessas árvores é bom pra nós, ele vem saudável, aquele cheirinho saudável, então, é muito importante que a gente tem uns pauzinhos pra ficar embaixo, pra gente quando for numas horas de descanso ir pra debaixo de um pau e receber aquele arzinho que vem com as plantas. (DSC 10)

A natureza está presente diariamente na vida dos sujeitos-participantes, sendo relatada a importância das árvores e do ar para a saúde, em que sentar-se abaixo de uma árvore, respirar o ar puro presente na comunidade e receber o vento é uma forma de cuidado com a saúde. Além disso, o cuidado com a própria natureza é o cuidado com a saúde comunitária. O território, como afirma Silva (2017SILVA, A. P. S. Pesquisa e atuação da psicologia na cidade e no campo: apontamentos e deslocamentos produzidos desde a categoria espaço. In: RASERA, E. F.; PEREIRA, M. S.; GALINDO, D. (Org.). Democracia participativa, estado e laicidade: psicologia social e enfrentamentos em tempos de exceção. Porto Alegre: Abrapso, 2017.), apresenta-se como espaço transformado por diversas relações ecológicas, econômicas e políticas que compõem uma tessitura do vivido que vincula o sujeito às produções comunitárias, à terra e à natureza. Há no modo de vida das populações tradicionais, como afirma Santos e Chauí (2014SANTOS, B. S. S.; CHAUÍ, M. Direitos humanos, democracia e desenvolvimento. São Paulo: Cortez , 2014. ), uma relação com a natureza que supera o projeto colonial/moderno da necessidade ontológica do humano como antagônica ou distinta da natureza. De modo oposto a construção ontológica de sujeito destes territórios está na relação de coabitação entre o humano e a natureza, sendo ele mais um elemento que compõe este território vivo.

A importância da “terra” para o quilombola - essa terra em que eles cultivam seus alimentos e suas ervas, de que se nutrem as árvores presentes no território, onde se criam seus animais - é o território quilombola, local de moradia, de trabalho e descanso, de pertencimento. Como dito por Milton Santos e Maria Laura Silveira (2003SANTOS, M.; SILVEIRA, M. L. O Brasil: território e sociedade no século XXI. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2003.) a territorialidade é compreendida no sentido de pertencer àquilo que o pertence, ou seja, o território quilombola pertence ao povo quilombola e este ao seu território, e um não existe sem o outro. Portanto sem o território, sem a terra para plantar, para criar animais e para reproduzir seus modos de vida não existe sustentabilidade, não existe soberania e solidariedade quilombola, e assim, não existe saúde quilombola.

A importância do cuidado com a natureza e a relação direta disso com a saúde foi outro aspecto destacado, considerando o não uso de agrotóxico para o cuidado com a saúde do solo e das pessoas:

Tem que a gente não agredir o meio ambiente, tudo o que nós plantar sem conseguir botar agrotóxico, porque ele agride o meio ambiente e agride a nossa saúde, então tem que preservamos o máximo que nós pudermos preservar o meio ambiente, pra que nós tenhamos uma saúde de qualidade e também preservar as nossas ervas medicinais. (DSC 11)

De acordo com o dossiê Abrasco (2015), um terço dos alimentos consumidos cotidianamente pelos brasileiros está contaminado pelos agrotóxicos, e mesmo que estes sejam classificados como de toxicidade mediana ou baixa, de acordo com os seus efeitos agudos, é importante observar os efeitos crônicos que podem ocorrer até décadas após a exposição, “manifestando-se em várias doenças como cânceres, más-formações congênitas, distúrbios endócrinos, neurológicos e mentais” (Carneiro, 2015CARNEIRO, F. F. et al. (Org.). Dossiê ABRASCO: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Rio de Janeiro: EPSJV; São Paulo: Expressão Popular, 2015., p. 58).

Questões relacionadas ao estilo de vida também foram evidenciadas como importantes para o bem viver e a promoção da saúde, como mostra o DSC seguinte:

Não comer comidas industriais, você fazer uma boa caminhada, você beber bastante água, você não se estressar muito. É viver mais, é o que eu vejo eles fazendo, né [referindo-se aos mais velhos], é viver mais debaixo da árvore, talvez eu acho que isso, o ar puro, a natureza, né, sem tá assistindo tanta televisão, que adoece até os olhos. (DSC 12)

Assim, o modo de vida (comunitário) e o estilo de vida (pessoal e familiar) interferem na saúde dos quilombolas, estando ligados às relações de poder que levam a diferentes formas de adoecimento, e variam a depender da classe social, gênero e etnia ou raça (Breilh, 2011BREILH, J. Aceleración agroindustrial: peligros de la nueva ruralidade del capital. In: BRASSEL, F.; ZAPATTA, A.; BREILH, J. (Ed.). ¿Agroindustria y soberanía alimentaria?: hacia una nueva Ley de Agroindustria y Empleo Agrícola. Quito: Sipae ediciones, 2011.), como afirma a teoria da determinação social da saúde.

Considerações finais

As comunidades quilombolas mantêm vivas as tradições de seus antepassados, como as práticas agrícolas, a relação com a natureza e o sentimento de pertencimento ao território, bem como as questões étnico-raciais, que são elementos que os diferenciam de outras comunidades rurais. Sendo, portanto, importante haver estudos que mostrem o significado da saúde para essas comunidades e que levem à construção de políticas públicas que atendam a essas especificidades.

Para os quilombolas deste estudo a saúde vai além da ausência de doença, esta é apenas um desequilíbrio em um dos elementos (o biológico/fisiológico) que compõem a saúde. Sendo compreendida em sua complexidade, a garantia da saúde não é de responsabilidade apenas de um setor, ou seja, do setor saúde, ela deve ser garantida pelo Estado por meio de políticas públicas integrais, que articulem diferentes setores de governo.

A saúde, em sua complexidade, possui íntima relação com o território quilombola e com seu modo de vida tradicional. É nesse território que eles reproduzem seus modos de vida, residem, trabalham, se encontram, produzem seus alimentos e suas plantas medicinais. Dessa forma, a luta pelo território quilombola se faz presente nos discursos e no cotidiano desses sujeitos, pois a luta pelo território é também a luta por sua sobrevivência, física, política e cultural.

Para um grupo tradicional, como os quilombolas, o território é o principal elemento de construção da identidade grupal. Este não pode ser entendido apenas como uma porção de terra, pois neste espaço está acrescido toda configuração sociológica, geográfica e histórica construída ao logo do tempo pela vivência de seus membros. É a partir desse território, físico e simbólico, que seus membros se reproduzem física e socialmente, sendo eles uma parte desse todo que é o território.

Dessa forma, é a partir da conquista do território quilombola que se faz possível pensar em soberania, sustentabilidade e solidariedade quilombola, sendo estas condições prévias para uma vida saudável.

Como vimos, a alimentação saudável, livre de agrotóxicos e outras químicas, é um importante elemento na concepção de saúde quilombola, e a garantia da produção de seus alimentos também está atrelada à posse de um território que garanta espaços de plantio e criação.

A saúde para os quilombolas refere-se a processos presentes nas dimensões geral, particular e singular, que se interligam, espaços em que os processos protetores e destrutivos à saúde se produzem. Assim, não existe saúde quilombola, sem território, sem terra para plantar e criar animais. O trabalho para esse povo, é produtor de saúde, e traz consigo a sensação de força, movimento e colaboração.

O olhar para a saúde quilombola através da modelagem sistêmica proporcionada pela perspectiva da determinação social da saúde contribui para a compreensão de como os processos de proteção e danos à saúde se desenvolvem no território, nos modos e estilos de vida, e em como estes estão integrados em diferentes dimensões por meio dos movimentos de subsunção e autonomia relativa. Dessa forma, a história de vida desses povos, a cultura e os modos de cuidar são considerados como elementos fundamentais para a compreensão da saúde quilombola.

Por conseguinte, o cuidado em saúde quilombola deve ser pautado na garantia da produção e na soberania alimentar, na reprodução da vida dessas populações, buscando acolher os diferentes saberes, respeitando as individualidades, tendo um olhar sistêmico da saúde, integrando-a com a vida e com a natureza. Assim, um grande desafio que os quilombolas têm enfrentado é a demarcação e titulação de suas terras, lutando diariamente com fazendeiros, grileiros e comerciantes do setor imobiliário para garantirem seus territórios, seus modos de vida e, consequentemente, a saúde quilombola.

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  • 1
    A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto Aggeu Magalhães (CEP IAM/Fiocruz), sendo aprovada com a CAAE: 83178018.0.0000.5190.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Set 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    25 Set 2020
  • Aceito
    19 Fev 2021
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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