Resumo
Este estudo explora o cotidiano das famílias com filhos de 0 a 6 anos, residentes em Fortaleza, no Ceará, durante o período de distanciamento físico, estipulado pelo Governo do Estado do Ceará. Esta pesquisa qualitativa se utilizou do referencial da teoria de formação de vínculos na adversidade. Foram entrevistadas 30 mães, entre os meses de julho e agosto de 2020, utilizando videochamadas ou telefonemas. Para análise do material empírico, recorreu-se à análise de conteúdo de Bardin, possibilitando a criação de duas categorias temáticas: (1) o exercício do cuidado parental em tempos de covid-19; (2) o cotidiano das crianças diante da pandemia. A interpretação das narrativas revelou que alguns cuidadores buscaram realizar brincadeiras e atividades manuais com os filhos, e explicavam o que estava acontecendo no cenário mundial, exercendo a parentalidade positiva. Ademais, o distanciamento físico favoreceu o aumento da tolerância dos pais no tempo em que os filhos ficaram expostos às telas. Percebeu-se que os pais influenciaram a prática de hábitos alimentares não saudáveis entre as crianças e a manifestação de mudanças no comportamento dos filhos. Como conclusão, destaca-se a necessidade de um acompanhamento contínuo dos aspectos referentes ao desenvolvimento dessas crianças e do retorno delas às atividades presenciais.
Palavras-chave:
Covid-19; Criança; Desenvolvimento Infantil; Pesquisa qualitativa; Parentalidade
Abstract
This study sought to explore the daily life of families with children aged 0 - 6 years old, living in Fortaleza, Ceará - Brazil, during the period of social distancing stipulated by the State Government. This qualitative research was conducted with data collected by means of video or phone interviews with thirty mothers, between July and August 2020. The empirical material was analyzed in the light of Bardin’s content analysis, generating two thematic categories: (1) the exercise of parental care in Covid-19 times; and (2) the daily life of children in the face of the pandemic. The narratives revealed that some caregivers tried to play games and practice arts and crafts with their children, besides explaining what was happening in the world scenario - thus exercising positive parenting. Moreover, the social distancing measures promoted parental tolerance during the time children were exposed to screens, and parents showed to influence the practice of unhealthy eating habits and the manifestation of behavior changes in their children. These findings highlight the need for a continuous monitoring of aspects related to these children’s development, as well as for their return to face-to-face activities.
Keywords:
Covid-19; Child; Child Development; Qualitative research; Parenting
Introdução
O surto da doença do novo coronavírus (covid-19), causada pelo vírus SARS-CoV-2, iniciada em Wuhan, província de Hubei, na China, em dezembro de 2019, fez com que a Organização Mundial de Saúde (OMS) emitisse uma declaração de emergência de saúde pública de interesse internacional em 30 de janeiro de 2020. Desde então, diversos países têm operacionalizado planos de emergência e desenvolvido ações com medidas de controle da doença (distanciamento físico, suspensão de atividades escolares, restrição de viagens e fechamento de serviços não essenciais) (Saccone et al., 2020SACCONE, G. et al. Psychological impact of coronavirus disease 2019 in pregnant women. American Journal Of Obstetrics And Gynecology, [S.l.], v. 223, n. 2, p. 293-295, 2020. DOI: 10.1016/j.ajog.2020.05.003
https://doi.org/10.1016/j.ajog.2020.05.0... ; Qiao, 2020QIAO, J. What are the risks of COVID-19 infection in pregnant women? The Lancet, [S.l.], v. 395, n. 10226, p. 760-762, 2020. DOI: 10.1016/S0140-6736(20)30365-2
https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)30... ). A partir das características dessas medidas de controle e da escassez de estudos qualitativos sobre desenvolvimento infantil e seu entrelaçamento com a covid-19, torna-se relevante propor reflexões sobre essa temática.
O desenvolvimento infantil é facilitado, desde o início, por fatores sociais preexistentes (história, família e cultura). Todos os ambientes em que a criança vive contribuem para a qualidade nos seus relacionamentos e têm grande significado para o seu desenvolvimento. Portanto, devido aos aspectos maturacionais os indivíduos são predispostos a se desenvolver, embora a qualidade desse desenvolvimento esteja também diretamente ligada a outras circunstâncias (Barros; Coutinho, 2020BARROS, R. A.; COUTINHO, D. M. B. Psicologia do Desenvolvimento: uma subárea da Psicologia ou uma nova ciência? Memorandum: Memória E História Em Psicologia, [S.l.], v. 37, 2020. DOI: 10.35699/1676-1669.2020.12540
https://doi.org/10.35699/1676-1669.2020.... ).
Shonkoff (2012SHONKOFF, J. P. Leveraging the biology of adversity to address the roots of disparities in health and development. Proceedings Of The National Academy Of Sciences, [S.l.], v. 109, n. 2, p. 17302-17307, 2012. DOI: 10.1073/pnas.1121259109
https://doi.org/10.1073/pnas.1121259109... ) tem descrito várias situações que traduzem formas de vulnerabilidade ao desenvolvimento infantil, desde o contexto individual (prematuridade, baixo peso, doenças) até o social (pobreza, desnutrição, fome, violência, dificuldade de acesso à saúde e à educação) e/ou familiar (famílias desajustadas, problemas conjugais entre os pais). O autor compreende que as crianças que vivenciam essas vulnerabilidades e estão sob muitas condições adversas na infância são mais propensas a desenvolver transtorno de estresse tóxico. Nesses acontecimentos, o corpo da criança entra em um estado antecipado ou real de ameaça ao seu equilíbrio e busca restabelecer a estabilidade por meio de um complexo conjunto de respostas fisiológicas e comportamentais (Shonkoff, 2020SHONKOFF, J. P. (Org.). Stress, resilience, and role of science: responding to the coronavírus pandemic. Center on Developing Child, Cambridge, 20 mar. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://developingchild.harvard.edu/stress-resilience-and-the-role-of-science-responding-to-the-coronavirus-pandemic/ >. Acesso em: 14 set. 2021.
https://developingchild.harvard.edu/stre... ).
Durante a convivência da criança com mecanismos que promovam o estresse tóxico, há a liberação do cortisol em elevados níveis, o que leva a alterações na conectividade sináptica cerebral, limitando as capacidades do sistema neuroendócrino (os hormônios), límbico (as emoções) e a região frontal (disciplina, atenção, foco e planejamento), afetando a plasticidade cerebral e levando a comportamentos não saudáveis ou de risco. Assim, quanto mais intenso, prolongado e frequente o estresse tóxico e quanto maior a ausência de uma rede de suporte para suprimir a resposta, pior o prognóstico a médio e longo prazo (Branco; Linhares, 2018BRANCO, M. S. S.; LINHARES, M. B. M. O estresse tóxico e seu impacto no desenvolvimento da abordagem teorical ecobiodesenvolvimentar do Shonkoff. Estudos de Psicologia (Campinas), [S.l.], v. 35, n. 1, p. 89-98, 2018. DOI: 10.1590/1982-02752018000100009
https://doi.org/10.1590/1982-02752018000... ).
Portanto, sendo o município de Fortaleza, Ceará, um dos locais com o segundo maior número de casos confirmados de covid-19 no Brasil (SESA, 2020SECRETARIA ESTADUAL DE SAÚDE DO CEARÁ (SESA). Decreto 33.510 - Decreta Situação de Emergência em Saúde e dispõe sobre as Medidas Para Enfrentamento E Contenção Da Infecção Humana Pelo Novo Coronavírus. Diário Oficial do Estado: 16 mar. 2020. Fortaleza: Governo do Estado do Ceará, 2020.), e diante da carga elevada de experiências e sentimentos negativos que a covid-19 trouxe à população, torna-se importante perceber como se comportaram as famílias no decurso do distanciamento físico estipulado por Decreto Estadual, iniciado em 19 de março de 2020. Diante do exposto, objetivou-se explorar o cotidiano das famílias com filhos de 0 a 6 anos, residentes em Fortaleza, no Ceará, durante este período.
Método
Para alcançar o objetivo proposto utilizou-se uma abordagem de natureza qualitativa. Este estudo é derivado de uma pesquisa maior denominada “Gravidez durante COVID-19, em Fortaleza, Ceará: percepção materna sobre a saúde mental, expectativas, medo e os cuidados prestados ao filho” (MACHADO et al., 2021MACHADO, M. M. T. et al. COVID-19 and mental health of pregnant women in Ceará, Brazil. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 55, p. 37-48, jun. 2021. DOI: 10.11606/s1518-8787.2021055003225
https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2021... ) realizada durante o período de distanciamento físico, tendo sido entrevistadas, no período de maio a julho de 2020, de forma on-line, 1.070 mulheres que estavam grávidas. Deste banco de dados, construído pelo Grupo de Pesquisa em Saúde Materno-Infantil da Universidade Federal do Ceará (UFC), foi selecionada uma subamostra dessas mulheres para essa segunda fase exploratória. Das 1.070 mulheres, 303 relataram possuir filhos na faixa etária de 0 a 6 anos.
Para recrutar essa subamostra estabeleceu-se como critério de inclusão: ter mais de 18 anos, estar grávida, possuir filhos na faixa etária de 0 a 6 anos e dispor de aparelhos com acesso à internet que realizem videochamada (Ipad, tablet, celular) ou telefone fixo. Foram excluídas as mães que se recusaram a participar do estudo.
Utilizou-se a entrevista semiestruturada que, mediante questões norteadoras, enfocou sobre o cotidiano das famílias de crianças no período da Primeira Infância (0-6 anos) que fossem residentes em Fortaleza durante o período de distanciamento físico e quarentena, decretado pelo Governo do Estado do Ceará. As entrevistas foram realizadas entre julho e agosto de 2020, coletadas por dois pesquisadores pós-graduandos em Saúde Coletiva e Saúde Materno-Infantil treinados, por telefone ou videochamada (em decorrência do decreto governamental, que impedia qualquer encontro presencial, visando o controle e redução da propagação dos casos de covid-19).
Foram entrevistadas 30 mulheres, finalizando quando se observou uma forte recorrência das falas. Com isso, foi possível apreender um rico material discursivo, uma contextualização mais aprofundada do objeto estudado. As entrevistas aconteceram de acordo com a conveniência de data e horário disponível para as entrevistadas. Após a transcrição literal e leitura aprofundada, foram analisadas as narrativas que seguiram as etapas da análise do conteúdo de Bardin (2011BARDIN, L. (Org.). Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.): pré-análise, exploração do material, tratamento dos resultados obtidos e interpretação.
O estudo seguiu as normas éticas preconizadas pela resolução nº 466/2012. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Ceará, sob o CAAE 30958320.5.0000.5054/2020.
Resultado e discussão
As participantes da pesquisa relataram ter de um a três filhos nascidos, sendo que a maior parte delas (vinte) tinha apenas uma criança, seis já tinham dois filhos e quatro estavam com três crianças. A média de idade entre as mães foi de 32 anos.
Sobre o estado civil delas, a maioria (vinte e sete) era casada ou convivia em união estável, duas eram solteiras e uma era viúva. A maioria das mulheres (dezessete) apresentava alto nível de escolaridade (pós-graduação), outras seis concluíram formação em nível superior; enquanto o restante (sete), possuía apenas o ensino médio concluído.
A análise do material empírico coletado possibilitou a criação de duas categorias temáticas, a saber: “o exercício do cuidado parental em tempos de covid-19” e “o cotidiano vivenciado pelas crianças diante da pandemia”.
Percebeu-se que, antes da pandemia de covid-19, os cuidados aos filhos não eram responsabilidade exclusiva dos pais, mas existia uma extensa rede de apoio (formada por avós, tios, babás, escolas e creches) que exercia suporte às famílias. Contudo, com o distanciamento físico, os cuidadores precisaram reorganizar o cotidiano domiciliar e, com isso, tiveram a oportunidade de ficar mais próximos de suas crianças.
Dessa maneira, em decorrência da convivência em casa, alguns genitores buscaram realizar atividades manuais com os filhos e explicar o que estava acontecendo no cenário mundial, exercendo a parentalidade positiva. Embora traçar uma rotina para as crianças tenha sido algo difícil para os cuidadores, visto que os hábitos, principalmente escolares, estavam arraigados no cotidiano anterior dos pequenos, muitos se reorganizaram para dar atenção aos filhos.
Observou-se ainda que o distanciamento físico favoreceu uma maior tolerância e conivência dos pais para um tempo extrapolado em que os filhos ficaram expostos às telas. Além disso, passou-se a adotar uma prática de hábitos alimentares não saudáveis entre as crianças, com a introdução de alimentos ultraprocessados e de fácil acesso para o consumo.
Ademais, as entrevistadas demonstraram que as crianças apresentaram mudanças no comportamento, com sintomas de agitação, ansiedade, dependência excessiva dos pais, distúrbios do sono, estresse e medo.
O exercício do cuidado parental em tempos de covid-19
O primeiro contexto em que a criança é inserida após o seu nascimento é o microssistema familiar. Este ambiente é uma das bases para o desenvolvimento infantil, uma vez que é nele onde são construídas as primeiras interações proximais. Os cuidadores principais, a partir dessas relações, precisam desenvolver a função parental de cuidar e educar as crianças até a maturidade, para que atinjam o comportamento adaptativo (Bronfenbrenner, 2011BRONFENBRENNER, U. (Org.). Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humano. Porto Alegre: Artmed, 2011.).
Quando os cuidadores ofertam cuidados aos aspectos físicos (alimentação, higiene, vestuário para proteger), emocionais (apego, segurança e autonomia para tomadas de decisão) e sociais (estimulação das relações interpessoais ampliadas) da criança, exercem a parentalidade positiva e auxiliam seus filhos a atingir um desenvolvimento saudável (Linhares, 2015LINHARES, M. B. M. O processo da autorregulação no desenvolvimento de crianças. Estudos de Psicologia (Campinas) , Campinas, v. 32, n. 2, p. 281-293, 2015. DOI: 10.1590/0103-166X2015000200012
https://doi.org/10.1590/0103-166X2015000... ). Logo, é relevante que os pais possuam comportamentos e atitudes impulsionadoras de segurança e autonomia; servindo como (co)reguladores dos sentimentos dos filhos, auxiliando-os a lidar com as demandas diárias (Skinner; Zimmer-Gembeck, 2016SKINNER, E. A.; ZIMMER-GEMBECK, M. J. Developmental psychopathology: Risk, resilience, and intervention. Nova Jersey: John Wiley & Sons, 2016.).
Portanto, os cuidados parentais de suporte às crianças são ações essenciais para o aprendizado de como lidar com contextos de adversidades, como os eventos estressores. Segundo Shonkoff (2020SHONKOFF, J. P. (Org.). Stress, resilience, and role of science: responding to the coronavírus pandemic. Center on Developing Child, Cambridge, 20 mar. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://developingchild.harvard.edu/stress-resilience-and-the-role-of-science-responding-to-the-coronavirus-pandemic/ >. Acesso em: 14 set. 2021.
https://developingchild.harvard.edu/stre... ), os eventos estressores são ocorrências de vida que alteram o ambiente e provocam tensão que influenciam as respostas emitidas pelos indivíduos. Nesse sentido, Bronfenbrenner (2011BRONFENBRENNER, U. (Org.). Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humano. Porto Alegre: Artmed, 2011.) compreende que acontecimentos históricos são repletos de condições estressoras que podem alterar positivamente ou negativamente o desenvolvimento infantil.
Dessa maneira, entendendo o contexto das experiências adversas devido à pandemia da covid-19 e a relevância da parentalidade positiva nesse período, foi perguntado às mães sobre questões relacionadas ao cotidiano de cuidados dos filhos antes e durante o distanciamento físico. A partir dessa indagação, percebeu-se que, em decorrência da rotina dos pais, os cuidados às crianças antes da covid-19 não eram realizados exclusivamente pelos genitores, mas por familiares e babás, como relatado pelas entrevistadas:
Eu tenho uma pessoa que me ajuda olhando minha filha, é a minha prima. Aí quando eu voltava do trabalho a minha prima ficava um pouco com ela para eu fazer atividade física e voltar para casa. (E.03)
Eu saía cedo para trabalhar e deixava ele (filho) na escola. Quando ele saía à tarde, ia para casa da minha sogra. Aí lá tinha uma babá que cuidava dele até eu chegar, umas dezenove horas. (E.16)
O cuidado parental na primeira infância é considerado um dos fatores mais importantes que ajudam a promover as habilidades das crianças. A despeito disso, a ausência dos pais está negativamente associada ao desenvolvimento dos filhos. Em particular, a ausência da mãe parece ter efeitos negativos persistentes no desenvolvimento das crianças. As análises do mecanismo mostram que a ausência dos pais pode resultar em um estado mental menos saudável das crianças e reduzir os esforços das crianças nas aulas (Mao et al, 2020MAO, M., ZANG, L., ZHANG, H. The Effects of Parental Absence on Children Development: Evidence from Left-Behind Children in China. Int. J. Environ. Res. Public Health, [S.l.], v. 17, n. 18, p. 6770, 2020. DOI: 10.3390/ijerph17186770
https://doi.org/10.3390/ijerph17186770... ). No que concerne às questões de cuidado no decorrer do período de distanciamento físico, devido ao fechamento das escolas e dos serviços não essenciais, a inserção do trabalho em formato home office para os pais, e pela restrição de contato físico entre familiares que não residiam no mesmo domicílio, a conjuntura de cuidados à maioria das crianças passou por modificações. Observou-se que os cuidadores estiveram mais presentes no cotidiano de seus filhos, principalmente nas atividades escolares, conforme o excerto:
No tempo que a gente ficou isolado, nós tivemos que acompanhar ela (a filha) mais de perto, dar mais auxílio com as aulas on-line. (E.22)
Como eu estou mais em casa, sem trabalhar [...] estou mais próxima dos meus filhos. O mais velho, que continuou na escola, tem assistido às aulas online comigo e eu tenho procurado ajudá-lo mais. (E.27)
Essa condição favoreceu ainda espaço para que as famílias buscassem transformar o contexto estressante do distanciamento em um cenário minimamente prazeroso para a criança, atenuando os efeitos negativos que os cercavam. Como descrito pelas entrevistadas, os cuidadores procuraram investir o tempo livre que tinham em brincadeiras, incluindo atividades manuais com seus filhos.
Eu tentei brincar um pouco, ontem à noite nós fizemos uma atividade aqui de jogo da velha e brincamos muito para tentar nos distrair desse problema. (E.02)
No isolamento a gente brincava muito de pintura, eu fazia pedidos a domicílio de tintas, de gesso para eles ficarem pintando, a gente improvisou pic-nic, aqui em casa tem uma piscina e eles brincavam na piscina e a gente ficava com eles, meu marido fazia churrasco. (E.24)
Dessa forma, verifica-se que as famílias relataram atividades positivas que realizaram com as crianças, sugerindo uma melhora no relacionamento. Conforme destacado pela literatura, a oferta de espaços lúdicos é primordial para um desenvolvimento infantil saudável (Delgado et al., 2020DELGADO, D. A. et al. Avaliação do desenvolvimento motor infantil e sua associação com a vulnerabilidade social. Fisioterapia e Pesquisa, [S.l.], v. 27, n. 1, p. 48-56, 2020. DOI: 10.1590/1809-2950/18047027012020
https://doi.org/10.1590/1809-2950/180470... ). Quando os cuidadores realizam essas atividades com seus filhos, há a manutenção da estabilidade, estruturação e organização do domicílio, evitando que torne-se um ambiente ainda mais caótico e estressor para as crianças (Muratori et al., 2020MURATORI, P.; CIACCHINI, R. Children and the COVID-19 transition: psychological reflections and suggestions on adapting to the emergency. Clinical Neuropsychiatry, v. 17, n. 2, p. 131-134, 2020. 134. Disponível em: < Disponível em: https://www.clinicalneuropsychiatry.org/download/children-and-the-covid-19-transition-psychological-reflections-and-suggestions-on-adapting-to-the-emergency/ >. Acesso em: 14 set. 2021.
https://www.clinicalneuropsychiatry.org/... ).
No discurso de algumas mães, revela-se que durante o distanciamento físico alguns genitores procuraram exercer a comunicação positiva com seus filhos, buscando conviver de forma harmoniosa, amenizando o comportamento punitivo e explicando as circunstâncias atuais das experiências. De acordo com as mulheres:
A gente explicava sobre a história do coronavírus e tal, sempre conversávamos com nossos filhos. (E.20)
A gente conversava com ele porque como eu te falei, ele não entende o que está acontecendo e, por isso, está dando um pouquinho mais de trabalho, ele questiona mais. (E.25)
Em documento sobre as repercussões da covid-19 na Primeira Infância, o Núcleo Ciência pela Infância (NCPI) (2020NÚCLEO CIÊNCIA PELA INFÂNCIA. (Org.). Repercussões da Pandemia de COVID-19 no Desenvolvimento Infantil. São Paulo: Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://ncpi.org.br/wp-content/uploads/2020/05/Working-Paper-Repercussoes-da-pandemia-no-desenvolvimento-infantil-3.pdf >. Acesso em: 14 set. 2021.
https://ncpi.org.br/wp-content/uploads/2... ) apresenta que crianças pequenas ainda não possuem recursos cognitivos necessários para compreender o conteúdo abstrato relacionado ao coronavírus. Nessa fase de vida, as crianças são guiadas pelo ver, ouvir, tocar, cheirar, imaginar, imitar, dizer, brincar. Portanto, precisam de um cuidador que as explique, de maneira lúdica, a situação que está sendo vivenciada para que elas, ainda que não necessariamente no mesmo instante, tenham a compreensão do fenômeno.
Um outro documento informativo sobre saúde da criança e do adolescente no contexto da pandemia, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) (2020FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. (Org.). Saúde Mental e Atenção Psicossocial na Pandemia Covid-19: Crianças na pandemia Covid-19. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.fiocruzbrasilia.fiocruz.br/wp-content/uploads/2020/05/crianc%CC%A7as_pandemia.pdf >. Acesso em: 14 set. 2021.
https://www.fiocruzbrasilia.fiocruz.br/w... ) conscientiza a população acerca de outras intervenções que podem ser realizadas no ambiente doméstico para minimizar o impacto do distanciamento físico. O manuscrito cita a comunicação parental como outro fator protetivo para o desenvolvimento saudável da criança.
Dessa maneira, com a execução da comunicação positiva, os pais buscaram agir como (co)reguladores emocionais dos filhos, estimulando as crianças a entender o que estão sentindo, e contribuindo efetivamente para o processo de autorregulação do comportamento dessas, facilitando o desenvolvimento infantil (Linhares, 2015LINHARES, M. B. M. O processo da autorregulação no desenvolvimento de crianças. Estudos de Psicologia (Campinas) , Campinas, v. 32, n. 2, p. 281-293, 2015. DOI: 10.1590/0103-166X2015000200012
https://doi.org/10.1590/0103-166X2015000... ).
O cotidiano das crianças diante da pandemia
Historicamente o espaço escolar ocupa lugar marcante na vida das pessoas, uma vez que é o segundo microssistema de maior vivência dos indivíduos, tornando-se, assim, a principal referência quando se pensa no cotidiano das crianças e adolescentes. Nesse sentido, a escola possui papel relevante socialmente, visto que produz algo fundamentalmente novo no desenvolvimento infantil, auxiliando as crianças a progredir rumo às funções psicológicas superiores e mediando a inserção delas na cultura e na linguagem. As escolas têm oferecido diversos outros serviços aos alunos além do ensino-aprendizagem, sendo espaço privilegiado para estimulação longitudinal do desenvolvimento (Santana; Santana, 2016SANTANA, R. P.; SANTANA, J. S. S. Violência contra criança e adolescente na percepção dos profissionais de saúde. Revista Enfermagem UERJ, v. 24, n. 4, p. 12-20, 2016. DOI: 10.12957/reuerj.2016.7070
https://doi.org/10.12957/reuerj.2016.707... ).
Santos e Silva (2016SANTOS, S. V. S.; SILVA, I. Crianças na educação infantil: a escola como lugar de experiência social. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 42, n. 1, p. 131-150, 2016. DOI: 10.1590/S1517-9702201603137189
https://doi.org/10.1590/S1517-9702201603... ), em estudo sobre o papel da escola na vida das crianças, discutem que essa instituição tem sido o principal instrumento para a interação social. Segundo os autores, o objetivo maior da escola para as crianças pequenas é a facilitação das relações sociais com seus pares, apresentando outros sujeitos além da família.
No contexto atual, devido à crescente taxa de incidência da covid-19, o fechamento das escolas e a migração para modelos de ensino à distância domiciliar foram estratégias necessárias para busca da mitigação da doença. Nesse cenário, cerca de 8,7 milhões de crianças da educação infantil brasileira foram afetadas por esses fechamentos (BRASIL, 2020BRASIL. Ministério da Saúde. Plano de contingência nacional para infecção humana pelo novo coronavírus COVID-19. Centro de Operaçõesde Emergências em Saúde Pública | COE-COVID-19. Brasília, DF, 2020. Disponível em: < Disponível em: https://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2020/fevereiro/13/plano-contingencia-coronavirus-COVID19.pdf >. Acesso em: 14 set. 2021.
https://portalarquivos2.saude.gov.br/ima... ). Portanto, conforme apontam Schmidt et al. (2020SCHMIDT, B. et al. Saúde mental e intervenções psicológicas diante da pandemia do novo coronavírus (COVID-19). Estudos de Psicologia (Campinas) , Campinas, v. 37, e200063, 2020. DOI: 10.1590/1982-0275202037e200063
https://doi.org/10.1590/1982-0275202037e... ), essa medida tem influenciado substancialmente a vida das crianças, impondo uma rotina muito dura para esse grupo.
À vista disso, perguntou-se às mães desta pesquisa como estava sendo a rotina de seus filhos e quais as atividades realizadas no contexto domiciliar, longe do cotidiano escolar. De acordo com os discursos, em decorrência das mudanças no funcionamento da dinâmica diária dos filhos, traçar uma nova rotina para as crianças pequenas tem sido algo difícil para a maioria dos pais.
Embora o discurso das mães demonstre a busca dos cuidadores em realizar atividades manuais com os filhos e de ficar mais próximos desses, percebe-se que a utilização das telas foi algo crescente no cotidiano das crianças, durante o distanciamento físico, conforme as falas:
Rapaz, é bem complicado. Porque assim, ele tem seis anos e pensar em uma rotina dentro de casa é difícil. Mas tem sido mais ou menos assim: ele acorda, toma o cafezinho da manhã dele, e já corre para assistir um pouco de televisão. [...] Quando ele cansa dos desenhos, vai para os jogos eletrônicos no celular porque ele não gosta muito dessas brincadeiras de carrinho. (E.02)
A rotina dela tem sido brincar, ver TV e jogar no celular. É até engraçado, porque antes da pandemia ela não gostava de TV e com pandemia ela passou a assistir muita TV. (E.16)
Essas narrativas corroboram com o estudo de Radesky et al. (2020RADESKY, J. et al. Digital Advertising to Children. American Academy of Pediatrics, [S.l.], v. 146, n. 1, e20201681, 2020. DOI: 10.1542/peds.2020-1681
https://doi.org/10.1542/peds.2020-1681... ), quando verificou-se que, durante o distanciamento físico, os cuidadores têm tolerado mais o tempo em que as crianças ficam em contato com as telas. O argumento que o autor utiliza para a justificativa deste fato é corroborado por nossa pesquisa, quando os pais relatam que precisaram reorganizar o domicílio para suas demandas de trabalho domiciliares.
No entanto, os riscos dessa exposição não foram relatados como prejudiciais às crianças, por parte dos pais. Todavia, segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) (2020SOCIEDADE BRASILEIRA DE PEDIATRIA. (Org.).SBP atualiza recomendações sobre saúde de crianças e adolescentes na era digital. SBP, 11 fev. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.sbp.com.br/imprensa/detalhe/nid/sbp-atualiza-recomendacoes-sobre-saude-de-criancas-e-adolescentes-na-era-digital/ >. Acesso em: 14 set. 2021.
https://www.sbp.com.br/imprensa/detalhe/... ), crianças com de menos de 2 anos não podem estar sujeitas às telas, e, aquelas de 2 a 5 anos, devem ter o tempo limitado a uma hora diária. Eisenstein et al. (2020EISENSTEIN, E. et al. (Org.). Grupo de Trabalho Saúde na Era Digital. Recomendações sobre uso saudável das telas digitais em tempos de pandemia Covid-19. # BOAS TELAS # MAIS SAÚDE. Sociedade Brasileira de Pediatria, 2020. Disponível em: < Disponível em: https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/22521b-NA_Recom_UsoSaudavel_TelasDigit_COVID19__BoasTelas__MaisSaude.pdf >. Acesso em: 14 set. 2021.
https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_up... ) apresentam que o excesso do uso de telas pode ser prejudicial ao desenvolvimento infantil, uma vez que essa utilização está associada a um maior risco de obesidade, atraso cognitivo, de linguagem e socioemocional, além de variações de humor, sono e comportamento.
Indagou-se às entrevistadas sobre a rotina alimentar dos filhos diante das circunstâncias vividas. Algumas narradoras evidenciaram que houve mudanças positivas nesse aspecto, quando tiveram a oportunidade de oferecer uma alimentação mais saudável e acompanhar mais de perto a oferta desses alimentos. Entretanto, a maioria relatou que com o passar dos dias, as crianças passaram a comer mais guloseimas, alimentos mais hipercalóricos, tendo como justificativa o aumento da tensão das crianças e a ociosidade, como exposto:
No começo ela estava comendo pouco e agora não, agora come super bem, mas também nós estamos em isolamento desde o dia dezoito de março, aí eu acho que ela já se adaptou à nova realidade. (E. 09)
Ah, eles tão comendo bem mais porcaria (risos), comendo mais chocolate. Eu acho que é uma forma de compensar o fato de eles estarem todo tempo trancados dentro de casa, eu acho que eles ficam ansiosos e um pouco mais estressados. (E.12)
Essa realidade implica em preocupações para o campo científico e alerta para o acompanhamento das práticas nutricionais e peso dessas crianças, nesse período de reinserção de modelos de avaliação do comportamento nutricional desta população infantil. Como discutem Klotz-Silva, Prado e Seixas (2017)KLOTZ-SILVA, J.; PRADO, S. D.; SEIXAS, C. M. A força do “hábito alimentar”: referências conceituais para o campo da Alimentação e Nutrição. Physis: Revista de Saúde Coletiva, [S.l.], v. 27, n. 4, p. 1065-1085, 2017. DOI: 10.1590/S0103-73312017000400011
https://doi.org/10.1590/S0103-7331201700... , os hábitos alimentares nos primeiros anos de vida repercutirão de diversas maneiras no desenvolvimento dos indivíduos. Além disso, o aspecto da alimentação durante a pandemia também possui relevância, pois estudos (Paiva; Freitas; Santos, 2019; Vaz; Bennemann, 2014VAZ, D. S. S.; BENNEMANN, R. M. Comportamento alimentar e hábito alimentar: uma revisão. Revista UNINGÁ Review, [S.l.], v. 20, n. 1, p. 108-112, 2014. Disponível em: < Disponível em: http://revista.uninga.br/index.php/uningareviews/article/view/1557 >. Acesso em: 14 set. 2021.
http://revista.uninga.br/index.php/uning... ) demonstram que a ingestão de alimentos saudáveis possui relação com o funcionamento do sistema imunológico. Além disso, em consequência da falta de atividades ao ar livre, passeios, caminhadas, dos momentos de recreação e das aulas de educação física, as crianças estão gastando menos energia.
As mães relataram que perceberam mudanças de comportamento e emoções negativas nas crianças, com o passar dos dias em casa, longe dos amigos e dos familiares. Em sua maioria, as crianças demonstraram alterações no padrão de sono, do humor e do comportamento revelando medo, maior dependência dos pais e mais irritação, conforme descrevem:
O padrão de sono mudou, ele era uma criança que dormia à noite inteira, agora ele acorda de madrugada. A questão do comportamento também, ele está mais agitado, é uma criança com muita energia que não está gastando essa energia em casa. (E.01)
No isolamento eu percebi umas mudanças no comportamento dela, ela ficou bem mais agarrada no pai dela. (E. 18)
A gente precisou ir até a casa de um familiar e ela ficou com muito medo de sair de casa. Dentro do carro, ela pedia para eu ficar segurando a mão dela, coisa que ela não pedia antes. [...] isso tudo tem deixado ela irritada. (E.27)
Esses resultados entrelaçam-se com o estudo de Jiao et al. (2020JIAO, W. Y. et al. Behavioral and Emotional Disorders in Children during the COVID-19. The Journal of Pediatrics, v. 221, p. 264-266, jun. 2020. DOI: 10.1016/j.jpeds.2020.03.013
https://doi.org/10.1016/j.jpeds.2020.03.... ) que, a partir de um acompanhamento de 320 crianças e adolescentes na China, no início da pandemia, perceberam que os indivíduos apresentaram sintomas de agitação, ansiedade, dependência excessiva dos pais, distúrbios do sono, estresse e medo, no decorrer do distanciamento físico. Orgilés et al. (2020ORGILÉS, M. et al. Immediate Psychological Effects of the COVID-19 Quarantine in Youth from Italy and Spain. Frontiers in Psychology, [S.l.], v. 11, p. 1-10, 2020. DOI: 10.3389/fpsyg.2020.579038
https://doi.org/10.3389/fpsyg.2020.57903... ) descrevem que esses dados possuem correlação com os sentimentos vivenciados pelos pais. Os resultados do presente estudo, associam-se com os estudos de Bronfenbrenner (2011BRONFENBRENNER, U. (Org.). Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humano. Porto Alegre: Artmed, 2011.), que demonstram que diversos sintomas infantis são reflexos de sintomas familiares e ambientais.
A manifestação dessas emoções negativas nas crianças pode se relacionar ainda, a perda de atividades prazerosas e independência; ausência da escola e dos amigos; e pela energia não gasta durante o dia no domicílio, conforme complementado pelas narrativas:
É muita energia para dar conta num ambiente fechado, pequeno, e a criança fica irritada e com raiva de não poder gastar essa energia em casa. (E.12)
A gente vê que alguns comportamentos dela foram por conta de ela não poder sair, porque a minha filha é muito sociável, e essa perda das saídas, da escola, de interagir com os amiguinhos isso aí mexeu com ela. (E.25).
De acordo com Linhares e Enumo (2020LINHARES, M. B. M.; ENUMO, S. R. F. Contribuições da Psicologia no contexto da Pandemia da COVID-19: seção temática. Estudos de Psicologia (Campinas) , Campinas, v. 37, 2020. DOI: 10.1590/1982-0275202037200110e
https://doi.org/10.1590/1982-02752020372... ), as manifestações dessas sensações são esperadas para o momento histórico que é vivenciado pelas crianças, pois existe a saudade do mundo de antes, do contato físico acompanhado de beijos e abraços. Com a privação inesperada, as crianças passam a expressar seus sentimentos, a partir de comportamentos de dependência e medo ampliado. Isso reforça a necessidade de pais com maior controle da situação e diálogo mais aproximado com os seus filhos.
Apesar dessas falas permeadas de muita ambiguidade, quando essas mães foram indagadas sobre o retorno presencial ao cotidiano escolar dos filhos, a maioria narrou que devido ao sentimento de insegurança frente aos cuidados realizados na instituição, a criança só voltaria ao estabelecimento de ensino no ano seguinte, que seria em 2021, ou quando houvesse uma vacina para o vírus da covid-19, conforme excerto:
Se liberar o colégio esse ano ela não volta mais, aí só vai o próximo ano se houver uma vacina para essa doença. (E.09).
Se a escola voltar esse ano, ela não vai mais, porque eu também não me sinto segura em mandar. Por mais que a escola tenha ‘N’ cuidados, é muito difícil de você controlar uma criança de três anos, de quatro anos para ela ficar lá de máscara e não tocar, não chegar perto do outro amigo e não fazer nada que não possa. (E. 15).
Essa situação choca-se com a realidade de acontecimentos históricos envolvidos com a escola e as epidemias. Segundo Oliveira et al. (2020OLIVEIRA, W. K. et al. Como o Brasil pode deter a COVID-19. Epidemiologia e Serviços de Saúde, [S.l.], v. 29, n. 2, p. 1-8, 2020. DOI: 10.5123/S1679-49742020000200023
https://doi.org/10.5123/S1679-4974202000... ), em 2009, com a epidemia de H1N1, o fechamento das instituições favoreceu o pico da infecção, mas diante da carga de medo, a maioria dos pais não autorizou o retorno dos filhos às aulas presenciais. Essas questões, conforme Linhares e Enumo (2020LINHARES, M. B. M.; ENUMO, S. R. F. Contribuições da Psicologia no contexto da Pandemia da COVID-19: seção temática. Estudos de Psicologia (Campinas) , Campinas, v. 37, 2020. DOI: 10.1590/1982-0275202037200110e
https://doi.org/10.1590/1982-02752020372... ), necessitam de espaço para debate, situando a saúde mental infantil como ponto importante para a tomada de decisão entre retornar (ou não) às aulas presenciais. Além disso, como relatam Oliveira . (2020)OLIVEIRA, W. K. et al. Como o Brasil pode deter a COVID-19. Epidemiologia e Serviços de Saúde, [S.l.], v. 29, n. 2, p. 1-8, 2020. DOI: 10.5123/S1679-49742020000200023
https://doi.org/10.5123/S1679-4974202000... , é possível que haja perdas principalmente em grupos menos favorecidos e que as saídas utilizadas pelo governo (a adoção de ensino remoto, o uso de tecnologias e o aumento da carga horária), dificilmente constituam soluções robustas para enfrentar as consequências da interrupção do cotidiano escolar.
Considerações Finais
Este estudo, realizado com mães que vivenciaram um período de distanciamento físico em 2020, junto aos filhos na faixa etária entre 0 a 6 anos, evidenciou que algumas delas possuíam, anteriormente, uma extensa rede de apoio aos cuidados com os filhos, mas que devido à pandemia, esse cenário foi reorganizado e readaptado.
Como aspecto positivo evidenciado nesse contexto de distanciamento físico, percebeu-se que algumas famílias buscavam reforçar os vínculos parentais positivos, utilizando atividades manuais e uma comunicação positiva com a criança, incluindo explicações sobre a pandemia. Com isso, alguns casais buscaram dialogar com os filhos visando trazer mais segurança para aquelas que apresentavam irritação, medo e pouca segurança emocional. Esses aspectos podem ter atuado como mecanismos de proteção diante do contexto adverso da pandemia.
No entanto, ficou evidente que as crianças sentiam falta dos momentos de socialização, principalmente com pares, encontros com familiares próximos e substituíam esse hiato, com a utilização muito acentuada do uso de tecnologias digitais e telas. O consumo de alimentos não saudáveis também passou a ser prática mais rotineira, devendo ser tema para acompanhamento futuro dessas crianças que passaram a ficar mais expostas a dietas que promovem sobrepeso e obesidade. Além disso, as participantes relataram que as crianças apresentaram problemas de comportamento e dificuldades emocionais, indicando uma possível relação com o distanciamento social. Esse aspecto precisa ser melhor explorado em cada contexto. Assim, verifica-se que os relatos maternos apresentaram diversos fatores de risco ao desenvolvimento infantil da criança.
Como limitação para esse estudo, o fato de entrevistarmos mulheres que responderam, inicialmente, a uma pesquisa on-line, não atingiu as famílias de nível socioeconômico mais baixo, principalmente as que vivem em extrato social de alta vulnerabilidade. O estudo não pretende trazer uma tradução da realidade de todas as mulheres que conviveram nesse período de distanciamento social, mas um recorte de um grupo daquelas que se sentiram motivadas a responder as perguntas desta pesquisa. Sugere-se que pesquisas futuras utilizem questões semelhantes a este tema, incluindo amostras de famílias de baixo nível socioeconômico e com menor escolaridade.
Dessa forma, constatamos a necessidade de um acompanhamento contínuo dos aspectos referentes ao desenvolvimento infantil destas crianças, bem como a avaliação criteriosa para o retorno progressivo das atividades presenciais, quando possível. O suporte psicoemocional deverá ser contínuo para os pais e seus filhos, pois as sequelas de um período prolongado de distanciamento físico poderá ser duradouro e trazer repercussões negativas à psique desse grupo etário.
As políticas públicas adotadas em ambientes acolhedores para essas crianças, como creches e escolas, deverão rever os modelos educacionais até então adotados, para adaptar e testar novas formas de acolhimento a essas crianças que foram expostas a um longo período de distanciamento dos colegas em sala de aula, creches e dos familiares próximos. Sendo esse um fenômeno inesperado e não previsível, com repercussões mundiais, torna-se necessário acompanhar, registrar, monitorar, intervir e analisar os possíveis efeitos para o desenvolvimento infantil nos próximos anos.
As diferentes formas de comunicação expressas por linguagens corporais e emocionais infantis, que foram evidenciadas nos discursos das diversas mães entrevistadas, precisam estar em conexão com as futuras intervenções que deverão ser realizadas com a população de crianças, que foi exposta a essa situação atípica em sua infância.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
21 Mar 2021 - Data do Fascículo
2022
Histórico
- Recebido
05 Abr 2021 - Aceito
03 Set 2021