“De técnico a profissional da saúde”: análise do processo de (re)construção da identidade profissional no âmbito do Núcleo de Apoio à Saúde da Família

“From technician to health professional”: analysis of professional identity (re)construction in the context of the Family Health Support Center

Vladimir Andrei Rodrigues Arce Carmen Fontes Teixeira Sobre os autores

Resumo

Ao fomentar a redefinição das práticas de saúde de profissionais inseridos na proposta, a implantação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf) no Brasil provocou, além de inovações, indagações em diversos âmbitos, incluindo a questão da identidade profissional. Este artigo busca descrever e analisar trajetórias de formação e de trabalho de pessoas que atuam nesses núcleos e discutir o processo de construção/reconstrução de suas identidades profissionais. Trata-se de estudo de caso qualitativo conduzido com profissionais que trabalham em Salvador, Bahia, com os quais foram realizadas entrevistas individuais semiestruturadas. Os resultados evidenciaram que somente após a inserção no Nasf os indivíduos passaram a se reconhecer efetivamente como profissionais da saúde, à medida que desenvolviam ações que extrapolavam atividades exclusivamente técnicas, a partir das diversas necessidades de saúde dos territórios. Nesses núcleos, vivenciaram um trabalho em equipe colaborativo, interdependente e complexo, com importante grau de controle sobre o próprio trabalho, ainda que com limitações. Esse contexto contribuiu para o processo de desalienação profissional e formação de sujeitos sociais, tornando possível a emergência de uma forma identitária essencialmente estratégica e relacional, forjada no trabalho em equipe interprofissional e potencialmente transformadora do modelo de atenção à saúde no contexto estudado.

Palavras-chave:
Pessoal de Saúde; Saúde da Família; Atenção Primária à Saúde; Prática de Saúde Pública; Relações Interprofissionais

Abstract

By redefining the health practices of professionals included in the proposal, the implementation of the Family Health Support Center (NASF) in Brazil provoked, besides innovations, discussions in several areas, including the issue of professional identity. This article describes and analyzes the education and work trajectories of professionals who work in these Centers and discuss the process of (re)construction of their professional identities. This qualitative case study carried out semi-structured individual interviews with professionals working in Salvador, Bahia. Results showed that only after joining the NASF, did these individuals began to effectively recognize themselves as health professionals, as they developed actions beyond exclusively technical activities, based on the diverse healthcare needs of the territories. In these centers, they experienced a collaborative, independent, and complex teamwork, with an important degree of control over their own work, although with limitations. This context contributed to the process of professional de-alienation and formation of social subjects, making possible the emergence of an essentially strategic and relational form of identity, forged through interprofessional teamwork and potentially transforming the health care model in the context studied.

Keywords:
Health Personnel; Family Health; Primary Health Care; Public Health Practice; Interprofessional Relations

Introdução

Em 2008 foram implantados na rede de atenção básica (AB) à saúde do Sistema Único de Saúde (SUS) os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf), renomeados Núcleos Ampliados de Saúde da Família - Atenção Básica (Nasf-AB) em 2017. Com isso, profissionais comumente reconhecidos como especialistas passaram a ter suas competências expandidas e atividades como análises de situação de saúde, planejamento e desenvolvimento de ações intersetoriais passaram a fazer parte de seu trabalho coletivo (Fragelli, 2013FRAGELLI, T. B. O. Análise das competências profissionais do Núcleo de Apoio à Saúde da Família. 2013. Tese (Doutorado em Ciências da Saúde) - Faculdade de Ciências da Saúde, Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2013.). Configurou-se, portanto, uma situação profissionalmente desafiadora, uma vez que o trabalho do Nasf passou a ser orientado por ações desenvolvidas em conjunto com as Equipes de Saúde da Família (EqSF), numa perspectiva colaborativa, tendo o apoio matricial como principal base do trabalho clínico-assistencial e técnico-pedagógico (Melo et al, 2018MELO, E. A. et al. Dez anos dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf): problematizando alguns desafios. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 42, p. 328-340, 2018. Número especial 1.), representando uma importante mudança na estrutura de ação hegemônica desses profissionais.

Essa estrutura organizativa inovadora colocou em questão também as formas identitárias desses indivíduos, sendo comum haver dificuldades de adaptação e “crises de identidade”. Essas crises têm sido relacionadas, dentre outros fatores, à dificuldade de os profissionais serem reconhecidos no trabalho, decorrente da sensação de não pertencimento e de invisibilização no espaço da AB (Lancman et al., 2013LANCMAN, S. et al. Estudo do trabalho e do trabalhar no Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 47, n. 5, p. 968-975, 2013.), por vezes evidenciada pelo dilema entre atuar como generalistas ou especialistas (Iacabo; Furtado, 2020IACABO, P.; FURTADO, J. P. Núcleos de Apoio à Saúde da Família: análises estratégica e lógica. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 44, n. 126, p. 666-667, 2020.). Acrescenta-se a isso a questão do trabalho em equipe interprofissional, o qual pressupõe compartilhamento de senso de pertencimento e trabalho integrado e interdependente (Peduzzi; Agreli, 2018PEDUZZI, M.; AGRELI, H. F. Trabalho em equipe e prática colaborativa na Atenção Primária à Saúde. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 22, p. 1525-1534, 2018. Suplemento 2.), que representa tanto uma potencialidade quanto um desafio ainda a ser enfrentado no Nasf (Mazza et al., 2020MAZZA, D. A. A. et al. Aspectos macro e micropolíticos na organização do trabalho no NASF: o que a produção científica revela? Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 30, n. 4, 2020.). Isso torna o processo ainda mais complexo e dinâmico, tendo em vista que a configuração de uma identidade para o “profissional do Nasf” passa necessariamente pela relação estabelecida entre os diferentes sujeitos, e destes com suas trajetórias profissionais.

Nessa perspectiva, é relevante investigar os processos de construção/reconstrução das identidades profissionais vivenciadas pelos sujeitos inseridos no Nasf. Sobre a categoria “identidade”, Dubar (2012DUBAR, C. A construção de si pela atividade de trabalho: a socialização profissional. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 42, n. 146, p. 351-367, 2012.) afirma que as formas identitárias profissionais estão relacionadas às atividades de trabalho de onde se originam, dando sentido à existência individual e organizando a vida de coletivos. Segundo o autor, é por meio de um processo específico de socialização, que liga educação, trabalho e carreira, que as identidades se constroem no interior de instituições e de coletivos que organizam as interações e asseguram o reconhecimento de seus membros como profissionais.

Nesse sentido, a imersão em uma nova situação de trabalho pode possibilitar a reconstrução da identidade profissional a partir de um novo processo de socialização que se inicia e é conjugado à trajetória formativa e socioprofissional pregressa (Dubar, 2005DUBAR, C. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes, 2005.), na medida em que o processo de recomposição da identidade profissional é permanente (Dubar, 2001DUBAR, C. Identidade profissional em tempos de bricolage. Revista Contemporaneidade e Educação, Rio de Janeiro, v. 6, n. 9, p. 152-156, 2001.). Logo, compreende-se que a identidade está relacionada ao conceito de ator social, sendo central a maneira como esses atores se identificam uns com os outros mediante uma socialização relacional nas atividades, constituindo as identidades para o outro, e uma socialização biográfica em uma trajetória social, constituindo as identidades para si (Dubar, 2005DUBAR, C. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes, 2005.).

Ayres (2001AYRES, J. R. C. M. Sujeito, intersubjetividade e práticas de saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 6, n. 1, p. 63-72, 2001.) aponta que a identidade está diretamente ligada à atitude transformadora em ato, na qual a noção de sujeito é vinculada ao caráter relacional e ao contingente das identidades e historicidades de indivíduos e grupos, sendo sempre intersubjetividade. Verifica-se, assim, a natureza ontológica e histórica do trabalho, uma vez que, ao transformar o objeto, o trabalhador também se transforma, influenciando e sendo influenciado pelo objeto, pelas atividades e pelos instrumentos utilizados, o que também se expressa no campo da saúde (Mendes-Gonçalves, 1994MENDES-GONÇALVES, R. B. Tecnologia e organização social das práticas de saúde: características tecnológicas do processo de trabalho na Rede Estadual de Centros de Saúde de São Paulo. São Paulo: Hucitec: Abrasco, 1994.).

Partindo desta perspectiva, este artigo tem como objetivos descrever e analisar as trajetórias de formação e de trabalho dos profissionais em contexto de trabalho no Nasf e discutir o processo de construção/reconstrução de suas identidades profissionais a partir do estudo das equipes que compõem o sistema municipal de saúde de Salvador, Bahia. Ressalta-se que, neste artigo, optou-se por utilizar a nomenclatura original do Nasf, considerando que a pesquisa foi realizada antes da alteração proposta pelo Ministério da Saúde.

Metodologia

Trata-se de estudo de caso com abordagem qualitativa que teve como cenário de pesquisa os Nasf de Salvador, Bahia. Em 2015, período da realização desta pesquisa, o município dispunha de 11 equipes Nasf que apoiavam aproximadamente 100 EqSF, das quais duas foram excluídas do estudo por terem sido implantadas há menos de um ano da produção dos dados. Ressalta-se que em 2021 o município manteve o número de equipes.11Disponível em: https://datasus.saude.gov.br/informacoes-de-saude-tabnet.

A seleção dos sujeitos que participaram da pesquisa foi feita a partir da técnica snow ball (Biernacki; Waldorf, 2002BIERNACKI, P.; WALDORF, D. Snowball sampling: problems and techniques of chain referral sampling. Sociological Methods & Research, Thousand Oaks, v. 10, n. 2, p. 141-163, 2002.), considerando as indicações da área técnica responsável pelos Nasf na Secretaria Municipal de Saúde (SMS) do município, de docentes da Universidade Federal da Bahia (UFBA) que desenvolveram estágios com estas equipes e dos próprios profissionais inicialmente indicados. Em seguida, definiu-se o conjunto dos informantes-chave aplicando os seguintes critérios de inclusão: (1) profissionais reconhecidos como estratégicos na implantação e no desenvolvimento do Nasf em sua equipe; (2) profissionais que atuavam há aproximadamente um ano na mesma equipe Nasf; e (3) profissionais de equipes com pelo menos um ano no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES). A partir das indicações, buscou-se garantir ao menos um representante de cada categoria e um profissional de cada equipe. Desta forma, participaram da pesquisa três psicólogas, três terapeutas ocupacionais, dois assistentes sociais, dois nutricionistas, um fisioterapeuta e um educador físico, totalizando 12 profissionais de nove equipes.

Foram feitas entrevistas semiestruturadas em profundidade, realizadas em sua maioria no ambiente de trabalho dos sujeitos - algumas se deram em sala isolada na UFBA. O roteiro de entrevista foi estruturado a partir dos eixos: escolha profissional; processo de formação; trajetória socioprofissional; trabalho no Nasf; identidade profissional e práticas de saúde. O estudo seguiu os pressupostos da análise de conteúdo (Bauer, 2002BAUER, M. W. Análise de conteúdo clássica: uma revisão. In: BAUER, M. W.; GASKELL, G. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 189-217.), tendo como referência teórica a perspectiva da socialização no processo de construção das formas identitárias de Dubar (2005DUBAR, C. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes, 2005.). A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Professor Edgar Santos da Universidade Federal da Bahia (Hupes/UFBA), sob o número 473.854/2013.

Trajetórias de formação: motivações, características marcantes e percepções acerca do processo de socialização vivenciado

A idade média dos entrevistados foi de 32 anos, variando de 26 a 39, sendo a ampla maioria composta por mulheres. Esses profissionais trabalhavam em média em suas equipes havia dois anos e tinham tempo médio de formação de 8,3 anos, variando entre 4 e 16 anos. Sete participantes se formaram em universidades públicas e nove não fizeram estágio na Estratégia Saúde da Família (ESF) durante a graduação. Sete profissionais tinham concluído ou estavam cursando pós-graduação em área correlata ao campo da saúde coletiva e quatro fizeram residência multiprofissional em saúde da família. Apenas um profissional tem mestrado na área e dois tinham alguma especialização relacionada à perspectiva clínica de atuação.

Em relação à decisão pela profissão, de forma geral, os entrevistados relataram que conheciam superficialmente as diferentes profissões da área, escolhendo-as, com alguma facilidade, a partir de características de personalidade e vivências em outros âmbitos, sobretudo familiar e educacional, que configuravam uma perspectiva assistencialista de cuidado.

Em relação ao processo de formação vivenciado em seus cursos, também foi possível perceber o predomínio de elementos similares nas trajetórias da maioria destes profissionais, uma vez que seus currículos se centravam em torno do estudo de patologias, do aprendizado da prática clínica individual e da aquisição de habilidades essencialmente técnicas, com dissociação entre teoria e prática, e pouca inserção em serviços públicos de saúde. A maioria dos entrevistados relatou que percebia essas discrepâncias, a ponto de vivenciar “momentos de dúvidas em relação à permanência nos cursos”, ao não se identificar com essa proposta de formação e de trabalho (sujeitos 1, 2, 3, 4, 6, 7, 9 e 10). Vale ressaltar que apenas os profissionais do serviço social e da educação física admitiram concordar com os eixos centrais de suas formações, que foram caracterizadas como “ampliadas, críticas e não tecnicistas” (sujeitos 8, 11 e 12).

Alguns entrevistados apontam que começaram a desenvolver maior interesse em “abordagens coletivas de trabalho em saúde” (sujeitos 3, 4, 5, 6 e 7). Nesse particular, o contato com o campo da saúde coletiva demonstrou ter sido “fundamental” para que prosseguissem em seus cursos, o que aconteceu principalmente por meio de projetos de pesquisa e extensão (sujeitos 4 e 9). Ainda assim, o lugar da saúde coletiva nos currículos foi apontado como “marginal” por todos os entrevistados, chegando a ser “inexistente” para alguns.

A maioria dos profissionais se aproximou de movimentos políticos de forma significativa durante a graduação. Sete tiveram relação com o movimento estudantil, tendo a maioria atuado em centros e diretórios acadêmicos, motivada, sobretudo, por questões relacionadas à “estruturação de seus cursos” (sujeitos 1, 5, 6, 7, 8 e 10), “assistência estudantil” (sujeitos 8 e 9), à “luta em defesa do SUS” (sujeitos 5, 7 e 10) e à “reorientação dos currículos” (sujeitos 5, 7 e 10). A participação no movimento estudantil foi “essencial para a formação crítica e política” (sujeitos 1, 4, 5, 7 e 10) e parte importante dos conhecimentos relacionados ao SUS foi construída nesses espaços de militância. Além disso, outros três profissionais chegaram a se aproximar de outros movimentos durante a graduação, como movimento negro (sujeito 9), movimento político-partidário no campo da esquerda (sujeito 4) e associação de pais de pessoas com deficiência (sujeito 6).

Os entrevistados reconheceram a insuficiência de seus cursos em relação aos conhecimentos e métodos adequados para o trabalho que desenvolvem no Nasf, apontando principalmente os “limites da formação em saúde coletiva”, área que consideraram essencial para o trabalho atual. Entretanto, as experiências vividas em outros espaços de aprendizagem, como pesquisa, extensão e movimento estudantil, foram apontadas como fundamentais, por terem dado “subsídios importantes para a prática que desenvolvem e para a construção de uma concepção ampliada de saúde” (sujeitos 1, 4, 5, 7 e 9).

Verificou-se que foi comum o sentimento de não “filiação” da maioria dos entrevistados à cultura político-institucional de seus cursos, bem como o processo recorrente de estranhamento dos demais sujeitos envolvidos nessa socialização, como professores e colegas de curso, que não os reconheciam como pares, reforçando “crises de autorreconhecimento”. Entretanto, paradoxalmente, este processo foi apontado por vários profissionais como positivo em suas trajetórias, sobretudo por ter demandado uma “postura mais ativa em relação à própria formação” (sujeito 5), levando-os a “desenvolverem novas habilidades e capacidades necessárias para o trabalho em saúde”. Ressalta-se que quatro sujeitos (9, 10, 11 e 12) afirmaram não ter passado necessariamente por esse tipo de conflito, incluindo aqueles cujos cursos não apresentavam enfoque estritamente clínico de formação.

Trajetórias socioprofissionais prévias ao Núcleo de Apoio à Saúde da Família: principais movimentos de emprego, características marcantes e percepções acerca do processo de socialização vivenciado

Os principais espaços de atuação profissional prévia dos entrevistados estavam relacionados a projetos multiprofissionais em âmbitos diversificados, que demandavam práticas nas quais o fazer técnico específico não era central em suas abordagens, ainda que fossem permeadas por conhecimentos oriundos de seus núcleos profissionais. Assim, foi possível identificar experiências de socialização na “gestão de programas e políticas de saúde” (sujeitos 1, 6 e 11), na “formação de estudantes” (sujeitos 3 e 7) e profissionais por meio das universidades, na “execução de projetos sociais de mobilização de jovens e qualificação de trabalhadores” (sujeito 10) e em serviços não convencionais de cuidado à saúde (sujeito 6), como “brinquedotecas”. A maioria desses espaços estava relacionada ao setor público, prevalecendo vínculos precários de trabalho. Ademais, quatro sujeitos cursaram residência multiprofissional em saúde da família (sujeitos 3, 5, 7 e 10).

Os espaços clínicos convencionais, como consultórios privados, atendimentos domiciliares ou serviços ambulatoriais, não se configuraram como locais privilegiados de atuação desses sujeitos. Assim, embora cinco profissionais tenham trabalhado numa perspectiva de atendimento clínico individual (sujeitos 5, 6, 7, 9 e 10), dois deles referiram ter passado rapidamente por essa experiência, enfrentando dificuldades de adaptação, seja por não conseguir estabelecer uma relação de “cobrança pelos serviços prestados” (sujeito 5), seja pelo “excesso de atividades e condições inadequadas de trabalho” (sujeito 9), que afetavam sua autonomia, o que considerava “alienante”. Três seguiam desenvolvendo suas atividades clínicas em reabilitação (sujeitos 6, 7 e 10), de forma paralela ao trabalho no Nasf, seja em atendimentos domiciliares privados, seja em instituições especializadas em reabilitação, pública e privada.

Ao menos dois profissionais relataram ter desenvolvido práticas consideradas mais restritas de suas profissões por motivos financeiros, o que os levou a se inserirem no campo da “produção industrial” (sujeito 9) e no “trabalho fiscal em conselho de classe” (sujeito 12), atividades que não exerciam mais. Ademais, uma profissional teve experiência atuando em “assessoria a estudantes de colégios privados” (sujeito 2).

Em relação a estas experiências, a maioria dos entrevistados pontuou como características marcantes de seus trabalhos a possibilidade de conduzir uma prática não medicalizante. O trabalho multiprofissional foi uma realidade para sete profissionais (sujeitos 1, 3, 5, 6, 10, 11 e 12), dos quais três já tinham trabalhado em outro Nasf. Cinco entrevistados vivenciaram situações comunitárias de atuação, em geral relacionadas a “populações consideradas socialmente vulneráveis” (sujeitos 1, 2, 8, 11 e 12), o que permitiu a construção de habilidades para o desenvolvimento de um trabalho com enfoque coletivo. Os sujeitos que vivenciaram uma prática mais direcionada para o atendimento clínico reforçaram que esta era diferenciada, pois “atuavam a partir de uma perspectiva social do processo saúde-doença” (sujeitos 6 e 10), o que implicava “práticas ampliadas de cuidado em saúde” (sujeito 7).

O contexto de trabalho no Núcleo de Apoio à Saúde da Família: motivações, características do trabalho e percepções acerca do processo de socialização e de si mesmos

Observou-se que as principais motivações que levaram a maioria dos profissionais a se inserir no Nasf estão relacionadas à possibilidade de “participar de uma proposta com enfoque coletivo” (sujeitos 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10 e 12), considerada diferenciada e orientada por uma “perspectiva ampliada de cuidado em saúde” (sujeitos 4 e 5), sobretudo por contemplar a atenção às famílias em contextos territoriais. Nesse sentido, foram feitas alusões à “construção de um novo modelo de atenção” (sujeitos 3, 4 e 5), orientado por práticas de prevenção de riscos e promoção da saúde, de forma que o “hospital não se configurasse como a única possibilidade de cuidado para os usuários” (sujeito 3).

Quatro profissionais pontuaram que esse era um objetivo vislumbrado desde a época da graduação e outros três afirmaram ter conhecido a proposta do Nasf somente em experiências de residências multiprofissionais em saúde da família, tendo todos se afinado com os pressupostos gerais da proposta. Três entrevistadas fizeram referência também ao fato de terem buscado sair de empregos que não as motivavam (sujeitos 1, 9 e 11), principalmente porque lidavam “somente com usuários doentes” (sujeito 9), incluindo alguns em situação que “demandava cuidados paliativos” (sujeito 11), o que foi considerado “desgastante e adoecedor”. Ademais, quatro sujeitos apontaram como uma motivação a mais a “busca por estabilidade profissional e financeira” (sujeitos 2, 3, 7 e 12), o que não tinham até então, e dois fizeram referência à “exclusão de outras possibilidades de lotação no concurso” (sujeitos 11 e 12), com as quais não se identificavam.

Os entrevistados, de forma geral, definiram o Nasf como uma equipe que trabalha em função de apoiar as EqSF, enfatizando que se trata de um apoio orgânico ao trabalho destas equipes, pois vai além de uma prática pontual de retaguarda, com presença contínua e cotidiana, que se configura necessariamente em função das características do lugar onde trabalham. Ressalta-se também a frequência com que se referem à ideia de trabalho coletivo enquanto espaço de construção e reconstrução de práticas das equipes de Saúde da Família, e não apenas o somatório de diferentes especialidades. Ainda sobre esta questão, apenas 1 profissional definiu o Nasf como “espaço de agrupamento de especialistas” (sujeito 11) que trabalham essencialmente em função do que é demandado pelas EqSF.

Em relação às principais características desse trabalho, todos os profissionais ressaltaram a “centralidade da interdisciplinaridade e da multiprofissionalidade”, frisando o caráter processual e necessariamente relacional do Nasf, o que demanda “disponibilidade, atitude crítica e habilidades de um generalista”. Caracteriza ainda este trabalho a “necessidade permanente do planejamento coletivo” (sujeito 5), levando-se em conta que são “as características da população e do território que definem o eixo orientador do trabalho do Nasf” (sujeito 10), em detrimento do privilégio das características específicas do perfil profissional de cada sujeito. Ademais, identificou-se o “caráter permanentemente formador” do próprio trabalho.

Em relação às diferenças desse trabalho para os anteriormente vivenciados, 11 entrevistados ressaltaram o fato de o trabalho em equipe ser considerado efetivamente “interdisciplinar”, por demandar que o profissional necessariamente “transite por diferentes áreas do conhecimento”. Além disso, apontou-se a importância de uma “prática generalista” construída a partir das necessidades de saúde da população, e não apenas do perfil técnico ou do interesse do profissional, cabendo ressaltar que tal prática é “ampliada na medida em que inclui atividades de planejamento, gerenciamento e mobilização social”, dentre outras. Nesse particular, foram feitas referências à autonomia da equipe em relação ao trabalho, chamando-se a atenção para o fato deste ser “dinâmico, não se estruturando a partir de uma lógica produtivista” (sujeitos 4, 5, 6, 7 e 9), o que permite o exercício de “reflexão e criatividade”. Nesse sentido, enfatiza-se que o profissional tem mais condições de gerenciar seu próprio trabalho, ainda que este resulte “mais lento” (sujeito 2), pois depende do andamento do trabalho das EqSF, com o qual é imbricado, nem sempre estando estas equipes disponíveis para uma ação conjunta.

Compõe também as características do trabalho na realidade estudada o fato desses núcleos estarem inseridos em um contexto de “desestruturação e fragilidade da ESF” (sujeitos 4, 5, 7 e 11), o que está associado à “falta de capacitação e de condições adequadas de trabalho”, dificultando o trabalho do Nasf. Essas questões se relacionam ao lugar que o núcleo ocupa no contexto da ESF no município, segundo os profissionais. Para todos, há “pouco investimento político, técnico e financeiro da gestão municipal na proposta”, o que se estende à AB como um todo, sendo comum a “sensação de invisibilidade e subutilização” (sujeitos 5, 7 e 11). Também há resistência por parte de algumas “EqSF que demandam uma perspectiva essencialmente ambulatorial ao Nasf” (sujeitos 2, 3, 5, 6 e 10) e se sentem incomodadas por esta não ser a proposta do núcleo. Entretanto, seis entrevistados afirmam que a relação com as demais equipes está “melhorando progressivamente”, a partir de mudanças que provocaram uma redefinição do papel destes núcleos nos distritos sanitários, o que tem feito a gerência “enxergar as potencialidades estratégicas do Nasf para a reorientação do trabalho das EqSF” (sujeito 12).

Por fim, em relação às percepções que os profissionais têm de si mesmos no contexto de trabalho no Nasf em Salvador, 11 entrevistados afirmam que “se reconhecem como profissionais do Nasf”, sendo o principal motivo para esta expressiva identificação a “característica coletiva de trabalho”, que “permite um aprendizado constante por meio do próprio trabalho” a partir de um processo permanente de reflexão e reorientação profissional. Além disso, verifica-se que o reconhecimento que fazem de si mesmos como profissionais do Nasf está relacionado à possibilidade de “se perceberem efetivamente como profissionais da saúde”, extrapolando os limites dos núcleos profissionais dos quais se originam.

Foi ressaltada também a “capacidade específica do profissional do Nasf em vivenciar todos os momentos do processo de trabalho” (sujeito 9) desde sua concepção à execução final, garantindo maior autonomia e pertencimento ao trabalho. Apenas uma entrevistada demonstrou estar em conflito em relação ao Nasf (sujeito 11), alternando momentos de identificação e de estranhamento com a proposta, sobretudo por questionar-se se não “deveria, diante da grande demanda reprimida da população, atuar numa perspectiva ambulatorial de atenção à saúde fora do Nasf”.

Essas percepções são reforçadas pelas mudanças pelas quais os profissionais afirmaram estar passando a partir do trabalho que constroem no Nasf. Estas são centradas, sobretudo, na construção de uma identidade que extrapola a profissão, vista até então como essencialmente técnica, que passa a ser configurada em função da equipe, de forma estratégica e relacional, sendo comum a referência a um processo de transformação no qual “o técnico torna-se profissional da saúde”. Nesse sentido, novas habilidades foram construídas e passaram a fazer parte do cotidiano das atividades no Nasf, tais como capacidade de articular a rede de serviços e de atores no território, mediar e planejar ações, comunicar-se, agir de forma horizontal e menos prescritiva em relação ao usuário, colocar-se no lugar do outro e antecipar problemas, inovar-se e ser responsável pelo próprio processo de capacitação e, ainda, exercer processos participativos e romper com posições consideradas cristalizadas.

Essas questões vêm conformando o profissional do Nasf, segundo os próprios entrevistados, que o definem como um generalista em constante transformação que é caracterizado principalmente pela superação dos limites profissionais clássicos e pelo engajamento em processos que disparem mudanças nas formas de se organizar e prestar a atenção à saúde na AB.

Discussão

O fato de processos de socialização vivenciados nas trajetórias dos sujeitos desta pesquisa terem apresentado características semelhantes reforça a perspectiva teórica deste estudo, que diz respeito à conformação de uma situação na qual as trajetórias subjetivas e os contextos de ação em que se inseriram podem ser considerados homólogos. Essa é uma importante base para o surgimento de uma forma identitária profissional, conforme aponta Dubar (2005DUBAR, C. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes, 2005.).

Vale ressaltar o papel de dois processos específicos de socialização marcantes nas trajetórias de formação. O primeiro se refere à aproximação que a maioria teve com o campo da saúde coletiva, que, embora tenha sido incipiente, potencializou a qualificação da crítica à formação tecnicista e descontextualizada de seus cursos, reafirmando, assim, a característica disparadora de processos de mudança/transformação da realidade que é inerente ao campo (Paim; Almeida-Filho, 1998PAIM, J. S.; ALMEIDA-FILHO, N. Saúde coletiva: uma “nova saúde pública” ou campo aberto a novos paradigmas? Revista de Saúde Pública , São Paulo, v. 32, n. 4, p. 299-316, 1998.). O segundo diz respeito à aproximação, ou mesmo inserção, de parte importante desses sujeitos em movimentos sociais, especialmente o movimento estudantil, evidenciando uma capacidade política de ação, reivindicatória e propositiva, que caracteriza o sujeito militante (Reis; Soares; Campos, 2010REIS, A. M.; SOARES, C. B.; CAMPOS, C. M. S. Processo saúde-doença: concepções do movimento estudantil da área da saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 19, n. 2, p. 347-357, 2010.; Testa, 2005TESTA, M. Vida: señas de identidad (miradas al espejo). Salud Colectiva, La Plata, v. 1, n. 1, p. 33-58, 2005.).

Essa constatação, em particular, ainda que tenha sido provocada a partir do processo de formação desses sujeitos em seus cursos de graduação, reforça a importância da participação social na composição da identidade profissional, especialmente na área de saúde, na qual tem ocorrido grande politização a partir do movimento pela Reforma Sanitária Brasileira (Paim, 2008PAIM, J. S. Reforma sanitária brasileira: contribuição para a compreensão e crítica. Salvador: Edufba; Rio de Janeiro: Fiocruz, 2008.). No caso dos profissionais entrevistados, isso evidencia o entrelaçamento entre a prática técnica na saúde coletiva e a prática política, o que certamente se expressa também em sua configuração identitária.

De forma geral, as interações construídas em tais processos de socialização permitiram que a perspectiva assistencialista do cuidado em saúde desse lugar à noção de integralidade da atenção à saúde no sentido de garantir o direito à saúde. Com isso, esses sujeitos foram levados a assumir uma postura protagonista na defesa do SUS, que passou a ser o principal espaço agregador não apenas de lutas, mas também das perspectivas de inserção profissional.

Já as trajetórias socioprofissionais prévias ao trabalho no Nasf permitiram o trabalho junto a outros profissionais, o que foi pouco explorado na formação desses sujeitos, sobretudo em espaços ampliados de atuação profissional que não se restringiam à atuação clínica tradicional. Dessa forma, percebe-se nos participantes uma tendência a ocupar espaços que demandam não apenas conhecimento técnico específico, mas sobretudo ação estratégica em suas atividades, o que foi potencializado a partir das interações estabelecidas com profissionais de formações distintas que desempenhavam funções semelhantes.

Conforma-se, assim, ainda que de forma incipiente, uma prática contrária ao tecnicismo e à medicalização, características históricas do trabalho em saúde no sistema capitalista (Merhy, 2014MERHY, E. E. O capitalismo e a saúde pública: a emergência das práticas sanitárias no estado de São Paulo. 2. ed. Porto Alegre: Rede Unida, 2014. Coleção Clássicos da Saúde Coletiva.), evidenciando o aprofundamento de uma forma identitária que se afasta da lógica centrada em diagnóstico e conduta terapêutica. Dessa forma, é comum a referência à afirmação de um profissional humanizado, engajado, que considera o contexto social e não se limita ao fazer técnico específico, ainda que este processo se expresse em diferentes medidas na realidade desses profissionais.

Nota-se, portanto, que a demarcação da diferença em relação a seus pares, inicialmente construída durante o processo de formação, dá lugar à busca pela convergência entre os que são originalmente distintos, mas que começam a construir espaços de reconhecimento entre si. Entretanto, esse processo apresentou importantes limitações oriundas das características dos contextos de ação em que esses profissionais se inseriram, uma vez que, mesmo diante da possibilidade de interação multiprofissional, as capacidades de criação e intervenção conjuntas eram limitadas. Essa questão se expressa nitidamente na abordagem clínica que alguns desenvolveram, pois, mesmo buscando construir uma prática ampliada de cuidado, esbarravam nos limites do serviço especializado, para alguns, e da própria lógica comercial do sistema privado, para outros. Isso fez com que suas práticas e, consequentemente, suas identidades, fossem permanentemente constrangidas por esse contexto, de modo que se ativessem à profissionalidade, ainda que de uma forma menos convencional.

Em relação ao contexto de trabalho no Nasf, observa-se que as motivações que fizeram a maioria desses profissionais se inserir nesse espaço têm relação direta com o movimento de formação identitária que já vinha sendo construído paulatinamente em sua trajetória e corroboram uma perspectiva orientada pela coletividade e pela necessidade de construir novas práticas, criadas ou reconstruídas a partir do compartilhamento entre diferentes profissionais, visando superar a fragmentação do cuidado (Pires, 2000PIRES, D. Reestruturação produtiva e consequências para o trabalho em saúde. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, DF, v. 53, n. 2, p. 251-263, 2000.).

É nítido que, somente após a inserção na estrutura de ação do Nasf, os participantes encontraram condições de se reconhecerem efetivamente profissionais da saúde, na medida em que passaram a integrar uma equipe de trabalho efetivamente colaborativo, interdependente e complexo, na qual são demandados a desenvolver ações que extrapolem as atividades exclusivamente técnicas de suas profissões ou que promovam permanente reflexão sobre elas a partir das demais áreas de conhecimento, tendo como ponto de partida as diversas necessidades de saúde dos territórios. Essas características dialogam com a perspectiva do trabalho em equipe interprofissional, apontando para sua potência no que diz respeito ao fortalecimento da AB (Peduzzi; Agreli, 2018PEDUZZI, M.; AGRELI, H. F. Trabalho em equipe e prática colaborativa na Atenção Primária à Saúde. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 22, p. 1525-1534, 2018. Suplemento 2.; Peduzzi et al., 2020PEDUZZI, M. et al. Trabalho em equipe: uma revisita ao conceito e a seus desdobramentos no trabalho interprofissional. Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 18, 2020. Suplemento 1.).

Nesse sentido, os profissionais compreendem que o Nasf, além de ser uma ferramenta institucional de apoio às EqSF, caracteriza-se como um trabalho que tem organicidade com a AB, assumindo a condução de processos centrais no campo do cuidado em saúde. Isso tem permitido aos sujeitos se reconhecerem fortemente como parte integrante da proposta, refutando perspectivas que apontem para uma identidade meramente acessória ou coadjuvante.

Essa perspectiva tem possibilitado reflexões permanentes sobre o próprio trabalho desses sujeitos, já que a estrutura de ação do Nasf produz problemas e desafios cotidianos, colocando-os numa posição em que precisam se transformar para e pela realidade do trabalho concreto que desenvolvem nos territórios. Assim reafirmam a perspectiva ontológica do trabalho em saúde, que não apenas os determina como força produtiva, mas também possibilita a expressão e realização de si mesmos, corroborando Netto e Ramos (2004NETTO, L. F. S. A.; RAMOS, F. R. S. Considerações sobre o processo de construção da identidade do enfermeiro no cotidiano de trabalho. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 12, n. 1, p. 50-57, 2004.), o que passa tanto pela organização tecnológica do trabalho em saúde que desenvolvem quanto pelas competências profissionais construídas ao longo do processo de formação (Sisson, 2009SISSON, M. C. Identidades profissionais na implantação de novas práticas assistenciais. Revista Brasileira de Educação Médica, Brasília, DF, v. 33, p. 116-122, 2009. Suplemento 1.).

Uma importante característica diferencial do Nasf identificada nesta pesquisa diz respeito ao grau de autonomia dos profissionais em relação ao seu trabalho, que não sofre a mesma pressão produtivista percebida em outros serviços, permitindo à equipe maior controle sobre o próprio trabalho, o que corrobora Arce e Teixeira (2018ARCE, V. A. R.; TEIXEIRA, C. F. Atividades desenvolvidas por profissionais de Núcleos de Apoio à Saúde da Família: revisão da literatura. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 16, n. 3, p. 1443-1464, 2018.). Essa característica demonstra que, em alguma medida, rompe-se com a lógica taylorizada do trabalho em saúde frequentemente observada no modelo hegemônico de atenção à saúde (Merlo; Lapis, 2007MERLO, A. R. C.; LAPIS, N. L. A saúde e os processos de trabalho no capitalismo: reflexões na interface da psicodinâmica do trabalho e da sociologia do trabalho. Psicologia & Sociedade, Belo Horizonte, v. 19, n. 1, p. 61-68, 2007.), o que reflete diretamente sobre o profissional, que se desloca do lugar de executor de tarefas pré-estabelecidas e reificadas, passando a ser responsável também pelo trabalho intelectual, ou seja, pelo planejamento do próprio trabalho. Verifica-se, dessa forma, a potencialidade da estrutura de ação do Nasf, que, em certa medida, contribui para a desalienação do profissional e a formação de sujeitos sociais, elementos que, segundo Paim (2006PAIM, J. S. Desafios para a Saúde Coletiva no século XXI. Salvador: Edufba , 2006.), são necessários para a consolidação de agentes de práticas transformadoras no âmbito do sistema de saúde.

Apesar disso, esse contexto de ação também é marcado por pouco investimento político e financeiro, conforme também observaram Arce e Teixeira (2017ARCE, V. A. R.; TEIXEIRA, C. F. Práticas de saúde e modelo de atenção no âmbito do Núcleo de Apoio à Saúde da Família em Salvador (BA). Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 41, p. 228-240, 2017. Número especial 3.), o que tem propiciado certa invisibilidade do Nasf no contexto da ESF no município, que também sofre com a desestruturação e com a hegemonia do modelo médico assistencial privatista de atenção à saúde. Isso tem dificultado o desenvolvimento da proposta como um todo, ainda que, em alguma medida, também provoque o aprofundamento do amadurecimento político desses profissionais, que têm reagido às adversidades do trabalho buscando maior articulação entre as diferentes equipes Nasf e participação ativa em movimentos de luta no campo da saúde. Essa mobilização, em um contexto de ação marcado pelo trabalho interprofissional e autônomo, tem levado à constituição de atores políticos (Testa, 2005TESTA, M. Vida: señas de identidad (miradas al espejo). Salud Colectiva, La Plata, v. 1, n. 1, p. 33-58, 2005.), importantes no cenário da saúde do município, que partem das interações construídas no trabalho e se expressam em relações técnicas e sociais mais democráticas, ainda que os questionamentos sobre si mesmos sigam fazendo parte do cotidiano de trabalho desses sujeitos.

Ressalta-se que, embora esse processo de autoquestionamento identitário seja permanente, reconhece-se que parte dele também é oriunda da ausência de políticas específicas para a efetiva implantação do Nasf na AB, tornando-o tão frágil a ponto de ter seu incentivo financeiro suspenso com a mudança na política de financiamento da AB realizada pelo Ministério da Saúde. Essa alteração tem sido criticada por sanitaristas devido ao seu caráter privatizante, orientado por uma perspectiva seletiva e focalizada de APS proposta e baseado em uma concepção de cobertura universal em saúde, em detrimento do sistema de saúde universal almejado para o SUS (Seta; Ocké-Reis; Ramos, 2021SETA, M. H.; OCKÉ-REIS, C. O.; RAMOS, A. L. P. Programa Previne Brasil: o ápice das ameaças à Atenção Primária à Saúde? Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 26, p. 3781-3786, 2021. Suplemento 2.). Nesse sentido, aspectos macropolíticos, como infraestrutura e condições de trabalho, assim como a desestruturação das EqSF, acabam por reforçar uma lógica ambulatorial de especialidades no Nasf (Mazza et al, 2020MAZZA, D. A. A. et al. Aspectos macro e micropolíticos na organização do trabalho no NASF: o que a produção científica revela? Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 30, n. 4, 2020.), o que impacta diretamente na construção do trabalho em equipe e na definição do objeto deste trabalho, conformando um ciclo vicioso que carece ser interrompido, e demanda, portanto, o fortalecimento da ação política dos profissionais do Nasf.

Considerações finais

Ressalta-se, como limite, que a pesquisa foi realizada em 2015, ou seja, antes da mudança na política de financiamento da AB, todavia seus resultados reforçam a tese de que a inserção de novos profissionais na lógica da ESF implica questões políticas, organizativas e subjetivas. Isso porque novos sujeitos trazem consigo suas histórias, pessoais e profissionais, que remetem tanto às experiências individuais de formação e de trabalho quanto à construção histórica das profissões e dos lugares que estas ocupam no sistema produtivo e na sociedade.

Embora tenha havido uma sinergia entre os diferentes contextos de ação vivenciados pelos profissionais, percebeu-se que o desenvolvimento de novas práticas de saúde no Nasf, engendradas em uma configuração de organização do trabalho diferenciada daquelas até então vivenciadas, criou condições para a emergência de uma forma identitária essencialmente estratégica e relacional, forjada fundamentalmente em situação de trabalho em equipe interprofissional.

Desse modo, considera-se que os profissionais, enquanto buscam transformar as necessidades de saúde da população, também estão sendo transformados, em um processo marcado não só por conflitos, mas também pela emergência de novas práticas de saúde no âmbito da AB. Pode-se afirmar, com isso, que a constante busca por mudanças no trabalho em saúde tem sido a característica central no processo de constituição desses sujeitos e constitui uma potencialidade para a reorientação do modelo de atenção à saúde na realidade estudada, o que reforça a importância do trabalho do Nasf para a ampliação do cuidado e fortalecimento da integralidade na ESF.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    01 Set 2021
  • Revisado
    01 Set 2021
  • Aceito
    20 Out 2021
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