“Prefiro mexer no coração a mexer na boca”: reflexões sobre o cuidado em saúde bucal

Joaquim Gabriel de Andrade Couto Carlos Botazzo Sobre os autores

Resumo

Este artigo tem como objetivo compartilhar as reflexões sobre o cuidado em saúde bucal produzidas a partir da relação dialética entre a prática profissional e as pesquisas teóricas. Propomos a problematização da concepção de cuidado difundida pelo discurso biomédico, que o remete a uma certa tecnicidade voltada à cura. Apostamos no cuidado em sua dimensão ontológica, como característica intrínseca ao ser humano, a partir da qual os sujeitos se constituem e se realizam no mundo. Para tanto, utilizamos o conceito da bucalidade para localizar a boca humana enquanto território que está inserido no processo de produção e reprodução social, sendo completamente penetrado pela cultura e pelo psiquismo. Apresentamos, portanto, a boca que é socialmente produzida, um território-corpo dotado de subjetividade e que é atravessado por uma multiplicidade de experiências ao longo da vida. Por esse motivo, a ideia odontologizada de cuidado não dá conta de apreender o cuidado em saúde bucal em sua complexidade, tornando-se necessária a renúncia ao a priori odontológico, compreendendo que é na boca em que se materializam as realidades e experiências histórico-sociais dos sujeitos, abrindo-se espaço para o cuidado enquanto encontro intersubjetivo atravessado por afecções, com enorme potencial transformador.

Palavras-chave:
Bucalidade; Afeto; Saúde Bucal

Introdução

Uma senhora pernambucana de cerca de 60 anos procura atendimento em saúde bucal numa Unidade Básica de Saúde (UBS) da região Sul do Brasil. Durante uma primeira conversa, ela conta sobre o seu processo de migração de Recife para Santa Catarina, fala também sobre sua experiência na cidade atual e cita sobre seus filhos e alguns problemas que vem enfrentando com um deles. A procura por uma limpeza nos dentes tinha levado a senhora a se deslocar até a UBS em busca de um dentista. Ao sugerir que colocássemos a cadeira odontológica em posição para dar início ao atendimento, a senhora logo dispara: “meu filho, vou logo avisando que morro de medo de dentista. Prefiro mexer no coração a mexer na boca”.

Em um primeiro momento, a afirmação proporcionou um ambiente de descontração e boas risadas, mas em seguida serviu como ponto de partida para questionamentos e reflexões. Dessa maneira, o ensaio aqui apresentado tem como objetivo principal o de compartilhar reflexões que são fruto da relação dialética entre estudos teóricos e a prática cotidiana. O título do artigo traça um fio condutor dessas reflexões: como produzir cuidado em saúde bucal quando a atuação nesse campo está intimamente vinculada a situações desagradáveis? Por esse motivo, torna-se imperativo pensarmos sobre como temos concebido o cuidado na saúde, mais especificamente no campo da saúde bucal.

Comumente quando abordado pelo campo da saúde, o cuidado é referido a um conjunto de medidas terapêuticas e procedimentos - uma certa tecnicalidade voltada à cura. Assim, o cuidado se insere em um racionalismo individualizante e intervencionista, completamente capturado pela lógica biomédica tecnicista. Tal tecnicidade é o que constituiu a odontologia enquanto profissão no século XIX, e não seria surpresa se o cuidado em saúde bucal estivesse remetido aos numerosos procedimentos da cirurgia, da dentística e da prótese (Ayres, 2004AYRES, J. R. C. M. Cuidado e reconstrução das práticas de Saúde. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 8, n. 14, p. 73-92, 2004. DOI: 10.1590/S1414-32832004000100005
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; Botazzo, 2000BOTAZZO, C. Da arte dentária. São Paulo: Hucitec, 2000.).

Este artigo propõe linhas de fuga ao cuidar biomédico, que fala de cura, tratamento e controle, pois consideramos que esse cuidado estático e objetificador esvazia uma característica intrínseca do ser humano. Cuidar, portanto, não é sobre construir um objeto e intervir nele. Apostamos na produção do cuidado a partir do encontro, considerando que a subjetividade é ipseidade, e por esse motivo é construída na experiência do encontro com a alteridade, encontro que é atravessado por afetos, havendo uma ruptura na relação sujeito-objeto instituída, possibilitando que sujeitos se constituam juntos em ato, atravessados por seus territórios existenciais, suas histórias e desejos (Ayres, 2001AYRES, J. R. C. M. Sujeito, intersubjetividade e práticas de saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 6, n. 1, p. 63-72, 2001. DOI: 10.1590/S1413-81232001000100005
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; Franco; Hubner, 2019FRANCO, T. B.; HUBNER, L. C. M. Clínica, cuidado e subjetividade: afinal, de que cuidado estamos falando? Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 43, n. 6, p. 93-103, 2019. DOI: 10.1590/0103-11042019S608
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).

Assim sendo, apresentamos este ensaio crítico e reflexivo, o qual está estruturado em três seções: a primeira tem como objetivo discutir a construção do saber médico e sua concepção de cuidado, o qual está submetido a técnicas serializadas e específicas; a seção seguinte se dedica a debater a boca para além do campo biológico, compreendendo-a enquanto território social inserido nos processos de produção e reprodução social; a última seção procura resgatar o cuidado enquanto categoria central da vida humana, tomando-o a partir do encontro intersubjetivo.

O cuidado aprisionado pelo discurso biomédico

É sabido que no campo da saúde o discurso biomédico é hegemônico, tendo capturado a noção de cuidado ao remetê-la a um conjunto de ações técnicas e individuais. Essa hegemonia discursiva é fruto do processo histórico de conformação do saber médico científico que, como todo discurso, está diretamente ligado ao desejo e ao poder. A produção dos diferentes discursos traduz as relações de poder e os sistemas de dominação, configurando-se como regimes próprios de enunciação. É nesse contexto que a medicina constrói seu discurso sobre a saúde, a doença e o cuidado apoiada no entrelaçamento de diferentes elementos: o status daqueles que falam - assentado na experimentação de um saber; a posição destes como sujeitos que observam, tocam, descrevem e nomeiam; um espaço institucional e técnico de onde falam (Foucault, 1996FOUCAULT, M. A ordem do discurso. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1996.; 2008FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária , 2008.).

O discurso médico sobre os processos da vida opera também mecanismos de controle, interdição, exclusão e coerção das demais enunciações. É o saber médico que define as formas corretas de se levar a vida e toma para si a responsabilidade de cuidar das pessoas, lançando mão de seu arcabouço de práticas e técnicas. O cuidado, portanto, reduz-se a um processo de objetivação, orientado por concepções normativas do que se configura como saúde ou doença. A bússola médica orientada pela noção de norma impõe à saúde uma certa estabilidade e, consequentemente, o conceito de saúde é construído como um valor a ser desejado - estar saudável, forte, resistente, reprodutivo e produtivo, enquanto estar doente é visto como algo nocivo, indesejável, socialmente desvalorizado (Canguilhem, 2009CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.; Foucault, 1996FOUCAULT, M. A ordem do discurso. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1996.).

A saúde, para o médico e filósofo francês Canguilhem, é a capacidade de instituir novas normas em situações novas, enquanto os desvios das normas - as anormalidades - não são necessariamente patológicos, pois, como relembra o autor: “patológico implica pathos, sentimento direto e concreto de sofrimento e de impotência, sentimento de vida contrariada” (Canguilhem, 2009CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009., p. 53). Nesse sentido, a busca pelo cuidado aparece como necessidade a partir do ponto em que o sujeito sente tal necessidade, uma vez que é ele quem determina, a partir de sua experiência subjetiva, o ponto de passagem entre um estado de saúde e um estado patológico.

O consultório odontológico, como derivação histórica do consultório médico, é espaço norteado por pretensa objetividade, que acaba por escamotear os atravessamentos subjetivos - os medos, as angústias, os projetos e desejos -, que são de extrema relevância para a produção de cuidado. Tal escamoteamento é resultado da cisão que os estabelecimentos de saúde e o discurso biomédico operam, uma vez que delimitam o fora e o dentro: de um lado, o sujeito e seu discurso que dizem respeito ao âmbito privado, da sua percepção subjetiva e singularizada sobre a vida, a saúde e a doença; e, de outro lado, o discurso do trabalhador da saúde que, em um processo de objetivação, é responsável por traduzir e construir uma narrativa sobre o outro em uma esfera pública. Esse encontro se dá permeado por relações de poder, em que o profissional de saúde ocupando um lugar de dominação é responsável por determinar o que se enquadra (ou não) como uma necessidade em saúde. Ao passo em que se busca a máxima objetivação, o teor subjetivo do encontro é colocado em segundo plano (Botazzo, 1999BOTAZZO, C. Unidade básica de saúde: a porta do sistema revisitada. Bauru: EDUSC, 1999.).

A preferência por “mexer no coração a mexer na boca” diz muito a respeito desse campo subjetivo, o qual frequentemente é deixado de lado no ímpeto da objetividade da prática clínica. Para aquela senhora, as experiências vividas com seu corpo construíram uma maneira de significar o atendimento odontológico. Apesar dos significantes de angústia e desprazer, a percepção subjetiva de uma necessidade levou-a em busca de uma unidade de saúde com o intuito de encontrar uma resolução para sua questão. Apesar da importância dessa percepção subjetiva, a medicina construiu seu discurso a partir de um lugar de poder que, num processo de objetivação, opera a dessubjetivação do outro, transformando-o em um objeto desviado que deve ser reestabelecido em sua norma, independentemente das experiências que conformam as subjetividades desses sujeitos. Dessa maneira, o cuidado em saúde acaba tomado pela busca incessante da cura, o retorno a uma certa normatividade (Canguilhem, 2009CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.).

Essa forma engessada de se encontrar com as pessoas que a medicina científica consolidou, é resultado da sua conformação enquanto saber-poder no decorrer da história. Foucault (1999FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.) discute o processo de consolidação dessa conformação médica durante o momento de ascensão do modo de produção capitalista na Europa, quando o corpo humano foi tomado como alvo pelos dispositivos de poder, uma vez que era esse corpo que produzia (e ainda produz) o valor extraído pelo capitalista. O filósofo aponta dois mecanismos de poder que se articulam. De um lado, um poder disciplinar com foco no corpo individual, que deve ser treinado, vigiado e utilizado da melhor forma possível, aumentando a sua força útil e otimizando a sua capacidade produtiva. De outro, um poder que leva em conta a vida e toma como alvo o homem-espécie, buscando assegurar não uma certa disciplina, mas uma regulamentação. De acordo com o autor, a atuação desses mecanismos acontece de forma que:

[…] A disciplina tenta reger a multiplicidade dos homens na medida em que essa multiplicidade pode e deve redundar em corpos individuais que devem ser vigiados, treinados, utilizados, eventualmente punidos. E, depois, a nova tecnologia que se instala se dirige à multiplicidade dos homens, não na medida em que eles se resumem em corpos, mas na medida em que ela forma, ao contrário, uma massa global, afetada por processos de conjunto que são próprios da vida, que são processos como o nascimento, a morte, a produção, a doença, etc. (Foucault, 1999FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999., p. 289)

Nesse cenário, a medicina exerce seu papel na centralização de informações e normalização do saber, posicionada em uma função de “educação” da população, com uma atuação pautada no controle e na medicalização. A orientação pela noção da norma instrumentaliza a medicina para que ela exerça uma anatomopolítica do corpo individual que se deseja disciplinar, assim como a biopolítica das populações que se quer regulamentar. O corpo humano tomado enquanto assunto biopolítico tem seus diversos espaços esquadrinhados, disciplinarizados e controlados. O campo da saúde adentra todas as esferas da vida social, passando a fixar normas de sociabilidade e determinar as formas aceitáveis de se levar a vida. Não à toa, os serviços de saúde são estruturados como ambientes nos quais uma certa pedagogia, altamente prescritiva e normativa, ignora as reais possibilidades dos sujeitos (Foucault, 1999FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.).

A configuração do consultório e dos atendimentos odontológicos, em específico, carregam consigo um ar de intervenção, tendo em vista que a originalidade da odontologia se construiu com base em uma técnica específica. Esse espaço constrói uma organização que delimita uma certa hierarquia tanto no campo simbólico quanto no concreto: aquele que senta na cadeira odontológica é colocado (por outrem) em uma posição supinada e inferior. Tal conformação explica bastante sobre o mal-estar associado a esse lugar, considerando que nele as pessoas ficam em uma posição de vulnerabilidade - deitadas e conscientes, sendo observadas por outra pessoa que insere objetos na sua cavidade bucal, enquanto uma série de toques, sons, cheiros e sabores são produzidos. Tem-se um encontro atravessado por sensações que se ligam às memórias e aos afetos, conformando assim formas de significar aquele lugar e aquela prática (Botazzo, 1999BOTAZZO, C. Unidade básica de saúde: a porta do sistema revisitada. Bauru: EDUSC, 1999.).

Além do mais, o campo biomédico, enquanto prática recoberta por uma dimensão político-ideológica, vem historicamente sendo utilizado pelo modo de operar capitalista, tendo suas funções remetidas à manutenção do status quo da ordem social burguesa. À medida que se esforça em adequar os trabalhadores ao ritmo do capital, a medicina opera uma intensa gestão biopolítica da vida, passando a gerir, guiar e controlar as ações humanas, os hábitos e valores das sociedades. Nesse cenário, o corpo biopolítico tem seus diversos espaços esquadrinhados, disciplinarizados e controlados, não havendo escapatória para esse específico território denominado boca (Donnangelo; Pereira, 1979DONNANGELO, M. C. F.; PEREIRA, L. Saúde e sociedade. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1979.).

A boca humana é um espaço de intimidade, no qual se satisfazem os gozos cotidianos da vida em sociedade: comer o que apetece, falar o que sente vontade, desfrutar do corpo desejado. Também é por ela que saem gases do trato digestivo, secreções e cheiros. Nesse sentido, a boca é um local dotado de múltiplas funções, sendo definidas normas sociais sobre seu uso adequado, um uso normalizado: falar corretamente e apenas o que convém, comer o suficiente e de boca fechada, ter pudor ao usar a boca nas relações afetivas, não cuspir ou arrotar em público. Atravessada por permissões e negações, é no consultório odontológico que essa boca tão íntima se coloca completamente à mostra, o que abre espaço para conhecer a forma como os sujeitos se relacionam com o mundo e com o próprio corpo (Kovaleski; Torres de Freitas; Botazzo, 2006KOVALESKI, D. F.; TORRES DE FREITAS, S. F.; BOTAZZO, C. Disciplinarização da boca, a autonomia do indivíduo na sociedade do trabalho. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 97-103, 2006. DOI: 10.1590/S1413-81232006000100017
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).

A produção social da boca humana

Por ser um espaço atravessado por normas sociais e moralidades, dedicamo-nos à discussão sobre a boca, tratando-a enquanto um território, afinal ela não representa apenas um órgão ou tecido homogêneo. Ela é composta por mucosas, glândulas, ossos e músculos, dispostos e articulados por singular sinergia fisiológica, mas tal diversidade anatomofisiológica não dá conta, sozinha, de apreendê-la em suas funções sociais, e por esse motivo nos afastamos de uma discussão meramente odontológica - ou odontologizada, pois consideramos que a odontologia constituída como um constructo biológico se dedicou historicamente aos dentes e as funções dentárias. Desde sua emergência no final do século XIX, a odontologia trata de um objeto que é alienado, um objeto que é desvinculado do próprio sujeito, uma vez que ela não toma como objeto um sujeito - doente ou não - e sim uma específica doença e um lugar doente (Botazzo, 2000BOTAZZO, C. Da arte dentária. São Paulo: Hucitec, 2000.; 2013aBOTAZZO, C. Diálogos sobre a boca. São Paulo: Hucitec , 2013a.).

Ao contrário, pensamos a boca como território atravessado por discursos, já que ela ganha diferentes significações diante da diversidade de enunciados que se produzem sobre ela: desde o odontológico até o psicanalítico, além do discurso dos próprios sujeitos sobre suas experiências bucais. Partimos dessa boca apreendida em pertencimento às ciências humanas, aquela que é socialmente produzida, e que, portanto, tem sua origem a partir do distanciamento de sua animalidade biológica, colocada em relações sociais no seu processo de hominização. A produção social da boca está conectada às experiências do corpo na sociedade. Assim, quando a boca está inserida nos processos de reprodução social, toma-se consciência acerca da existência desse território-boca, de sua produção no mundo e sua ação de consumo do mundo (Botazzo, 2000BOTAZZO, C. Da arte dentária. São Paulo: Hucitec, 2000.).

Quando situada na dimensão do homem em sociedade, a boca é apresentada por Carlos Botazzo como um produto sociocultural a partir do conceito da bucalidade: a capacidade da boca de executar os seus trabalhos bucais - e sociais. Os trabalhos bucais compreendem a manducação, a linguagem e a erótica, todos inseridos em um processo contínuo e articulado de produção e consumo. Na manducação, muito além de mera atividade mecânica e fisiológica, o processo de apreender o alimento, triturar, diluir e deglutir envolve uma produção que coloca as estruturas do tubo digestivo superior em relação, além de um consumo que é também produtor da satisfação do gozo bucal. A linguagem produz e consome palavras - permitidas ou não; assim como na eroticidade , produzimos atos sexuais bucais no intuito de consumir o corpo do outro. Tal produção social aponta a boca como um território localizado entre a razão e a psique, e assim completamente penetrado pela cultura e pelo psiquismo (Botazzo, 2013aBOTAZZO, C. Diálogos sobre a boca. São Paulo: Hucitec , 2013a.).

Os múltiplos atravessamentos culturais e psíquicos conformam as experiências bucais mais diversas. A mulher descrita na abertura deste artigo tem 60 anos de experimentações com seu corpo, seus trabalhos bucais são guiados pela cultura e pelo psiquismo - os alimentos que fizeram parte da sua vida, o sotaque e expressões aprendidos desde a infância, os encontros afetivos produzidos no decorrer da vida. Essa boca, portanto, ultrapassa a sua função estática e meramente biológica, uma vez que estando em sociedade é colocada em movimento, tomada também como objeto do discurso psicanalítico, vinculada à formação psíquica dos sujeitos. Nesse sentido, a boca humana é o meio de contato com o mundo e com a alteridade, sendo o território da primeira experiência humana de satisfação pulsional. Esse processo acontece quando o recém-nascido tem um estímulo interno (a fome) que não pode ser satisfeito por suas próprias ações, e é através de uma ação externa realizada pela mãe que ela é então satisfeita. É por meio da boca que a primeira experiência de satisfação humana é realizada, ou, melhor dizendo, a experiência de satisfação exige um primeiro trabalho bucal - a sucção - que se encerra no primeiro gozo bucal (Botazzo, 2000BOTAZZO, C. Da arte dentária. São Paulo: Hucitec, 2000.; Garcia-Roza, 2009GARCIA-ROZA, L. A. Freud e o inconsciente. 24. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.).

O pai da psicanálise, Sigmund Freud, apresentou o corpo para além de sua constituição orgânica, demonstrando que é também regido por um aparelho psíquico. Lançando mão do conceito de pulsões, Freud aponta para a existência de zonas erógenas no corpo humano, as quais seriam regiões que funcionam como fontes de pulsões parciais que irão constituir a organização da libido. A boca, enquanto território onde se realiza a primeira satisfação humana, é apresentada em toda a sua erogenidade, quando uma pulsão sexual do recém-nascido é satisfeita apoiada numa pulsão de autoconservação, como bem explica Garcia-Roza:

[…] Em termos instintivos, a função de sucção tem por finalidade a obtenção do alimento e é este que satisfaz o estado de necessidade orgânica caracterizado pela fome. Mas, ao mesmo tempo em que isso ocorre, ocorre também um processo paralelo de natureza sexual: a excitação dos lábios e da língua pelo peito, produzindo uma satisfação que não é redutível à saciedade alimentar apesar de encontrar nela o seu apoio. (Garcia-Roza, 2009GARCIA-ROZA, L. A. Freud e o inconsciente. 24. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009., p. 100)

O corpo humano, para além de sua funcionalidade orgânica, funciona como ferramenta para conhecer o mundo desde o nascimento, iniciando esse processo de apreensão do mundo pela boca. É por meio desse território que realizamos nossos primeiros contatos com tudo aquilo que nos constitui no decorrer da vida: é pela boca que adquirimos o líquido necessário para nossa sobrevivência, além de ser nosso primeiro vínculo afetivo com o outro, e é também por meio dela que sinalizamos nossas necessidades. As experiências corporais dos sujeitos são permeadas por memórias, afetos e desejos, conformando a psique e as diferentes maneiras de significar o mundo. Nesse sentido, Botazzo (2013bBOTAZZO, C. Diálogos sobre a boca (cultura, sexualidade, repressão). In: BOTAZZO, C. Diálogos sobre a boca. São Paulo: Hucitec , 2013b. p. 90-126.) realizou uma interessante aproximação com os escritos psicanalíticos e nos apresentou a boca como território do desejo, a boca em sua imanência. Assim, sua síntese nos impulsiona a compreender a centralidade da boca na conformação da psique dos sujeitos, já que ela está inserida nos processos de produção de conexões e experiências ao longo da vida, em um movimento penetrado pela cultura.

Esse corpo que se desloca pelo mundo não carrega consigo apenas uma coleção de estruturas orgânicas, ele é o próprio terreno da experiência, afinal conhecemos o mundo por meio do nosso corpo: “ter um corpo é, para um ser vivo, juntar-se a um meio definido, confundir-se com certos projetos e empenhar-se continuamente neles” (Merleau-Ponty, 1999MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes , 1999., p. 122). Nesse movimento de conhecer o mundo, os sujeitos vivenciam experiências com seus corpos, sejam elas positivas ou negativas, de permissões ou negações, mas todas elas orientam a forma como esses sujeitos significam o mundo e constroem, de forma muito singular, os seus modos-de-ser no mundo. A boca, inserida nos processos de reprodução social, é palco de diferentes formas de apreender o mundo e, portanto, é sobre um território atravessado por múltiplas experiências que estamos tratando, experiências essas que em conjunto se expressam como experiências bucais, prazerosas ou não, as quais finalmente conformam os modos como os sujeitos se relacionam com o mundo e com seu próprio corpo (Botazzo, 2013aBOTAZZO, C. Diálogos sobre a boca. São Paulo: Hucitec , 2013a.).

Desse modo, quando nos propomos a pensar o cuidado em saúde bucal, tomamos como ponto de partida a singularidade das experiências de cada corpo, de cada sujeito, sendo a boca um território de intimidade subsumido por normas sociais. A reflexão sobre o cuidado em saúde bucal exige colocar em questionamento o discurso odontológico que encerra seu objeto dentro de sua própria disciplina. Ao investigar a constituição da odontologia enquanto segmento específico, Botazzo (2000BOTAZZO, C. Da arte dentária. São Paulo: Hucitec, 2000.) demonstra que a especialidade do cirurgião-dentista foi estruturada essencialmente em um modo de fazer, numa técnica. A especificidade da odontologia estaria nas intervenções práticas do dentista e teria por base a substituição dos dentes ou partes destruídas deles (a dentisteria operatória e a prótese). Dessa maneira, a especialidade dos cirurgiões-dentistas repousava sobre a habilidade manual, exigindo-se uma educação pelas mãos e forjando-se assim como uma “ciência odontológica” (Botazzo, 2000BOTAZZO, C. Da arte dentária. São Paulo: Hucitec, 2000.; 2018BOTAZZO, C. O conhecimento pelas mãos. Revista da ABENO, Brasília, DF, v. 17, n. 4, p. 2-19, 2018. DOI: 10.30979/rev.abeno.v17i4.522
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).

A odontologia é fruto do movimento que trata de um certo “cuidado”, centrado em um objeto específico e defeituoso, que precisa ser restabelecido em sua função por meio de um procedimento técnico, reduzindo o cuidado em saúde bucal a um processo prático e mecânico. Ao projetar no sujeito um objeto de intervenção, ignora-se suas experiências no mundo, seus desejos e medos. Faz-se necessário abrir espaço para um cuidado que promova a escuta do sujeito-paciente, que permita acessar as motivações que o conduzem a procurar um serviço de saúde, ainda que seja um espaço potencialmente ansiogênico. Isso não implica em abrir mão das técnicas, afinal não há dúvida da sua importância, porém elas não contemplam o cuidado em saúde bucal na sua complexidade. Por esse motivo, colocamos em questionamento o fazer odontológico, propondo um deslocamento, colocando-o como parte de um conceito mais amplo. Pensamos o cuidado em saúde bucal a partir do conceito da bucalidade, compreendendo que a boca humana está inserida num processo de produção e reprodução: ela trabalha, produz e consome, ela é socialmente produzida e socialmente determinada.

A libertação do cuidado

Como discutido anteriormente, a medicina construiu uma concepção pragmática de cuidado no campo da saúde, aprisionando-o no modelo biomédico por meio de uma gestão biopolítica da vida. Com foco na doença, vê-se uma grande concentração de saber e poder que limita o cuidado a uma série de procedimentos e intervenções. Entretanto, o cuidado envolve aspectos da existência humana, desde questões ecológicas e sociais até as culturais e políticas. Por esse motivo, buscamos colocar luz sobre esse cuidado que está para além daquele capturado na clínica, um cuidado em sua dimensão ontológica (Boff, 2014BOFF, L. Saber cuidar: ética do humano - compaixão pela terra. 20. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.).

A sociedade contemporânea, orientada pela lógica neoliberal, que atua tanto no plano político-econômico assim como na subjetividade, vem se estruturando nos pilares do individualismo e da competitividade, enclausurando-se sobre si mesma e esquecendo de algo essencial para nossa existência: o cuidado. A falta de cuidado se apresenta como um sintoma da crise civilizacional em que vivemos, pois há um imenso descuido pelo bem comum e pela vida dos outros, uma vez que o processo de produção capitalista vem devastando populações e o próprio planeta Terra. Diante de um cenário obscuro, Boff (2014BOFF, L. Saber cuidar: ética do humano - compaixão pela terra. 20. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.) sugere a construção de um novo ethos capaz de resgatar formas mais cooperativas e solidárias de convivência. O autor apresenta o cuidado como eixo central nesse percurso, desvelando sua dimensão transcendental, reconhecendo-o como um modo-de-ser, ou seja, uma maneira como o sujeito se estrutura e se realiza no mundo. Como bem relembra o autor, desde o nascimento o ser humano só mantém sua existência se houver cuidado envolvido nesse processo.

A hegemonia tecnocrática no campo da saúde, de certo modo uma “linha de montagem”, trata de um objeto atomizado desvinculado de um contexto social e histórico. Ao ignorar a existência de um sujeito que carrega consigo mais do que um corpo orgânico, o cuidado em saúde bucal é estandardizado, sendo resumido à repetição de uma certa mecânica que retira os sujeitos de uma coletividade responsável por colocá-los em relação com o mundo. Entretanto, cuidar é mais que um simples fazer; ele é uma atitude de ocupação, preocupação, responsabilização e de envolvimento afetivo com o outro, e em sendo uma atitude, abarca uma multiplicidade de atos. Nesse sentido, o cuidado toma distância do modo individualista de operar a vida, uma vez que ele é produzido em relação, implicando um movimento no qual o sujeito sai de si mesmo e passa a centrar-se no outro, orientado por uma atitude de desvelo, na qual é explicitada a importância que a existência do outro tem (Boff, 2014BOFF, L. Saber cuidar: ética do humano - compaixão pela terra. 20. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.).

A boca enquanto território socialmente produzido está intimamente conectada às experiências afetivas dos sujeitos, seja no campo da manducação, da linguagem ou da eroticidade. São comidas e receitas que disparam memórias, a regionalidade dos pratos, das palavras e dos sotaques, além dos beijos trocados com as pessoas amadas. Um território dotado de historicidade e experiências no mundo que a excessiva tecnificação do processo de cuidado não tem levado em conta. Não à toa aquela senhora prefere mexer no coração a mexer na boca. Nesse sentido, pensar uma produção efetiva do cuidado em saúde bucal exige uma outra percepção ético-política da clínica; implica compreender que, para produzir cuidado em saúde bucal, a clínica precisa ser vista enquanto relação de alteridade, na qual os sujeitos são constituídos no encontro intersubjetivo, em que são realizadas tanto as dimensões objetivas quanto as subjetivas (Botazzo, 2013aBOTAZZO, C. Diálogos sobre a boca. São Paulo: Hucitec , 2013a.).

Importa, portanto, compreender o corpo enquanto subjetividade, o corpo enquanto história e memória. A senhora cuja história abre este artigo carrega consigo anos de experiências e conexões produzidas ao longo do tempo, que moldaram e ainda moldam sua subjetividade. Desse modo, falamos sobre bocas-corpos que vêm compondo encontros ao longo de suas vivências, experimentando processos de subjetivação que constituem suas maneiras de significar a realidade. O medo é um dos diversos afetos que podem ser agenciados nos encontros nas instituições de saúde, e o cuidado se produz ao passo que afetos mais potentes se sobressaem. O cuidado configura-se como um novo encontro produtor de subjetividades, uma relação dialética capaz de agenciar os envolvidos e transformá-los, um encontro potente - um verdadeiro vir a ser inerente às relações sociais, uma possibilidade de mudança (Boff, 2014BOFF, L. Saber cuidar: ética do humano - compaixão pela terra. 20. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.; Botazzo, 2013aBOTAZZO, C. Diálogos sobre a boca. São Paulo: Hucitec , 2013a.; Franco, 2015FRANCO, T. B. Trabalho criativo e cuidado em saúde: um debate a partir dos conceitos de servidão e liberdade. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 24, p. 102-114, 2015. DOI: 10.1590/S0104-12902015S01009
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; Pires, 2005PIRES, M. R. G. M. Politicidade do cuidado e processo de trabalho em saúde: conhecer para cuidar melhor, cuidar para confrontar, cuidar para emancipar. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 10, n. 4, p. 1025-1035, 2005. DOI: 10.1590/S1413-81232005000400025
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).

Apostamos no cuidado enquanto encontro entre os corpos e suas experiências, já que, como Spinoza (2009SPINOZA, B. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.) questionava, não se sabe o que pode um corpo. Esse filósofo holandês propunha um paralelismo entre mente e corpo: a mente poderia pensar tanto quanto o corpo poderia agir. Ao trazer essa discussão, Spinoza apontou que o corpo pode ser afetado de múltiplas maneiras, tendo sua potência de agir aumentada ou diminuída nos encontros atravessados por afecções, as quais são frutos da relação com outros corpos exteriores. A vida humana está estruturada pelos encontros conformados com outros corpos desde o nascimento. Afinal, crescemos e nos desenvolvemos a partir e pelo contato com o outro, existimos porque cuidamos e somos cuidados. Esse poder de ser afetado - a potência de agir - é influenciado pelas afecções que acometem nossos corpos, sendo modificado de acordo com a forma como compomos nossas histórias e influenciado pelas suas experiências e conexões, realizadas no decorrer da vida (Deleuze, 2017DELEUZE, G. Espinosa e o problema da expressão. São Paulo: Editora 34, 2017.; Spinoza, 2009SPINOZA, B. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.).

A filosofia espinozana concebe os seres humanos como a união de um corpo e uma mente, constituindo assim singularidades que são essencialmente relacionais, pressupondo então uma intercorporeidade e uma intersubjetividade originárias. Para Spinoza, a singularidade dos sujeitos é o conatus: uma potência interna que está sempre em ação, podendo aumentar ou diminuir a depender das conexões que produz com outros corpos, para que dessa forma possa manter sua potência de afetar e ser afetado, ou seja, garantir a sua autoconservação. O medo que instigou a reflexão apresentada neste artigo é produto de outros encontros experimentados por aquela senhora, encontros que diminuíram sua potência de agir e operam como um bloqueio na produção de cuidado. Partindo das possibilidades de conexões, apostamos que o cuidado é efetivamente produzido quando o encontro possibilita que sejam agenciadas afecções que aumentam a potência de agir dos sujeitos (Chaui, 2006CHAUI, M. Espinosa: poder e liberdade. In: BORON, A. A. (Ed.). Filosofia política moderna. De Hobbes a Marx. São Paulo: DCP-FFLCH, 2006. p. 978-987.; Deleuze, 2017DELEUZE, G. Espinosa e o problema da expressão. São Paulo: Editora 34, 2017.).

O cuidado odontológico, como ainda vem sendo concebido, não dá conta de determinar positivamente o conatus, uma vez que está associado a uma relação mecânica sujeito-objeto fechada em procedimentos. Nessa conformação rígida, o encontro se dá atravessado por afecções e ideias de afecções negativas, como a aversão, a vergonha, a culpa, o medo e o temor. A inversão dessa relação se dá quando tomamos consciência de que o outro é singularidade, abrindo espaço para a construção de conexões que proporcionem o aumento da potência de agir.

Faz-se necessário integrar aquilo que adentra a boca durante o fazer odontológico e aquilo que sai por ela durante o processo de escuta e troca com o outro. Reconhecer que, além de um problema específico, o sujeito carrega uma história que demanda uma escuta cuidadosa e afetuosa. Portanto, faz-se necessário ultrapassar a pretensa objetividade que a odontologia vem impondo ao cuidado em saúde bucal. Tal ultrapassagem exige a renúncia a um certo a priori odontológico, isto é, uma espécie de convencionalidade rígida, que parte dos dentes humanos e da imagem fantasmagórica da cárie dentária como justificativa para a busca por cuidado em saúde bucal. Sabemos que essa ultrapassagem é difícil e, como relembra Botazzo, exigiria: “outra teoria sobre o adoecimento bucal, uma outra concepção da clínica odontológica”, admitindo-se, então, a necessidade de “uma outra semiótica, um outro olhar, outra mão, outra mente” (Botazzo, 2013cBOTAZZO, C. Pensando a integralidade da atenção e a produção do cuidado em saúde bucal. Perspectivas teóricas e possibilidades práticas para a clínica odontológica à luz do conceito de bucalidade. In: BOTAZZO, C. Diálogos sobre a boca. São Paulo: Hucitec , 2013c. p. 267-287., p. 281).

A ruptura com o a priori odontológico, portanto, abre espaço para o encontro entre sujeitos. Botazzo enfatiza que é no contato anamnético entre o paciente e profissional de saúde que o caso clínico é constituído. Mais que isso, é no encontro com o outro que os sujeitos se constituem. Ao renunciar ao a priori clínico, o profissional de saúde bucal abre espaço para a escuta do outro e deixa que a história narrada pelo paciente seja o guia do processo de diagnóstico e da terapêutica. Quando se orienta pelo conceito da bucalidade, escutar o que o outro tem a dizer sobre a sua história, suas experiências bucais e suas reais possibilidades de realizar as funções bucais permite localizar a necessidade do outro em seu contexto sócio-histórico. O cuidado em saúde bucal implica assumir a boca enquanto território onde se materializam as realidades e experiências histórico-sociais dos sujeitos, o que significa confirmar as possibilidades de suas bocas efetuarem seus trabalhos, realizando-se assim biológica, social e psiquicamente. Dizendo de outro modo, trata-se de abrir espaço para a boca em sua capacidade de ser boca (Botazzo, 2013cBOTAZZO, C. Pensando a integralidade da atenção e a produção do cuidado em saúde bucal. Perspectivas teóricas e possibilidades práticas para a clínica odontológica à luz do conceito de bucalidade. In: BOTAZZO, C. Diálogos sobre a boca. São Paulo: Hucitec , 2013c. p. 267-287., 2013aBOTAZZO, C. Diálogos sobre a boca. São Paulo: Hucitec , 2013a.).

O espaço de escuta viabiliza o reconhecimento da existência do outro em sua singularidade, forjando uma alternativa para a construção conjunta de uma mudança. Estar aberto ao que o outro traz consigo - suas histórias, experiências, projetos e desejos -, permite negociar um projeto terapêutico centrado no sujeito, levando em consideração suas possibilidades materiais e subjetivas. Soltar as amarras da técnica é apostar em um cuidado capaz de resgatar a autonomia dos sujeitos, assim como sua própria humanidade, já que isso significa abrir mão de tratar um objeto estático e lançar mão de uma postura de cuidado na sua dimensão ontológica. É necessário reconhecer as afecções agenciadas no encontro e dar voz a elas: qual a origem do medo daquela senhora? Quais experiências o produziram? O que motivou aquela senhora a procurar o serviço, mesmo com medo? Como ela tem efetuado seus trabalhos bucais, ou até mesmo, o que vem lhe impedindo de efetuar? Quais possibilidades podem ser construídas com ela para que outras afecções sejam agenciadas e a deixem mais confortável naquele espaço? O cuidado, enquanto produtor e transformador, exige uma escuta aberta e qualificada, o que contribui para a sua singularização:

[…] o cuidado precisa ser dinamizado como uma prática reconstrutiva da autonomia dos sujeitos, desde que se considere a conjuntura local/global e as correlações de forças para qualquer pretensão de mudança que se queira. Há de se inaugurar novas formas de compreender, interagir e se relacionar com o outro (sabendo-o parte de mim), desenvolvendo ações mais partilhadas de ajuda e poder no campo da saúde. (Pires, 2005PIRES, M. R. G. M. Politicidade do cuidado e processo de trabalho em saúde: conhecer para cuidar melhor, cuidar para confrontar, cuidar para emancipar. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 10, n. 4, p. 1025-1035, 2005. DOI: 10.1590/S1413-81232005000400025
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, p. 1034)

Dessa maneira, os procedimentos odontológicos inserir-se-iam não mais como simples técnica ou repetição de atos mecânicos em um objeto a-histórico, mas encontrar-se-iam dotados de sentido, uma vez que estariam amparados na experiência, história e realidade social do sujeito. Quando partimos da boca enquanto corpo e território-suporte das relações sociais, uma restauração dentária, por exemplo, deixa de ser o fim do processo de cuidado para ser o meio pelo qual se dá a recuperação de algumas funções bucais do sujeito, pois compreendemos que além de recuperar uma parte dentária, estamos em relação com um sujeito que, antes de qualquer coisa, é um ser histórico e de relações, recuperando-se também a sua possibilidade de continuar produzindo relações sociais e relações com seu próprio corpo, realizando-se, portanto, enquanto modo-de-ser no mundo (Botazzo, 2013cBOTAZZO, C. Pensando a integralidade da atenção e a produção do cuidado em saúde bucal. Perspectivas teóricas e possibilidades práticas para a clínica odontológica à luz do conceito de bucalidade. In: BOTAZZO, C. Diálogos sobre a boca. São Paulo: Hucitec , 2013c. p. 267-287.).

Considerações finais

A reflexão sobre o cuidado em saúde bucal nos permite balançar os instituídos e traçar outras alternativas. Partimos do entendimento de que o discurso biomédico vem historicamente tratando o cuidado com certa objetividade, impondo uma relação sujeito-objeto e utilizando mecanismos que empobrecem as múltiplas possibilidades que emergem do encontro entre os diferentes sujeitos. Contrapondo a ideia de cuidado hegemônica no campo da saúde, convocamos uma perspectiva de cuidado em sua dimensão ontológica, compreendendo que o cuidado é uma característica central do ser humano, uma vez que é através dele que o sujeito se constitui e se realiza no mundo.

Nesse sentido, compreendemos que a concepção tecnocrática de cuidado em saúde bucal não dá conta de apreendê-lo em sua real possibilidade de produção, isso porque a objetividade atrelada à mecânica do fazer odontológico ignora o fato de que o cuidado se produz em relação. Por esse motivo, propomos a renúncia ao a priori odontológico e a aproximação com o conceito da bucalidade, uma vez que é a partir dele que localizamos a boca enquanto território de experiências e relações sociais. Essa mudança de paradigma coloca em questionamento o discurso biomédico predominante desde o ensino odontológico, o qual opera em uma lógica produtivista e mercadológica. Faz-se necessário abrir espaço para pensar a saúde bucal enquanto socialmente produzida, quando o sujeito que adoece não é reduzido a objeto com defeito, ou um dente, uma lesão de cárie, uma restauração ou uma prótese; o sujeito é um ser histórico e relacional, atravessado por experiências, desejos e projetos de vida que devem ser levados em consideração para efetivamente produzir cuidado.

Assim sendo, propomos pensar o cuidado como um encontro que produz múltiplas possibilidades. Ao pressupor uma intercorporeidade originária, reafirmamos que os sujeitos se produzem em relação com o outro, compondo encontros que podem aumentar ou diminuir suas potências de vida. Pensar o cuidado enquanto encontro é compreender que os sujeitos sempre buscam compor bons encontros, e que o cuidado na sua dimensão ontológica se configura como a tentativa de desconstrução das relações de poder e tutela, a fim de ampliar a possibilidade de reconstruir a autonomia dos sujeitos, aumentando a sua potência de ação em direção à emancipação.

Renunciar ao a priori odontológico é dar espaço para as múltiplas possibilidades que o encontro pode produzir, é compreender que, como afirma Deleuze:

[…]Todo corpo estende sua potência tão longe quanto pode. Em certo sentido, todo ser, a cada momento, vai ao extremo do que pode. O que ele pode é seu poder de ser afetado, que se acha necessariamente preenchido pela relação desse ser com os outros. (Deleuze, 2017DELEUZE, G. Espinosa e o problema da expressão. São Paulo: Editora 34, 2017., p. 300)

Dito de outro modo, o sujeito que procura um profissional de saúde bucal vai em busca da possibilidade de aumentar sua potência de agir, mesmo em situações que muitas vezes o remetem a experiências ruins. É essa vontade de aumentar sua potência de vida que fez com que a senhora citada no início desse ensaio saísse de sua casa em busca de cuidado em saúde bucal, mesmo que seu corpo carregasse experiências e memórias responsáveis por produzir seu medo de dentista, um afeto tão forte ao ponto de fazê-la preferir “mexer no coração a mexer na boca”. Cabe, portanto, aos profissionais de saúde, balançar os instituídos e apostar na possibilidade de compor esses bons encontros, que sejam capazes de convocar afetos mais potentes, produtores de um cuidado transformador.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    24 Ago 2021
  • Aceito
    17 Dez 2021
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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