Resumo
Definir um conceito de necessidades em saúde é fundamental para estabelecer limites às intervenções médico-sanitárias, sejam individuais ou coletivas. Como muitas expressões de uso técnico corrente, há uma variação considerável dos sentidos atribuídos à expressão “necessidades de saúde”. A hipótese que guiou este trabalho é de que a literatura especializada apresenta uma falta de rigor na definição e utilização do termo, o que constitui em si um problema ético e político, visto que pode reverberar em questões como alocação de recursos, na definição de estratégias e ações de um projeto terapêutico. Foi realizada uma análise temática em artigos publicados nas bases BVS e Pubmed em português, espanhol e inglês, com os respectivos descritores: determinação de necessidades de cuidados de saúde, evaluacíon de necessidades e needs assessment. Constatou-se que “necessidades de saúde” é um objeto pouco explorado numa perspectiva que envolva sua reflexão. Há uma ausência de definição conceitual nos trabalhos em que aparece, denotando uma falta de uniformidade no entendimento teórico acerca dessa expressão. A falta de um conceito strictu sensu e a complexidade dos fatores envolvendo o descritor resulta em um uso difuso, com problematização incipiente e, por vezes, conveniente ao contexto empregado.
Palavras-chave:
Necessidades de Atenção à Saúde; Filosofia; Ciência e Saúde
Introdução
A definição de um conceito de necessidades em saúde é fundamental para o estabelecimento de limites às intervenções médico-sanitárias, quer individuais, quer coletivas. Tomando como ponto de partida a definição de Conrad (2007CONRAD, P. The medicalization of society. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2007., p.4) sobre medicalização - “um processo pelo qual problemas não médicos se tornam definidos e tratados como problemas médicos, usualmente em termos de doenças e desordens”-, é possível identificar o problema de definir quando este processo extrapola os limites do que é eticamente justificável, ou seja, quando a intervenção se torna de fato necessária.
Como muitas outras expressões de uso técnico corrente, há uma variação considerável dos sentidos atribuídos à expressão “necessidades de saúde”. Neste artigo, buscamos explorar diferentes definições e sentidos a partir da análise temática de artigos publicados em periódicos científicos de diferentes bases, considerando que a produção acadêmica sobre o tema reflete a communis opinio doctorum da comunidade científica relevante para a área de saúde.
Adicionalmente, temos como hipótese a ideia de que a literatura especializada apresenta uma excessiva fluidez e falta de rigor na definição e utilização do termo, o que, dada a centralidade dessa noção do ponto de vista ético e político, constitui em si um problema. A precisão conceitual é um pré-requisito tanto para a filosofia quanto para a ciência em geral. O não atendimento desse pré-requisito dificulta, ou até mesmo impede a abordagem crítica, obscurecendo possíveis consequências indesejadas de uma determinada perspectiva conceitual (Bourdieu, 1989BOURDIEU, P. Introdução a uma sociologia reflexiva. In: O Poder Simbólico. Lisboa: DIFEL, 1989.; Foucault, 2012FOUCAULT, M. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.).
O desafio da definição de necessidades de saúde
O ponto de partida deste trabalho é a definição do termo apresentada pelo vocabulário estruturado utilizado pelo Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (BIREME), o Descritor em Ciências da Saúde (DeCS). No DeCS o termo “necessidades de saúde” é caracterizado como a identificação sistemática das necessidades de uma população ou a avaliação dos indivíduos para determinar o nível mais adequado das necessidades de serviço.
Hino et al. (Hino et al., 2009HINO, P. et al. Necessidades em saúde e atenção básica: validação de instrumentos de captação. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 43, n. SPE2, p. 1156-1167, 2009. DOI: 10.1590/S0080-62342009000600003
https://doi.org/10.1590/S0080-6234200900... ) iniciam sua discussão a partir da definição de Heller sobre o que seria a concepção marxista de necessidade:
[...] desejo consciente, aspiração, intenção dirigida a todo o momento para certo objeto e que motiva a ação como tal. O objeto em questão é um produto social, independentemente do fato de que se trate de mercadorias, de um modo de vida ou de outro homem. (Heller; Ivars, 1978HELLER, A.; IVARS, J.-F. Teoría de las necesidades en Marx. Barcelona: Península Barcelona, 1978., p. 170)
Esses autores definem dois tipos de necessidades: as consideradas naturais, por se tratar da conservação da vida e por estarem atreladas às demandas de sobrevivência; e aquelas que são necessárias, que são determinadas por questões sociais, como o ato de estar ou ser livre e ser independente para suas tomadas de decisão. Isso determina que nem todas as necessidades refletem carência de algo, visto que elas representariam a construção social das relações humanas. Tendo como base o que é necessidade, os autores formulam uma definição de necessidades em saúde como social e historicamente determinadas e situadas entre natureza e cultura, ou seja, não dizem respeito somente à conservação da vida, mas à realização de um projeto em que o indivíduo, ponte entre o particular e o genérico, progressivamente se humaniza. As necessidades em saúde não são apenas médicas nem problemas de saúde (como doenças, sofrimentos ou riscos), mas dizem respeito também a carências ou vulnerabilidades que expressam modos de vida e identidades, expressos no que é necessário para se ter saúde e no que envolve condições necessárias para o gozo da vida. (Hino et al., 2009HINO, P. et al. Necessidades em saúde e atenção básica: validação de instrumentos de captação. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 43, n. SPE2, p. 1156-1167, 2009. DOI: 10.1590/S0080-62342009000600003
https://doi.org/10.1590/S0080-6234200900... , p. 1157)
Campos e Mishima (2005CAMPOS, C. M. S.; MISHIMA, S. M. Necessidades de saúde pela voz da sociedade civil e do Estado. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 21, n. 4, p. 1260-1268, jul.-ago. 2005. DOI: 10.1590/S0102-311X2005000400029
https://doi.org/10.1590/S0102-311X200500... ) apresentam o conceito na perspectiva da saúde coletiva utilizando uma abordagem que chamam de dimensão concreto-operacional, propondo a seguinte definição:
[...] necessidades de reprodução social que, por não serem naturais nem gerais, são necessidades de classes, ou seja, são diferentes nos diferentes grupos sociais, definidos pela sua inserção na divisão social do trabalho que determina os diferentes modos de viver. (Campos; Mishima, 2005CAMPOS, C. M. S.; MISHIMA, S. M. Necessidades de saúde pela voz da sociedade civil e do Estado. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 21, n. 4, p. 1260-1268, jul.-ago. 2005. DOI: 10.1590/S0102-311X2005000400029
https://doi.org/10.1590/S0102-311X200500... , p. 1261)
Para Cecílio (2001CECÍLIO, L. DE O. As necessidades de saúde como conceito estruturante na luta pela integralidade e equidade na atenção em saúde. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. de. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: IMS ABRASCO, 2001. p.113-126.), “necessidades de saúde” é uma taxonomia organizada em quatro grupos, a saber: (1) ter boas condições de vida; (2) ter acesso e poder consumir tecnologias que viabilizem uma melhora na condição de vida; (3) a criação de vínculos entre usuário e a equipe de profissionais em saúde; (4) e as necessidades de cada pessoa para que essa possa ter maior autonomia e controle da sua vida.
O entendimento de “necessidades em saúde”, portanto, passa por uma compreensão de saúde ampliada, a qual não se limita apenas a aspectos biológicos da vida, mas que também está intimamente ligada a fatores que envolvem o contexto político, econômico e social do indivíduo, podendo apresentar uma gama de ordens e que precisam ser exploradas.
Método
Foi realizado o levantamento de artigos em base de dados utilizando como ferramenta os Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), definindo como palavra-chave as seguintes expressões, conforme os respectivos idiomas: em inglês foi usado needs assessment; em espanhol, evaliación de necessidades; e em português, determinação de necessidades de cuidados de saúde.
Para o descritor em português, foram estabelecidos os seguintes termos considerados como sinônimos: determinação das necessidades de saúde, avaliação das necessidades de cuidados de saúde, determinação de necessidades de educação.
E quanto à definição de necessidades de saúde estabelecida pelo DeCS, foi encontrada a seguinte descrição: identificação sistemática das necessidades de uma população ou a avaliação dos indivíduos para determinar o nível mais adequado das necessidades de serviço.
A estratégia de busca para pesquisar artigos referentes ao descritor de necessidades de saúde foi aplicada em duas bases de dados eletrônicas: BVS e PubMed (base de dados bibliográficos da Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos da América). Foi realizada uma busca geral e, em seguida, os artigos encontrados foram analisados em duas etapas. Para tanto, foi necessário delinear buscas e filtros específicos para cada uma das bases em questão, garantindo limitações quanto à acessibilidade gratuita e quantitativo de artigos a serem analisados nas etapas da pesquisa posteriormente estabelecidas. O uso dos filtros permitiu identificar uma aproximação do conteúdo de busca acerca da expressão necessidades de saúde.
Após a definição dos filtros de busca e seleção dos artigos, foram realizadas mais três etapas de triagem com as seguintes propostas de análise:
A primeira teve como base a leitura dos resumos dos trabalhos inicialmente selecionados, identificando aqueles cujos processos de produção estavam relacionados com o conceito de necessidades de saúde;
Na segunda etapa, os artigos foram lidos na íntegra, sendo escolhidos apenas aqueles cuja concepção de necessidades de saúde em si, além de citada, era também discutida no campo teórico e/ ou na prática das ações de saúde.
Por último, esses artigos foram categorizados em análises de sentidos, resultando na configuração apresentada de acordo com a Tabela 1.
A pesquisa se desenvolveu em tempos distintos ao longo do período de junho de 2015 a junho de 2017, apresentando características específicas em cada uma das bases, sendo descritas logo abaixo.
BVS
A pesquisa bibliográfica na BVS foi iniciada em junho de 2015, sendo finalizada em novembro desse mesmo ano. Os seguintes filtros foram priorizados na busca: título, resumo, assunto, textos completos disponíveis nos idiomas português, inglês e espanhol. Eles foram selecionados considerando a elevada quantidade de produção de artigos identificados numa primeira busca geral e que não correspondiam ao interesse dessa pesquisa.
Conforme o diagrama da Figura 1, foram encontrados 184 artigos em português que datavam publicação do período de 1997 a 2013. Desses, apenas 60 foram selecionados para análise, sendo 20 artigos efetivamente fidedignos ao interesse da pesquisa.
Em relação ao idioma inglês, foram utilizadas booleanas de aproximação nas expressões “Needs assessment” e “and review”, garantindo uma busca de textos completos relacionados à revisão do descritor. Foram encontrados 216 artigos, publicados no período de 2000 a 2015, dos quais 25 foram para posterior análise. Desses, 11 foram considerados relevantes.
Já em língua espanhola, também foi feito uso de booleanas de aproximação em “evaliación de necessidades”, sendo encontrados 184 artigos, dos quais 20 foram escolhidos para análise, sendo somente 9 artigos selecionados para compor a etapa da análise de sentidos. Em espanhol, o período de publicações encontrado foi de 1995 a 2014.
PubMed
A busca na plataforma PubMed aconteceu entre os meses de março e junho de 2017, sendo utilizada apenas a booleana de aproximação “Needs assessment”, visto o elevado número de artigos selecionados em uma primeira busca geral e que não foram considerados pertinentes a essa pesquisa. O uso da booleana permitiu uma busca mais consistente sobre a expressão de interesse. Ademais, a fim de favorecer a seleção de artigos, as buscas foram centralizadas nos seguintes filtros: relatos de caso, revisão e revisão sistemática, sendo selecionados apenas aqueles com textos completos e de livre acesso.
O período de publicação encontrado foi de 2007 a 2017, nas línguas inglês, português e espanhol. O resultado, de acordo com o diagrama da Figura 1, foi de 59 artigos em inglês, dos quais 22 foram selecionados para análise. Desses, 16 compuseram a análise de sentidos.
Diagrama do processo de seleção dos artigos nos bancos de dados da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) e PUBMED.
Critério de inclusão/exclusão dos artigos
Somente os artigos que apresentaram o significado do descritor de imediato no decorrer do resumo tiveram sua inclusão confirmada. Independente da palavra-chave do artigo ser o descritor desta pesquisa, casos em que o resumo não apresentou sua definição, ele não foi considerado pertinente. Ademais, os artigos deveriam estar disponíveis para leitura na íntegra. Por esta razão, foram excluídos os artigos que não abordaram o sentido do descritor, de acordo com o DeCS, no seu conteúdo do resumo.
Extração dos dados
Com base no critério de inclusão, os artigos selecionados tiveram dados extraídos. Nesse estudo, as variáveis consideradas foram título, revista, autor, páginas, volume, ano de publicação, International Standard Serial Number (ISSN), local em que a pesquisa de campo foi realizada (caso seja uma informação presente), objetivo, metodologia e resultados ou discussão.
Os dados foram resumidos e apresentados na forma de planilhas, separadas para cada banco de dados e idioma a fim de facilitar a compreensão das informações listadas.
Análise dos sentidos
De acordo com as planilhas de dados construídas com artigos selecionados na busca inicial, um novo processo de crivo foi realizado com a leitura de cada artigo, a fim de identificar o sentido conceitual do termo “necessidades de saúde”.
Nessa etapa foram selecionados somente aqueles considerados pertinentes ao processo de construção da análise de sentidos, favorecendo a reflexão acerca da concepção de necessidades de saúde. Com base nisso, foi desenhado um resumo de cada artigo selecionado, apresentando uma interpretação do sentido aplicado à expressão “necessidades de saúde”. Desses trabalhos, 30 eram da BVS, sendo 10 em português, 9 em espanhol e 11 em inglês; enquanto 16 eram da PubMed, sendo todos em inglês.
Resultados
A análise dos sentidos refere-se à forma com a qual o termo “necessidades de saúde” é utilizado e como se torna referência. A fim de proporcionar o melhor entendimento sobre os seus significados, construiu-se categorias entre os artigos à medida em que as necessidades estão refletidas em diferentes áreas do campo de saúde.
Para tanto, uma nova categorização foi feita, caracterizando o significado em destaque ou definindo de qual lugar o artigo retratava a vivência do trabalho descrito. Foi possível identificar as seguintes classificações: Atenção Primária, Atenção Secundária, Instrumento de avaliação, Oncologia, Saúde bucal, Saúde Mental e Campo Social, tal como descritas a seguir:
Atenção Primária: a ideia proposta pelos artigos que exploraram esse universo aparece associado a ações que envolvem prevenção e promoção de saúde, a atuação dos profissionais nos territórios em que a estratégia de saúde da família está presente e as questões sociais que afetam o serviço em saúde no que diz respeito a demanda tanto quantitativa como qualitativa;
Atenção secundária: necessidades de saúde surgem associadas a ações de saúde que estão no âmbito dos serviços de média e alta complexidade. Nessa categoria, o contexto da análise está associado principalmente às necessidades que ainda precisam ser assistidas diante dos pacientes com quadros que demandam serviços mais especializados a fim de que possam ganhar maior qualidade no seu atendimento à saúde;
Instrumento de Avaliação: o descritor foi associado à aplicação de uma ferramenta avaliativa acerca das necessidades de saúde de usuários em diferentes contextos. De acordo com os artigos dessa categoria, para garantir a avaliação são utilizados principalmente programas de computação ou coletas de dados manuais;
Oncologia: alguns estudos se dedicaram especificamente à análise das necessidades dos pacientes acometidos por algum tipo de câncer e que estivessem em tratamento oncológico;
Saúde Bucal: nesse contexto, o descritor foi associado às doenças bucais, principalmente a cárie dentária e as necessidades associadas à colocação de próteses. Os trabalhos dessa categoria utilizam instrumentos de avaliação específicos da odontologia para definição das necessidades de tratamento, indicando quais procedimentos demandam ser aplicados;
Saúde Mental: necessidades de saúde apresentam-se aqui associadas às ações nos processos que envolvem pacientes psiquiátricos e que demandam o alinhamento das redes de atenção à saúde, envolvendo tanto os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) como a Estratégia de Saúde da Família na Atenção Básica;
Campo Social: essa categoria está ligada aos fatores externos à saúde e que influenciam diretamente o desenvolvimento de doenças e a busca pelo serviço de saúde. O descritor emerge associado às práticas de vida do usuário, para além do corpo doente, envolvendo a área profissional, pessoal, emocional, religiosa e familiar.
Na Tabela 1, é possível observar a categorização da análise de sentidos encontrada tanto na base de dados da BVS como da PubMed.
Categorização da análise de sentidos dos artigos encontrados na revisão bibliográfica, nas bases de dados Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) e PUBMED, a partir do descritor “necessidades de saúde”
Os artigos selecionados correlacionam o descritor em questão como uma das ferramentas de avaliação que permite identificar os diversos campos da vida dos usuários que requerem atenção e que demandam ações de saúde.
As questões relacionadas às necessidades de saúde perpassam os universos do âmbito social, existencial, sintomático - seja físico ou psicológico - e terapêutico. O entrelace dos cuidados à saúde envolve diversos tipos de doença: a diabetes, hipertensão, a saúde mental, o câncer, a saúde bucal; e diversos usuários: pessoas vivendo com HIV/aids, portadores de necessidades especiais, idosos, recém-nascidos.
Além disso, vários aspectos estruturais circundam as situações de acessibilidade, equidade e qualidade dos serviços que também dialogam com as necessidades dos indivíduos. Os limites entre uma necessidade e outra se confundem e se transformam num todo que, à medida que ocorrem as avaliações, são hierarquizadas conforme a determinação de sua magnitude e impacto.
Ademais, as necessidades de saúde estão presentes tanto na vida dos usuários como na dos seus cuidadores - sendo familiares ou não - que ao longo da relação com a enfermidade do outro também precisam de determinada atenção e suporte específico, não somente no que tange o manuseio da doença em si do usuário, mas nos cuidados de seu próprio estado de saúde.
As avaliações apresentadas são conduzidas por diferentes instrumentos - questionários, análise de prontuários, programas de computação - que permitem apontar tanto as necessidades de melhorias dos serviços de saúde como, inclusive, as de gerenciamento do processo de autogestão do cuidado, caso essas sejam observadas como exigências.
Das conclusões apresentadas dentre os trabalhos analisados, a avaliação e identificação das necessidades conduzem a formulação de novos protocolos e diretrizes para o tratamento de uma determinada doença e manejo com o indivíduo, fornecendo suporte para um alinhamento cada vez mais racional na condução do processo terapêutico.
Ressaltamos que na quase totalidade dos artigos examinados não há maior preocupação com uma definição formal do construto “necessidades de saúde”, uma vez que parecem ser reduzidas a aspectos instrumentais. Embora as contribuições desses estudos para o cuidado em saúde de um modo geral não sejam contraditórias entre si e possam ser relevantes, são sempre apropriações parciais de uma realidade complexa que podem, em virtude de seu caráter reducionista e acrítico, facilmente resultarem em reforço a processos medicalizantes, por exemplo.
Discussão
Cabe destacar que a reflexão em torno do que se entende por necessidades de saúde passa por uma compreensão mais ampla dos processos de cuidado de cada indivíduo dentro do contexto de uma determinada enfermidade. Nesse sentido, é preciso considerar, portanto, características intrínsecas ao modo de vida do indivíduo, estando relacionado ou não com a sua doença. Faz-se necessário, portanto, compreender a definição de saúde, de doença, entender as demandas do campo e diferenciar as necessidades individuais daquelas que são intrínsecas ao contexto coletivo. Trata-se de processos concomitantes. Canguilhem (1966CANGUILHEM, G. Le normal et le pathologique, augmenté de Nouvelles réflexions concernant le normal et le pathologique. Paris: Presses Universitaires de France, 1966.), por exemplo, critica a ideia de que doença seria a ausência de saúde; e saúde, portanto, seria a ausência de doença. Essa tautologia pouco avança na compreensão do fenômeno, além de não considerar os diversos fatores que incidem sobre o desenvolvimento de um quadro de adoecimento pelo indivíduo. Dentre esses fatores, é possível listar alguns: acesso às tecnologias de saúde, aos medicamentos, aos serviços de saúde, compreensão do processo de adoecimento do próprio corpo. E é relevante considerar as questões que envolvem as condições socioeconômicas. Ao criticar essa visão, o autor propõe como alternativa o conceito de normatividade, que seria a capacidade do indivíduo em recriar normas baseadas nas suas condições de saúde.
Berlinguer, em A doença (1988), destaca que “A saúde e a doença são, porém, distribuídas desigualmente entre os indivíduos, as classes e os povos.” (Berlinguer, 1988BERLINGUER, G. A doença. São Paulo: CEBES/HUCITEC, 1988., p. 11), visto que dependendo do lugar, cargo ou posição social que o indivíduo ocupa certas manifestações no corpo podem ser consideradas como doença ou não. Em alguns casos, é possível observar a negação da doença, ignorando sinais e sintomas que o corpo expressa.
Camargo Jr. (2018CAMARGO JR, K. R. de. On health needs: the concept labyrinth. Cadernos de Saúde Pública, [s.l.], v. 34, n. 6, p. e00113717, 2018. DOI: 10.1590/0102-311X00113717
https://doi.org/10.1590/0102-311X0011371... ), ao analisar o que abrange a expressão “necessidades de saúde”, salienta que no âmbito da biomedicina a definição de doença consistiria em algo que fosse compatível com um léxico validado no campo da biologia, ou seja, explicada através do uso de expressões como “moléculas, células, mecanismos, causas e efeitos”. O autor recorda que, ao longo da história e evolução da medicina, um vocabulário estruturado de doenças - organizada pela Classificação Internacional de Doenças (CID) -, vem sendo progressivamente articulado e revisto, indicando que a produção de conhecimentos sobre “doenças” estaria em constante transformação refletida na criação e aperfeiçoamento desta taxonomia.
Berlinguer (1988BERLINGUER, G. A doença. São Paulo: CEBES/HUCITEC, 1988.) ainda sugere que se olhe para a doença sob cinco óticas: doença como sofrimento, como diversidade, como perigo, como sinal e como estímulo. Além disto, ele propõe linhas de ação que contribuam para compreensão do conceito “doença”. O sofrimento ? Reduzi-lo com tratamentos apropriados. A diversidade? Evitar que seja considerada como desvio e que produza marginalização. O perigo? Distinguir o verdadeiro do falso risco, combater a doença e não o doente. O sinal? Aumentá-lo e interpretá-lo. O estímulo? Dirigi-lo para o conhecimento, para a solidariedade, para a prevenção, para a transformação.
Nesse contexto é imperativo destacar que as necessidades que o corpo humano emite não são somente aquelas debruçadas ao corpo físico em si, mas, acima de tudo, estão presentes no itinerário terapêutico traçado pelo indivíduo. Por muitas vezes, o caminho trilhado por ele dirá mais sobre seu corpo do que sua própria aparência ou resultados de exames solicitados. Suas escolhas como trabalhador, ser social, emocional, espiritual e financeiro delineiam traços capazes de conduzir ao desenho de suas demandas.
Com base nisso, as necessidades de saúde se ampliam e ganham forças para uma análise que ultrapasse os aspectos biomédicos. A escuta do usuário permite moldar as reais demandas do seu processo de cuidado e permite atender as principais necessidades por intermédio de uma reconfiguração do serviço e sua forma de se relacionar com o mesmo.
Pinheiro et al. (2005PINHEIRO, R. et al. Demanda em saúde e direito à saúde: liberdade ou necessidade? Algumas considerações sobre os nexos constituintes das práticas de integralidade. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. de Construção social da demanda: direito à saúde, trabalho em equipe, participação e espaços públicos. Rio de Janeiro: CEPESC/UERJ: ABRASCO, 2005. p. 11-31. ) propõem uma diferenciação entre “demanda” e “necessidade”, sugerindo que a demanda seria constituída a partir da vocalização de necessidades através de um coletivo nos espaços que envolvem decisões no campo da saúde, garantindo a participação social. Os autores ainda concordam com Cecílio (2001CECÍLIO, L. DE O. As necessidades de saúde como conceito estruturante na luta pela integralidade e equidade na atenção em saúde. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. de. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: IMS ABRASCO, 2001. p.113-126.) no que diz respeito a importância da formulação do conceito de “necessidades em saúde” que possa ser apropriada e implementada pelos trabalhadores no campo, entendendo que isso contribuiria para a prática de uma atenção à saúde mais humanizada e qualificada.
Camargo Jr. (2007CAMARGO JR, K. R. de. As armadilhas da “concepção positiva de saúde”. PHYSIS: Revista de saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, p. 63-76, abr. 2007. DOI: 10.1590/S0103-73312007000100005
https://doi.org/10.1590/S0103-7331200700... ) questiona pontos importantes que podem auxiliar no direcionamento das ações e serviços. Este autor alerta para o risco de assumirmos uma “definição positiva” (aspas do original) de saúde como norteadora, tendo em vista que isso pode levar a uma generalização da ideia de saúde que avança para uma medicalização extrema da população e incide sobre o delineamento das políticas públicas, uma vez que ao considerar “tudo” como saúde, entendendo que inúmeros fatores influenciam na busca por uma vida saudável, incorre-se ao risco de desvios de recursos que seriam aplicados na saúde e são redirecionados para atender a demandas que seriam de responsabilidade de outro setor, ou ainda de investir em tratamentos populares, que embora tenham importância cultural são comprovadamente inócuos, do ponto de vista técnico-científico.
Isso incide diretamente na definição das necessidades e no modo como elas são manejadas. Camargo Jr. (2018CAMARGO JR, K. R. de. On health needs: the concept labyrinth. Cadernos de Saúde Pública, [s.l.], v. 34, n. 6, p. e00113717, 2018. DOI: 10.1590/0102-311X00113717
https://doi.org/10.1590/0102-311X0011371... ) reitera a necessidade de reconhecer que há um arcabouço de profissionais no campo da saúde com diferentes expertises para contribuir nessa distinção, e que só através da colaboração e compartilhamento dessas noções é que o debate pode avançar para caminhos que visam um melhor atendimento das demandas da população.
Conclusão
O descritor “necessidades de saúde”, embora muito utilizado no âmbito da pesquisa em diversas áreas do campo da saúde, é, por essência, um objeto pouco explorado numa perspectiva que envolva sua reflexão em si. A expressão é referenciada como palavra-chave em trabalhos acadêmicos, contudo a revisão bibliográfica aponta que a sua definição não apresenta uma uniformidade ao ser discutida. Outro ponto fundamental observado foi a ausência de uma apresentação conceitual clara que permita delinear a relação entre o objeto de estudo e o descritor em questão aplicado.
Diante do exposto, é possível perceber as diferentes faces que as necessidades de saúde se apresentam nas práticas do campo da saúde. Da atenção primária ao campo social, a presente revisão bibliográfica expõe a amplitude na qual o descritor está incluso, refletindo um debate que merece atingir um pensamento conceitual que abarque com sua relevância tanto teórica como na forma de agir em todos os contextos supracitados.
As reflexões suscitadas a partir da revisão bibliográfica levada a cabo neste trabalho sugerem que, dada a ausência de um conceito strictu senso e a complexidade dos fatores que envolvem o descritor “necessidades de saúde”, o termo tem um uso difuso, com uma problematização incipiente e, por vezes, conveniente ao contexto empregado.
Agradecimentos
Os autores agradecem à FAPERJ, CNPq e à UERJ pelo financiamento do projeto do qual resultou este artigo.
Referências
- BERLINGUER, G. A doença. São Paulo: CEBES/HUCITEC, 1988.
- CAMPOS, C. M. S.; MISHIMA, S. M. Necessidades de saúde pela voz da sociedade civil e do Estado. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 21, n. 4, p. 1260-1268, jul.-ago. 2005. DOI: 10.1590/S0102-311X2005000400029
» https://doi.org/10.1590/S0102-311X2005000400029 - CANGUILHEM, G. Le normal et le pathologique, augmenté de Nouvelles réflexions concernant le normal et le pathologique. Paris: Presses Universitaires de France, 1966.
- CECÍLIO, L. DE O. As necessidades de saúde como conceito estruturante na luta pela integralidade e equidade na atenção em saúde. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. de. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: IMS ABRASCO, 2001. p.113-126.
- CONRAD, P. The medicalization of society. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2007.
- FOUCAULT, M. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.
- HELLER, A.; IVARS, J.-F. Teoría de las necesidades en Marx. Barcelona: Península Barcelona, 1978.
- HINO, P. et al. Necessidades em saúde e atenção básica: validação de instrumentos de captação. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 43, n. SPE2, p. 1156-1167, 2009. DOI: 10.1590/S0080-62342009000600003
» https://doi.org/10.1590/S0080-62342009000600003 - CAMARGO JR, K. R. de. As armadilhas da “concepção positiva de saúde”. PHYSIS: Revista de saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, p. 63-76, abr. 2007. DOI: 10.1590/S0103-73312007000100005
» https://doi.org/10.1590/S0103-73312007000100005 - CAMARGO JR, K. R. de. On health needs: the concept labyrinth. Cadernos de Saúde Pública, [s.l.], v. 34, n. 6, p. e00113717, 2018. DOI: 10.1590/0102-311X00113717
» https://doi.org/10.1590/0102-311X00113717 - BOURDIEU, P. Introdução a uma sociologia reflexiva. In: O Poder Simbólico. Lisboa: DIFEL, 1989.
- PINHEIRO, R. et al. Demanda em saúde e direito à saúde: liberdade ou necessidade? Algumas considerações sobre os nexos constituintes das práticas de integralidade. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. de Construção social da demanda: direito à saúde, trabalho em equipe, participação e espaços públicos. Rio de Janeiro: CEPESC/UERJ: ABRASCO, 2005. p. 11-31.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
17 Dez 2021 - Data do Fascículo
2022
Histórico
- Recebido
16 Jun 2021 - Revisado
16 Jun 2021 - Aceito
03 Ago 2021