Resumo
Michel Maffesoli é mundialmente conhecido como pensador da pós-modernidade, do tribalismo como uma nova forma de socialidade e da razão sensível, no contexto do que caracteriza como uma mudança epistêmica ou paradigmática emergente. Apesar de não refletir sobre o tema das práticas assistenciais, ao trazer uma leitura sociológica que destaca o doméstico, o localismo e o tribalismo, e fazer referências à saúde pela perspectiva da potência pessoal e social, neste ensaio argumenta-se que as ideias-força extraídas de seu pensamento podem oferecer contribuições aos fundamentos epistemológicos, ético-políticos e teórico-metodológicos das ações de profissionais que trabalham na interface saúde/assistência social e que atuam no espaço-tempo da vida cotidiana em um dado território. Pois, ao apresentar um logos que valida uma razão afetiva e que toma os locais de vida cotidiana como espaço-tempo de vinculações e desenvolvimento de potencialidades, um ethos ecosófico de respeito às pessoas, à natureza e à diversidade das formas e modos de vida, seu pensamento pode ainda oferecer um quadro dos lugares de habitar pessoal e do conviver coletivamente, que podem vir a ser cenários de práticas assistenciais interdisciplinares e interprofissionais (praxis) afinadas a uma racionalidade sensível, orientada pela e para a potencialização da vida.
Palavras-chave:
Vitalismo; Território; Vida cotidiana; Saúde; Assistência Social
Introdução
Michel Maffesoli, estudioso do cotidiano e do imaginário, é mundialmente conhecido como pensador da pós-modernidade, do tribalismo e da razão sensível, no contexto do que caracteriza como uma mudança epistêmica ou paradigmática emergente. No conjunto de seus trabalhos, ele coloca em questão a modernidade em suas principais características: racionalismo, individualismo, utilitarismo, progresso e trabalho/consumo. Em termos epistemológicos, opõe-se à “ideologia de controle da natureza”, correlata à “ideologia do progresso” para a qual o humano é senhor de si e do Universo e a natureza um mero objeto a explorar (Maffesoli, 2005MAFFESOLI, M. A sombra de Dioniso: contribuição a uma sociologia da orgia. São Paulo: Zouk , 2005., p. 122). Além disso, seu pensamento sociológico não se constrói a partir dos modelos sociais explicativos fundados no contrato social, na planificação do tempo vindouro, no trabalho e na produção econômica, na estrutura e na organização vertical e hierárquica do poder instituído, mas a partir das noções de pacto tribal, nomadismo, presenteísmo, hedonismo cotidiano, localismo, solidariedade de base e potência coletiva instituinte.
Apesar de Maffesoli não se voltar ao tema das práticas assistenciais, ao trazer uma leitura sociológica que destaca o doméstico, o localismo e o tribalismo, e fazer referências à saúde pela perspectiva da potência pessoal e coletiva, em nossa reflexão de natureza teórico-conceitual, desenvolvida no âmbito de Pós-Doutorado no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo - USP, na área de Filosofia das Ciências da Vida e da Saúde, argumentamos que as ideias-força extraídas de seu pensamento podem oferecer contribuições ao complexo e multifacetado campo dos fundamentos epistemológicos, ético-políticos e teórico-metodológicos das profissões que se voltam ao espaço-tempo da vida cotidiana em um dado território, como serviço social, psicologia, terapia ocupacional, enfermagem e outras que tenham o desenvolvimento de potencialidades e o fortalecimento de vínculos pessoais, familiares e comunitários como objetivos de suas ações - considerando ainda que as políticas públicas, sistemas e serviços de atenção à saúde e de assistência social se organizam a partir das noções de matricialidade sociofamiliar e de território, entendido como espaço de vida e vivência com características políticas, econômicas, ecológicas e culturais próprias (Pereira; Barcellos, 2006PEREIRA, M. P. B; Barcellos, C. O território no Programa de Saúde da Família. Hygeia, Uberlândia, v. 2, n. 2, p. 47-55, 2006. Disponível em: <Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/651 >. Acesso em: 1 abr. 2022.
https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict... ; Nascimento; Melazzo, 2013NASCIMENTO, P. F; Melazzo, E. S. Território: conceito estratégico na assistência social. Serviço Social em Revista, Londrina, v. 16, n. 1, p. 66-88, 2013. DOI: 10.5433/1679-4842.2013v16n1p66
https://doi.org/10.5433/1679-4842.2013v1... ).
Partimos do entendimento de que é possível inserir a posição epistemológica maffesoliana na oposição à hegemonia das valorações modernas de controle da natureza (Lacey, 2008LACEY, H. Ciência, respeito à natureza e bem-estar humano. Scientiae Studia. São Paulo, v. 6, n. 3, p. 297-327, 2008.; Lacey; Mariconda, 2014LACEY, H.; MARICONDA, P. R. O modelo das interações entre as atividades científicas e os valores. Scientiae Studia . São Paulo, v. 12, n. 4, p. 643-668, 2014. DOI: 10.1590/S1678-31662014000500002
https://doi.org/10.1590/S1678-3166201400... ), colocando-se na direção do bem-estar, do florescimento humano e da vida, segundo uma racionalidade flexível, plural e comprometida que incorpora o “valor vital”, enquanto base de uma ética na qual “a vida (em geral e a de outros seres vivos não humanos) possui um valor em si mesma” (Ramos, 2020, p. 724), na medida em que ele adota uma postura de respeito à natureza e aposta na dignidade de toda coisa viva (Maffesoli, 2007aMAFFESOLI, M. O ritmo da vida: variações sobre o imaginário pós-moderno. Rio de Janeiro: Record, 2007a., p.170). Ainda, defendemos que Maffesoli, no decorrer de sua produção intelectual, ao apresentar um logos que valida uma razão afetiva e um saber que valoriza o espaço-tempo da vida cotidiana, um ethos ecosófico de respeito às pessoas, à natureza e à diversidade das formas e dos modos de vida, sua perspectiva pode oferecer um quadro dos lugares de habitar pessoal e do conviver coletivamente, que podem vir a ser cenários de práticas (praxis) assistenciais interdisciplinares e interprofissionais afinadas a uma racionalidade sensível, orientada pela e para a potencialização da vida.
A razão sensível: por um raciovitalismo epistemológico
Em termos epistemológicos, Maffesoli afirma se alinhar à tradição anarquista ou libertária (Barros; Maffesoli, 2013bBARROS, E. P; MAFFESOLI, M. Michel Maffesoli: a pós-modernidade se orienta para “algo de anarquista”. Em Questão, Porto Alegre, v. 19, n. 2, p. 11-19, 2013b., p. 18), a partir da qual “tudo vale”, ou seja, tudo ganha importância enquanto elemento de análise sociológica. Acompanhando o pensamento de Feyerabend, ele acredita que não há nada a eliminar naquilo que convida a ser visto e a ser vivido (Maffesoli, 1998MAFFESOLI, M. Elogio da razão sensível. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998., p. 84). Interessado na vida comum, cotidiana, no empiricamente vivido, entende que apenas uma sinergia entre razão e sentidos é capaz de apreender a complexidade e a polissemia de seu objeto. Razão sensível, esclarece, é razão completa que se enriquece com a experiência de todos os sentidos e do sentido de todos (Maffesoli, 2010aMAFFESOLI, M. Saturação. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2010a., p. 85). Em vista da especificidade de seu objeto, e diante do questionamento sobre a possibilidade de compreender a dinâmica da vida societal - e, se for, de qual modo -, acredita que é necessário um novo “Discurso do Método”, que faça a crítica à razão abstrata e a sua libido dominandi, e que consiga captar a experiência vivida no cotidiano e o senso comum que é a sua expressão: um procedimento que consiga se voltar as coisas mesmas, que se aproxime do mundano, sem querer dominá-lo.
Assim, na contramão do ideário moderno, Maffesoli coloca em questão a “ideologia de controle” associada à lógica da dominação da natureza e do social, a brutalidade progressista e o estrago da natureza por ela provocado (Maffesoli, 2007aMAFFESOLI, M. O ritmo da vida: variações sobre o imaginário pós-moderno. Rio de Janeiro: Record, 2007a., p. 190), base de uma episteme relacionada ao desencantamento do mundo e pautada na ideia de disponibilidade integral da natureza à manipulação e exploração ilimitada pelo homem (Maffesoli, 2010bMAFFESOLI, M. No fundo das aparências. 4. ed. Petrópolis: Vozes , 2010b., p. 207). Logo, em contraposição ao desenvolvimentismo, propõe o envolvimentismo: o respeito à natureza, a contemplação e a harmonização com suas forças, o que “[…] nos faz passar de um progressismo (que foi vigoroso, que deu bons resultados, mas que se torna um pouco doentio) para uma progressividade que reinveste em ‘arcaísmos’: povo, território, natureza, sentimentos, humores... que pensávamos ter deixado para trás” (Maffesoli, 2010aMAFFESOLI, M. Saturação. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2010a., p. 62, grifo do autor).
Reconciliado com a vida, emerge um “pensamento orgânico” que acompanha a disposição das pessoas e das coisas em seus movimentos vitais de organização, associado a uma racionalidade aberta, ampla, flexível, inventiva, modesta em suas capacidades e respeitosa do que é abordado, que assume sua precariedade e submissão ao instante, e que considera as correspondências, analogias e sincronicidades, de modo a capturar as forças que animam dado fenômeno, enquanto expressão da destinação fundamental da vida (Maffesoli, 1998MAFFESOLI, M. Elogio da razão sensível. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998., p. 60). Daí, um procedimento de investigação erótico porque amoroso do mundo em sua integralidade (amor mundi), capaz de reconhecer a lógica passional, o potente vitalismo que move em profundidade o corpo social (Maffesoli, 2005MAFFESOLI, M. A sombra de Dioniso: contribuição a uma sociologia da orgia. São Paulo: Zouk , 2005., p. 11).
Através da concepção de “forma social”, tomada de Simmel, Maffesoli pretende indicar, em termos filosóficos e epistemológicos, a prevalência da aparência, do que se mostra diretamente aos sentidos, e que pode dizer algo do fundo que a anima. Daí decorre a substituição que faz da noção de representação pela de apresentação (Maffesoli, 1998MAFFESOLI, M. Elogio da razão sensível. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998., p. 19-20). Também, seguindo Weber, ele esclarece que é próprio de uma sociologia fenomenológica ou compreensiva considerar todos os fenômenos tais como eles são, sem discriminar nenhum deles: “Assim, a tarefa que nos cabe é bem a de voltar a essa vida vivida ou mais próxima, a essa empiria; para retomar a expressão da fenomenologia, ‘à própria coisa’” (Maffesoli, 1998MAFFESOLI, M. Elogio da razão sensível. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998., p. 46). O que também significa a identificação das figuras míticas e históricas que comovem as comunidades, presentes no imaginário e onírico coletivos e que se manifestam concretamente na vida cotidiana (Maffesoli, 2007aMAFFESOLI, M. O ritmo da vida: variações sobre o imaginário pós-moderno. Rio de Janeiro: Record, 2007a., p. 156).
Com efeito, procurando apreender o fundamento do estar-junto em sociedade - não o social mecânico, mas o societal orgânico, que dinamiza e faz sociedade -, Maffesoli recorre à tríade Nietzsche-Bergson-Simmel, passando por Weber, Jung e Heidegger, mas também por Durand e Foucault, apenas para citar alguns (Maffesoli, 2011aMAFFESOLI, M. Quem é Michel Maffesoli: entrevistas com Christophe Bourseiller. Petrópolis: De Petrus et Alii, 2011a.; Barros, 2013aBARROS, E. P. A sociologia romântica e o imaginário na obra de Michel Maffesoli. Educere et Educare: Revista de Educação (versão eletrônica), v. 1, n. 16, p. 321-328, 2013a. DOI: 10.17648/educare.v8i16.8931
https://doi.org/10.17648/educare.v8i16.8... , p. 323-325), e esclarece que sejam quais forem os autores a quem se filia, o denominador comum é o vínculo que estabelecem entre vitalismo e comunidade. Pois, partindo da inter-relação entre pessoa, sociedade, natureza e cosmos, ele pressupõe a existência de uma força ou potência imanente, anônima e impessoal, o orgiasmo, que a tudo atravessa e anima a vida societal, a ela imprimindo uma forma que se expressa enquanto fenômeno sociológico observável no curso da vida cotidiana: “[…] a ‘força coletiva invisível’, de que falava Bakunin, e que às vezes, move, de uma maneira irresistível, a vida em sociedade (Maffesoli, 1995MAFFESOLI, M. A contemplação do mundo. Porto Alegre: Artes e ofícios Editora, 1995., p.70, grifo nosso).
Portanto, contra uma atitude puramente intelectualista, abstrata, Maffesoli propõe uma atitude proxêmica e de estabelecimento de uma relação trajetiva, de interação entre sujeito e objeto. Atitude que se acerca do fenômeno, do concretamente vivido, almejando fazer sobressair a complexidade e a vitalidade do mundo-aí: este mundo tal como é valorado pelas pessoas, em seus espaços e relações, somente captado pela forma como nos aparece e se mostra cotidianamente. Desta vista, seu “raciovitalismo epistemológico” se traduz por uma racionalidade que incorpora a dimensão sensível, afetiva e imaginal, associada a uma abordagem formista da vida social, a partir da qual o pesquisador estabelece uma relação aproximativa, intuitiva e amorosa, para com seu objeto de estudo, conseguindo assim melhor observá-lo em seus contornos, imagens, figuras e estilos, apreendendo-o em sua vivacidade própria (Maffesoli, 1998MAFFESOLI, M. Elogio da razão sensível. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998., p. 81-88). Inclusive, para tanto, validando a experiência vivida, o senso comum (koine aisthesis) ou sabedoria popular (phronesis) a ela associado, como importante vetor epistemológico, por expressar a arte de viver, o aspecto singular e concreto da vida cotidiana (Maffesoli, 1998MAFFESOLI, M. Elogio da razão sensível. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.).
A forma da pós-modernidade: tribalismo e sensibilidade ecológica
Maffesoli define a pós-modernidade como um tempo de atuação sinérgica entre o arcaico e o tecnológico, no qual concorrem (correm juntos, do latim cum-currere) o real e o virtual, o material e o espiritual, o sagrado e o profano, o natural e o técnico. A exemplo disso, o fenômeno internet no mundo contemporâneo, as relações das pessoas com as tecnologias de informação e comunicação no cotidiano (experiências tecnológicas), evidenciam tal ambiguidade. Paradoxalmente, ao mesmo tempo que as novas tecnologias operam uma virtualização do espaço-tempo da vida cotidiana e o aumento das relações mediadas por objetos tecnológicos, além da imersão, nem sempre salutar, na ambiência emocional das redes, elas possibilitam, de acordo com seus usos - tal como evidencia-se em Certeau (2014CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2014., p. 45-53) através das táticas nas “artes de fazer” -, resgatar o imaginário, o onírico e o lúdico nas atividades cotidianas, tríade necessária ao reencantamento do mundo (Maffesoli, 2018MAFFESOLI, M. Arcaísmo, cibercultura e reencantamento do mundo: as dobras do cotidiano tecnológico. Comunicação& Informação, Goiânia, v. 21, n. 2, p. 4-18, 2018. DOI: 10.5216/ci.v21i2.54305
https://doi.org/10.5216/ci.v21i2.54305... ). Por isso, ele prevê que a apropriação lúdica da tecnologia, a experiência sinestésica que ela promove e a composição de um “comum digital” serão também as características deste événement-avènement que é a pós-modernidade.
Neste período em que um novo tempo se gesta, complexo porque caracterizado por paradoxos e ambiguidades, Maffesoli nota os fenômenos das errâncias ou nomadismos, decorrentes da saturação da noção moderna de identidade - ligada a gênero, profissão e filiação política - e um movimento de trânsito do individualismo à identificação tribal (Maffesoli, 2007bMAFFESOLI, M. Nomadisme, un enracinement dynamique. América: Cahiers du CRICCAL, Paris, v. 2, n. 36, p. 13-23, 2007b.Disponível em: <Disponível em: https://www.persee.fr/doc/ameri_0982-9237_2007_num_36_1_1794 >. Acesso em: 1 abr. 2022.
https://www.persee.fr/doc/ameri_0982-923... ). De acordo com tal forma de socialidade, o estar-junto com o outro em comunhão em determinado ambiente (espaço vivido) é o que permite a cada um atualizar suas potencialidades como pessoa, plural e em devir, nunca concluída. Emerge, pois, uma espécie de subjetividade de massa ou self mais vasto do qual todos participam; de modo que a experiência individual (Erlebnis) é ao fim e ao cabo sempre tributária de uma experiência coletiva (Erfahrung) (Maffesoli, 2007aMAFFESOLI, M. O ritmo da vida: variações sobre o imaginário pós-moderno. Rio de Janeiro: Record, 2007a., p. 157). Destarte, a relação com o coletivo instaura o dilema da individualidade, autônoma e independente, já que é na participação tribal, com seus códigos e éticas específicas, que a subjetividade encontra sua plenitude: “a pessoa, em seu aspecto plural, só adquire sentido no contexto comunitário” (Maffesoli, 2007aMAFFESOLI, M. O ritmo da vida: variações sobre o imaginário pós-moderno. Rio de Janeiro: Record, 2007a., p. 133).
Protagonistas da pós-modernidade, as tribos enquanto grupos sociais de pertença inauguram novas formas de viver e maneiras de estar-junto, baseadas em identificações, múltiplas e mesmo temporárias, expressas em atitudes que incorporam a aventura e os riscos que lhe são inerentes, até mesmo a liberação episódica de instintos violentos recalcados. O equilíbrio conflitual entre as tribos (musicais, desportivas, sexuais, religiosas etc.), que vai da maior abertura para aproximações e trocas (relacionismos) ao fechamento hermético (fanatismos), expressam o “jogo da diferença” da dinâmica societal (Maffesoli, 2010aMAFFESOLI, M. Saturação. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2010a., p.38-39). Daí a importância sociológica de se reconhecer as heterogeneidades e as diferenças tribais, comunitárias e sua orquestração em uma melodia social composta, por vezes, de acordes desarmônicos, mas que nem por isso deixam de evidenciar os movimentos de atração-repulsão societais e que, de algum modo, precisam encontrar certo ajuste, para não resvalarem em dogmatismos, ódios e intolerâncias (Maffesoli, 1995MAFFESOLI, M. A contemplação do mundo. Porto Alegre: Artes e ofícios Editora, 1995., p. 154-155).
Na esteira do pós-modernismo, malgrado as objeções que possam lhe ser endereçadas, entre elas o relativismo cultural, a recusa das metanarrativas históricas e a valorização do saber comum em detrimento das verdades científicas (Maia, 2013MAIA, E. L. C. Pós-Modernos, marxistas e a pobre ciência na modernidade. Pensamento Plural, Pelotas, n. 13, p. 7-27, 2013., p. 18-19), para Maffesoli, as mudanças já notadas desta transição no estilo de socialidade são contestação da ideia de normalidade e dos modos de vida hegemônicos, a recusa aos dogmatismos e às adesões ideológicas ferrenhas através da assunção da impermanência dos valores e dos pontos de vista. Além do entendimento de que o outro não é um obstáculo à realização das minhas potencialidades, mas a condição de possibilidade dela, e que a natureza não mais equivale ao lugar da barbárie, mas se inscreve em uma relação de parceria, promovendo atitudes existenciais de reconciliação com a terra, de estar “em casa” no mundo, sinalizando para um reinvestimento no imanentismo, na “experiência da vida da terra”, e para uma sensibilidade ecológica romântica que daí emerge ou renasce: “um misto de comunhão (com a natureza e com os outros), de experiência partilhada e de emoções coletivas e um pouco gregárias. Uma vivência natural, engendrando uma inegável vivência social” (Maffesoli, 2010bMAFFESOLI, M. No fundo das aparências. 4. ed. Petrópolis: Vozes , 2010b., p. 204-205).
Compreendendo que o lugar faz o elo entre as pessoas e que nele se enraíza uma comunidade, vê-se na aurora da pós-modernidade o surgimento de um ideal comunitário, de valorização do território (real e simbólico) e o crescimento do número de ações sociais solidárias, como manifestações de generosidade, de ajuda mútua e de ações humanitárias diversas (Maffesoli, 2006, p. 276). Dando maior importância ao ambiente ou lugar, vê-se entre as tribos outra relação com o espaço-tempo habitado, fundada em uma sensibilidade ecológica, como sabedoria de retorno à terra (localismo) e no estar-junto vivo (Maffesoli, 2011bMAFFESOLI, M. A transfiguração do político: a tribalização do mundo. Porto Alegre: Sulina, 2011b., p. 77) que reaviva e anima um conjunto de coisas - natureza, meio ambiente, fauna, flora, paisagem - que a modernidade se inclinava a considerar como objetos inertes, controláveis e exploráveis à vontade (Maffesoli, 2011bMAFFESOLI, M. A transfiguração do político: a tribalização do mundo. Porto Alegre: Sulina, 2011b., p. 155). Sensibilidade somada a uma diferente relação com os outros, mais horizontal, afetiva, empática, de respeito à diversidade das maneiras de sentir e de pensar e dos distintos modos de vida cotidiana.
Deste desejo difuso de religação com a natureza e da busca por vivências em comum (com-vivência), emerge uma ética da estética, advinda do compartilhamento (ainda que virtual) de objetos, imagens e gostos, e da paixão e emoção coletivas (pathos coletivo) que daí decorre. Somada a esse ethos que faz socialidade, que se apoia no ideal comunitário e na convivência tribal, se associa uma ética naturalista, na qual se estabelece outra relação com os elementos (terra, fogo água e ar), não de exploração, mas de “companheirismo”, com os quais podemos contar e não devemos abusar (Maffesoli, 2003MAFFESOLI, M. O instante eterno: o retorno do trágico nas sociedades pós-modernas. São Paulo: Zouk, 2003., p.158). Por esse aspecto, a ética também passa a ser compreendida não como um conjunto de princípios abstratos ou valores inscritos em uma dada moral, mas como uma forma de estar no mundo, em situação concreta e em função de um biótopo, área geográfica de dimensões variáveis, que oferece hospitalidade ao ser vivente que o habita, e que serve de quadro e de condição de possibilidade à biocenose (bios, vida e koinos, comunidade) (Maffesoli, 2010aMAFFESOLI, M. Saturação. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2010a., p. 106).
A transfiguração arquetípica da pós-modernidade: de Prometeu a Dioniso
Maffesoli nota na atualidade - não sem uma boa dose de otimismo (Gonçalves, 2004GONÇALVES, M. S. Maffesoli e o otimismo do presente. Revista FAMECOS, Porto Alegre, v. 11, n. 25, p. 40-42, 2004. DOI: 10.15448/1980-3729.2004.25.5396
https://doi.org/10.15448/1980-3729.2004.... ) - uma saturação da ideologia prometeica ou faustiana, dados seus efeitos nefastos de ordem planetária para a fauna e a flora e para as relações entre as pessoas devido ao fomento à hierarquia, ao produtivismo e à competição, e o consequente esfacelamento das relações de cooperação e amizade. Sendo assim, em contraposição à hegemonia do racionalismo do Homo sapiens e do ativismo do Homo faber- e sua imagem arquetípica Prometeu -, a figura da pós-modernidade é Dioniso, deus ambivalente e trágico, noctâmbulo e arbustivo, que representa uma miríade de aspectos do Homo além daqueles valorizados pela modernidade: eroticus, ludens, festivus, aestheticus, demens, religiosus, mitologicus, poeticus... Dimensões do humano ligadas à sensibilidade, à imaginação, à criação, ao lúdico, ao êxtase e ao prazer hedônico.
Dioniso expressa a vida enquanto ordem movente, dinâmica e polissêmica, isto é, a “anarquia vital”, sua espontaneidade e criatividade, segundo a qual os múltiplos elementos que compõem a organicidade se ajustam, embora não de maneira rígida (Maffesoli, 2011aMAFFESOLI, M. Quem é Michel Maffesoli: entrevistas com Christophe Bourseiller. Petrópolis: De Petrus et Alii, 2011a., p. 64). Ele remete ao orgiasmo, a força ou potência originária, de caráter global e cósmico, de modo que nos integramos ao todo através dela. Como fator de socialidade, a tudo une: “o microcosmo individual e o corpo social se correspondem e se ligam a tudo o que os cerca” (Maffesoli, 2005MAFFESOLI, M. A sombra de Dioniso: contribuição a uma sociologia da orgia. São Paulo: Zouk , 2005., p. 52). Ou seja, o orgiasmo é a força criadora (como o elã vital de Bergson, a vontade de potência de Nietzsche) que percorre a um só tempo o corpo individual, o social e o cosmos, vitalizando o coletivo e dando à vida cotidiana dinamismo, tessituras, cores, ritmos e modulações diversas. Sendo assim, traduz uma força impessoal que, de forma subterrânea, vem de muito longe (arcaico), e que bem se exprime no que hoje se observa (Maffesoli, 2007aMAFFESOLI, M. O ritmo da vida: variações sobre o imaginário pós-moderno. Rio de Janeiro: Record, 2007a., p. 120).
Com o retorno do trágico na pós-modernidade, Dioniso se contrapõe à Apolo - o deus uraniano da luz e da razão pura, da consciência e do autodomínio (Maffesoli, 2005MAFFESOLI, M. A sombra de Dioniso: contribuição a uma sociologia da orgia. São Paulo: Zouk , 2005., p. 52). Ele é a eterna criança (puer aeternus), sempre em devir (Maffesoli, 2007aMAFFESOLI, M. O ritmo da vida: variações sobre o imaginário pós-moderno. Rio de Janeiro: Record, 2007a., p.162). É o deus das máscaras e dos mistérios da vida e da morte, da aceitação do húmus no humano e da vida em sua integralidade (amor fati). Remete à alegria festiva, ao prazer dos sentidos e ao gozo do presente (carpe diem) e ao instante vivido com intensidade (instante eterno) (Maffesoli, 2010aMAFFESOLI, M. Saturação. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2010a., p. 24). É ainda um deus subterrâneo, ctônico, arquétipo da sensibilidade ecológica, do retorno à terra, ao território, a seus frutos e prazeres (Maffesoli, 2010bMAFFESOLI, M. No fundo das aparências. 4. ed. Petrópolis: Vozes , 2010b., p. 83). Como deus autóctone, ele se associa à Gaia ou Mãe Terra, às deusas dos cultos agrários, do lar (domus) e da fertilidade (Maffesoli, 2005MAFFESOLI, M. A sombra de Dioniso: contribuição a uma sociologia da orgia. São Paulo: Zouk , 2005., p. 60-61).
Com efeito, de acordo com a perspectiva ecosófica maffesoliana, Gaia é o plano de imanência a partir do qual tudo que vive se enraíza e retira sua vitalidade, garantindo sua expansão e crescimento: o enraizamento dinâmico. Terra aqui entendida em seu sentido material e simbólico, origem local e ancestral, o provir e o prover. Na esteira Jung/Durand, Maffesoli entende que, como “bacia semântica”, é nela que estão mergulhadas as figuras em torno das quais uma comunidade extrai sua força, processo que nomeia de invaginação do sentido, e a partir disso se espelha, se molda - no sentido de criar forma - se organiza e se regenera (Maffesoli, 2010aMAFFESOLI, M. Saturação. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2010a.; 2017MAFFESOLI, M. Ecosofia: sabedoria da Casa Comum. Revista FAMECOS , Porto Alegre, v. 24, n. 1, p. ID24007, 2017.DOI: 10.15448/1980-3729.2017.1.24007
https://doi.org/10.15448/1980-3729.2017.... ).
Assim, em oposição à reta vertical que é o sentido da dominação, temos para a pós-modernidade a imagem da espiral, que remete ao crescimento e à florescência vegetal, ao movimento orgânico sem finalidade pré-determinada (télos), à aparência das coisas e ao tempo que se dobra sobre si mesmo, cuja forma estética associa-se ao barroco: “‘estilo da orelha’, dissemos, tanto é verdade que o labirinto, a curva, a concha e a dobra são sinônimos de uma profunda superficialidade que permite entender o coração da vida” (Maffesoli, 2010bMAFFESOLI, M. No fundo das aparências. 4. ed. Petrópolis: Vozes , 2010b., p. 199).
O barroco cristaliza o geral no particular, dá atenção ao detalhe e ao minúsculo - visto como o mundo em condensação. Valoriza a forma e os objetos cotidianos e traz a vida comum para a experiência estética, além de acentuar o paganismo (Maffesoli, 2010bMAFFESOLI, M. No fundo das aparências. 4. ed. Petrópolis: Vozes , 2010b., p. 96-98). Caracteriza-se pelo jogo de luz e sombra (chiaroscuro) e pela fusão dos elementos no qual cada um deles não vale mais que em relação com o conjunto que lhe permite ser, e que de alguma maneira o eleva (Maffesoli, 2003MAFFESOLI, M. O instante eterno: o retorno do trágico nas sociedades pós-modernas. São Paulo: Zouk, 2003., p. 102); a exemplo da dimensão mítica e erótica em Rubens (Maffesoli, 2010bMAFFESOLI, M. No fundo das aparências. 4. ed. Petrópolis: Vozes , 2010b., p. 183), da obscuridade original de fundo em Caravaggio (Maffesoli, 2007aMAFFESOLI, M. O ritmo da vida: variações sobre o imaginário pós-moderno. Rio de Janeiro: Record, 2007a., p. 170), incluída a expressão da banalidade cotidiana em Velázquez (Pais, 1993PAIS, J. M. Nas rotas do quotidiano. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 37, 1993. Disponível em: <Disponível em: https://www.ces.uc.pt/publicacoes/rccs/artigos/37/Jose%20Machado%20Pais%20-%20Nas%20Rotas%20do%20Quotidiano.pdf >. Acesso em: 1 abr. 2022.
https://www.ces.uc.pt/publicacoes/rccs/a... ).
Ainda, não sendo somente um estilo artístico, o barroco é também a ambiência cultural de uma época e uma sensibilidade específica que, ao ver de Maffesoli, pode servir de alavanca metodológica para compreender o presente, podendo-se mesmo falar em barocchus post-modernus (Maffesoli, 2010bMAFFESOLI, M. No fundo das aparências. 4. ed. Petrópolis: Vozes , 2010b., p. 164-165).
“Bacchanalia” de Peter Paul Rubens (1615RUBENS, P. R. Bacchanalia. 1615. Pintura, óleo sobre tela, 107 x 91 cm.)
Como imagem emblemática, Dioniso representa ainda a força ectopsíquica e as múltiplas “dobras da alma” - que Descartes tentou passar a ferro -, o plissado do eu, que se dobra e se desdobra ao infinito, tal como evidenciado por Deleuze através do conceito de pli (Maffesoli, 2010bMAFFESOLI, M. No fundo das aparências. 4. ed. Petrópolis: Vozes , 2010b., p. 273). Ou mesmo o inconsciente, com seus conteúdos e sombras, com seus monstros e fantasmas, próprios do regime noturno e que, também povoam o imaginário social e o onírico coletivo (Maffesoli, 2005MAFFESOLI, M. A sombra de Dioniso: contribuição a uma sociologia da orgia. São Paulo: Zouk , 2005., p. 41-42). Maffesoli lembra que barroco significa “pérola irregular, assimétrica” e que a metáfora da “dobra” procura denotar, ao mesmo tempo, uma multiplicidade de elementos e o que é dobrado de muitas maneiras, tal como o orgânico que é estruturalmente composto. Tal expressão do vivo e também do social é a expressão de um poderoso vitalismo à espera de ser traduzido (Maffesoli, 2010bMAFFESOLI, M. No fundo das aparências. 4. ed. Petrópolis: Vozes , 2010b., p. 178-179).
Por fim, Dioniso remete ainda à força viva, originária, potencial que afronta o aperto do poder: é o poder cedendo lugar à potência (Maffesoli, 2011bMAFFESOLI, M. A transfiguração do político: a tribalização do mundo. Porto Alegre: Sulina, 2011b., p. 113). Quando a ordem se estabelece pelo fantasma do Uno, pela monovalência, pela rejeição do contraditório, enquanto figura arquetípica, ele reaparece como instinto turbulento que rompe com a ordem, que insufla a transgressão social, por vezes de forma explosiva e violenta (Maffesoli, 2005MAFFESOLI, M. A sombra de Dioniso: contribuição a uma sociologia da orgia. São Paulo: Zouk , 2005., p. 85). A irrupção da desordem evoca o polidimensional e a pluralidade dos valores, restabelecendo o equilíbrio dinâmico comprometido pela supremacia de um valor particular. Tais irrupções dionisíacas podem inclusive significar sublevações societais mais amplas, de enfrentamento aos poderes instituídos, com consequente criação de uma nova forma de corpo social (Maffesoli; Porto, 2020MAFFESOLI, M.; PORTO, C. L. A era das sublevações populares chegou. Fênix, Uberlândia, v. 17, n. 2, p. 25-36, 2020. DOI: 10.35355/revistafenix.v17i17.938
https://doi.org/10.35355/revistafenix.v1... ).
Por isso, Maffesoli nota como características perceptíveis desta transição paradigmática de Prometeu a Dioniso as revoltas e rebeliões não cooptáveis por estruturas político-partidárias, os inúmeros movimentos de reivindicação das diferenças culturais, étnicas, sexuais, religiosas e políticas; a valorização do doméstico, do território e dos localismos, a maior sensibilidade ecológica e retorno às tradições ancestrais; bem como no recurso às medicinas naturais, aos saberes populares ou sabedoria comum nas práticas de cuidado (Maffesoli, 2005MAFFESOLI, M. A sombra de Dioniso: contribuição a uma sociologia da orgia. São Paulo: Zouk , 2005., p. 5).
A vitalidade pessoal e coletiva: o despertar da potência orgíaca
Em Maffesoli, a forma e a figura da pós-modernidade mostram, sobretudo, outra relação, mais sensível e ecológica, para com os outros e a natureza em geral, criando uma socialidade ético-estética, haja vista que o sensível é real, potencial, e “faz” sociedade (Maffesoli, p. 2010bMAFFESOLI, M. No fundo das aparências. 4. ed. Petrópolis: Vozes , 2010b., p. 75). Isto é, a sensibilidade coletiva (pathos coletivo) é de certo modo o “lençol freático” de toda vida social e que, por vezes, assume a forma do político (Maffesoli, p. 2010bMAFFESOLI, M. No fundo das aparências. 4. ed. Petrópolis: Vozes , 2010b., p. 72). Além disso, a analogia que estabelece entre corpo individual e corpo social potente, porque em harmonia conflitual e em equilíbrio dinâmico, polissêmico, ordenativo e criador, fundamenta uma concepção ampliada de saúde, como potência de vida, tanto pessoal como coletiva, que envolve aspectos biológicos, enquanto capacidade inerente a todo vivo de criação de novas ordens vitais, e também existenciais, culturais, políticos, ecológicos e cósmicos.
Vale notar que, pela perspectiva maffesoliana, o “indivíduo”, indiviso ou atomizado, é compreendido como pessoa (persona) plural, que pode assumir diferentes máscaras dada a pluralidade de “Eus” possíveis de serem assumidos na teatralidade e no jogo das relações cotidianas. Em suas múltiplas máscaras, ao contrário de ser uma pessoa fechada em si mesma, autônoma e autossuficiente, sua característica é ser aberta ao coletivo, realizando-se em todas as suas potencialidades nos processos de fusão com os outros, prerrogativa do ser-conjunto. Isso significa dizer que a pessoa se realiza na relação com um Outro (alteridade) e que acaba por compor sua trama existencial. Aceitar o desafio de lidar com a alteridade, malgrado os conflitos possíveis pelo embate de valores diversos, é ampliar seus próprios horizontes existenciais. Ou seja, a pessoa é plural, aberta ao Outro e interdependente, desenvolvendo suas potencialidades nas diferentes formas de estar-junto, na relação com a natureza e com os outros na tessitura do corpo social.
Daí decorre que a manutenção da saúde pessoal - que poderíamos chamar, em termos nietzschianos, de grande saúde vitalista - pressupõe o rompimento da cristalização identitária através da aceitação dos múltiplos “Eus”, das máscaras e pontos de vista possíveis de serem assumidos por uma mesma pessoa no curso de sua vida (nomadismo); e a decorrente abertura e disponibilidade (empatia) ao Outro (alteridade), dentro e fora de si mesmo. Também, demanda à pessoa a arte do equilíbrio, ainda que provisório, alcançada através da capacidade de dançar (Maffesoli, 2011bMAFFESOLI, M. A transfiguração do político: a tribalização do mundo. Porto Alegre: Sulina, 2011b., p. 137) e de brincar com a realidade, de modo a desmontar os seus aspectos mais nocivos (Maffesoli, 2007aMAFFESOLI, M. O ritmo da vida: variações sobre o imaginário pós-moderno. Rio de Janeiro: Record, 2007a., p. 70). Como tática de resistência pessoal à negação da vida, é necessário encontrar formas de celebrá-la tal como é (amor fati), de modo que o querer-viver deve ser permanentemente inventado no dia a dia para dar conta das tristezas vividas no cotidiano (Maffesoli, 2003MAFFESOLI, M. O instante eterno: o retorno do trágico nas sociedades pós-modernas. São Paulo: Zouk, 2003., p. 9).
“Bacchino Malato” de Caravaggio (1593CARAVAGGIO, M. M. Bacchino Malato. 1593. Pintura, óleo sobre tela, 67 x 53 cm.)
Por esse aspecto, fazer da vida uma obra de arte é apostar na dimensão qualitativa da existência, adotando uma atitude de contemplação e de júbilo com as pequenas coisas vividas no presente, tomando a vida como uma sucessão de agoras vividos em urgência serena, equilíbrio, harmonia e apreciação do mundo (Maffesoli, 2003MAFFESOLI, M. O instante eterno: o retorno do trágico nas sociedades pós-modernas. São Paulo: Zouk, 2003., p. 46). Nessa perspectiva, ter uma grande saúde pressupõe também conseguir lidar com os tempos da vida, o cronometrado (Cronos) e o oportuno do acontecimento (Kairós), de modo que um instante de existência plena possa oferecer sentido a toda existência: “Ética do instante, eu disse, a qual pretende, de uma maneira obstinada, viver ‘apesar de tudo’, esta existência tolhida de vicissitudes, mas que segue sendo atrativa, apesar ou por causa disso” (Maffesoli, 2003MAFFESOLI, M. O instante eterno: o retorno do trágico nas sociedades pós-modernas. São Paulo: Zouk, 2003., p. 41). Assim, a arte não se reduz a obra dos artistas, expostas em galerias e museus, mas torna-se um fato existencial, sobretudo, uma postura frente à própria vida (Maffesoli, 2010bMAFFESOLI, M. No fundo das aparências. 4. ed. Petrópolis: Vozes , 2010b., p. 12).
Todavia, é importante frisar, que em diálogo com Foucault, Maffesoli entende que a estetização da existência é sempre uma prática social, intersubjetiva e mesmo transsubjetiva, que envolve não somente um ocupar-se de si, primeiramente, para depois ocupar-se dos outros, mas um ocupar-se com os outros. Colocar-se em relação é, pois, a condição de possibilidade de fazer da vida uma obra de arte coletiva, entendida como criação de um si, efetivada no bojo das relações sociais e concretizada nas atividades cotidianas (comer, caminhar, vestir-se, transitar, conversar etc.). Por essa perspectiva, a vida cotidiana concreta é considerada “obra de arte”, por suas práticas minúsculas e situações corriqueiras, criadas e recriadas pelas pessoas em conjunto, no dia a dia. Logo, estetizar-se é colocar-se em situação de abertura (apérité) para com os Outros, buscando o prazer de estar-junto, nos diferentes domínios da vida social, em suas ambiências estéticas, naturais, culturais, emocionais e rítmicas, e nos diferentes locais nos quais a vida se desenrola.
Tal como o corpo pessoal, o corpo social não é um conjunto de indivíduos isolados, mas uma trama inter-relacionada e interdependente, que se mantém coesa por uma harmonia interna, ainda que conflitual, por acordo simpático entre seus múltiplos elementos, que se mantém aglutinados por solidariedade orgânica. Harmonia no sentido musical de orquestração de acordes e variações a partir de um mesmo tema para compor um arranjo sonoro original, uma entonação societal, ao mesmo tempo rítmica, melódica e emocional: tal como o cosmos tem sua música, o corpo social tem sua própria entonação, modulação, ritmo e pulsação. Não à toa, Maffesoli utiliza as imagens do mosaico, do caleidoscópio e da colcha de retalhos para expressar a diversidade e o aspecto compósito, dinâmico e multicolorido da vida social, e da orquestra sinfônica para expressar a pluralidade de valores em harmonia conflitual de elementos distintos que nela se apresentam: “o corpo social é um metabolismo vivo. E, como tal, tem variação, ritmos específicos, múltiplas acentuações” (Maffesoli, 2007aMAFFESOLI, M. O ritmo da vida: variações sobre o imaginário pós-moderno. Rio de Janeiro: Record, 2007a., p. 105).
Além disso, o vitalismo postula que há uma criatividade que serve de substrato às formações sociais. A potência coletiva cria “obras de arte” em suas formas sociais diversas (modos de vida, manifestações culturais etc.). Ou seja, há uma estreita relação entre potência e criatividade; o societal por si próprio se recria, expressando a potência intrínseca que o constitui (Maffesoli, 2010bMAFFESOLI, M. No fundo das aparências. 4. ed. Petrópolis: Vozes , 2010b., p. 22-24). De modo análogo ao corpo pessoal, o corpo social, coletivo permanece potente, saudável, na medida em que consegue lidar com suas diferenças internas, aceitando sua diversidade e gerindo seus conflitos e contradições, e estabelecendo relações dialógicas e de tolerância para com outros corpos sociais valorativa e politicamente diversos. Também, episodicamente, se sublevando de modo a resistir à unidimensionalidade moral-valorativa, político-totalitária e econômico-tecnocrática instituída que o oprime, evitando assim sua despotencialização ou adoecimento (Maffesoli; Porto, 2020MAFFESOLI, M.; PORTO, C. L. A era das sublevações populares chegou. Fênix, Uberlândia, v. 17, n. 2, p. 25-36, 2020. DOI: 10.35355/revistafenix.v17i17.938
https://doi.org/10.35355/revistafenix.v1... ).
Além disso, do mesmo modo que o corpo pessoal busca harmonizar-se com a natureza, assumindo uma atitude de humildade e pertença, integrando-se a ela de modo a compor forças e revitalizar-se, também o corpo social, recusando a postura de devastação para com o meio ambiente, encontrará nesta relação negociada a sua saúde ou potência coletiva.
Nos cenários da vida cotidiana: um locus para a práxis profissional
Segundo Maffesoli, a vida cotidiana é uma rede sutil, complexa, na qual cada elemento, objeto, assunto, situações anódinas, eventos importantes, pensamentos, relações, ações etc., são apreensíveis apenas enquanto ligados ao todo e fazendo sentido dentro e pela globalidade (Maffesoli, 1995MAFFESOLI, M. A contemplação do mundo. Porto Alegre: Artes e ofícios Editora, 1995., p. 65). Ela se dá em no interior de uma casa (domus) e em dado território, ao mesmo tempo estático e dinâmico, solo no qual se enraíza uma comunidade, recorte do espaço-tempo comum (oikos) e receptáculo de um destino coletivo (Maffesoli, 2003MAFFESOLI, M. O instante eterno: o retorno do trágico nas sociedades pós-modernas. São Paulo: Zouk, 2003., p. 188). Logo, as pessoas e suas comunidades têm características próprias e potencialidades latentes e por residirem em um território específico encontram-se imersas em um imaginário coletivo e se alimentam de um legado cultural geracional e transgeracional que, consciente e inconscientemente, herdam.
Lembremos que o território para Maffesoli é um biótopo e que o termo “casa” tem importância simbólica pois, em seu sentido principal, remete não somente a abrigo familiar, mas também comum, onde se pode ter segurança e proteção contra as adversidades naturais e também sociais: “Domus em latim e oikos em grego tinham essa significação. É possível que isso ecoe, ainda hoje, no inconsciente coletivo. É o que dá força e vigor ao sobressalto ecológico” (Maffesoli, 2010aMAFFESOLI, M. Saturação. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2010a., p. 104). A territorialidade mostra que vivo em determinado lugar e que compartilho com os demais um biótopo e uma atmosfera ou aura imaginal, imaterial e simbólica. Além disso, ela denota a necessidade de solidariedade e proteção que caracteriza todo corpo social (Maffesoli, 2004MAFFESOLI, M. Notas sobre a pós-modernidade: o lugar faz o elo. Rio de Janeiro: Atlântica, 2004., p. 23).
Importante destacar que para Maffesoli a “lógica do doméstico”, isto é, a importância da ecologia, do bairro, do familiarismo e do cotidiano não significa o estreitamento do indivíduo na esfera do privado. O retorno ao território, à natureza e às tradições e memória locais não significa um fechamento ou um retrocesso conservador, mas uma estratégia para o fortalecimento da solidariedade orgânica de base e o despertar da potência coletiva comunitária. A dimensão ctônica do espaço é vetor de socialidade e possibilita o encontro com os outros e aponta para a dimensão do comum, já que todos estão ligados a um território específico compartilhado, do qual a comunidade vai extrair sua força e garantir sua manutenção (Maffesoli, 2010bMAFFESOLI, M. No fundo das aparências. 4. ed. Petrópolis: Vozes , 2010b., p. 83-88). É no território, origem das coisas cotidianas concretas, que os vínculos se constituem, baseados na posse comum de valores arrigados: língua, costumes, culinária, posturas sociais etc. (Maffesoli, 2004MAFFESOLI, M. Notas sobre a pós-modernidade: o lugar faz o elo. Rio de Janeiro: Atlântica, 2004., p. 22-23).
Com efeito, o território tem uma carga simbólica, relativa ao lugar e suas nostalgias; os odores e sabores estruturam o indivíduo e os grupos (Maffesoli, 2003MAFFESOLI, M. O instante eterno: o retorno do trágico nas sociedades pós-modernas. São Paulo: Zouk, 2003., p. 54). Ao mesmo tempo natural e cultural, enquanto espaço-tempo habitado por uma comunidade, ele tem uma construção imaginária, um gênio (genius loci), memórias orais, escritas, lendas e poéticas locais: “É tudo isso que faz com que o estático espacial se anime e anime, stricto sensu, dá-se-lhe vida e ele vivifica” (Maffesoli, 1995MAFFESOLI, M. A contemplação do mundo. Porto Alegre: Artes e ofícios Editora, 1995., p. 116). Enquanto solo que faz os laços ou vínculos comunitários, o território é ainda base potencial de transfigurações societais, compreendendo que é nele que nascem todas as ações criativas e criadoras instituintes.
Como lugar de vida cotidiana, a casa (domus) é espaço de exercício da imaginação e da criatividade e também da convivialidade, sendo o pivô em torno do qual irá se articular a socialidade (Maffesoli, 2010bMAFFESOLI, M. No fundo das aparências. 4. ed. Petrópolis: Vozes , 2010b., p. 90). Tomada como moradia ou residência pessoal, é no espaço-tempo da casa que realizamos os fazeres na rotina do dia-a-dia e construímos parte de nossa história afetiva e familiar. Fortalecido pelo tempo, o habitá-la se constrói através dos usos e investimentos afetivos nos objetos e das relações que estabelecemos com quem conosco coabita e com quem mais permitimos que adente neste espaço existencial. É também, primeiramente, no âmbito do doméstico que o societal é tramado, nas relações estabelecidas, espontâneas e corriqueiras, mas potencialmente criadoras de laços afetivos e novas sensibilidades em relação ao próprio corpo (estesia), aos outros (intersubjetividade) e à natureza (sensibilidade ecológica).
A casa é, pois, campo de experiências relacionais, sinestésicas e cinestésicas, com pessoas, animais, plantas e outros elementos naturais, e com objetos técnicos e tecnológicos, imbuídos de significados e de afetos. É o ambiente conhecido que contém os objetos que guardamos, nem sempre por utilidade, mas pelas lembranças, reminiscências e afetos que a eles se associam; é também lugar dos hábitos rotineiros e dos ritos diários, do retorno do mesmo dele (déjà-vu repousante) e também das criações dos modos de ser e estar no mundo, de maneira que ter garantido e resguardado este espaço de vinculações, de fazeres e de memórias é essencial a nosso florescimento como pessoa.
Com efeito, enquanto espaço-tempo do morar/habitar, a casa propicia relações e interações com os outros que lhe são familiares e com os objetos que compõem esta ambiência, concreta e afetiva, emocional. Aí, mesmo os objetos banais do cotidiano são mediadores e condição de possibilidade de convívio e fusão com o Outro: “o objeto me liga, seu lado mundano incita à fusão com a natureza-mãe e suas diversas modulações sociais, mas, ao mesmo tempo, é ‘ponte’ com outrem, é a condição de possibilidade de todo o convívio com os outros” (Maffesoli, 2010bMAFFESOLI, M. No fundo das aparências. 4. ed. Petrópolis: Vozes , 2010b., p. 249). Eles têm o aspecto criativo do barroco, para além de seu valor de uso e de troca, têm uma aura, uma força coagulante, são criadores de comunidades, tendo uma participação na dimensão estética da existência (Maffesoli, 2010bMAFFESOLI, M. No fundo das aparências. 4. ed. Petrópolis: Vozes , 2010b., p. 252-253).
Por esse aspecto, a vida cotidiana pode ser caracterizada também por engendrar “resistências suaves”, que se dão em surdina, traduzidas pela ressignificação dos objetos, em apropriações (afetivas, lúdicas etc.) para além de sua utilidade ou finalidade pré-programada, pelo resgate da memória ancestral, da preservação dos modos de vida, ritos e formas de comunicação e linguagens, muitas das vezes fora dos ditames hegemônicos. Pois, é palco da sabedoria popular que recorre a uma série de táticas e pequenas astúcias - tal como a de Ulisses na caverna de Polifemo e de Penélope com sua tecelagem sem fim - de modo a escapar das diversas imposições sociais, tornando a vida mais suportável (Maffesoli, 2011bMAFFESOLI, M. A transfiguração do político: a tribalização do mundo. Porto Alegre: Sulina, 2011b., p. 94). Assim, apesar da aparente rotina e monotonia doméstica, a casa é também cenário dos sonhos e das pequenas utopias e liberdades intersticiais, que se operam longe do olhar panóptico dos poderes, sendo ainda lugar de atualização arquetípica dos fazeres, ocupações e artesanias (plantar e colher, cozinhar e alimentar-se, fiar e tecer etc.).
Dotada de uma estrutura material e imaterial (imaginária, cultural e simbólica), a casa (domus) é o espaço-tempo da construção das histórias de vida, das pequenas narrativas e do lirismo cotidiano, e também da construção de sentidos para o existir. É também o lugar dos hábitos e ritos cotidianos, expressão da memória pessoal, familiar e sociocultural. Mas a vida cotidiana se realiza da porta para dentro e também para fora - à imagem da porta e da ponte trazida por Simmel e resgatada por Maffesoli, denotando a abertura e a saída da casa para o espaço comum da cidade. A casa, enquanto espaço-tempo habitado, se abre ao território, como ambiente natural e construído, de ritos e memórias coletivos, lugar (locus) onde se estabelecem as relações de proximidade, de vizinhança e de partilha, e também onde ocorrem os jogos de poder e os conflitos locais.
“Velha fritando ovos” de Velázquez (1618VELÁZQUEZ, D. Velha fritando ovos. 1618. Pintura, óleo sobre tela, 128. x 99 cm.)
O território comum é o espaço vivificado circundante ao domicílio e que, de modo extensível, se incorpora ao espaço da cidade, compreendida como espaço arquitetural e cultural, mais ou menos integrado ao meio ambiente natural, e de trânsito popular, em seus fluxos e ritmos, e que serve de oportunidade para errâncias, derivas e encontros aleatórios na teatralidade da vida corrente (Maffesoli, 2010aMAFFESOLI, M. Saturação. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2010a. p.42; 2010bMAFFESOLI, M. No fundo das aparências. 4. ed. Petrópolis: Vozes , 2010b., p.237). Como espaço emocionalmente vivido, é possível “vibrar em diapasão” com a cidade, participar de seus ritmos, mas também se permitir a lentidão, a parada, as errâncias e o despertar dos sentidos, para além do ritmo dinâmico, acelerado, ativista e produtivista moderno e dos percursos pré-definidos do caminhar. Como “labirinto do vivido”, com seus cantos e curvas, ela pode ser também campo de experiências potencializadoras e salutares, compondo o território concreto e simbólico das pessoas e grupos que nela circulam e marcam sua presença (Maffesoli, 2004MAFFESOLI, M. Notas sobre a pós-modernidade: o lugar faz o elo. Rio de Janeiro: Atlântica, 2004., p. 59-61).
O trabalho territorial e comunitário, em sua especificidade, aproxima o profissional do espaço-tempo da vida cotidiana das pessoas, grupos e coletivos atendidos, de seus domicílios e espaços comuns, demandando a percepção de que cada território, malgrado as impotências experimentadas e as rupturas vinculares, também pode ser locus de relações afetivas e de solidariedade entre seus membros. Isso representa não apenas um desafio técnico, de como produzir saúde e socialidade, mas também ético-estético e político, ao tempo em que envolve o contato com pessoas em sua diversidade, com dinâmicas familiares em seus diferentes arranjos, com questões ambientais, culturais, institucionais e econômicas específicas, e também com jogos de poder próprios a cada comunidade.
Tendo o espaço-tempo pessoal e coletivo como cenário de suas práticas, seguindo a racionalidade sensível maffesoliana, ao profissional desenham-se os contornos teórico-metodológicos de uma práxis baseada em uma atitude proxêmica, no acercar-se acolhedor e sem julgamentos prévios das pessoas, famílias e coletivos assistidos e de seus lugares de vida cotidiana, visando a realização de práticas de acompanhamento e de facilitação do estar-junto com a natureza, com a família, os amigos, a comunidade. Ou seja, adotando-a, aquele que atua em um dado território, vai respeitar a diversidade dos grupos sociais e de seus modos de vida, sempre situados em relação a contextos culturais, sociais e ecológicos específicos; procurando apreender o significado pessoal e familiar de seus lugares de habitar, captar a atmosfera imaginal, mítica e simbólica coletiva, identificar as potencialidades das pessoas e comunidades e as formas através das quais buscam vitalidade, manutenção da saúde e vinculações, de modo a incrementá-las. Considerar também que é no espaço-tempo comunitário que o corpo social se sonha, se imagina e se recria, sendo portanto necessário compreender o jogo de potências e poderes de um território e a polissemia de valores que pode ser orquestrada, ainda que em harmonia conflitual, em benefício do coletivo e do espaço-tempo compartilhado.
Considerações Finais
A partir de um recorte de suas obras e ideias-força e focando, sobretudo, nas contribuições de seu pensamento aos fundamentos epistemológicos, ético-políticos e teórico-metodológicos das práticas assistenciais na interface saúde/assistência social, nota-se que Maffesoli mostra a necessidade de uma racionalidade sensível para a apreensão da vida cotidiana na complexidade e vitalidade da trama relacional societal; e que a forma e a figura da pós-modernidade podem nos oferecer a ela uma imagem mais potente e salutar. Considerando a visada maffesoliana, quando da realização de suas práticas de proteção e cuidado, o profissional terá em vista que o domicílio é lugar de imaginação e de criatividade existenciais, pois é nele que desenvolvemos a arte de viver no cotidiano, as astúcias do savoir-vivre, os respiros, as resistências e liberdades intersticiais, e que o território é espaço-tempo fértil e compartilhado, criador e transfigurador, pois é nele que a vida cotidiana se desenrola; onde o afetivo primário se consolida e que os demais estratos de sociabilidade se erigem, que os vínculos são fortalecidos ou esgarçados, que os nós são firmados e desfeitos, em suma, que os fios que compõem a trama societária se rompem ou se entrelaçam. Ademais, atuando nos locais de vida cotidiana, próximo e dentro dos lugares de habitar e do conviver coletivamente com os outros viventes humanos e não humanos, com a natureza e seus elementos, se imbuirá de um ethos de orientação ecosófica, incluindo em suas práticas (praxis) além da consideração do impacto ecológico de suas ações, o objetivo do bem-estar e do melhor viver na casa comum (oikos).
Referências
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
06 Jul 2022 - Data do Fascículo
2022
Histórico
- Recebido
16 Dez 2021 - Revisado
13 Out 2021 - Revisado
16 Dez 2021 - Aceito
18 Jan 2022