Discussões sobre os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres após o surgimento do zika vírus no Brasil

Fernanda Macedo da Silva Lima Jorge Alberto Bernstein Iriart Sobre os autores

Resumo

Este estudo buscou compreender como a epidemia do zika vírus e suas consequências sobre o desenvolvimento fetal influenciaram a percepção de gestantes de diferentes situações socioeconômicas sobre os direitos sexuais e reprodutivos em uma capital da região nordeste do Brasil. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, desenvolvida a partir de dezoito entrevistas semiestruturadas, sendo nove com gestantes do setor público de saúde e nove com gestantes do setor privado de saúde. Os resultados demonstraram que entre gestantes atendidas pelo setor público de saúde há uma alta ocorrência de gestações não intencionais, relacionadas principalmente a dificuldades no acesso aos serviços de saúde e informação. As gestantes de uma maneira geral passaram a desenvolver cuidados a fim de reduzir o risco de infecção pelo zika vírus, comportamento não compartilhado por seus parceiros, apesar da possibilidade de transmissão sexual do vírus. Por fim, a ampliação da discussão sobre os direitos reprodutivos, proposta pela Ação Direta de Inconstitucionalidade 5581, ainda divide opiniões entre as mulheres quanto a possibilidade de interrupção da gestação em casos de infecção pelo zika vírus, sendo que as argumentações favoráveis denunciam as injustiças sociais, enquanto as contrárias mobilizam questões de cunho moral e religioso.

Palavra-chave:
Zika vírus; Gravidez; Direitos Sexuais e Reprodutivos; Gênero e Saúde; Planejamento Familiar

Introdução

O zika vírus (ZIKV) é transmitido principalmente pela picada do mosquito Aedes aegypti. Além desta via tradicional de infecção, o ZIKV também pode ser transmitido por via sexual ou transplacentária e causar efeitos adversos no desenvolvimento fetal, como a microcefalia e outras alterações congênitas atualmente conhecidas como síndrome congênita do zika vírus (SCZ). Neste cenário, as estratégias de enfrentamento do ZIKV não devem se restringir apenas às medidas de controle do vetor, mas incluir ações que ampliem as discussões sobre os direitos sexuais e reprodutivos, o que reforça a necessidade de investigar as distintas percepções e possibilidades de acesso a esses direitos por mulheres em idade reprodutiva no Brasil (Diniz et al., 2019DINIZ, D. et al. Understanding the sexual and reproductive health needs in Brazil’s Zika-affected region: placing women at the center of the discussion. International Journal of Gynecology & Obstetrics, Hoboken, v. 147, n. 2, p. 268-270, 2019.; Forero-Martínez et al., 2020FORERO-MARTÍNEZ, L. J. et al. Zika and women’s sexual and reproductive health: Critical first steps to understand the role of gender in the Colombian epidemic. International Journal of Gynecology & Obstetrics, Hoboken, v. 148, n. S2, p. 15-19, 2020.).

De acordo com Corrêa e Petchesky (1996CORRÊA, S.; PETCHESKY, R. Direitos sexuais e reprodutivos: uma perspectiva feminista. PHYSIS: Revista Saúde Coletiva, Santana do Parnaíba, v. 6, n. 1-2, p. 147-177, 1996.), os direitos sexuais e reprodutivos podem ser compreendidos em termos de poder para que as mulheres tomem decisões bem-informadas sobre a atividade sexual, saúde ginecológica, gravidez e maternidade, assim como recursos para que estas decisões sejam executadas de maneira segura. Contudo, para que estes direitos sejam plenamente alcançados, além do empoderamento feminino acerca do controle sobre seu próprio corpo, é necessário considerar o meio social em que essas mulheres estão inseridas, visto que as decisões femininas também são influenciadas por seus parceiros sexuais, familiares, a comunidade em que vivem e a sociedade de uma maneira geral.

As consequências da epidemia do ZIKV acometeram de maneira desproporcional a vida das mulheres (Diniz, 2016DINIZ, D. Vírus Zika e mulheres. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 32, n. 5, p. 1-4, 2016.). Esse contexto levou autoridades de saúde do Brasil a recomendarem o adiamento da gravidez, entretanto, essas orientações desconsideraram as altas taxas de gestações não intencionais (Valente, 2017VALENTE, P. K. Zika and reproductive rights in Brazil: challenge to the right to health. AJPH Perspectives, Washington, DC, v. 107, n. 9, p. 1376-1380, 2017.). De acordo com dados da pesquisa “Nascer no Brasil: Inquérito nacional sobre parto e nascimento”, mais da metade das gestações que ocorrem no país não são planejadas (Viellas et al., 2014VIELLAS, E. F. et al. Assistência pré-natal no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 30, n. 1, p. S85-S100, 2014.). Estes altos índices estão associados a insuficiências nos serviços de saúde reprodutiva, além da má qualidade da educação sexual, elevadas taxas de violência sexual e barreiras culturais que atingem muitas mulheres, principalmente as mais jovens, pobres, negras e com menores níveis de escolaridade, resultando em um inadequado controle dessas mulheres sobre sua vida sexual e reprodutiva (Baum et al., 2016BAUM, P. et al. Garantindo uma resposta do setor de saúde com foco nos direitos das mulheres afetadas pelo vírus Zika. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 32, n. 5, p. 1-4, 2016.; Nunes; Pimenta, 2016NUNES, J.; PIMENTA, D. N. A epidemia de zika e os limites da saúde global. Lua Nova, São Paulo, n. 98, p. 21-46, 2016.; Borges et al., 2018BORGES, A. L. V. et al. Women’s reproductive health knowledge, attitudes and practices in relation to the Zika virus outbreak in northeast Brazil. Plos one, San Francisco, v. 13, n. 3, p. 1- 12, 2018.).

Além disso, a epidemia do ZIKV também evidenciou as assimetrias de gênero presentes na sociedade brasileira, que naturalizam a ideia da mulher como a principal responsável pela contracepção e, uma vez grávida, pela prevenção de modo a evitar uma infecção pelo ZIKV e seus desfechos fetais. Essa concepção resulta na desresponsabilização masculina sobre a gestação e cuidados referentes à transmissão do vírus, observada nas poucas recomendações direcionadas aos homens sobre a prevenção, uma vez que pode ser transmitido sexualmente. Assim, este cenário levantou uma série de desafios que estão relacionados com a autonomia da mulher acerca das escolhas referentes ao seu próprio corpo, ao controle efetivo sobre sua vida sexual, a liberdade para gerenciar uma gravidez e o direito sobre a interrupção da gestação (Lesser; Kitron, 2016LESSER, J.; KITRON, U. A geografia social do zika no Brasil. Estudos avançados, São Paulo, v. 30, n. 88, p. 167-175, 2016.; Nunes; Pimenta, 2016NUNES, J.; PIMENTA, D. N. A epidemia de zika e os limites da saúde global. Lua Nova, São Paulo, n. 98, p. 21-46, 2016.; Porto; Moura, 2017PORTO, R.M.; MOURA, P.R.S. O corpo marcado: A construção do discurso midiático sobre zika vírus e microcefalia. Cadernos de gênero e diversidade, Salvador, v. 3, n. 2, p. 158-191, 2017.).

No Brasil, o aborto é proibido por lei, salvo raras exceções, como em casos de violência sexual, quando a gestação coloca em risco a vida da mãe, ou em casos de anencefalia (Brasil, 1940BRASIL. Decreto-Lei nº. 2.848 de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 31 dez.1940.; Camargo, 2016CAMARGO, T. M. C. R. O debate sobre aborto e Zika: lições da epidemia de aids. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 32, n. 5, p. 1-3, 2016.). Apesar disso, estima-se que aproximadamente uma em cada cinco mulheres brasileiras já tenham feito pelo menos um aborto, sendo que as maiores taxas se encontram entre as que possuem menores níveis de escolaridade e de renda, e que se autodeclaram pretas, pardas e indígenas. A maioria desses procedimentos são realizados de maneira ilegal e insegura, o que caracteriza o aborto como um grave problema de saúde pública no país. As frágeis políticas brasileiras em torno desta temática, além de não reduzir a incidência, dificultam uma assistência efetiva para as mulheres em situação de abortamento, bem como o acesso a métodos e informações necessárias para que essa prática não seja recorrente e continue colocando em risco a vida das mulheres (Diniz; Medeiros; Madeiro, 2017DINIZ, D.; MEDEIROS, M.; MADEIRO, A. Pesquisa Nacional de Aborto 2016. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 2, p. 653-60, 2017.).

A epidemia do ZIKV e sua associação com a SCZ reacendeu as discussões sobre o direito ao aborto no país (Castilhos; Almeida, 2020CASTILHOS, W.; ALMEIDA, C. Discursos sobre o aborto na epidemia de Zika: análise da cobertura dos jornais O Globo e Folha de S.Paulo. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, supl. 1, 2020.). Em agosto de 2016 foi protocolada no Supremo Tribunal Federal (STF) a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5581) que solicitava, dentre outras coisas, a ampliação do acesso à interrupção da gestação em casos de infecção pelo ZIKV durante a gravidez (Brasil, 2016BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.581. 2016.). Essa solicitação está fundamentada no direito de escolha da mulher tendo em vista o sofrimento psicológico que uma infecção pelo ZIKV pode causar durante a gravidez, além de responsabilizar o Estado pelas falhas em ofertar serviços de saúde reprodutiva apropriados e de maneira contínua (Brasil, 2016BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.581. 2016.; Diniz et al., 2017DINIZ, D. et al. Zika virus infection in Brazil and human rights obligations. International Journal of Gynecology & Obstetrics, Hoboken, v. 136, n. 1, p. 105-110, 2017.; Valente, 2017VALENTE, P. K. Zika and reproductive rights in Brazil: challenge to the right to health. AJPH Perspectives, Washington, DC, v. 107, n. 9, p. 1376-1380, 2017.).

As discussões realizadas em torno da garantia dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres no contexto de epidemia do ZIKV podem enfrentar dificuldades diante do acentuado conservadorismo político existente no congresso nacional. No entanto, essa discussão não pode voltar a ser ignorada, visto que este é um momento importante para que o Estado possa assegurar que mulheres historicamente desprotegidas por políticas públicas pouco eficazes tenham seu direito à saúde garantido, bem como possam tomar decisões com liberdade e autonomia a fim de alcançar a justiça reprodutiva no país (Camargo, 2016CAMARGO, T. M. C. R. O debate sobre aborto e Zika: lições da epidemia de aids. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 32, n. 5, p. 1-3, 2016.; Pitanguy, 2016PITANGUY, J. Os direitos reprodutivos das mulheres e a epidemia do Zika vírus. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 32, n. 5, p. 1-3, 2016.; Valente, 2017VALENTE, P. K. Zika and reproductive rights in Brazil: challenge to the right to health. AJPH Perspectives, Washington, DC, v. 107, n. 9, p. 1376-1380, 2017.).

No contexto atual houve uma importante redução do número de pessoas infectadas pelo ZIKV e da SCZ no Brasil. Entretanto, a população brasileira continua exposta ao mosquito vetor e é possível que esta infecção apresente um comportamento sazonal endêmico semelhante a outras arboviroses (Netto et al., 2017NETTO, E. M. et al. High Zika vírus seroprevalence in Salvador, Northeastern Brazil limits the potential for further outbreaks. MBio, Baltimore, v. 8, n. 6, p. 1-14, 2017.), o que torna imprescindível o desenvolvimento de trabalhos que abordem as lacunas nos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, com o intuito de garantir progressos nessa discussão. Neste sentido, essa pesquisa destaca-se por seu caráter original e necessário ao buscar compreender como a epidemia do ZIKV e suas consequências sobre o desenvolvimento fetal influenciaram a percepção de gestantes de diferentes situações socioeconômicas sobre os direitos sexuais e reprodutivos em uma capital da região nordeste do Brasil.

Metodologia

Foi realizada uma pesquisa qualitativa desenvolvida a partir de entrevistas semiestruturadas com gestantes. A coleta de dados aconteceu entre os meses de agosto e outubro de 2018 em uma Unidade de Saúde da Família (USF) e em uma clínica privada para assistência obstétrica na cidade de Salvador, Bahia. Esta cidade foi escolhida por estar localizada em uma região que se caracterizou como um dos epicentros da epidemia do ZIKV no Brasil (Netto et al., 2017NETTO, E. M. et al. High Zika vírus seroprevalence in Salvador, Northeastern Brazil limits the potential for further outbreaks. MBio, Baltimore, v. 8, n. 6, p. 1-14, 2017.). Foram realizadas 18 entrevistas - nove com gestantes atendidas pelo setor público de saúde (Sistema Único de Saúde - SUS) e nove com gestantes atendidas pelo setor privado de saúde.

As gestantes foram estratificadas segundo o local de residência e tipo de inserção nos serviços de saúde, conforme descrição a seguir: residência em bairros populares e usuária do SUS; residência em bairros de classe média/alta e usuária dos serviços privados de saúde. Esta estratégia de seleção buscou garantir ampla heterogeneidade entre as integrantes desta investigação com a finalidade de proporcionar uma riqueza singular a partir da diversidade de experiências e pontos de vista sobre a realidade em que estão inseridas.

A clínica privada na qual este estudo foi desenvolvido estava localizada em um bairro nobre, não possuía nenhuma vinculação com o SUS e não aceitava planos e/ou seguros saúde, assim, a única forma de acesso era por meio de desembolso direto, o que selecionava pacientes de alta renda. Já a USF estava localizada em um bairro popular da cidade de Salvador, na Bahia. Desta maneira, ressaltamos que essas características contrastantes buscaram trazer múltiplos contextos de experiências/vivências no cenário pós-epidemia do ZIKV.

Todas as participantes deste estudo foram selecionadas dentro dos serviços de saúde. Na clínica privada, as gestantes foram convidadas para participar da pesquisa no momento em que aguardavam a consulta de pré-natal e as entrevistas foram agendadas para um momento posterior, sendo realizadas na própria clínica, no ambiente de trabalho ou na residência dessas mulheres. Na USF, as gestantes também foram recrutadas enquanto aguardavam a consulta de pré-natal ou durante as visitas domiciliares realizadas pela pesquisadora em companhia dos agentes comunitários de saúde (ACS), sendo que essas entrevistas foram desenvolvidas na própria USF ou na casa dessas mulheres.

O trabalho de campo foi realizado pela primeira autora do artigo, enfermeira e pesquisadora em saúde coletiva, o que facilitou a inserção nos serviços de saúde público e privado de assistência ao pré-natal e a discussão de temáticas singulares ao universo feminino. O segundo autor é antropólogo e colaborou na orientação da pesquisa, análise dos dados e revisão do texto.

O roteiro para as entrevistas semiestruturadas tratou das seguintes questões: planejamento da gravidez após a epidemia do ZIKV; mudanças de comportamento após o surgimento do ZIKV no país; percepção das mulheres em idade reprodutiva sobre o ZIKV; participação dos parceiros nos cuidados para reduzir o risco de infecção pelo ZIKV; percepção das gestantes sobre a ADI 5581 e relações de gênero. As entrevistas apresentaram tempo médio de quarenta minutos, foram gravadas em dispositivo de áudio e posteriormente transcritas.

Utilizou-se a técnica de análise de conteúdo temática para realizar a análise dos dados (Bardin, 2009BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições70, 2009.). Neste estudo, foi empregado o software de análise qualitativa QSR NVivo versão 8, que ajudou na codificação dos textos para posterior análise e interpretação do material. Os dados foram dispostos em uma matriz desenvolvida a partir dos temas de interesse do estudo, construída com base no roteiro de entrevista, que funcionou como guia para a análise.

O estudo cumpriu todas as recomendações da Resolução n.º 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (CEP/ISC/UFBA) sob o parecer n.º 2.770.514. Por fim, buscando resguardar a confidencialidade das participantes, as gestantes foram referidas a partir de nomes fictícios.

Resultados e discussão

Caracterização das participantes do estudo

As gestantes atendidas pelo setor privado de saúde foram nomeadas de Ester, Francisca, Maria, Jaqueline, Milena, Laura, Alcione, Andrea e Adelaide. Suas idades alternaram entre 25 e 36 anos. Dessas mulheres quatro se autodeclararam brancas, quatro pardas e uma não soube responder. Sobre a situação conjugal, oito gestantes eram casadas e uma solteira; para oito destas mulheres esta era a primeira gestação e apenas uma delas possuía um filho. Todas as mulheres atendidas pelo setor privado possuíam nível superior completo e vínculos empregatícios formais, com exceção de uma gestante que possuía ensino superior incompleto e estava afastada do trabalho no momento da entrevista. A religião dessas mulheres variou entre católica e espírita, enquanto três afirmaram não possuir religião.

Já as gestantes atendidas pelo setor público de saúde foram nomeadas de Aurora, Nadja, Tania, Teresa, Rita, Júlia, Antônia, Isadora e Angélica. Suas idades alternaram entre 19 e 41 anos. Dessas mulheres, seis se autodeclararam pretas, duas pardas e uma branca. Em relação à situação conjugal, seis gestantes declararam morar junto, duas casadas e uma solteira; para apenas três destas mulheres essa era a primeira gravidez. Entre as gestantes atendidas pelo setor público, somente duas possuíam nível superior completo e vínculos formais de trabalho, enquanto as demais eram autônomas ou estavam desempregadas, e o nível de escolaridade alternou entre ensino médio incompleto e completo. A religião dessas mulheres variou entre católica e evangélica, enquanto duas relataram apenas crer em Deus.

Planejamento da gravidez após o surgimento do ZIKV no Brasil

Estudos apontam que houve redução da taxa de natalidade no Brasil após a epidemia do ZIKV (Castro et al., 2018CASTRO, M. C. et al. Implications of Zika virus and congenital Zika syndrome for the number of live births in Brazil. PNAS, Washington, DC, v. 115, n. 24, p. 6177-6182, 2018.). Nosso trabalho sugere, entretanto, que o planejamento da gravidez no contexto pós epidemia pode diferir entre gestantes de diferentes estratos socioeconômicos. Grande parte das mulheres atendidas pelo setor privado deste estudo referiram que suas gestações foram planejadas e algumas relataram que adiaram a gravidez em decorrência da epidemia do ZIKV no país, como evidenciado pela fala de Ester:

Foi. Total [totalmente planejada]. [...] Quando a gente começou a pensar, foi, pouco tempo depois foi quando veio a epidemia, 2015, que era o período que a gente tava querendo, esse período era pra ter o segundo já. Então estamos atrasados em três anos por conta disso. Aí depois que passou a epidemia, a gente esperou, talvez, mais um ano depois que já não se falava muito, ainda demorou um pouquinho pra gente engravidar, mas foi totalmente planejada e a epidemia influenciou o tempo pra isso, sim, se não teria sido mais cedo. (Ester, 30 anos, vinculada ao setor privado)

Algumas gestantes atendidas pelo setor privado também referiram que não planejavam engravidar entre os anos de 2015 e 2016, período em que ocorreu o pico epidêmico no país. Entretanto, no contexto atual, elas evidenciaram desenvolver estratégias para a prevenção da infecção pelo ZIKV desde o processo de planejamento da gravidez, o que demonstra um alto controle dessas mulheres sobre o seu planejamento reprodutivo:

[...] Sim, como uma questão de discussão sim, com certeza. Já pensando no planejamento, né? No que que a gente podia fazer justamente pra prevenir, evitar qualquer tipo de susto no decorrer do processo. [...]Foi uma alegria imensa e eu acho que como a gente já vinha conversando a respeito disso, né? Como já havia um planejamento, foi só alegria de “Bom, a partir de agora a gente vai colocar os cuidados todos que a gente pensou em prática, né?”, porque eu já fui ao obstetra antes de engravidar, então foi tudo feito de uma forma bem cuidadosa mesmo. (Andréa, 36 anos, vinculada ao setor privado)

Em contrapartida, todas as mulheres atendidas pelo SUS referiram que suas gestações não foram planejadas e algumas também relataram que a gestação foi indesejada, sendo que três dessas mulheres cogitaram a possibilidade de interrupção da gravidez no momento do diagnóstico inicial. Apesar disso, nenhuma relatou ter efetivamente buscado o procedimento. Dentre as razões elencadas para o desejo de adiar a gestação, as mulheres relataram instabilidades financeiras, profissionais e familiares. O ZIKV só se tornou um problema após o diagnóstico da gravidez, o que gerou grande ansiedade para muitas dessas gestantes:

Não. Minha gestação não foi planejada. [...] Tanto que na minha visão, no caso, eu não tinha a intenção da gestação, eu não tinha intenção alguma e um dos motivos era esse, em relação a esse surto que nós estamos vivendo. [...] Aí, eu quase surto. Eu quase fico louca por conta que eu realmente não queria e já vem essa preocupação, “meu Deus, e se o mosquito me morder? E se meu bebê nascer com alguma coisa, com algum problema, Deus do céu”. [...] Aí eu falei, o que tem que fazer agora é procurar fazer um pré-natal e fazer as prevenções. (Teresa, 29 anos, vinculada ao SUS)

Teresa relatou falhas na utilização do método contraceptivo, o que resultou em uma gestação não planejada. Algumas gestantes também mencionaram dificuldades em acessar a USF que estava vinculada para retirar seu método contraceptivo ou dúvidas sobre a adequada utilização, o que evidencia as grandes lacunas na educação sexual e no acesso aos serviços de saúde que ainda persistem no país e resultam em altos índices de gestações não intencionais entre mulheres de menores estratos socioeconômicos. Esses achados estão em consonância com o trabalho desenvolvido por Marteleto et al. (2017MARTELETO, L. J. et al. Women’s Reproductive Intentions and Behaviors during the Zika Epidemic in Brazil. Population and Development Review, Hoboken, v. 43, n. 2, p. 199-227, 2017.) sobre as intenções reprodutivas de mulheres após a epidemia do ZIKV no país, ao demonstrar que mulheres de maior status socioeconômico podem ser mais bem-sucedidas em prevenir uma gravidez não planejada, enquanto entre mulheres com menores condições socioeconômicas é possível identificar altos índices de gestações não intencionais (Diniz et al., 2020DINIZ, D. et al. Understanding sexual and reproductive health needs of young women living in Zika affected regions: a qualitative study in northeastern Brazil. Reproductive Health, v. 17, n. 22, p. 1-8, 2020.; Marteleto et al., 2017MARTELETO, L. J. et al. Women’s Reproductive Intentions and Behaviors during the Zika Epidemic in Brazil. Population and Development Review, Hoboken, v. 43, n. 2, p. 199-227, 2017.;).

Condições socioeconômicas precárias associadas à ineficiência dos serviços de saúde em ofertar informações adequadas e dispositivos de proteção de longa duração estão diretamente relacionados com as altas taxas de gestações não planejadas no país. Sendo assim, para que a autonomia reprodutiva seja garantida a todas as mulheres, é necessário assegurar a oferta de infraestrutura e insumos adequados, bem como serviços acessíveis e bem equipados. Tais elementos são direitos sociais e são essenciais na concretização dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, sendo que o Estado é responsável por atuar no sentido de minorar as disparidades existentes entre os grupos, de modo a garantir igualdade em direitos para toda a população (Borges et al., 2018BORGES, A. L. V. et al. Women’s reproductive health knowledge, attitudes and practices in relation to the Zika virus outbreak in northeast Brazil. Plos one, San Francisco, v. 13, n. 3, p. 1- 12, 2018.; Corrêa; Petchesky, 1996CORRÊA, S.; PETCHESKY, R. Direitos sexuais e reprodutivos: uma perspectiva feminista. PHYSIS: Revista Saúde Coletiva, Santana do Parnaíba, v. 6, n. 1-2, p. 147-177, 1996.; Diniz et al., 2020DINIZ, D. et al. Understanding sexual and reproductive health needs of young women living in Zika affected regions: a qualitative study in northeastern Brazil. Reproductive Health, v. 17, n. 22, p. 1-8, 2020.).

A gravidez no contexto pós-epidemia demandou novos hábitos diários a fim de reduzir os riscos de infecção pelo ZIKV. Medidas de proteção corporal como utilização de repelentes e roupas mais longas, além de evitar visitas em locais que possuem maior circulação do vetor foram as ações mais descritas pelas mulheres. No entanto, as gestantes deste estudo também relataram constantes cobranças por parte de familiares e parceiros sobre as ações de prevenção, o que gerou grande sobrecarga emocional nelas. Estas demandas externas também foram observadas em outros estudos, demonstrando que elas se tornaram as principais responsáveis por evitar uma infecção pelo ZIKV durante a gestação (Meireles et al., 2017MEIRELES, J. F. F. et al. Zika vírus and pregnant women: A psychological approach. Psychology & Health, Abingdon, v. 32, n. 7, p. 798-809, 2017.; Porto; Moura, 2017PORTO, R.M.; MOURA, P.R.S. O corpo marcado: A construção do discurso midiático sobre zika vírus e microcefalia. Cadernos de gênero e diversidade, Salvador, v. 3, n. 2, p. 158-191, 2017.).

Apesar de importantes nas ações de prevenção - tendo em vista que o ZIKV pode ser transmitido por fluidos corporais - os parceiros de mulheres grávidas não foram efetivamente incluídos nas orientações realizadas por instituições oficiais sobre os cuidados necessários para reduzir o risco de infecção transplacentária pelo ZIKV (Porto; Moura 2017PORTO, R.M.; MOURA, P.R.S. O corpo marcado: A construção do discurso midiático sobre zika vírus e microcefalia. Cadernos de gênero e diversidade, Salvador, v. 3, n. 2, p. 158-191, 2017.; Lesser; Kitron, 2016LESSER, J.; KITRON, U. A geografia social do zika no Brasil. Estudos avançados, São Paulo, v. 30, n. 88, p. 167-175, 2016.; Marteleto et al., 2017MARTELETO, L. J. et al. Women’s Reproductive Intentions and Behaviors during the Zika Epidemic in Brazil. Population and Development Review, Hoboken, v. 43, n. 2, p. 199-227, 2017.). Diversas gestantes deste estudo relataram resistência por parte dos parceiros em desenvolver ações de prevenção para evitar a picada dos mosquitos. Ester, por exemplo, referiu que apesar de seu parceiro apresentar rash cutâneo durante a sua gravidez (sintoma característico da infecção pelo ZIKV), ele apresentou grande dificuldade em utilizar o repelente para reduzir os riscos de exposição a uma infecção, o que evidencia que a responsabilidade sobre a gestação e o adequado desenvolvimento fetal é direcionado principalmente a mulher:

Ele teve muito, muito mais dificuldade do que eu, então isso foi uma discussão bem mais relevante. Nunca teve o hábito nem de hidratante, então pra ele colocar o repelente era um...Ele botava em uma frequência muito inferior à minha. Depois que ele teve esse evento [rash cutâneo], aí ele se tocou, porque pesquisou, a gente chegou a pensar em fazer a sorologia do zika pra ele, foi uma semana aí um pouco mais tensa, aí ele passou a ter mais cuidado, mas eu confesso que não foi tão, não foi tão natural pra gente, que o tanto que eu usasse de repelente, ele também teria que usar, né? [...]Da mesma forma que ele cobrava, ele cobrava muito se eu tava usando, assim, sempre que eu botava eu falava “olha, você tem que botar também”, sim, rola a cobrança, claro. (Ester, 30 anos, vinculada ao setor privado)

Além da proteção corporal para evitar a picada dos mosquitos, o uso de preservativos é fundamental para reduzir os riscos de transmissão do vírus por via sexual para as parceiras grávidas. Entretanto, esse não é um comportamento habitual entre homens e as mulheres relataram dificuldades de negociação do uso de preservativos em decorrência de uma “cultura do machismo” que naturaliza comportamentos de risco:

Eu acho que é um comportamento que acontece em função de uma cultura machista mesmo, né? Que diz que a mulher é quem tem que se preocupar com todas essas coisas, então, assim, não é você que transmite? Ainda que haja essa informação de que a partir da relação sexual isso aconteça, mas eu acho que a responsabilidade, né? De você carregar o bebê, você é vista como sendo, né? A única responsável por tudo aquilo. Então eu acho que nossa cultura machista contribui muito, contribui muito pra isso, eu acho que essa é a razão, eu acho que a falta de informação também, mas eu acho que a cultura machista é o que mais contribui. (Andréa, 36 anos, vinculada ao setor privado)

Rapaz, o homem é um bicho difícil [...] Apesar das doenças hoje em dia eu acho que o homem ainda tem muito aquela coisa de não querer usar o preservativo, sabe? [...] Eu tiro pelo meu marido, meu marido não gosta de usar [...] Se fizesse um exame ou tivesse algum sintoma e os médicos dissesse “Não, vocês têm que usar”, porque se acontecer de um de vocês se contaminar com o ZIKV, quer dizer, ele né?! Se contaminar com o ZIKV pode passar para o bebê, passar pra mim, ele iria usar, mesmo que ele não quisesse usar, eu iria obrigar ele a usar. (Aurora, 30 anos, vinculada ao SUS)

As hierarquias socioculturais influenciam a tomada de decisão das mulheres em relação a sua saúde sexual e reprodutiva. Assimetrias de gênero - expressas pelas desigualdades de poder entre homens e mulheres em nossa sociedade - possuem grande impacto sobre a fecundidade, atividade sexual, gravidez e maternidade (Corrêa; Petchesky, 1996CORRÊA, S.; PETCHESKY, R. Direitos sexuais e reprodutivos: uma perspectiva feminista. PHYSIS: Revista Saúde Coletiva, Santana do Parnaíba, v. 6, n. 1-2, p. 147-177, 1996.). Nesse sentido, apesar da possibilidade de transmissão do ZIKV por via sexual, ainda há grande resistência ao uso de métodos contraceptivos de barreira pelos homens e transferência da responsabilidade de prevenção para as mulheres (Marteleto et al., 2017MARTELETO, L. J. et al. Women’s Reproductive Intentions and Behaviors during the Zika Epidemic in Brazil. Population and Development Review, Hoboken, v. 43, n. 2, p. 199-227, 2017.; Porto; Moura, 2017PORTO, R.M.; MOURA, P.R.S. O corpo marcado: A construção do discurso midiático sobre zika vírus e microcefalia. Cadernos de gênero e diversidade, Salvador, v. 3, n. 2, p. 158-191, 2017.).

Sendo assim, é imprescindível que campanhas de saúde incluam os homens enquanto sujeitos igualmente responsáveis pelo desenvolvimento saudável da gestação, a partir da conscientização sobre a importância da utilização de métodos contraceptivos de barreiras, tendo em vista que os homens podem infectar suas parceiras por via sexual e as orientações sobre prevenção no contexto de epidemia do ZIKV foram majoritariamente direcionadas às mulheres. Para isso, é fundamental que se utilize meios de comunicação que alcancem os homens a fim de contribuir para sua conscientização e efetiva mudança de comportamento (Brasil, 2017BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Orientações integradas de vigilância e atenção à saúde no âmbito da emergência de saúde pública de importância nacional. Brasília, DF, 2017.; Marteleto et al., 2017MARTELETO, L. J. et al. Women’s Reproductive Intentions and Behaviors during the Zika Epidemic in Brazil. Population and Development Review, Hoboken, v. 43, n. 2, p. 199-227, 2017.).

Percepção das gestantes sobre os direitos reprodutivos no contexto de epidemia do ZIKV

As gestantes deste estudo não possuíam nenhum conhecimento a respeito da ADI 5581 protocolada no STF em agosto de 2016. Após uma breve exposição dos direitos solicitados por esta petição, as gestantes foram convidadas a emitir seu posicionamento sobre a possibilidade de interrupção da gravidez em decorrência da infecção pelo ZIKV. Apesar do desconhecimento anterior sobre a ADI 5581, discussões sobre o aborto fazem parte da vida reprodutiva das mulheres, o que permitiu que as gestantes deste estudo emitissem suas opiniões sobre a temática embasadas em pressupostos e convicções prévias.

Essas mulheres apresentaram posicionamentos diversos frente à possibilidade de interrupção da gravidez em casos de infecção pelo ZIKV e esta posição variou independentemente da situação socioeconômica, nível de escolaridade e tipo de vinculação aos serviços de saúde. Para embasar seu posicionamento as gestantes mobilizaram uma série de argumentos. A maioria delas apresentou parecer favorável sobre a discussão proposta pela ADI 5581. Elas defendiam principalmente o direito de escolha da mulher sobre seu próprio corpo. De acordo com Maria, gestante vinculada ao setor privado, as mulheres devem ter direito de escolha sobre a gravidez, tendo em vista que os homens normalmente abandonam suas companheiras quando não desejam assumir a responsabilidade de pais, e todos os encargos da gestação e cuidados com as crianças recaem sobre a mulher:

Eu penso que a mulher deveria escolher ter o direito ao aborto independente de ter infecção por zika vírus ou por qualquer outra doença ou não. É, se eu tivesse...No início da gestação, antes da gente excluir todas as possibilidades de doenças, eu pesquisei muito porque eu queria saber quais seriam meus desafios, porque pra mim fazer um aborto estava fora de cogitação, independente da condição que viesse esse neném, eu não queria fazer um aborto, mesmo se ele tivesse alguma limitação [...] Mas eu acho que se uma outra pessoa não quiser passar por isso, não puder passar por isso ou achar que não deve passar por isso, ela tem direito de escolher interromper a gestação, independente do ZIKV, eu acho que toda mulher deve escolher se ela prossegue com a gestação ou não, porque é isso que os homens fazem, não é? [...] Se eles acham que não estão prontos ou não querem, eles apenas abandonam e aí a gente tem um monte de crianças sem pai, que só tem a mãe. E a mãe não tem essa possibilidade de sumir e tá tudo certo ou ficar pagando pensão e tá tudo certo, sabe? É muito...não acho justo. (Maria, 29 anos, vinculada ao setor privado)

Este posicionamento é ratificado na fala de Júlia, gestante vinculada ao setor público, ao argumentar que caso fosse infectada pelo ZIKV durante a gestação e a ação proposta pela ADI 5581 estivesse disponível, ela optaria por uma interrupção da gravidez pois teme o abandono do companheiro e a grande sobrecarga financeira e emocional que demandam os cuidados de uma criança com graves alterações congênitas:

Aí eu te digo, aí a gente se separaria. Porque tipo, eu acho que ele, ele não ia querer que eu fizesse isso [...], mas eu, pensando em mim e também na minha filha que já tenho, talvez até se eu não tivesse uma outra filha, mas eu tiraria e eu acho que a gente se separaria e pronto, porque assim, seria injusto eu deixar...será se ele ia ficar comigo? Será se ele ia me ajudar? Será se...entendeu? (Júlia, 30 anos, vinculada ao SUS)

O Brasil possui altos índices de crianças sem registro paterno, são mais de cinco milhões, segundo o Conselho Nacional de Justiça (Bassette, 2019BASSETTE, F. Brasil tem 5,5 milhões de crianças sem pai no registro. Exame, São Paulo, 31 jan. 2019.). Condição que pode ter se agravado durante a epidemia do ZIKV, tendo em vista que muitas mulheres foram abandonadas por seus parceiros após o diagnóstico da SCZ. A compreensão desse cenário deve incluir a questão de gênero, tendo em vista que o homem detém o direito de escolha quando abandona a criança e esta decisão não é criminalizada, a despeito de possuir graves repercussões familiares. Esse contexto possui grande impacto sobre a vida e saúde das gestantes e é intensificado pelo ineficiente papel do Estado em assegurar direitos sociais e acesso aos serviços de saúde de qualidade (Diniz, 2016DINIZ, D. Vírus Zika e mulheres. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 32, n. 5, p. 1-4, 2016.; Menezes et al., 2019MENEZES, N. M. et al. The discussion on sexual and reproductive rights in the context of zika virus, which way we to tread? Revista Enfermagem Atual In Derme, Rio de Janeiro, n. 87, p. 1- 9, 2019. ; Porto; Moura, 2017PORTO, R.M.; MOURA, P.R.S. O corpo marcado: A construção do discurso midiático sobre zika vírus e microcefalia. Cadernos de gênero e diversidade, Salvador, v. 3, n. 2, p. 158-191, 2017.; Rego; Palácios, 2016REGO, S.; PALÁCIOS, M. Ética, saúde global e a infecção pelo vírus Zika: uma visão a partir do Brasil. Revista bioética, Brasília, DF, v. 24, n. 3, p. 430-34, 2016.).

Nesse sentido, outro argumento utilizado pelas gestantes para defender o direito de escolha da mulher sobre a interrupção da gravidez em casos de uma infecção pelo ZIKV são as graves falhas do Estado em garantir assistência adequada às famílias afetadas pela SCZ. De acordo com Andréa, gestante vinculada ao setor privado, o Estado não oferece condições sociais e de saúde adequadas para as famílias de crianças com a SCZ, o que produz novas e graves vulnerabilidades em vidas fragilizadas pelas desigualdades sociais e iniquidades em saúde:

[...]Eu particularmente acho que a mulher precisa ter o direito sim. É, essa é a minha opinião, eu acho que é importante que ela tenha o direito, porque por mais que haja contribuição, por mais que haja, que o Estado de alguma maneira, e a gente ainda tem isso, né? Porque, ah, o Estado tem obrigação de arcar e de dar todo o suporte...não dá suporte, né? Assim, eu vejo o quanto de recurso são precários pra quem não tem condição de contratar uma fisioterapeuta, pra quem não tem condições de pagar um plano de saúde, né? Então assim, não se conta com isso, né? Então eu acho que se a mulher faz esse balanço e ela entende que ela não vai ter o suporte que ela precisa pra que o filho dela tenha o mínimo de desenvolvimento possível diante da realidade do contexto dele, eu acho que ela tem que ter o direito de interromper sim e que isso tem que ser respeitado e eu nem acho que caberia discussão sobre isso, sabe? (Andréa, 36 anos, vinculada ao setor privado)

A epidemia do ZIKV evidenciou a negligência que se sobrepõe sobre a vida das mulheres. Quando não são abandonadas por seus parceiros é o Estado que não garante direitos básicos a essas mulheres. Grande parte das mães de crianças com a SCZ residem em locais de difícil acesso aos serviços de saúde e necessitam realizar longas peregrinações para que seus filhos tenham acesso aos serviços médicos de estimulação precoce. Muitas abandonam o trabalho pois estas crianças demandam assistência em tempo integral, o que impacta diretamente na renda dessas famílias. Apesar de possuírem o direito ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), a obtenção deste auxílio pode ser extremamente burocrática, o que dificulta o acesso para as famílias que mais necessitam. Sendo assim, este cenário faz com que essas mães vivenciem o desafio de enfrentar sozinhas a experiência de criar um filho com graves limitações e com necessidades insuficientemente contempladas pelo Estado brasileiro (Diniz, 2016DINIZ, D. Vírus Zika e mulheres. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 32, n. 5, p. 1-4, 2016.; Porto; Moura, 2017PORTO, R.M.; MOURA, P.R.S. O corpo marcado: A construção do discurso midiático sobre zika vírus e microcefalia. Cadernos de gênero e diversidade, Salvador, v. 3, n. 2, p. 158-191, 2017.).

No lado oposto da discussão, uma pequena parcela das gestantes se posicionou de maneira contrária à proposta da ADI 5581 no que tange à interrupção da gravidez em casos de infecção pelo ZIKV, argumentando seu ponto de vista em questões de cunho ético, moral, religioso e no discurso de defesa da vida. Adelaide, gestante vinculada ao setor privado, argumenta sobre suas convicções religiosas e alega a viabilidade do feto em gestações de mulheres que foram infectadas pelo ZIKV durante a gravidez para justificar sua posição discordante a proposição:

Olha, eu sou terminantemente contra o aborto, entendeu? Eu acho que o aborto seria num caso extremo de estupro, uma coisa assim, né? Eu sou espírita e eu acredito muito nas missões, né? Que a gente precisa passar aqui na terra. Se de fato uma criança vier até mim, eu rezo, foi o que te falei agora há pouco, eu rezo pra que venha com saúde física, mental e espiritual. Mas se tiver que passar por isso, é porque foi o carma na minha vida, entendeu? Passar por isso e com certeza vai ser muito amada e vai ser muito, enfim, bem cuidada, entendeu? Então, eu acho que se de fato eu tiver um vírus na gravidez e...porque também tem casos de mulheres que têm o vírus e a criança nasce saudável, né? Então assim, eu acho que interromper uma gravidez sem a certeza de que essa criança tá saudável ou não é um crime na minha opinião. (Adelaide, 30 anos, vinculada ao setor privado)

A associação entre ZIKV e gravidez requer uma reavaliação da legislação brasileira referente aos direitos reprodutivos, para que, caso ocorra uma infecção durante a gestação, as mulheres tenham autonomia em prosseguir ou não com a gravidez. Tal conduta está relacionada com o bem-estar físico e psíquico dessas mulheres, bem como as condições socioculturais em que estão inseridas essas famílias, fatores que podem motivar essa decisão. No entanto, caso desejem prosseguir com a gravidez, cabe ao Estado prestar total assistência à mãe e à criança no que se refere ao acesso integral à saúde e assistência social (Pitanguy, 2016PITANGUY, J. Os direitos reprodutivos das mulheres e a epidemia do Zika vírus. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 32, n. 5, p. 1-3, 2016.; Stern, 2016STERN, A. M. Zika and reproductive justice. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 32, n. 5, p. 1-3, 2016.).

Em maio de 2020, o plenário do STF extinguiu a ADI 5581, o que mais uma vez limita a discussão sobre a ampliação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres no país. Em seu voto o ministro Luís Roberto Barroso afirma que essa deliberação

adia a discussão de um tema que as principais supremas cortes e tribunais constitucionais do mundo em algum momento já enfrentam: o tratamento constitucional e legal a ser dado à interrupção de gestação, aos direitos fundamentais da mulher e à proteção jurídica do feto. (Brasil, 2020BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.581. Voto - ministro Luís Roberto Barroso. 2020.)

Considerações finais

O presente estudo identificou necessidades de saúde sexual e reprodutiva não atendidas. Mulheres de maiores estratos socioeconômicos demonstraram possuir alto controle sobre seu planejamento reprodutivo comparadas às mulheres de menores estratos socioeconômicos. Estas, apesar de desejarem adiar a gravidez em decorrência das inseguranças relacionadas ao ZIKV, enfrentaram dificuldades de acesso às informações e recursos necessários para a garantia da autonomia reprodutiva.

Além disso, as orientações em saúde concentraram nas mulheres a responsabilidade pela prevenção da infecção pelo ZIKV durante a gestação, eximindo os homens desse cuidado. Neste sentido, torna-se imprescindível o fortalecimento de estratégias que incluam os parceiros na rotina reprodutiva das mulheres, de modo a estimular a corresponsabilização pelo adequado desenvolvimento fetal, tendo em vista que o ZIKV pode ser transmitido por via sexual.

Por fim, a extinção da ADI 5581 - em razão de questões técnicas processuais - limitou o debate em torno da questão da interrupção da gestação. Diante do atual cenário de conservadorismo político é fundamental que esta discussão não seja arrefecida e que mais pesquisas sejam desenvolvidas, a fim de propor estratégias que garantam o acesso de todas as mulheres aos serviços de saúde sexual e reprodutiva com o intuito de alcançar um cuidado equânime e integral, além de investigar a percepção dos homens sobre ações de prevenção da infecção pelo ZIKV e suas consequências.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    01 Abr 2021
  • Aceito
    11 Maio 2021
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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