Determinantes sociais do uso de álcool na infância e adolescência em territórios rurais

Elitiele Ortiz dos Santos Leandro Barbosa de Pinho Aline Basso da Silva Adriane Domingues Eslabão Cristiane Kenes Nunes Sobre os autores

Resumo

Este artigo visa analisar os determinantes sociais que envolvem o uso de álcool na infância e adolescência em territórios rurais. Trata-se de um estudo qualitativo, desenvolvido por meio da Avaliação de Empoderamento, realizado em município de pequeno porte do Rio Grande do Sul com trabalhadores da rede de atenção psicossocial e intersetorial. Para análise dos dados, foi utilizada a análise temática. Os determinantes sociais analisados demonstram o uso de álcool como parte da cultura das famílias pomeranas e dos rituais religiosos que marcam a passagem do jovem para a vida adulta. No aspecto relacionado ao trabalho, observa-se o uso de álcool como uma forma de lazer frente às responsabilidades que o jovem assume na lavoura. Identifica-se a influência do gênero e situações de violência - os meninos são motivados a experimentarem o álcool, enquanto as meninas são as maiores vítimas das agressões físicas. Observa-se comportamentos de risco em situações de acidente de trânsito envolvendo crianças e adolescentes sob efeito de álcool. Os determinantes sociais ampliam a visão sobre o tema, afastando-se de uma concepção exclusivamente de dependência química e biológica para abranger os múltiplos fatores como os territórios, culturas, trabalho e sociedade.

Palavras-chave:
Criança; Adolescente; Zona Rural; Bebidas Alcoólicas; Saúde Mental

Introdução

O uso e abuso de drogas vivenciado por crianças e adolescentes é um problema de saúde pública que afeta muitas famílias e que tem relação direta com a cultura e o contexto social. Uma das principais drogas utilizadas por essa faixa etária é o álcool, acredita-se que pela facilidade de compra e naturalização do seu consumo pela sociedade e no ambiente familiar (Henriques; Rocha; Reinaldo, 2016HENRIQUES, B. D.; ROCHA, R. L.; REINALDO, A. M. S. Use of crack and other drugs among children and adolescents and its impact on the family environment: an integrative literature review. Texto & Contexto - Enfermagem, Florianópolis, v. 25, n. 3, p. 1-10, 2016. 10.1590/0104-07072016001100015
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; Oliveira et al., 2020OLIVEIRA, P. C. et al. Surviving: social vulnerability experienced by suburban adolescents. Interface, Botucatu, v. 24, p. 1-17, 2020. DOI: 10.1590/Interface.190813
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).

A infância é uma fase da vida em que a criança é introduzida a uma cultura histórica e social e, neste momento, adquire especificidades humanas, por meio das vivencias e relações com outras crianças, adultos e elementos humanos, simbólicos e materiais (Quinteiro, 2019QUINTEIRO, J. Educação, infância e escola: a civilização da criança. Revista do centro de ciências da educação, Florianópolis, v. 37, n. 3, p. 728-747, 2019.). Já a adolescência é uma etapa marcada por muitas mudanças biológicas, físicas, sociais e psicológicas significativas e, por vezes, determinantes, pois, associadas com outros fatores, principalmente ambientais, podem induzir ao uso/abuso de drogas. Por isso, a infância e adolescência são etapas singulares, nas quais há necessidade de um qualitativo acompanhamento familiar, escolar e de saúde (Moura; Monteiro; Freitas, 2016MOURA, N. A.; MONTEIRO, A. R. M.; FREITAS, R. J. M. Adolescents using (il)licit drugs and acts of violence. Revista de Enfermagem da UFPE, Recife, v. 10, n. 5, p. 1685-1693, 2016. DOI: 10.5205/reuol.9003-78704-1-SM.1005201614
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).

Os cuidados em saúde mental direcionados à criança e à adolescência ganham visibilidade com a criação na Lei nº 8.069/1990, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), o movimento de Reforma Psiquiátrica e a implementação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que é direcionada ao cuidado de crianças, adolescentes, adultos e idosos em sofrimento psíquico e com necessidades de atenção devido ao uso e abuso de drogas.

Esses ordenamentos políticos, possibilitaram a abertura de serviços de cuidado de base territorial e trouxeram uma nova compreensão sobre o conceito de saúde, bem como a necessidade de ampliar os modos de agir e cuidar, incluindo a compreensão dos determinantes sociais para visualização das necessidades em saúde.

Os determinantes sociais trazem como pressuposto fundamental que a compreensão do processo saúde/doença passa pela análise interdisciplinar das formas de organização da sociedade, envolvendo as questões econômicas, sociais, modos de vida, rede de relações, territórios e culturas, e não apenas situações exclusivamente naturais e biológicas que marcam uma visão biomédica e positivista (Garbois; Sodre; Dalbello-Araujo, 2017GARBOIS, J. Á.; SODRE, F.; DALBELLO-ARAUJO, M. From the notion of social determination to one of social determinants of health. Saúde Debate, Rio de Janeiro, v. 41, n. 112, p. 63-76, 2017. DOI: 10.1590/0103-1104201711206
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).

As condições de vida, a acessibilidade aos serviços e ações de saúde pública, aos recursos comunitários, bem como o suporte social na comunidade, gênero, raça, etnia, entre outros fatores, fazem parte de uma equação complexa que se articulam de forma diferenciada em contextos urbanos e rurais e que condicionam as diferenças no processo saúde-doença-cuidado observadas nesses cenários (Belmarino et al., 2016BELMARINO, V. H. et al. Território e determinação social da saúde mental em contextos rurais. In: DIMENSTEIN, M. et al. (Org.). Condições de vida e saúde mental em contextos rurais. São Paulo: Intermeios, 2016. p. 95-117.).

Nos territórios rurais, alguns estudos nacionais e internacionais demonstram que o consumo arriscado do álcool entre adolescentes é semelhante ou maior que o das áreas urbanas, com particularidades dos modos de vida que reverberam na relação das crianças e adolescentes com o uso do álcool (Donath et al., 2011DONATH, C. et al. Alcohol consumption and binge drinking in adolescents: comparison of different migration backgrounds and rural vs. urban residence-a representative study. BMC Public Health, London, v. 11, n. 84, p. 2-14, 2011. DOI: 10.1186/1471-2458-11-84
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; Obradors-Rial et al., 2020OBRADORS-RIAL, N. et al. School and town factors associated with risky alcohol consumption among Catalan adolescents. Alcohol, Amsterdam, v. 82, p. 71-79, 2020. DOI: 10.1016/j.alcohol.2019.04.005
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).

Entende-se que pode haver formas diferentes de vivenciar o território, sendo que, nos territórios rurais, o processo saúde/doença e uso de drogas na infância e adolescência têm especificidades locais, das relações construídas neste território existencial, que devem ser pensadas no fazer saúde e na construção das políticas públicas de cuidado e da organização das equipes locais. Assim, o objetivo deste artigo é analisar os determinantes sociais que envolvem o uso de álcool na infância e adolescência em territórios rurais.

Metodologia

Nesta pesquisa, foi realizado um estudo avaliativo, de natureza qualitativa, com a utilização dos pressupostos metodológicos da Avaliação de Empoderamento, que se caracteriza como uma avaliação participativa que utiliza conceitos, princípios, técnicas para promover a compreensão dos contextos e melhorias de programas e tecnologias sociais (Fetterman; Kaftarian; Wandersman, 2015FETTERMAN, D. M.; KAFTARIAN, S. J.; WANDERSMAN, A. Empowerment evaluation. New York: Sage, 2015.).

A Avaliação de Empoderamento objetiva auxiliar as pessoas a avaliarem seus próprios programas/organizações/ações por meio de três etapas integradas: (1) construção da missão, ou seja, analisar o propósito que a organização pretende alcançar com o trabalho dos diferentes participantes; (2) conhecimento da situação atual na qual os participantes avaliam o momento atual do programa, as estratégias realizadas pelo programa e as ações que precisam ser priorizadas para o alcance da missão; (3) planejamento para o futuro, momento que ocorre a elaboração de objetivos, estratégias para alcançar a missão (Fetterman; Kaftarian; Wandersman, 2015FETTERMAN, D. M.; KAFTARIAN, S. J.; WANDERSMAN, A. Empowerment evaluation. New York: Sage, 2015.).

O campo de pesquisa foi a RAPS de um município de pequeno porte do Rio Grande do Sul, que foi selecionado intencionalmente por ser referência em termos de cuidado em rede na perspectiva da atenção psicossocial, sendo pioneira na implantação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) no estado. Este município teve população estimada de 44.580 habitantes em 2017, sendo que aproximadamente 50% vivem na área rural. É um município de colonização alemã, possuindo uma das maiores concentrações de descendentes pomeranos do mundo. Administrativamente, o município é composto por oito distritos, um distrito sede (urbano) e sete distritos rurais, nos quais há cinco áreas quilombolas (IBGE, 2017IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Brasil, Rio Grande do Sul, São Lourenço do Sul. IBGE, [S.l.], 2017. Disponível em: <Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rs/são-lourenco-do-sul/panorama >. Acesso em: 15 maio 2020.
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).

Os grupos de interesse deste estudo compreendem os trabalhadores dos serviços da RAPS no cuidado ao usuário de drogas. Para a produção de dados, utilizou-se a triangulação de métodos qualitativos: observação participante; entrevista semiestruturada; e fórum aberto.

Buscou-se acompanhar as práticas dos trabalhadores do CAPS Álcool e Outras Drogas (AD), e, a partir deste serviço, conhecer o que era produzido sobre o funcionamento da rede e suas conexões e composições. Esse processo envolveu a imersão em campo e a interação diária da pesquisadora principal do estudo nas atividades desenvolvidas da rede. Assim, a pesquisadora frequentou e participou das atividades da rede, durante os meses de março a dezembro de 2017, nos cinco dias da semana, no horário das 8h às 18h, para acompanhar as dinâmicas internas do serviço e suas relações com o trabalho em rede, em ações de cuidado no território e os fluxos cotidianos.

As entrevistas semiestruturadas foram aplicadas a 42 trabalhadores dos seguintes componentes da rede: 18 trabalhadores do componente de atenção básica em saúde (Redução de Danos, Unidade de Saúde Central, Estratégia de Saúde da Família (ESF) e Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF); nove da Atenção Psicossocial Estratégica (CAPS AD, CAPS I, CAPS infantil); um da Atenção à Urgência e Emergência (Serviço Atenção Móvel de Urgência (SAMU)); um da Atenção Hospitalar (enfermaria especializada em dependência química; um das Estratégias de Reabilitação Psicossocial (Serviço de Geração de Trabalho e Renda); três gestores da RAPS (Coordenação de saúde de saúde mental, da atenção básica, e do ensino pesquisa e extensão), cinco da Assistência Social (Secretaria da Assistência Social, CRAS, CREAS, Casa da Criança, PIM) e quatro da Rede Intersetorial: (conselho tutelar, escola, judiciário e Ministério Público). As entrevistas foram realizadas de forma individual, gravadas e transcritas na íntegra.

A entrevista foi realizada no intuito de aprofundar aspectos não elucidados durante as observações e que necessitavam de aprofundamento, e nela constavam questões sobre a missão da RAPS na atenção aos usuários de drogas, as necessidades e potencialidades atuais da rede, e as estratégias para o futuro da rede.

Os critérios de inclusão dos participantes foram: aceitar o convite para participar da pesquisa, ser coordenador há pelo menos um mês no serviço da rede e, para trabalhadores, ter pelo menos seis meses de vínculo empregatício.

O Fórum Aberto (FA) foi uma técnica utilizada para negociar e validar os dados da pesquisa, e contou com a participação dos profissionais que fazem parte do colegiado gestor: três gestores da RAPS (coordenador da Saúde Mental, coordenador da Atenção Básica, e coordenador da Residência Multiprofissional) e um representante dos componentes da Rede (CAPS AD III, CAPS I, CAPS Infantil e SAMU). O FA proporcionou convergência das informações obtidas tanto da análise das observações participantes quanto das entrevistas, a fim de priorizar a missão da RAPS, o conhecimento da situação atual da rede e as estratégias de planejamento para o futuro. O FA também possibilitou a discussão dos dados da pesquisa, permitindo o posicionamento de cada participante e uma reflexão para retomar os acontecimentos e produzir novos resultados de modo que todos pudessem ter oportunidade de alterar ou garantir sua credibilidade.

Para análise dos dados, utilizou-se a análise temática, a partir da qual foi realizada a leitura flutuante e exaustiva de todo o material coletado. Após, separou-se trechos e fragmentos importantes para o estudo, que foram distribuídos em tópicos - identificados como “unidade de informação” -, e, em seguida, foram aproximadas todas as unidades de informações semelhantes, originando as unidades de sentido. A partir da aproximação e do trabalho analítico das unidades de sentido, surgiram as categorias analíticas que norteiam o estudo. Por fim, foi realizada uma síntese interpretativa a partir do tratamento dos resultados obtidos, que foram submetidos a operações complexas ou simples que permitiram ressaltar os dados da pesquisa (Minayo, 2014MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14. ed. São Paulo: Hucitec, 2014.). A análise dos dados evidenciou categorias temáticas relacionadas à avaliação da RAPS. Neste artigo, será apresentada a categoria referente à etapa do conhecimento atual da rede, na qual emergiu a seguinte temática: determinantes sociais associado ao uso de drogas em crianças e adolescentes no meio rural.

Esta pesquisa se pautou nos princípios e nas diretrizes da Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde. Os trabalhadores foram identificados com a letra “T”, acompanhada do componente da RAPS que trabalha. Ambas as letras foram seguidas de algarismos arábicos, conforme a ordem crescente de realização da entrevista. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, sob parecer nº 72657617.7.0000.5347.

Resultados e discussão

O rural, pensado enquanto espaço em movimento, é marcado por formas variadas de condições e modos de vida. Apesar de suas muitas especificidades, o contexto rural mantém particularidades históricas, sociais, culturais e ecológicas, conformando um espaço físico e social diferenciado, que reverberam nos processos subjetivos e de socialização e que precisam ser consideradas na organização das políticas públicas (Belmarino et al., 2016BELMARINO, V. H. et al. Território e determinação social da saúde mental em contextos rurais. In: DIMENSTEIN, M. et al. (Org.). Condições de vida e saúde mental em contextos rurais. São Paulo: Intermeios, 2016. p. 95-117.).

No tema do uso de drogas, compreender os determinantes sociais tem sido um desafio, haja vista as explicações muitas vezes reducionistas, regadas a moralismo e preconceito, que não colaboram para uma reflexão ampliada acerca do tema (Ronzani; Costa; Paiva, 2016RONZANI, T. M.; COSTA, P. H. A.; PAIVA, F. S. Fatores associados ao uso de álcool em assentamentos rurais. In: DIMENSTEIN, M. et al. (Org.). Condições de vida e saúde mental em contextos rurais . São Paulo: Intermeios , 2016. p. 281-297.).

Quando abordamos os determinantes sociais, a cultura é uma referência que está associada ao processo saúde/doença. O conceito de cultura se refere a um mapa, receituário, código em que as pessoas de um grupo compartilham, e, a partir de então, criam laços e transformações em grupo para viverem juntos, sentindo-se parte da mesma totalidade (Da Matta, 1986DA MATTA, R. Você tem cultura? In: DA MATTA. R. (Org.). Ensaios de sociologia interpretativa. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. p. 121-128.). No tema das drogas, quando falamos de códigos, podemos entender que a droga é permeada pela cultura dos povos e da sociedade na qual as pessoas estão inseridas, portanto, está relacionada à construção histórica e simbólica de valores e crenças que envolvem sua utilização (Silva et al., 2019SILVA, A. B. et al. Desvelando a cultura, o estigma e a droga enquanto estilo de vida na vivência de pessoas em situação de rua. Ciência e Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 45, n. 3, p. 1-10, 2019. DOI: 10.1590/1413-812320202510.36212018
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). No contexto deste estudo, identificou-se o elo entre cultura e utilização do álcool na infância e adolescência:

[…] a gente tem aqui a questão do interior, do rural, que as famílias têm como cultural o uso de álcool, a criança já cresce vendo ali que todo o fim de tarde o pai bebe, a mãe bebe, final de semana mais ainda, e muitas festas que também traduzem isso. Se tu vai final de semana no interior, todas as festas são regadas a cerveja, a chopp, a bebida, motivam e incentivam de certa forma o consumo. (T34 Componente da Rede Intersetorial)

[…] desde pequeno os pais também incentivam um pouco os filhos, oferecendo bebida. Por exemplo, tinha muito um campeonato de futebol e a premiação era engradados de bebida de álcool. Isso já é uma estimulação desde o adolescente, desde a criança. (T20 Componente da Atenção Básica Zona Rural)

[…] tem muita criança já bebendo desde muito cedo, e até assim nós encontramos nas festas de escola eles vendem muita bebida. (T27 Componente da Atenção Básica)

Observa-se nos relatos que o contexto social e as relações são cruciais para as primeiras motivações ao uso do álcool. Há uma forte relação das famílias do interior com a necessidade desse uso como parte de um aspecto da cultura pomerana. É comum a família fazer uso de álcool junto com a criança no ambiente domiciliar e nas comunidades. Nas festas e campeonatos do interior também há bebida e, muitas vezes, um incentivo ao uso.

A literatura produzida sobre o tema cultural do uso de drogas demonstra que o álcool faz parte de práticas culturais, religiosas e sociais, e é percebido como prazer para muitos usuários. No Brasil, sua utilização é antiga, desde antes da colonização europeia. Os povos indígenas produziam uma grande variedade de bebidas alcoólicas fermentadas a partir da mandioca e de frutos - o caju, o abacaxi e a jabuticaba. Sua utilização era destinada a rituais e festas determinadas pela cultura indígena, como nas comemorações pelo nascimento de uma criança, nos rituais de maioridade ou em orgias canibalescas (Alarcon; Jorge, 2012ALARCON, S.; JORGE, M. A. S. Álcool e outras drogas: diálogos sobre um mal-estar contemporâneo. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2012.).

Um aspecto que chama a atenção na cultura pomerana é a relação entre a iniciação ao consumo do álcool na adolescência e o Ritual de Confirmação:

Pra eles aqui no interior é depois da confirmação […]. A partir daquele momento, eles já podem beber, podem ir pra tudo que é festa, e isso eles são adolescentes, geralmente doze, treze anos. […]. É como se fosse pra nós a catequese […]. Pra eles no interior é a confirmação, geralmente é como se fossem os quinze anos […], é como se eles virassem adultos. (T24 Componente da Atenção Básica Zona Rural)

[…] é uma coisa do passado, mas que é forte, ainda tem. […] eles fazem a confirmação […], é a primeira comunhão, […] na zona rural, basicamente são evangélicos […]. E muitas vezes a premiação também é isso, e aí já é uma festa, onde tem todo aquele ciclo de bebida, de festa, já tá autorizado a beber. E ganham motos […]. (T20 Componente da Atenção Básica Zona Rural)

[…] às vezes antes dos doze já tão enchendo a cara. Às vezes nem esperam confirmar. (T25 Componente da Atenção Básica Zona Rural)

[…] é como um presente de quinze anos, ou às vezes até antes, com treze eles tão fazendo a confirmação; e é uma festa muito grande, é uma comemoração da inserção deles na sociedade, em que a sociedade é a bebida. (T23 Componente da Atenção Básica Zona Rural)

No contexto deste estudo, o Ritual de Confirmação é presente nas comunidades do interior, sendo um momento de comemoração para as famílias e comunidade, pois marcam o encerramento de um ciclo e início de outro. A partir dessa “transição para a vida adulta”, muitos adolescentes têm as primeiras experiências do uso de álcool diante da comunidade, e já podem frequentar espaços que antes não estavam autorizados, além disso, alguns são presenteados com uma motocicleta.

O Ritual de Confirmação é parte da religião protestante, considerada a religião predominante no município (49,61%) em estudo (IBGE, 2017IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Brasil, Rio Grande do Sul, São Lourenço do Sul. IBGE, [S.l.], 2017. Disponível em: <Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rs/são-lourenco-do-sul/panorama >. Acesso em: 15 maio 2020.
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). A Confirmação, no meio rural, é uma celebração que marca a passagem do adolescente para o mundo adulto comunitário, estando autorizado a ir a festas e a fazer o uso de bebida alcoólica (Dreher, 2005DREHER, M. N. História do povo luterano. São Leopoldo: Sinodal, 2005.).

Estudos com adolescentes demonstram uma variedade de razões referidas para o uso de álcool nessa fase com associação aos aspectos de sociabilidade, relaxamento, companheirismo, excitação, conseguir lidar mais facilmente com estados emocionais desagradáveis, pressão de grupo e a cultura da bebida no país e na comunidade local (Kloep, 2001KLOEP, M. et al. Young people in “drinking” societies? Norwegian, Scottish and Swedish adolescents’ perceptions of alcohol use. Health Education Research, Oxford, v. 16, n. 3, p. 279-291, 2001. DOI: 10.1093/her/16.3.279
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; Martin, 2019MARTIN, G. et al. The neighbourhood social environment and alcohol use among urban and rural Scottish adolescents. International Journal of Public Health , Berlin, v. 64, n. 1, p. 95-105, 2019. DOI: 10.1007/s00038-018-1181-8
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; Silva; Menezes, 2016SILVA, R. A.; MENEZES, A. J. Os significados do uso de álcool entre jovens quilombolas. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, Manizales, v. 14, n. 1, p. 493-504, 2016.).

Embora a busca de tais sensações seja parte integrante do uso da bebida, chama a atenção a necessidade dos jovens em serem aceito como adultos dentro de sua própria cultura e, portanto, desenvolver hábitos semelhantes aos adultos de várias maneiras, incluindo o uso do álcool. Para os jovens, esse comportamento irá refletir na sua aceitação na sociedade, e, por isso, é provável que ignorem ou descartem evidências, de que esse uso pode representar uma ameaça a curto prazo, como envolvimento em acidentes e brigas, ou a longo prazo como problemas de saúde (Kloep, 2001KLOEP, M. et al. Young people in “drinking” societies? Norwegian, Scottish and Swedish adolescents’ perceptions of alcohol use. Health Education Research, Oxford, v. 16, n. 3, p. 279-291, 2001. DOI: 10.1093/her/16.3.279
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).

Junto ao Ritual de Confirmação, no interior, observa-se a ligação do uso de drogas ao lazer, como uma forma de recompensa pelo esforço no trabalho na lavoura:

[… ] lá no interior as pessoas começam a trabalhar muito cedo, crianças com 10 anos já tão indo pra lavoura há tempo, e aí se um adolescente vai pra um baile e bebe demais, “ah, coitadinho, ele trabalhou tanto, ele mereceu”. Eles enxergam isso como uma recompensa […]. (T 28 Componente da Atenção Básica)

Observa-se uma vivência que não permite o amadurecimento e desenvolvimento psicossocial enquanto um processo, isso é evidenciado pelo Ritual de Confirmação, realizado aos 13 anos de idade. Nota-se, que a vida das crianças e adolescentes se confundem com a dos adultos, pois observa-se uma relação forte com o trabalho e responsabilidades com a lavoura.

O trabalho é um determinante social que impacta na vida destas crianças e adolescentes representando uma violação dos direitos humanos, pois lhes retira o direito ao acesso a etapas importantes que se encontram em processo de desenvolvimento. Por essa razão, a realização do trabalho infantil na agricultura familiar, por exemplo, não pode ser vislumbrada como algo enobrecedor, visto que está relacionada a um conjunto complexo de fatores econômicos, culturais, geracionais, políticos e educacionais.

Os indicadores relacionados ao trabalho infantil mostram uma diminuição significativa nos últimos anos da exploração de mão de obra infantil no meio rural, entretanto, esta exploração permanece instituída na sociedade. Entre os principais fatores que promovem a perpetuação do trabalho infantil na agricultura familiar, encontramos a condição de pobreza e a reprodução geracional dos próprios pais, por compreenderem o trabalho infantil como algo positivo ao sustento da família (Custódio; Cabral, 2019CUSTÓDIO, A. V.; CABRAL, M. E. L. Trabalho infantil na agricultura familiar: uma violação de direitos humanos perpetuada no meio rural. Revista Jurídica em Pauta, Bagé, v. 1, n. 2, p. 3-15, 2019.).

Diante desses determinantes, os fatores de desenvolvimento infantil e educacionais muitas vezes são minimizados, e as crianças e adolescentes passam a evadir da escola diante do cansaço decorrente das atividades desempenhadas na lavoura (Custódio; Cabral, 2019CUSTÓDIO, A. V.; CABRAL, M. E. L. Trabalho infantil na agricultura familiar: uma violação de direitos humanos perpetuada no meio rural. Revista Jurídica em Pauta, Bagé, v. 1, n. 2, p. 3-15, 2019.). Outra questão observada nos relatos são as situações de violências com crianças e adolescentes:

[…] a diretora me chamou, que ele [criança] contou. […] O pai dele dá caipirinha pra ele em casa. Manda ele buscar limão dez horas da noite […], ele disse assim, “o meu pai me faz tomar com ele”. O guri com nove anos. E depois ele conta que o pai dele se droga, […] ele mesmo disse isso para os professores, “meu pai bate na minha mãe, e depois faz caipirinha e faz eu tomar também”. […] Estava batendo nos colegas, querendo brigar e falar um monte de coisas para professora, chutar a professora […]. (T19 Componente da Atenção Básica Zona Rural)

[…] as mulheres sofrem bastante com isso porque elas são, realmente, as mulheres e as filhas, são mais acometidas, com os pais, ou os homens que usam o álcool. E aí começam os conflitos familiares; alguns chegam geralmente depois que bebem muito, incomodando, agredindo, não fisicamente, mas às vezes verbalmente, ou às vezes os dois. Então, […] eu associo muito os problemas familiares aqui, principalmente os problemas das crianças, assim, com os conflitos familiares; com a briga entre o pai e a mãe, ou o pai com os filhos, depois de chegar em casa alcoolizado. (T21 Componente da Atenção Básica Zona Rural)

Identifica-se que as situações de violência estão associadas ao uso de droga no ambiente familiar, sendo relatadas agressões físicas epsicológicas, que comprometem o desenvolvimento psicossocial da criança e do adolescente. Outros estudos também destacam na cultura pomerana o uso de álcool de forma exacerbada, conferindo a essa prática a associação com a situação de violência, transtornos relacionados ao uso de álcool e suicídio (Jaeger; Mola; Silveira, 2018JAEGER, G. P.; MOLA, C. L.; SILVEIRA, M. F. Alcohol-related disorders and associated factors in a rural area in Brazil. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 52, supl. 1, p. 1-12, 2018. DOI: 10.11606/S1518-8787.2018052000262
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; Potratz; Costa; Jardim, 2014POTRATZ, T. P.; COSTA, A. A.; JARDIM, A. P. Pomeranos e violência: um estudo fenomenológico. Brazilian Journal of Forensic Sciences, Ribeirão Preto, v. 4, n. 1, p. 105-115, 2014. DOI: 10.17063/bjfs4(2)y2015162
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).

Nota-se uma forte influência do gênero, em que os filhos (meninos) são motivados pelos pais a experimentarem seus comportamentos (usar álcool, agredir pessoas), se tratando de uma violência psicológica, enquanto as meninas são as maiores vítimas das agressões físicas e do problema histórico da violência contra a mulher já vivenciado pela mãe.

A violência contra as mulheres é uma das manifestações mais perversas da desigualdade de gênero, produto das diferenças de poder e que representa um importante fenômeno social e de violação dos direitos humanos, impactando significativamente no processo saúde-doença e na perspectiva de vida das mulheres (Barufaldi et al., 2017BARUFALDI, L. A. et al. Gender violence: a comparison of mortality from aggression against women who have and have not previously reported violence. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 9, p. 2929-2938, 2017. DOI: 10.1590/1413-81232017229.12712017
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).

No cenário rural, a vida de mulheres é atravessada por diversos fatores que impactam seu contexto de vida, considerando as situações de vulnerabilidades e agravos, visto que enfrentam situações de desigualdades de gênero e desvalorização familiar (Nascimento et al., 2017).

Tanto a agressão vivida pelas mulheres quanto a violência infantil mencionadas pelos participantes do estudo estavam associados ao abuso de bebida alcoólica e outras drogas trazendo riscos a todas as pessoas inseridas no âmbito familiar. Isso corrobora com um estudo realizado pelo Instituto Nacional de Políticas Públicas do Álcool (INPAD), em 2013, com pessoas acima 14 anos, no qual a cada 10 participantes, mais de dois afirmaram terem sofrido violência física na infância, além destas, dois em cada dez relataram que o abusador estava sob efeito do álcool (Feijó et al., 2016FEIJÓ, M. R. et al. Alcohol and violence in marital relations: a qualitative study with couples. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 21, n. 4, p. 581-592, 2016. DOI: 10.4025/psicolestud.v21i4.31556
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).

Outra questão que merece atenção nessa violência estrutural é aquela que incide sobre a condição de vida das crianças e adolescentes, tornando vulnerável seu crescimento e desenvolvimento. A infância e a adolescência são fases que necessitam de cuidados diferenciados, pois são etapas importantes de estruturação física, psíquica e mental. Passar por esses processos complexos, por si só, já torna a criança e o adolescente seres peculiares (Rozin; Zagonel, 2013ROZIN, L.; ZAGONEL, I. P. S. Alcohol misuse/abuse among adolescents: risk perception and protection from addiction. Revista Eletrônica de Enfermagem, Goiânia, v. 15, n. 3, p. 687-695, 2013.).

A fase da adolescência é reconhecida também como a busca pela autonomia e autoafirmação, de aprovação social e a suscetibilidade de sofrer influências que podem interferir, substancialmente, ao consumo precoce de álcool e tabaco, e que pode ser a “porta de entrada” para o uso de outras substâncias psicoativas (Pagliace et al., 2019PAGLIACE, Â. G. S. et al. Evaluation of care for children and adolescents users of psychoactive substances: potentiality and fragilities. Texto & Contexto - Enfermagem , Florianópolis, v. 28, p. 1-14, 2019.).

Neste sentido, a família pode ser considerada um fator de risco, ao fazer uso de droga e demonstrar, em suas relações autoritarismo, condutas de violência, permissividade, situações estas potencializadores para o surgimento do uso de substâncias psicoativas (Valim; Simionato; Gascon, 2017VALIM, G. G.; SIMIONATO, P.; GASCON, M. R. P. O consumo de álcool na adolescência: uma revisão literária. Adolescência e Saúde, Rio de Janeiro, v. 14, n. 4, p. 184-194, 2017.). Por outro, lado, chama-se a atenção para necessidade de investimento saudável nessa relação, uma vez que os preditores de baixo consumo de bebida entre os adolescentes incluem o envolvimento em atividades de lazer com os pais e preocupações dos pais com relação à bebida (Kloep, 2001KLOEP, M. et al. Young people in “drinking” societies? Norwegian, Scottish and Swedish adolescents’ perceptions of alcohol use. Health Education Research, Oxford, v. 16, n. 3, p. 279-291, 2001. DOI: 10.1093/her/16.3.279
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).

Também é importante considerar que a violência social imposta pelo adulto na vida dessas crianças tem vínculo com as campanhas publicitárias criativas que transmitem uma sensação de alegria, euforia e bem-estar. Nesse sentido, o uso de álcool também pode ser incorporado pela família como um hábito de força, prazer e abstração. Para os adolescentes, essa percepção pode levar a comportamentos de risco, como envolvimento em brigas, inserção na criminalidade, atos violência e acidentes (Moura; Monteiro; Freitas 2016MOURA, N. A.; MONTEIRO, A. R. M.; FREITAS, R. J. M. Adolescents using (il)licit drugs and acts of violence. Revista de Enfermagem da UFPE, Recife, v. 10, n. 5, p. 1685-1693, 2016. DOI: 10.5205/reuol.9003-78704-1-SM.1005201614
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; Pinho et al., 2017PINHO, M. P. et al. Violência social infantil e drogas lícitas. Sinapse Múltipla, Belo Horizonte, v. 6, n. 2, p. 218-223, 2017.). Um desses comportamentos de risco/vulnerabilidade são identificados nesta pesquisa como situações de acidente de trânsito no interior, envolvendo crianças e adolescentes em uso de álcool:

[…] aqui na colônia eles dão assim, dão um carro pra uma criança de 12, 13 anos. Dão uma moto pra uma criança de 10, 12 anos. E é onde eles andam por aí, eles correm, eles bebem, se machucam, eles caem aqui. E aí tu vai ver, eles dirigem o trator, eles viram o trator, e aí tu vai ver que idade tem? Dez. […] é uma cultura. (T19 Componente da Atenção Básica Zona Rural)

[…] muito acidente de moto em zona rural, porque eles não têm o cuidado com o capacete, não têm cuidado nenhum, vai numa festa e bebe, e tudo de moto, e zona rural tem muita estrada de chão, derrapa na areia e tem esses acidentes. Isso é comum. Provavelmente pela cultura alemã, né? (T20 Componente da Atenção Básica Zona Rural)

A vulnerabilidade remete à definição de fragilidade e dependência, afinal, todo o ser humano pode experimentar situações de vulnerabilidade, mas no caso das crianças e adolescentes, percebe-se um maior risco/probabilidade da vulnerabilidade, pela dependência dos mais velhos, submissão ao ambiente físico e social em que se encontram com as famílias, que são responsáveis por seu bem estar biopsicossocial (Getachew, 2019GETACHEW, S. et al. Prevalence and risk factors for initiating tobacco and alcohol consumption in adolescents living in urban and rural Ethiopia. Public Health, Amsterdam, v. 174, p. 118-126, 2019.).

Relativo aos dados da pesquisa, nota-se uma vulnerabilidade ligada às relações culturais e sociais construídas com a família e o ambiente de vida. Assim como as violências e abusos naturalizados pelas famílias, há também a permissividade pelos pais, por não problematizarem os riscos que podem ser ocasionados pelas experiências de abuso de drogas, uso de veículos e trabalho excessivo das crianças e adolescentes nos territórios rurais.

No âmbito do cuidado, chama-se a atenção para aos inúmeros desafios que as equipes enfrentam na organização de ações de prevenção e tratamento ao uso de drogas no interior. É importante pontuar que há ausência de políticas específicas para os territórios rurais. Na mais recente política pública voltada à atenção integral das populações do campo e da floresta, não há qualquer referência à saúde mental, seja para indicar as particularidades territoriais, sociais e culturais que marcam os modos de vida dessas populações, as necessidades de saúde, os modos de adoecer e de cuidado, seja para nortear o planejamento das redes de atenção psicossocial (Belmarino et al., 2016BELMARINO, V. H. et al. Território e determinação social da saúde mental em contextos rurais. In: DIMENSTEIN, M. et al. (Org.). Condições de vida e saúde mental em contextos rurais. São Paulo: Intermeios, 2016. p. 95-117.).

Entende-se como um grande desafio na área de saúde mental e pública uma abordagem que não se limite somente às questões clínicas e aos aspectos biológicos do uso abusivo de drogas. É necessário a percepção dos determinantes sociais que levam em consideração a constituição dos problemas de saúde/doença, bem como o cuidado em saúde exige vínculo e sensibilidade especial para o público jovem, necessitando de ações que incluam a família e abordem os diferentes estilos de vida.

Tais aspectos devem ser problematizados dentro das equipes do meio rural, auxiliando os profissionais na compreensão dessa problemática de forma ampliada, uma vez que eles também estão inseridos nessa cultura, e podem não ter a percepção de que o uso de álcool na adolescência é um problema:

A realidade do álcool é, na família deles [agentes comunitários]. Então, às vezes a gente até conversa. Elas são mais urbanas, as nossas agentes aqui. […] E elas mesmas relatam, que tá inserido, é do contexto deles ali o uso do álcool, as duas têm filhos pré-adolescentes e dizem “ah, os amiguinhos do fulano já tão tomando chopp, não sei quando é que o fulano vai começar a tomar, […] a gente tá vendo o dia que ele vai também provar”, então nós estamos nessa fase aí. (T23 Componente da Atenção Básica Zona rural)

Diante disso, os profissionais do meio rural devem ser alvo de políticas de educação permanente, atualização e estratégias de planejamento e organização do cuidado, uma vez que estes profissionais estão na linha de frente na zona rural, inseridos naquele contexto e em contato com as famílias, refletindo muitas vezes as percepções comunitárias sobre as questões do uso de drogas, ou mesmo vivenciando sentimentos de medo e inseguranças para realização destas abordagens.

Muitos estudos relacionados ao meio rural envolvem principalmente as dificuldades relacionadas ao acesso e estrutura dessas equipes, e as ações da RAPS muitas vezes são priorizadas para os profissionais da cidade.

Com este estudo, identifica-se a necessidade de desenvolver propostas mais concretas de inclusão em ações de educação permanente e qualificação desses profissionais que trabalham nos territórios rurais, visando refletir sobre a cultura, as relações e os modos de vida dos territórios que atuam, sob o risco de que, se essas questões não forem problematizadas, a população do meio rural irá se manter à margem do sistema de saúde e permanecer excluída das políticas públicas.

Assim, tendo em vista a importância dos determinantes sociais expostos, entendemos que as necessidades de cuidado em saúde mental para as crianças e adolescentes devem problematizar a cultura da naturalização do uso da droga, ao mesmo passo, a percepção dos inúmeros problemas relacionados ao tema, as que exigem ações inovadoras de promoção da saúde e reabilitação psicossocial aos jovens do meio rural.

Considerações finais

Como resultados da pesquisa, identificou-se alguns determinantes sociais no processo de saúde/doença e uso de drogas na infância e adolescência no meio rural como a cultura, o meio familiar, os rituais de uso da substância, ao exemplo da “confirmação”, o lazer, o trabalho na lavoura durante a infância, as questões de vulnerabilidade e violência na infância e adolescência.

O cuidado em saúde mental no meio rural foi associado às dificuldades de trabalho com questões socioculturais do uso da droga que envolvem a percepção das próprias equipes, e a importância de fortalecer estratégias de educação permanente, atualização e qualificação dos profissionais que atuam nesse cenário.

As contribuições deste estudo refletem a importância do investimento em informação e cuidado em saúde mental baseado nos determinantes sociais em saúde, que ampliam a visão sobre o tema do uso de drogas, saindo de uma ideia exclusivamente de dependência química e biológica, mas que envolve múltiplos fatores, como os territórios, culturas, trabalho e sociedade.

Sugere-se investimento em pesquisas qualitativas que abordem este debate na percepção dos que vivem no cotidiano o uso relacionado à infância e adolescência, pois identifica-se como limitação do estudo a necessidade de escuta das crianças e adolescentes, bem como seus familiares, para melhor aprofundamento do debate do uso de drogas no meio rural.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    16 Out 2020
  • Aceito
    15 Jan 2022
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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