Alterações de rota na medicina - reescolhendo a especialidade médica11Pesquisa relativa à Dissertação de Mestrado do autor no Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e aprovada pelo Comitê de Ética (CAAE: 46858015.0.0000.0065).

Flávio José Gosling Patrícia Lacerda Bellodi Sobre os autores

Resumo

Transições profissionais na Medicina são particularmente difíceis para os médicos, devido ao tempo e ao custo da formação. O objetivo deste trabalho é compreender as experiências de médicos que reescolheram a sua especialidade, investigando motivação e as implicações da mudança. O método adotado foi um estudo qualitativo com entrevistas de profissionais que mudaram de especialidade. A pesquisa mostrou que entre os motivos para a mudança de especialidade estão a insatisfação com a área, mesmo com pouco tempo de prática, o estresse do cotidiano profissional e o estilo de vida. Apesar das críticas recebidas, os entrevistados demonstraram grande satisfação com a mudança. Como estratégia individual para lidar com a insatisfação, a mudança parece positiva. Entretanto, é importante refletir sobre o risco de vazio de significações para o sujeito e as práticas médicas.

Palavras-chave:
Escolha da Profissão; Especialização; Educação Médica

Introdução

Transições e mudanças fazem parte da vida e requerem um trabalho psíquico que não é pequeno (Uvaldo, 2010UVALDO, M. C. C.. Tecendo a trama identitária: um estudo sobre mudanças de carreira. 2010. Tese (Doutorado em Psicologia Social) - Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. DOI: 10.11606/T.47.2010.tde-06052010-120910
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). No campo profissional, implicam em romper não apenas com o que já foi construído na carreira, mas também, por vezes, com valores, modelos, relações estabelecidas e, até mesmo, laços familiares (Soares, 2002SOARES, D. H. P. A Escolha Profissional: Do Jovem ao Adulto. São Paulo: Summus, 2002.).

Embora a inconstância, a ruptura e a descontinuidade sejam características comuns dos percursos de carreira na contemporaneidade (Ribeiro, 2011RIBEIRO, M. A. Algumas Contribuições Brasileiras para a Orientação Profissional: o enfoque socioconstrucionista em Orientação Profissional-uma proposta. In: MELO-SILVA, L. L.; RIBEIRO, M. A. (Org.). Compêndio de Orientação Profissional e de Carreira: enfoques teóricos contemporâneos e modelos de intervenção (Vol.2). São Paulo: Vetor , 2011. p. 53-79.), pessoas que passam por situações de transição são impactadas emocionalmente, apresentando sintomas de burnout, sensação de medo e incompetência (Lima, 2003LIMA, M. T. Diferentes olhares sobre re-opção profissional. In: SILVA, L. M.; SANTOS, M. A.; SIMÕES, J. T.; Avi MC. (Org.) Arquitetura de uma ocupação: orientação profissional: teoria e técnica. São Paulo: Vetor, 2003. p 61-68.). Mudanças de carreira podem ser entendidas como derrota e a cobrança social pode ser alta para aqueles que reescolhem uma carreira (Uvaldo, 2010UVALDO, M. C. C.. Tecendo a trama identitária: um estudo sobre mudanças de carreira. 2010. Tese (Doutorado em Psicologia Social) - Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. DOI: 10.11606/T.47.2010.tde-06052010-120910
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; Moura e Menezes, 2004MOURA C. B.; MENEZES, M. V. Mudando de opinião: análise de um grupo de pessoas em condição de re-escolha profissional. Revista Brasileira de Orientação Profissional. São Paulo, v. 5, n. 1, p. 29-45, 2004. Disponível em: <Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-33902004000100004&lng=pt&nrm=iso >. Acesso em: 14 jun. 2021.
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)

Na profissão médica, a mudança de rota profissional pode tomar uma dimensão ainda maior em função do tempo de investimento na formação, do custo envolvido e das expectativas sociais relacionadas a esta categoria profissional.

A medicina se insere em um cenário profissional com enorme gama de possibilidades de trabalho devido as suas diversas especialidades. Nessa escolha, o profissional se depara com uma multiplicidade de fatores que envolvem seus interesses pessoais, sua personalidade, os estereótipos profissionais, os estilos de trabalho, as oportunidades de trabalho e até aspectos ligados ao gênero (Burack et al., 1997BURACK, J. et al. A study of medical students specialty choice pathways: trying on possible selves. Academic Medicine, Palo Alto, v. 72, n. 6, p. 534-41, 1997. DOI: 10.1097/00001888-199706000-00021
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; Goldacre, Goldacre e Lambert, 2012GOLDACRE, M. J.; GOLDACRE, R.; LAMBERT, T.W. Doctors who considered but did not pursue specific clinical specialties as careers: questionnaire surveys. Journal of the Royal Society of Medicine, London, v. 105, n. 4, p. 166-176, 2012. DOI: 10.1258/jrsm.2012.110173
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; Lambert et al., 2003LAMBERT, T. W. et al. Doctors’ reasons for rejecting initial choices of specialties as long-term careers. Medical Education, Oxford, v. 37, n. 4, p. 312-318, 2003. DOI: 10.1046/j.1365-2923.2003.01473.x
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). Por conta disso, Bellodi (2001BELLODI, P. L. O clínico e o cirurgião - Estereótipos, personalidade e escolha de especialidade médica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.) ressalta que falar do processo de escolha da especialidade médica é mais do que uma tarefa difícil, é uma tarefa complexa.

Nem sempre o processo e o desfecho desse processo são tranquilos e satisfatórios para os sujeitos, gerando repercussões negativas tanto para o próprio médico quanto para seus pacientes. Entretanto, poucos são os estudos sobre o processo da reescolha da carreira ou da desistência da especialidade médica. Eles valorizam mais os motivos que levam à escolha, havendo poucas investigações sobre a rejeição por uma determinada área (Van der Horst et al., 2010VAN DER HORST, K. et al. Residents’ reasons for specialty choice: influence of gender, time, patient and career. Medical Education, Oxford, v. 44,.6, p. 595-602, 2010. DOI: 10.1111/j.1365-2923.2010.03631.x
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).

Fatores como tempo para a vida familiar, possibilidades de promoção, tipo de paciente atendido, autoavaliação de habilidades/atitudes e características da personalidade são considerados pelos médicos quando mudam de área. Um estudo feito no Reino Unido (Gale e Grant, 2002GALE, R.; GRANT J. Sci45: the development of a specialty choice inventory. Medical Education, Oxford, v.36, n.7, p. 659-666, 2002. DOI: 10.1046/j.1365-2923.2002.01256.x
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) apontou que um terço dos médicos ingleses trocou de especialidade após a escolha feita ao final da graduação, sendo as especialidades de cuidado primário as mais abandonadas por conta da remuneração e do estilo de vida.

Goldacre, Goldacre e Lambert (2012GOLDACRE, M. J.; GOLDACRE, R.; LAMBERT, T.W. Doctors who considered but did not pursue specific clinical specialties as careers: questionnaire surveys. Journal of the Royal Society of Medicine, London, v. 105, n. 4, p. 166-176, 2012. DOI: 10.1258/jrsm.2012.110173
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) identificam que qualidade de vida é mais importante na desistência de uma área do que competitividade, complexidade, local de trabalho estressante e pouco treinamento. Lambert et al. (2003)LAMBERT, T. W. et al. Doctors’ reasons for rejecting initial choices of specialties as long-term careers. Medical Education, Oxford, v. 37, n. 4, p. 312-318, 2003. DOI: 10.1046/j.1365-2923.2003.01473.x
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destacam as relações interpessoais no trabalho como fatores que levam à rejeição de uma especialidade. No Brasil, estilo de vida controlável, razões financeiras, autonomia e tempo pessoal, além da oportunidade de emprego, também são fatores importantes na escolha ou rejeição de algumas áreas (Souza. et al., 2015SOUZA, L. C. de L. et al. Medical Specialty Choice and Related Factors of Brazilian Medical Students and Recent Doctors. PLoS One, v. 10, n. 7, 2015. DOI: 10.1371/journal.pone.0133585
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; Corsi et al., 2014CORSI, P. R. et al. Fatores que Influenciam o Aluno na Escolha da Especialidade Médica. Revista Brasileira de Educação Médica. Rio de Janeiro, v. 38, n. 2, p. 213-220, 2014. DOI: 10.1590/S0100-55022014000200008
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; Sousa, Silva e Caldas, 2014SOUSA, I. Q.; SILVA, C. P. D. A.; CALDAS, C. A. M. Especialidade Médica: Escolhas e Influências. Revista Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 38, n. 1, p. 79-86, 2014. DOI: 10.1590/S0100-55022014000100011
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).

A importância do assunto também tem repercussões na Saúde Pública, ajudando a entender como os médicos se distribuem (Souza et al., 2015SOUZA, L. C. de L. et al. Medical Specialty Choice and Related Factors of Brazilian Medical Students and Recent Doctors. PLoS One, v. 10, n. 7, 2015. DOI: 10.1371/journal.pone.0133585
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). Alguns autores afirmam haver uma tendência da diminuição da procura da carreira de generalistas e um aumento de interesse em áreas como dermatologia, anestesiologia, radiologia e de emergências (Cruz et al., 2010CRUZ, J. A. S. et al. Fatores Determinantes para a Escolha da Especialidade Médica no Brasil. Revista de Medicina, São Paulo, v. 89 n. 1, p. 32-42, 2010. DOI: 10.1590/1981-52712015v43n2RB20180158
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).

Embora não haja estudos sobre a reescolha da especialidade médica no Brasil, um levantamento recente publicado pelo Conselho Federal de Medicina (Scheffer, Cassenote e Biancarelli, 2015SCHEFFER, M.; CASSENOTE, A.J.F.; BIANCARELLI, A. Demografia médica no Brasil. 2015. São Paulo: CFM/CREMESP , 2015. Disponível em: <Disponível em: http://www.cremesp.org.br/pdfs/DemografiaMedicaBrasilVol3.pdf > Acesso em: 10 mar. 2016.
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) mostra que 53% dos médicos brasileiros têm uma ou mais especialidades. Esse resultado, segundo os pesquisadores, revela que há mobilidade entre as áreas ao longo da vida profissional, provavelmente a partir de interesses pessoais e oportunidades de trabalho, e que a especialidade médica é um elemento flexível na vida profissional de muitos médicos brasileiros.

O tema da reescolha profissional dentro da medicina tem surgido em outros espaços de comunicação dedicados à trajetória profissional de médicos como o site BMJ Careers (2013)22BMJ CAREERS, Home. [S.I.]: 2013. Disponível em: <http://careers.bmj.com/careers>. Acesso em: 2 mar. 2016., no qual relatos de profissionais que viveram trocas de especialidades evidenciam a angústia vivida no processo (Ayre, 2013AYRE, K. Changing specialties. BMJ Careers. Disponível em: <Disponível em: http://careers.bmj.com/careers/advice/view-article.html?id=20014943 >. Acesso em: 8 out. 2013. DOI: 10.1136/bmj.f5974
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).

Considerando que mudanças na carreira promovem mudanças na subjetividade dos sujeitos, para além das implicações na composição da força de trabalho, este estudo buscar compreender as experiências de médicos que reescolheram a sua especialidade, investigando suas motivações e o significado dessa mudança em suas trajetórias profissionais e de vida.

Método

Desenho

Optou-se por uma abordagem qualitativa e exploratória que permitisse apreender os significados para os sujeitos das experiências vividas no processo de reescolha da especialidade médica.

A pesquisa qualitativa “envolve empatia aos motivos, intenções e projetos dos atores, a partir dos quais as ações, as estruturas e as relações tornam-se significativas” (Minayo e Sanches, 1993MINAYO, M. C. S.; SANCHES O. Quantitativo ou qualitativo: oposição ou complementaridade? Cad Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 9 n. 3, p. 239-262, 1993. DOI: 10.1590/S0102-311X1993000300002
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), razão da adoção de tal método nesse estudo.

Sujeitos

Participaram do estudo médicos que reescolheram sua especialidade, dentro dos seguintes critérios: conclusão de uma primeira formação (residência médica ou especialização) em determinada área médica; exercício do trabalho por pelo menos um ano nesta área e migração para outra área médica, por meio de nova especialização ou residência médica. Não foram incluídos indivíduos que mudaram suas práticas através de subespecializações ou que não trabalharam na área e mudaram de área ainda na residência. A classificação de especialidades médicas utilizada como critério para definição foi a estabelecida pelo Conselho Federal de Medicina, em 2017.

Os participantes foram recrutados por meio eletrônico, utilizando a rede social do pesquisador (Facebook). A partir das primeiras indicações, iniciou-se a formação de um grupo de médicos que mudaram de especialidade e conheciam outros na mesma situação, adotando-se a estratégia bola de neve ou snowball (Turato, 2003TURATO, E. R. Tratado da Metodologia da Pesquisa Clínico-Qualitativa: construção teórico-epistemológica, discussão comparada e aplicação nas áreas da saúde e humanas. Petrópolis: Vozes, 2003.). Para obter um número maior de indicações, a pesquisa também foi divulgada em vários diretórios de universidades e faculdades de medicina em São Paulo.

O grupo de entrevistados ficou composto por 18 médicos, na faixa etária entre 33 e 64 anos, com predomínio de mulheres (13/18). O médico formado há mais tempo se graduou em 1975 e o mais recente em 2007. A maioria dos entrevistados estudou em universidades públicas.

Instrumentos

Foram realizadas entrevistas em profundidade para colher depoimentos pessoais sobre a trajetória profissional, suas motivações para a mudança e as implicações delas derivadas. As entrevistas foram feitas por um único entrevistador, presencialmente, gravadas com consentimento e depois transcritas.

Foi elaborado um roteiro com questões que estimulasse a reflexão sobre o processo da reescolha da especialidade: (1) Fale sobre sua escolha pela medicina e como foi o processo de escolha da sua primeira especialidade; (2) Quais motivos o levaram a mudar de especialidade?; (3) Conte como foi o processo de escolha da segunda especialidade; (4) Houve alguma dificuldade nessa reescolha?; (5) Como está sendo sua prática atual?

Foram preservados os nomes dos participantes e optou-se por identificá-los utilizando-se a letra E (Entrevistado), acrescida de um número (de acordo com a ordem das entrevistas realizadas), seguida pela primeira especialidade e especialidade de reescolha. Todas as entrevistas foram precedidas pelo preenchimento do termo de consentimento informado e da explicação sobre os objetivos e métodos da pesquisa.

Análise dos dados

Para a análise das entrevistas, foi utilizada a técnica de análise de conteúdo (Bardin, 1977BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edição 70, 1977.), buscando-se os núcleos de sentido (Minayo; Sanches, 1993MINAYO, M. C. S.; SANCHES O. Quantitativo ou qualitativo: oposição ou complementaridade? Cad Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 9 n. 3, p. 239-262, 1993. DOI: 10.1590/S0102-311X1993000300002
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) presentes nos relatos dos entrevistados. Os recortes foram organizados por aproximação de temas sendo estabelecidas categorias que agruparam elementos semelhantes, permitindo a discussão dos dados mais relevantes.

Resultados

A análise das entrevistas mostrou diversidades e singularidades, mas também semelhanças e convergências nos relatos dos médicos que reescolheram suas especialidades. Destacaram-se os seguintes temas: (1) Escolhendo ser médico; (2) A primeira especialidade; (3) A reescolha e suas razões; (4) A transição e o depois.

Escolhendo ser médico

De maneira geral, os entrevistados iniciavam seu relato expressando alguma dificuldade em dizer os motivos da escolha pela medicina. Alguns diziam não saber ou usavam frases como “sempre quis” ou “desde sempre”.

Era uma coisa que eu sempre quis. Era um sonho. Não tinha ninguém na minha família, mas era uma coisa que eu escolhi por gostar mesmo. (E14, da Pediatria para medicina Nuclear)

Os clássicos motivos da escolha pela medicina, isoladamente ou entrelaçados, estiveram presentes nos depoimentos: vocação, desejo de ajudar ao próximo, gosto pela ciência, desafio intelectual e prestígio profissional. Alguns mencionaram o desejo de alcançar maior status social e remuneração em relação as suas famílias de origem.

Eu sempre fui lutadora, sempre preciso ler mais de uma vez, mas sempre muito persistente e, meu irmão, muito inteligente. Todo mundo falava que ele ia fazer medicina e ele não queria. Aí eu vi a minha oportunidade de brilhar, né? (E10, da Pneumologia para Radiologia).

Foi uma infância bastante sofrida do ponto de vista financeiro. Mas meu pai sempre achou que a gente tinha que ser doutor, uma coisa muito forte. Eu meio que queria resolver essa frustração do meu pai. (E15, da pneumologia para medicina Preventiva)

A família, como é possível observar nos relatos anteriores, surgiu com frequência nos relatos. Todos os entrevistados, sem exceção, fizeram alusão a ela, seja seguindo a tradição, seja inaugurando esse papel na história familiar.

Você sabe, minha família toda é de médicos, desde o meu avô. Ele foi o primeiro médico da família, sempre foi um exemplo para todos nós da família. Meus tios fizeram medicina, meu pai fez medicina e acaba que você é influenciado de qualquer forma, não tem como. (E11, da Reumatologia para UTI)

Eu não tenho família médica, ninguém na família é médico. Mas desde sempre eu quis, eu me sinto bem em ajudar o próximo. (E7, da Cirurgia para Homeopatia)

Não tinha nenhum médico na família e eu gostava muito da área de biológicas, quando estava no terceiro colegial, a gente foi na USP, eu gostei do clima, mas não era nada de querer ajudar as pessoas, foi surgindo depois. (E6, da medicina de família para geriatria)

Um dos entrevistados relacionou seu desejo de ser médico com um processo de adoecimento na infância, quando o alívio do sofrimento foi decisivo na influência de sua escolha:

Eu lembro que, desde molequinho, tanto vim em hospital, eu era uma criança doente, segundo a minha mãe. Sempre fui doentinho. (E2, da Pediatria para Anestesiologia)

A primeira especialidade

O curso e suas vivências foram apresentados por todos os entrevistados como um importante fator de influência na escolha pela especialidade. Algumas disciplinas, pelo seu conteúdo e qualidade, levaram ao interesse por determinada área. Outras vezes, professores funcionaram como modelos inspiradores ou incentivadores.

Eu fui fazer uma disciplina de técnica operatória e o titular da cadeira falou: você é muito habilidosa, o que você vai fazer? Acho que vou fazer Oncologia, respondi. E ele: você vai fazer cirurgia, vou treinar você! (E18, da cirurgia para UTI)

Durante a graduação, a maior parte dos entrevistados pensou em se tornar médico dentro das grandes e tradicionais áreas da medicina, como a clínica, a cirurgia ou a pediatria.

Quanto eu terminei, eu tinha só essas quatro opções: cirurgia, clínica, ginecologia ou pediatria. Com a pediatria, nem pensar, não tenho paciência com criança. A clínica, não me via conversando a esse ponto para virar clínica. A ginecologia, eu gostava da parte cirúrgica, mas nunca gostei da parte de obstetrícia. Então cirurgia ficou interessante. (E3, da cirurgia para medicina do trabalho)

Na escolha da primeira especialidade, as características do paciente e o tipo de prática foram muito citados pelos entrevistados. A personalidade aparece em alguns relatos, especialmente na escolha pela cirurgia.

Eu sempre gostei de paciente crítico, me dá um paciente diferente que eu fico meio irritado. Prefiro paciente crítico, acho que você pensa mais, intervém mais, você consegue interagir mais com o paciente. (E2, da pediatria para anestesiologia)

Eu gostava muito da parte cirúrgica da medicina, sonhava em fazer grandes cirurgias e ser uma “super cirurgiã”, desde pequena. Tinha bonequinho de cirurgião. Era impensável fazer medicina, ser médica, e não operar. (E7, da cirurgia para homeopatia)

Poucos expressaram uma escolha da primeira especiliadade baseada em fatores financeiros ou mercado de trabalho, mas uma escolha cômoda, derivada da influência familiar, foi relatada. E apenas um entrevistado afirmou ter sido uma escolha derivada de uma única aprovação nos processos de seleção para residência que participou.

A reescolha e suas razões

Muitos entrevistados apresentaram sinais de insatisfação com a escolha realizada já na residência médica. A organização do trabalho, seja pela sobrecarga ou pela burocracia, levou a questionamentos sobre a escolha inicial. Relações de trabalho hierarquizadas e desgaste emocional também colaboravam para a insatisfação e a revisão da escolha.

A residência em pediatria foi uma descoberta do que é ser pediatra fora do mundo acadêmico. Eu comecei a conviver com a parte do dia a dia: os plantões, você chegar ao pronto-socorro e ter 300 crianças esperando, mãe estressada, gritaria, choro, imprevisto. Aquilo me desagradou muito, porque meu ritmo interno é outro. (E1, da pediatria para psiquiatria)

Até entrar eu só pensava no dia que eu ia ser residente da cirurgia. Meu sonho era o primeiro dia de residência: eu ia passar o dia inteiro no hospital, ia operar o dia inteiro, ia fazer isso e aquilo. Aí, já no começo falei: é isso?! É levar bronca, buscar exame, fazer pedido de exame, chorar no ultrassom pra conseguir fazer, é isso que é ser residente? Não to gostando mais dessa brincadeira! (E18, da cirurgia para UTI)

Quando já no mundo do trabalho, no pós-residência, as vivências de insatisfação, intolerância e frustração com o que faziam se aprofundavam e descrições como sentir-se infeliz e “não aguentava mais” foram muito presentes.

Quando eu comecei a tratar os pacientes no consultório, me desapontei com os resultados. Lia artigos, fazia igual, e os pacientes não melhoravam. Comecei a me desapontar também com a terapêutica. (E10, da pneumologia para radiologia)

O cansaço físico, o stress, a família, lá você lidava com pacientes de convênio, particular e o residente fazia tudo, às vezes era só a gente que colocava a mão no paciente, então disse: não quero isso para mim. Eu estava desgastada. (E14, da pediatria para medicina nuclear)

Poucos entrevistados disseram que a mudança ocorreu sem forte insatisfação com a primeira especialidade. Entre esses, alguns disseram que o interesse havia mudado, outros que já pensavam na primeira área como transição. Houve aqueles que incorporaram em sua trajetória a especialidade anterior, mesmo mudando de área.

Nunca foi um “eu estou na pediatria, mas eu odeio a pediatria”. Nunca foi um problema ser pediatria. (E12, da pediatria para psiquiatria)

Eu me sentia realizado profissionalmente, fui bem-sucedido, não tinha muito mais desafios. E a psiquiatria me pareceu, intelectualmente, algo interessante e estimulante. (E9, da medicina do trabalho para psiquiatria).

Motivos pessoais, como maternidade, adoecimento na família ou em si mesmo, também foram descritos por alguns entrevistados.

Foi realmente por questões pessoais e se essas fossem resolvidas, eu voltaria para a anestesia. (E5, da anestesiologia para nutrologia)

De repente, tudo o que eu mais queria era ser mãe. Aí entrei em parafuso, o que vou fazer agora? Porque não dá para ser mãe e cirurgiã de verdade, eu não conseguiria. (E7, da cirurgia para homeopatia)

Muitos entrevistados afirmaram que, mesmo gostando da especialidade, o cotidiano da prática implicava em um estilo de vida indesejado.

O que eu não gostei é do dia a dia do pediatra. Acho que a qualidade de vida do pediatra é muito sofrida. Tinha época que eu acordava de noite achando que a enfermeira estava me chamando. (E1, da pediatria para psiquiatria).

Eu adorava procedimento, gosto até hoje, sinto falta, mas gosto de ter os meus momentos não médicos de poder sair, ir para o shopping e tomar uma cerveja sem a preocupação de ter que voltar para o hospital. (E3, da cirurgia para medicina do trabalho).

Fui descobrindo que não gostava de trabalhar sozinha dentro de uma sala com o paciente, detestava aquilo, achava monótono, chato, sem graça, apesar de achar a especialidade legal. (E11, da reumatologia para UTI).

A remuneração, de uma maneira geral, não pareceu ser fator fundamental para a saída ou procura de nova área.

Na Anestesia, eu ganhava muito melhor, muito melhor. Mas dá para ganhar bem no consultório agora, dá para ter uma qualidade de vida boa, não sou uma alucinada em trabalhar, então, eu tenho uns horários supertranquilos. (E5, da anestesiologia para nutrologia).

Alguns entrevistados, durante a graduação, já apresentavam algum interesse pela segunda área de escolha; outros sequer a haviam considerado durante o curso. Remuneração, preconceito ou desconhecimento desta segunda área foram algumas razões apresentadas pela não opção em um primeiro momento.

Realmente, não tive aula disso na faculdade. Foi uma aproximação e a percepção de uma beleza nessa área além de uma utilidade muito grande. (E16, da ginecologia para fisiatria)

Na verdade, antes de fazer medicina eu queria ser psiquiatra. O que me dissuadiu foi que eu não tive uma boa experiência no internato”. (E1, da pediatria para psiquiatria)

A transição e o depois

Alguns dos entrevistados mencionaram dificuldades na fase de transição, como a necessidade de dar plantões. Mesmo assim, conseguiram sustentar-se financeiramente durante esse momento e não houve menções de desemprego ou dificuldades de inserção no novo campo de trabalho. Por outro lado, muitos declararam terem vivenciado forte desaprovação social, sendo esta, para alguns, o grande estresse na transição.

Na verdade, as pessoas até diziam que eu estava louco, porque eu tinha uma posição profissional muito boa como médico do trabalho. Significava abrir mão pra começar do zero. (E9, da medicina do trabalho para psiquiatria)

Eu já era muito bem estabelecida, então as pessoas acharam que eu estava com algum problema mental. Até a colega para quem eu deixei meus pacientes, achou que eu não estava bem. Eu comecei a fazer terapia nessa época, mas foi mais pelo incômodo das pessoas do que para mim. (E10, da pneumologia para radiologia)

Muitos dos entrevistados, se percebem melhores médicos hoje, após a reescolha, dizem sentir-se aliviados, emocionalmente e satisfeitos. Todos estão empregados e sem dificuldades financeiras na nova área de trabalho. Apenas uma médica menciona, ainda, inquietações, acenando para a possibilidade de ainda fazer novas mudanças.

Para mim foi um alívio. Falava “meu Deus, muito obrigado por isso estar acontecendo, por eu ter passado na residência para psiquiatria, ter me identificado mais com a equipe, com os temas, com as discussões”. Parecia que tinham tirado uns 10 kg de peso das costas. (E1, da pediatria para psiquiatria)

É fantástico, me sinto até mais completa como médica na homeopatia do que me sentia, antes, na cirurgia, porque eu comecei a esquecer de algumas coisas da clínica. (E7, da cirurgia para homeopatia)

Eu sou muito feliz, eu sempre falo para os meus residentes “eu sou muito feliz como anestesista, eu sou melhor anestesista porque fui pediatra”. (E2, da pediatria para a anestesiologia)

Alguns entrevistados, mesmo alegando felicidade após a mudança, mencionam reconhecer que, se quiserem, podem retornar à prática da primeira escolha.

Enfim, não sinto falta nenhuma, mas eu sei que eu posso ainda, se eu quiser, posso participar de uma cirurgia. Então, não sinto falta nenhuma, estou bem tranquila. (E7, da cirurgia para homeopatia)

Discussão

Este estudo buscou compreender o processo da reescolha da especialidade junto a médicos que optaram por mudanças em suas áreas originais de trabalho. Sabe-se pouco sobre essas alterações de rota dentro da carreira médica e, como ponto de partida, buscou-se identificar se haveria, no início das histórias profissionais dos sujeitos, algo especial ou diferente quanto à razão de ser médico.

De maneira geral, os relatos expressam motivações pela carreira médica ligadas aos fatores conscientes e clássicos. É interessante apontar que todos os sujeitos aludiram ao seu lugar dentro da família de origem, seja como aqueles que inovaram ou como aqueles que deram continuidade a uma tradição familiar médica. Na medicina, o capital geracional é tema frequente nos estudos sobre a vocação (Milan, 2005MILAN, L. Vocação Médica: Um estudo de Gênero. São Paulo: Casa do Psicólogo , 2005.). A partir de relatos de médicos considerados renomados, um estudo brasileiro aprofundou essa questão ao identificar a escolha profissional pela medicina como fruto de estratégias familiares inconscientes de ascensão e manutenção de prestígio social (Fiore; Yazigi, 2005FIORE, M. L. M.; YAZIGI, L. Especialidades médicas: um estudo psicossocial. Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v. 18, n.2, p. 200-206, 2005. DOI: 10.1590/S0102-79722005000200008
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). Ao final da graduação, no momento da escolha da primeira especialidade, os sujeitos apontaram a influência de uma série de fatores, destacando a importância das vivências da graduação, tanto do curso e suas disciplinas quanto dos professores, no tocante ao estímulo e reconhecimento de interesses e habilidades para certos tipos de prática.

Características pessoais e da personalidade, assim como o tipo de paciente e de prática foram referidos por quase todos os integrantes do estudo quando da escolha da primeira especialidade, mostrando pouca reflexão nesse momento sobre os fatores externos, sociais ou do contexto do trabalho. Por conseguinte, remuneração e mercado de trabalho pouco influenciaram nesse momento.

As questões ligadas à prática e ao mundo do trabalho apareceram, por outro lado, de forma significativa para justificar as motivações da reescolha da especialidade. Os entrevistados constataram as demandas reais da primeira escolha apenas quando a vivenciaram em seus cenários profissionais, na residência médica ou nos primeiros empregos. Ao entrarem no mundo do trabalho propriamente dito, os médicos pareciam ter escassa noção sobre empregabilidade, retorno financeiro e horas dispendidas na atividade.

Tal aspecto pode indicar que a formação médica em nosso meio, na fase da graduação, aborda precariamente temas como desenvolvimento profissional e de carreira, valorizando mais os aspectos de conteúdo das diferentes áreas. É possível que, durante a graduação, discorra-se mais sobre patologias e seus tratamentos em detrimento da abordagem do real significado do exercício da medicina em seus diferentes campos. O cotidiano das diferentes práticas, que nesse estudo mostrou-se como fundamental no processo de reescolha dos entrevistados, possivelmente não foi objeto de investimento ao longo de suas formações.

Outro aspecto a se considerar é que o grupo entrevistado acabou sendo composto majoritariamente por mulheres. Como em vários países, ocorreu um processo de feminilização da profissão nesse meio, demonstrado em estudos de demografia médica (Scheffer; Cassenote; Biancarelli, 2013SCHEFFER, M.; CASSENOTE, A.J.F.; BIANCARELLI, A. Demografia Médica no Brasil: cenários e indicadores de distribuição. São Paulo: CFM/CREMESP, 2013. Disponível em: <Disponível em: http://www.cremesp.org.br/pdfs/DemografiaMedicaBrasilVol2.pdf .> Acesso em: 10 mar. 2016.
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). Foi possível perceber, em alguns relatos, questões próprias de gênero, principalmente relativas à maternidade, à sobrecarga imposta por uma segunda jornada de trabalho e à dificuldade em se inserir em especialidades tidas como tradicionalmente masculinas. A variável gênero tem sido cada vez mais abordada na literatura da escolha da especialidade e esses resultados reforçam outros estudos que mostram o quanto a especialidade impacta na qualidade de vida das mulheres (Van Togeren-Alers et al., 2011VAN TONGEREN-ALERS, M. et al. Are New Medical Students’ Specialty Preferences Gendered? Related Motivational Factors at a Dutch Medical School. Teaching and Learning in Medicine, Springfield, v. 23, n.3, p. 263-268, 2011. DOI: 10.1080/10401334.2011.586928
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; Alers et al., 2014ALERS, M. et al. Gendered specialities during medical education: a literature review. Perspectives on Medical Education, Houten, v. 3, n. 3, p. 163-178, 2014. DOI: 10.1007/s40037-014-0132-1).

Verificou-se serem poucos aqueles que trocaram sua especialidade em função de mudança ou ampliação de interesse. A maior parte do grupo relata ter entrado em um processo de desgaste psíquico com a primeira área escolhida já com pouco tempo de prática. Com a decisão pela mudança de especialidade, os entrevistados encontraram assim uma possibilidade de ajuste ao mal-estar vivido na primeira escolha diante de aspectos como sobrecarga, organização do trabalho, hierarquia nas relações, estresse com o cotidiano da prática, mas também e, especialmente, com o estilo de vida dela decorrente.

Não há, no grupo estudado, saídas coletivas frente ao sofrimento com o trabalho. Os relatos são calcados no mal-estar subjetivo, no desprazer pessoal e na procura por saídas individuais. Para Dejours (1992DEJOURS, C. A Loucura do Trabalho. São Paulo: Cortez, 1992.), quando o trabalhador toma determinada atitude no contexto profissional, isto se deve ao sofrimento subjetivo e às estratégias defensivas a este sofrimento, o que parece ter ocorrido neste grupo que reescolheu a especialidade.

Estratégias adaptativas foram utilizadas quando consideradas as questões financeiras e de nova capacitação. Alguns contaram com o suporte financeiro familiar ou conjugal, a maioria conseguindo sua manutenção por meio de plantões e, assim, se especializaram novamente com relativa tranquilidade. Pelas narrativas, o maior desconforto experimentado pelos sujeitos, durante o processo de mudança, esteve relacionado à desaprovação social. Em geral, os médicos se sentiram pouco compreendidos e, por vezes, até atacados e percebidos como fracassados. Mesmo reempregados e caminhando profissionalmente, alguns médicos mencionam constrangimento quando precisam falar sobre a mudança com seus pares.

Alguns autores refletem sobre a mudança de especialidade como algo com sentido negativo. Mello Filho (2006)MELO FILHO, J. Identidade Médica. São Paulo: Casa do Psicólogo , 2006., por exemplo, entende que a escolha de especialidade é um aspecto importante de identidade médica e quando não ocorre de modo harmônico pode gerar insucesso, traumas em suas carreiras e até abandono da profissão. Vaz Arruda (1999)VAZ ARRUDA, P.C.; MILAN, L. A Vocação Médica. In: Millan, L.R.; De Marco, O.L.N.; Rossi, E.; Vaz Arruda, P.C. O Universo Psicológico do Futuro Médico: vocação, vicissitudes e perspectivas. São Paulo: Casa do Psicólogo , 1999. também defende que o sucesso do jovem na carreira e ajustamento no futuro dependem da escolha inicialmente benfeita. Se a escolha foi inadequada, o ajustamento será mais difícil e quase sempre conseguido somente através de mudanças de área ou da especialidade.

Neste estudo, os sujeitos, diferentemente dessa perspectiva tradicional, não significaram a reescolha como uma falência em suas trajetórias. Os relatos, na sua totalidade, mostraram que a mudança da especialidade foi sentida como positiva, especialmente quando consideram seu novo estilo e qualidade de vida. Isto reforça o peso desses fatores nas escolhas profissionais, tal como mostra a literatura atual sobre o tema. Zaher (1999ZAHER, V. L. A Vocação Médica ao Exercício Profissional: quando os médicos revelam o seu talento. 1999. Tese (Doutorado em Medicina Legal) - Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999.) indaga a 293 médicos quais mudanças gostariam de fazer em suas vidas. Desse grupo, poucos gostariam de mudar de especialidade. Entretanto, mais de um terço gostaria de cuidar mais de si, dedicar-se ao lazer e à vida social.

Parece que, no grupo estudado, mais do que uma nova construção vocacional, a busca é por uma prática mais prazerosa e que promova maior bem-estar. Em outras palavras, ocorreram mais mudanças de estilos de vida do que mudanças profundas na identidade profissional. Para além de um erro vocacional, a impressão é que os médicos procuravam uma prática mais confortável, sem sofrerem os incômodos sentidos no campo da primeira especialidade.

Cabe, então, compreender qual o sentido de o profissional médico privilegiar estilo de vida, tempo livre e qualidade de vida em detrimento de sua carreira. Diferentes autores vêm se debruçando sobre essa questão, procurando entendê-la de forma mais aprofundada.

Segundo Nogueira (2007), a noção de estilo de vida está em evidência na medicina atual. Para essa autora, o nascimento da ideia do estilo de vida, assim como a noção da qualidade de vida, remete ao individualismo, designando o modo distintivo de camadas ou grupos sociais se orientarem por valores e gostos próprios. A expressão vem sendo utilizada em larga escala nas práticas em medicina e, geralmente, encontra-se acoplada à ideologia da cultura de consumo contemporânea, revelando o foco na individualidade, na autoexpressão e na liberdade individual. Portanto, sendo portadores sociais dessa proposta, nada mais natural os médicos aplicarem isto a sua especialidade e suas práticas, ainda que o imaginário social do trabalho médico envolva abnegação, altruísmo e dedicação.

Costa (2005COSTA, J. F. O Vestígio e a Aura: corpo e consumismo na moral do espetáculo. São Paulo: Garamound, 2005.) aponta que, na contemporaneidade, elementos como engajamento público, investimento em causas coletivas, busca de ideais e interesse pelo outro são substituídos pelo consumismo, culto ao corpo e pelo narcisismo. O termo qualidade de vida, para esse autor, carrega consigo a importância de se adquirir hábitos que garantam a beleza, a saúde e a forma corporal ideal. Segundo ele, qualidade de vida teria relação com um foco excessivo na cientificidade do melhor corpo, do bem-estar e das práticas mais exitosas.

Segundo Berenguer (2010BERENGUER, A. El Narcisismo en la Medicina Contemporanea. Montevideo: Ediciones Trilce, 2010.), o médico de hoje adere facilmente à cultura da estética, do consumo e da primazia do ter. Os seres enfermos são excluídos desta categoria de valores e acabam sendo depreciados. O sacerdócio da profissão, dessa maneira, passa a ser percebido por muitos como ridículo, sem sentido, inútil ou absurdo. Ainda segundo esse autor, o médico na atualidade constantemente perde a sensação de gratificação pela sua tarefa. O processo de especialização médica fragmenta o paciente em órgãos e vísceras e acaba por emoldurar as práticas como tecnicistas e distanciadas, piorando ainda mais a sensação de falta de completude.

Por outro lado, os relatos sobre o pós-reescolha apontaram que, a despeito das dificuldades em lidar com algum tipo de crítica das pessoas do seu meio, os entrevistados, em sua totalidade, se mostraram bastante satisfeitos com a mudança, expressando inclusive, que passaram a se sentir melhores como médicos. Foi possível, em muitos casos, integrarem as áreas e ampliar suas práticas atuais com a base dos conhecimentos e experiências da especialidade anterior. Não foram mencionadas dificuldades na recolocação no campo do trabalho ou privações financeiras. A mudança valeu a pena, afirmou o grupo. Nessa perspectiva, a trajetória, embora implique em alguns sacrifícios e seja pouco compreendida, foi possível.

Birman (2010BIRMAN, J. Muitas Felicidades, o Imperativo de Ser Feliz na Contemporaneidade. In: FREIRE FILHO, J. (Org.) Reflexões sobre o Imperativo de ser feliz. Rio de Janeiro: FGV, 2010.) argumenta que a contemporaneidade vem marcada pelo mandato de ser feliz. A satisfação, o individualismo, a perfectibilidade, o narcisismo, a autoestima e a qualidade de vida são as palavras de ordem e caminhos para se cumprir e alcançar a tão almejada felicidade. Os médicos deste estudo, inseridos na contemporaneidade, parecem ter buscado maior satisfação pessoal e profissional. Não se trata aqui de condená-los por isso, mas de problematizar a questão dentro de um contexto maior, para além das singularidades de suas histórias.

Enquanto estratégia para lidar com a insatisfação, o desgaste ou o desinteresse, a mudança de especialidade parece ter sido positiva. Por outro lado, talvez seja importante refletir se não existe o risco de um vazio de significações para si mesmo e para as práticas médicas como um todo. Esses mesmos médicos não poderiam se frustrar novamente e desejar nova troca e isto vir a ser interminável? Uma das entrevistadas chegou a expressar que espera por uma nova mudança.

Um estudo futuro, de caráter longitudinal, acompanhando as repercussões da troca de especialidade ao longo do tempo, pode ser interessante nesse sentido. No campo da formação, ações pedagógicas ampliando o contato do estudante com o exercício da profissão, para além das características técnicas das especialidades, também podem contribuir para processos de escolha mais fundamentados e críticos.

Considerações finais

Buscar mais qualidade e melhora do estilo de vida, evitar o desgaste, obter tempo livre ou desenvolver outro interesse intelectual se sobressaem como razões na reescolha da especialidade médica. Não há indicativos de que o grupo, de um modo geral, esteja voltado para reparar uma questão vocacional.

A reescolha da especialidade se mostra mais como o desejo de exercer uma prática mais interessante, mais confortável ou menos estressante. Se, por um lado, é utilizada como estratégia para lidar com a frustração e desgaste do trabalho, por outro, cabe pensar os riscos de um possível vazio derivado de certo desapego às práticas.

Nesse sentido, o médico não parece estar desvinculado do contexto social maior. Tal como nas demais profissões, esse profissional também está inserido em uma época marcada pela fluidez e pelo descontentamento. As escolhas e reescolhas quase sempre refletirão os ganhos e os riscos que a possibilidade de transitar profissionalmente com maior facilidade traz consigo.

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  • 1
    Pesquisa relativa à Dissertação de Mestrado do autor no Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e aprovada pelo Comitê de Ética (CAAE: 46858015.0.0000.0065).
  • 2
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    03 Ago 2020
  • Aceito
    11 Maio 2021
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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