Direitos humanos e saúde: reflexões sobre vida e política no contexto da população carcerária

Human rights and health: reflections on life and politics in the context of the incarcerated population

Paulo Artur Malvasi Heloisa de Souza Dantas Sofia Fromer Manzalli Sobre os autores

Resumo

Este ensaio propõe discutir as noções de direitos humanos e saúde da população carcerária no Brasil contemporâneo, com ênfase no estado de São Paulo. O texto situa o quadro atual do encarceramento em massa, visando expor questões que envolvem o fenômeno saúde e suas articulações aos direitos humanos. A partir das indagações levantadas, desenvolveremos uma reflexão em torno da noção de biopolítica, procurando renovar sua vitalidade ao revisitarmos a obra de Georges Canguilhem e os resultados de pesquisas etnográficas que se debruçaram sobre leituras da vida entre pessoas envolvidas com o “mundo do crime”. Enfrentar a questão do direito à saúde para a população carcerária abre uma chave analítica potente para compreender os desafios para o campo da saúde coletiva, haja vista que é possível produzir conhecimento sobre o aumento das mortes e adoecimentos por causas externas, a ampliação dos problemas de saúde mental na população pobre e negra e a reprodução social de violências.

Palavras-chave:
Direitos Humanos; Sistema Carcerário; Biopolítica; Saúde Coletiva

Abstract

This essay seeks to discuss notions of human rights and health of the incarcerated population in contemporary Brazil, particularly in São Paulo. The article points out the current framework of mass incarceration, aiming to address the issues involving the health phenomenon and its articulations to human rights. From the questions raised, we develop a reflection on the concept of biopolitics, seeking to renew its vitality as we revisit the work of Georges Canguilhem and the results of ethnographic research that focused on readings on the life among people involved with the “world of crime”. Facing the issue about the health rights of the incarcerated population opens a potent analytical key to understand the challenges of the public health field, given that producing knowledge about the increase in deaths and illness from external causes, the expansion mental health problems in the poor and black population, and the social reproduction of violence is possible.

Keywords:
Human Rights; Prison System; Biopolitics; Public Health

Introdução

Este ensaio propõe debater as noções de direitos humanos e saúde no contexto da população carcerária no Brasil, em especial no estado de São Paulo. Propomos uma discussão sobre as noções de vida e política a partir da noção de biopolítica cunhada por Michel Foucault (2001FOUCAULT, M. História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2001.).

A relação entre direitos humanos e saúde se dá por interfaces que invariavelmente necessitam de mediações conceituais, pois não se estabelecem em simples relações causais. Um modo é identificar o campo mais geral da saúde pública como lócus privilegiado para abordar essas interfaces. Jonathan Mann (1996MANN, J. Saúde Pública e Direitos Humanos. Physis , Rio de Janeiro, v. 6, n. 1-2, p. 135-145, 1996. DOI: 10.1590/S0103-73311996000100007
https://doi.org/10.1590/S0103-7331199600...
) identifica três relações básicas que ligam a saúde pública à temática dos direitos humanos. A primeira delas diz respeito à possibilidade da restrição de direitos individuais em favor da execução de interesses coletivos de saúde. Segundo o autor, a discussão atual no campo da saúde tende à defesa de programas que garantam os direitos humanos, restringindo os argumentos de eficiência de políticas que oprimam populações ou violem direitos fundamentais. A segunda relaciona saúde aos impactos da violação de direitos e da dignidade humana, como nos casos de tortura ou prisão sob condições desumanas. Por fim, o autor destaca as articulações entre a promoção e a proteção da saúde e a promoção e proteção dos direitos humanos (Mann, 1996MANN, J. Saúde Pública e Direitos Humanos. Physis , Rio de Janeiro, v. 6, n. 1-2, p. 135-145, 1996. DOI: 10.1590/S0103-73311996000100007
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). Nesse sentido, é fundamental a produção de conhecimento e a construção de práticas que superem o foco no ponto de vista da patologia, da morbidez e da mortalidade, para se preocupar mais com o bem-estar mental e social das populações.

Desde pelo menos a década de 1980, quando a estratégia de inclusão dos direitos humanos foi realizada na agenda da saúde pública (particularmente no Programa Global para Aids da OMS), há o reconhecimento de que questões relacionadas à dignidade humana devem ser incorporados nas políticas de saúde levadas a cabo pelos Estados e organizações internacionais. Isso engloba desde a discussão sobre os determinantes sociais de saúde - água, saneamento básico, habitação etc. - até o fortalecimento do protagonismo das pessoas para estratégias de combate coletivo às doenças e para os tratamentos longitudinais, passando pela discriminação que afasta indivíduos de programas de cuidado e prevenção em saúde (Rasanathan et al., 2017RASANATHAN, J. et al. Engaging human rights in the response to the evolving Zika Virus epidemic. American Journal of Public Health, Washington, DF, v. 107, n. 4, p. 525-531, 2017. DOI: 10.2105/AJPH.2017.303658
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).

Em linhas gerais, os autores que discutem as interfaces entre direitos humanos e saúde ressaltam: (1) a necessidade de construção de esforços concretos na área da saúde para melhorar a prática dos direitos e o respeito pelas populações socialmente marginalizadas, discriminadas e estigmatizadas; e (2) o imperativo de garantia dos direitos humanos pelos Estados, assegurando através de medidas transparentes a proteção à saúde, a informação e não discriminação (Mann, 1996MANN, J. Saúde Pública e Direitos Humanos. Physis , Rio de Janeiro, v. 6, n. 1-2, p. 135-145, 1996. DOI: 10.1590/S0103-73311996000100007
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; Rasanathan et al., 2017RASANATHAN, J. et al. Engaging human rights in the response to the evolving Zika Virus epidemic. American Journal of Public Health, Washington, DF, v. 107, n. 4, p. 525-531, 2017. DOI: 10.2105/AJPH.2017.303658
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).

Ao discutir as interfaces entre saúde e direito no contexto do encarceramento no Brasil contemporâneo, problematizamos desafios teóricos para as pesquisas sobre o processo saúde-doença-cuidado, os modos de regulação e as práticas de saúde que envolvem a população carcerária. Quais os conhecimentos teóricos que podem fundamentar um programa de pesquisa que permita conhecer e influenciar políticas capazes de garantir o direito à saúde para uma população que tem sido situada nas fronteiras da vida social como “menos humana11Ao abordar o contexto de encarceramento norte-americano, Alexander afirma que os chamados “criminosos” fazem parte de um grupo do qual se é assegurado permissão social para odiá-los. Assim, quando se afirma que alguém foi “tratado como criminoso”, está se afirmando que foi tratado como “menos humano” (Alexander, 2017, p. 212).” ao receber a marca de “bandida”?

Para discutir essa questão, propomos a articulação entre cenário, conceitos e análises que nos forneçam elementos para uma abordagem do processo saúde e doença da população carcerária. Na primeira parte do ensaio, apresentaremos um quadro do encarceramento no Brasil contemporâneo, com ênfase nas condições existentes no estado de São Paulo. A partir das indagações levantadas na primeira seção, desenvolveremos uma reflexão em torno de categorias recorrentemente discutidas na tradição das ciências sociais e humanas no campo da saúde - debates que englobam conceitos como vida, poder e subjetividade. Será retomada a discussão da noção de biopolítica (Foucault), procurando renovar sua vitalidade ao revisitarmos a obra de Georges Canguilhem; situando ainda o debate sobre biopolítica que dialoga com os resultados de pesquisas etnográficas realizadas com pessoas envolvidas no “mundo do crime” em São Paulo. Por fim, problematizaremos a relevância da discussão proposta para a saúde coletiva, considerando-a uma área do conhecimento marcada por uma imbricada rede de interesses, perspectivas e disputas - por isso a nomearemos aqui campo da saúde coletiva (Bourdieu, 1983BOURDIEU, P. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.)22Em Bourdieu, a ação social se explica em termos de uma interação socialmente estruturada. Acontece em campos nos quais as posições dos sujeitos já estão objetivamente estruturadas, embora tais posições sejam o resultado de um jogo dinâmico que depende dos objetos de disputa de cada campo. Partir da ideia de campo de Bourdieu, implica observar a existência de atores estruturados que estão competindo; a pensar nas diferentes áreas do conhecimento na saúde coletiva - epidemiologia, ciências sociais, política, planejamento e gestão - e nas alianças e disputas entre elas (Bourdieu, 1983)..

Panorama do sistema penitenciário paulista no que tange o direito à saúde

O estado de São Paulo abriga a maior população carcerária do Brasil. Segundo o Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional (SISDEPEN) - 212.672 pessoas33Último período disponível (julho a dezembro 2020): https://www.gov.br/depen/pt-br/sisdepen - incluindo homens e mulheres - encontram-se encarceradas nas 179 unidades prisionais44A quantidade de unidades prisionais no estado de São Paulo são as seguintes: Penitenciárias (88), Centro de Detenção Provisória (49), Centro de Progressão Penitenciária (16), Centros de Ressocialização (22), Regime Disciplinar Diferenciado (01) Hospital de Custódia (03) (http://www.sap.sp.gov.br/) do estado, o equivalente a aproximadamente 31,53% das pessoas presas no país (Brasil, 2019BRASIL. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias: atualização - junho 2017. Brasília, DF: Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2019.). O último painel estatístico do Conselho Nacional de Justiça55Painel Estatístico BNMP: https://portalbnmp.cnj.jus.br/#/estatisticas (CNJ) informa uma população prisional de 267.710 pessoas.

Uma das características mais brutais da política de encarceramento no Brasil é a superlotação das unidades que, somada às condições precárias de habitabilidade - falta de saneamento básico, superlotação, insalubridade, entre outros - são responsáveis por acarretar sobremaneira os riscos de adoecer e morrer. De acordo com dados fornecidos66Levantamento feito a partir de dados colhidos do site da SAP (http://www.sap.sp.gov.br/uni-prisionais/cdp.html#, acessado em 07/08/2019). pela Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo (SAP), apenas 21 das unidades prisionais do estado não estão lotadas, em outras palavras, aproximadamente 85% dos estabelecimentos estão com ocupação maior do que sua capacidade - algumas unidades chegam a ter taxa de superlotação de cerca de 260%77Penitenciária de Lavínia II “Luiz Aparecidos Fernandes”..

Quanto à assistência à saúde, cerca de 33% das pessoas estão em unidades sem estrutura mínima para o atendimento (Brasil, 2019BRASIL. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias: atualização - junho 2017. Brasília, DF: Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2019.). Fatores como ócio, superlotação, ausência de profissionais da área da saúde, serviço social, educação e ambiente insalubre “servem de potencializadores das mais diferentes iniquidades e enfermidades nesse ambiente fechado” (Minayo; Constantino, 2015MINAYO, M. C. S.; CONSTANTINO, P. Deserdados sociais. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2015., p. 30).

Apesar deste cenário crítico, destacam-se os esforços existentes a partir dos anos 2000 para inclusão da população privada de liberdade no Sistema Único de Saúde (SUS). Em 2003, foi instituído o Plano Nacional de Saúde do Sistema Penitenciário (PNSSP) (Brasil, 2003BRASIL. Ministério da Saúde . Portaria Interministerial n. 1777 de 09 de setembro de 2003. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 9 set. 2003.), que reconheceu “ao menos no papel e no discurso… as promessas e perspectivas de direitos sociais aos presos” (Chies, 2013CHIES, L. A. B. A questão penitenciária. Tempo Social, São Paulo, v. 25, n. 1, p. 15-36, 2013. DOI: 10.1590/S0103-20702013000100002
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). Instituída em 2014, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP) (Brasil, 2014BRASIL. Ministério da Saúde . Portaria nº 482 de 1º de abril de 2014. Institui normas para a operacionalização da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP) no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União: Brasília, DF, 1 abr. 2014.) também representou avanços neste campo. A PNAISP representou um esforço estatal de aproximação das Regras de Mandela das ONU88Em 22 de maio de 2015, as Nações Unidas oficializaram as regras mínimas para o tratamento das pessoas presas. e ressignificou alguns princípios doutrinários do SUS, como a promoção ao acesso das pessoas privadas de liberdade à Rede de Atenção à Saúde, visando o cuidado integral, a composição de equipes multiprofissionais e a promoção de relações intersetoriais com as políticas de direitos humanos.

Ainda que tenha havido nas últimas décadas uma maior implicação com as demandas de saúde das pessoas presas, na prática a PNAISP não é cumprida, sendo inúmeros os problemas de saúde apresentados pela população prisional (Minayo; Constantino, 2015MINAYO, M. C. S.; CONSTANTINO, P. Deserdados sociais. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2015.).

Para assegurar a proteção de direitos humanos da população em privação de liberdade, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)99Instituição judiciária autônoma, que tem como objetivo a aplicação e a interpretação da Convenção Americana de Direito Humanos. realizou em 2018 uma série de visitas nas prisões brasileiras. O relatório preliminar constatou graves violações no que tange ao estado de saúde das pessoas presas. Foram mencionadas as “deploráveis condições de detenção que caracterizam as prisões”, constituindo “riscos para a vida e a integridade das pessoas presas” sendo per se, “um tratamento cruel, desumano e degradante”. As inspeções identificaram “níveis alarmantes de superlotação, infraestrutura precária, falta de separação entre pessoas processadas e sentenciadas e uma escassez considerável de agentes penitenciários de custódia”. Ainda foram identificadas “negligência na atenção médica; completa falta de higiene; ausência de artigos de necessidades básicas; alimentação inadequada considerando sua escassez e deficiências nutricionais; ausência de programas efetivos de reintegração social e falta de tratamento diferenciado em relação aos diferentes tipos de população carcerária” (OEA, 2018ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS - OEA. Observações preliminares da visita in loco da CIDH ao Brasil. São Paulo: Conectas, 2018., p. 19-20).

Nesse sentido, em abril de 2021, o Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo fez um pedido1010Disponível em: http://glo.bo/3JayU2D. Acesso em: 7 dez. 2021. de reunião à CIDH, denunciando as violações de direitos durante a pandemia da covid-19 e o risco iminente de contaminação e morte das pessoas presas. O documento foi acompanhado de relatório com dados de 21 inspeções1111Os relatórios de inspeção são públicos e podem ser acessados pelo link: https://bit.ly/3r6KWUB. feitas em unidades prisionais pelo núcleo durante a pandemia, que revelam que 93% das unidades estão superlotadas, 69% das pessoas presas relataram não receber itens de higiene, 77% das unidades não possuem equipes mínimas de saúde completas e 86% dos estabelecimentos racionam água.

O relatório “Sistema prisional brasileiro fora da Constituição - 5 anos depois” (CNJ, 2021CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA - CNJ. O sistema prisional brasileiro fora da Constituição - 5 anos depois: balanço e projeções a partir do julgamento da ADPF 347. [S.l.]: CNJ, 2021.) também traz apontamentos semelhantes, deixando claro que o “estado de coisas inconstitucionais”1212Reconhecimento judicial que declara como inconstitucionais a insalubridade, a superlotação, a precariedade etc. presentes no cárcere, uma vez que são incompatíveis com a dignidade humana. declarado e reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ainda permanece em nosso sistema prisional: “mantêm-se cenários como a superlotação e serviços insuficientes nas áreas de saúde, alimentação e segurança das pessoas privadas de liberdade” (CNJ, 2021CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA - CNJ. O sistema prisional brasileiro fora da Constituição - 5 anos depois: balanço e projeções a partir do julgamento da ADPF 347. [S.l.]: CNJ, 2021., p. 8).

Tais averiguações ilustram que o Estado brasileiro pouco tem feito para garantir o direito à saúde às pessoas em privação de liberdade. Nesta direção, Wacquant (2011WACQUANT, L. As prisões da miséria. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.) caracteriza as prisões no Brasil como campos de concentração para pobres. O autor menciona a superlotação das prisões que se traduz “por condições de vida e de higiene abomináveis”, e destaca ainda:

a negação de acesso à assistência jurídica e aos cuidados elementares de saúde, cujo resultado é a aceleração dramática da difusão da tuberculose e do vírus HIV entre as classes populares; violência pandêmica entre detentos, sob forma de maus-tratos, extorsões, sovas, estupros e assassinatos, em razão da superlotação acentuada, da ausência de separação entre as diversas categorias de criminosos, da inatividade forçada. (Wacquant, 2011WACQUANT, L. As prisões da miséria. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011., p. 13)

Quanto ao perfil sociodemográfico, 73% das pessoas presas têm entre 18 e 34 anos de idade, 56% são negras e 45% possuem ensino fundamental incompleto (Brasil, 2016). A prisão de grupos sociais específicos, como a população jovem e negra, aponta nitidamente o encarceramento em massa presente no cenário paulista. Tal fenômeno diz respeito acima de tudo ao racismo enquanto “ideologia que atravessa o tempo e acompanha o desenvolvimento e as transformações históricas da sociedade brasileira” (Borges, 2019BORGES, J. Encarceramento em massa. São Paulo: Editora Pólen, 2019., p. 41).

Salienta-se aqui o papel da legislação de drogas de 2006 como um dos principais fatores relacionados ao superencarceramento brasileiro (Boiteux, 2015BOITEUX, L. El antimodelo brasileño: Prohibicionismo, encarcelamiento y selectividad penal frente al tráfico de drogas. Nueva Sociedad, Brasília, DF, n. 255, p. 132-144, 2015.; Borges, 2019BORGES, J. Encarceramento em massa. São Paulo: Editora Pólen, 2019.). A Lei n. 11.343/2006 instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad) e estabeleceu diferenças significativas entre a posse de drogas para consumo pessoal e o tráfico. Desde 2005, ano que antecedeu a aprovação da lei, o percentual de condenados cumprindo pena por tráfico dobrou, sendo que o crescimento do número de presos devido ao tráfico superou o percentual de crescimento em relação aos demais delitos (Boiteux, 2014BOITEUX, L. Drogas e Cárcere: repressão às drogas, aumento da população penitenciária brasileira e alternativas. In: SHECAIRA, S. S. (Org.). Drogas: uma nova perspectiva. São Paulo: IBCCrim, 2014. p. 83-104.). A ausência de critérios objetivos para diferenciação entre o porte para consumo pessoal e a comercialização é considerada uma das principais causas do aumento do encarceramento após a lei de drogas de 2006 (Boiteux, 2014BOITEUX, L. Drogas e Cárcere: repressão às drogas, aumento da população penitenciária brasileira e alternativas. In: SHECAIRA, S. S. (Org.). Drogas: uma nova perspectiva. São Paulo: IBCCrim, 2014. p. 83-104.). Na prática, o sistema de justiça criminal rejeitou a inovação da lei em sua dimensão médico-sanitária e priorizou a pena de prisão como resposta estatal a determinados grupos, levando em conta classe e status social (Campos, 2015CAMPOS, M. S. Entre doentes e bandidos: a tramitação da Lei de Drogas (n. 11.343/2006) no Congresso Nacional. Revista de Estudos Empíricos em Direito, São Paulo, v. 2, n. 2, p. 156-173, 2015.).

Somado e articulado aos determinantes de raça e classe, é relevante compreender que as pessoas presas trazem consigo marcadores presentes em sua condição de periféricos, que são capazes de conectar outras experiências de vida à prisão. Na periferia de São Paulo, o “mundo do crime” (Feltran, 2011FELTRAN, G. S. Fronteiras de tensão: um estudo sobre política e violência nas periferias de São Paulo. São Paulo: Ed. UNESP; CEM Cebrap, 2011.)1313Feltran (2011) enfoca o contraste entre duas gerações de moradores das periferias de São Paulo. A primeira geração chegou à periferia nos anos 70, e a segunda geração nasceu ali nos anos 90. Ao contrastar as perspectivas de ambas e articulá-las, o autor revela como o projeto de ascensão baseado no grupo familiar e no modelo do trabalhador estável tornou-se incerto (para a nova geração), e passou a concorrer com um “anteprojeto” (o “mundo do crime”) que propicia renda, possibilidade de consumo e status. revela o contexto de vida de pessoas que são foco prioritário da política de repressão. Segundo o argumento de Feltran (2011)FELTRAN, G. S. Fronteiras de tensão: um estudo sobre política e violência nas periferias de São Paulo. São Paulo: Ed. UNESP; CEM Cebrap, 2011., o “mundo do crime” se refere tanto a um ambiente criminal quanto a espaços de sociabilidade e produção simbólica; é um marco discursivo que tem se expandido para além das relações entre praticantes de atos ilícitos. Nestas “fronteiras de tensão”, não apenas as pessoas diretamente envolvidas em atividades criminais, mas, de forma geral, os moradores das periferias sofrem por parte das instituições públicas um estranhamento de seus rostos e corpos, de seus modos de comportamento, bem como de seus discursos. Nesse contexto, a repressão, o encarceramento e o extermínio dos “bandidos” muitas vezes atingem quem é visto como semelhante.

A situação da população carcerária nos permite observar como o Estado aparece como um agente fundamental na distribuição diferencial de reconhecimento de humanidade (Bento, 2018BENTO, B. Necrobiopoder: quem pode habitar o Estado-nação. Cadernos Pagu, Campinas, n. 53, e185305, 2018. DOI: 10.1590/18094449201800530005
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). O conceito de biopolítica de Foucault (2001FOUCAULT, M. História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2001.) é referência central nos estudos que abordam o poder do Estado sobre a vida humana. É necessário compreender melhor essa noção e pensar em alternativas teóricas para articular saúde e direitos humanos no contexto da população carcerária, além do desafio constante de combater um conjunto de técnicas sistemáticas para provocar a morte daqueles que estão sob os “cuidados” do Estado (Bento, 2018BENTO, B. Necrobiopoder: quem pode habitar o Estado-nação. Cadernos Pagu, Campinas, n. 53, e185305, 2018. DOI: 10.1590/18094449201800530005
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).

Biopolítica, de Foucault a Canguilhem

O termo biopolítica tem sua genealogia no período anterior à Segunda Guerra Mundial, sendo usado inicialmente para forçar a analogia entre o biológico e o social, partindo de uma visão ideal de setores hegemônicos sobre a vida social e a normalidade da vida natural (Safatle, 2015SAFATLE, V. O circuito dos afetos. São Paulo: CosacNaify, 2015.). A noção permanece obscura até ganhar importância e centralidade na teoria social a partir da obra de Michel Foucault. O conceito emerge da pressuposição de que uma característica fundamental do mundo moderno foi a ascensão da vida pelo poder: o poder passou a ter o homem enquanto ser vivo como cerne (Foucault 2001FOUCAULT, M. História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2001.).

Desta forma, a noção de biopolítica se insere na perspectiva foucaultiana de poder. Foucault sustenta que a sua análise não se constitui em uma teoria geral do poder, mas como “um conjunto de mecanismos e de procedimentos que têm como papel ou função e tema - mesmo que não o consigam - justamente o poder” (Foucault, 2008FOUCAULT, M. Segurança, território e população. São Paulo, Martins Fontes, 2008., p. 4). Poder disperso e cotidiano, que “está em toda parte” e “provém de todos os lugares” (Foucault, 2001FOUCAULT, M. História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2001.). O pressuposto básico do entendimento do poder em Foucault é evitar a submissão dos sujeitos a um poder específico para jogar luz ao caráter relacional das teias do poder. Essa abordagem original do poder resulta em uma análise da sociedade moderna como originária de um biopoder: poder voltado a garantir, sustentar, reforçar a vida e pô-la em ordem; poder de administração dos corpos e gestão calculista da vida (Foucault, 2001FOUCAULT, M. História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2001.).

O conjunto de processos que passaram a avaliar a vida humana - de natalidade, mortalidade, longevidade - constituiu a biopolítica; uma tecnologia de poder voltada a um novo corpo - a população. A síntese dessa tecnologia do poder é o “fazer viver”, um poder contínuo, científico, que se utiliza de técnicas diversas e numerosas para obter a sujeição dos corpos e o controle das populações (Foucault, 2001FOUCAULT, M. História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2001.). Segundo Rabinow e Rose (2006RABINOW, P.; ROSE, N. O conceito de biopoder hoje. Revista de Ciências Sociais, João Pessoa, n. 24. p. 27-57, 2006.), o termo biopolítica abarca todas as estratégias específicas e contestações sobre a vitalidade humana coletiva, morbidade e mortalidade, sobre as formas de conhecimento, regimes de autoridade e práticas de intervenção que são desejáveis, legítimas e eficazes.

Embora os termos vida e política sejam articulados nesse conceito fundamental, o biológico não possui um fundamento próprio, a noção de vida é puramente social e discursiva. Isso leva Safatle (2015SAFATLE, V. O circuito dos afetos. São Paulo: CosacNaify, 2015.) a afirmar que “a vida nunca aparecerá para Foucault como o que força discursos em direção a transformações estruturais” (p. 285). Assim, uma das questões centrais no desenvolvimento do mundo moderno a partir da perspectiva foucaultiana foi um tipo de possessão por parte do Estado sobre o homem enquanto ser vivo, um tipo de “estatização do biológico” (Bento, 2018BENTO, B. Necrobiopoder: quem pode habitar o Estado-nação. Cadernos Pagu, Campinas, n. 53, e185305, 2018. DOI: 10.1590/18094449201800530005
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). Esse esvaziamento da potência da vida no interior das estratégias políticas pode levar a uma compreensão da vida como em contínuo entalhe pelo poder.

As reflexões do professor de Foucault, Georges Canguilhem, auxiliam a dar ao conceito de vida uma renovada capacidade analítica no interior de uma discussão geral sobre biopolítica. Aqui nos baseamos predominantemente na leitura realizada por Safatle sobre a obra de Canguilhem. O conceito de vida:

Fornece um horizonte biopolítico que não se resume à crítica foucaultiana da maneira pela qual a atividade vital é construída como categoria de normatização e legitimação de procedimentos disciplinares de “administração dos corpos e gestão calculista da vida”. Ele traz em seu bojo a perspectiva positiva de uma biopolítica vitalista transformadora. (Safatle, 2015SAFATLE, V. O circuito dos afetos. São Paulo: CosacNaify, 2015., p. 288-289)

Para compreendermos essa perspectiva positiva de uma biopolítica, é importante retomarmos alguns pontos dos argumentos de Canguilhem: (1) sua noção de normatividade da vida; (2) o erro como uma nova compreensão do que seja a vida.

Sobre o caráter normativo da vida, o argumento central é de que o processo vital é o fluxo da própria vida, isto é, a atividade vital “significa a habilidade de adaptar-se a circunstâncias em mudança, e a ambientes variados e em variação” (Rabinow, 2002RABINOW, P. Antropologia da razão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002., p. 127). Em Canguilhem, norma não se refere a uma força coercitiva, nem o balizador de um julgamento, tampouco uma regra instituída em um cenário de estabilidade situacional (Safatle, 2015SAFATLE, V. O circuito dos afetos. São Paulo: CosacNaify, 2015.). Nos comentários de Rabinow:

A vida não é estase, um conjunto fixo de leis naturais, previamente estabelecidas e iguais para todos, às quais deve-se aderir a fim de sobreviver. Ao contrário, a vida é ação, mobilidade e pathos, o esforço constante, mas apenas parcialmente exitoso, de resistir à morte... (Rabinow, 2002RABINOW, P. Antropologia da razão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002., p. 128)

A vida é uma atividade que segue uma norma, cuja característica intrínseca é a flexibilidade, relações móveis com um ambiente em mudança. A normatividade da vida é possibilidade sempre aberta ao vivente, assim, pode-se ler no livro seminal de Canguilhem a seguinte formulação: “a vida não é indiferente às condições nas quais ela é possível, a vida é polaridade e, por isso mesmo, posição inconsciente de valor, em resumo, que a vida é, de fato, uma atividade normativa” (Canguilhem, 2010CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010., p. 86). Viver é uma atividade valorativa, pois seu processo é de escolha, a capacidade de estabelecer relações, de comparar contextos em vista ao fortalecimento da vida, e mais, é a “capacidade de entrar em movimento, passando de uma situação a outra, recusando limitações” (Safatle, 2015SAFATLE, V. O circuito dos afetos. São Paulo: CosacNaify, 2015., p. 291). Para sintetizar, a normatividade da vida implica em autopreservação através de autoregulação. A saúde não é a normalidade, mas antes, esse processo normativo de auto-organização e autoconservação.

Chega-se, assim, à noção fundamental de Canguilhem sobre a vida: o erro. Vivemos num mundo em que nada acontece por acaso e tudo acontece sob a forma de acontecimentos: “a vida é debate com um meio em que há fugas, vazios, esquivamentos e resistências inesperadas” (Canguilhem, 2010CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010., p. 149). Nesse ponto, é interessante retomar o sentido do termo adaptação que Canguilhem dá às dinâmicas sociais. Os modos de vida que os seres humanos adotam em determinados grupos técnico-econômicos não estão meramente colocados em um meio em que indivíduos e coletividades tenham que se dobrar, mas, ao contrário, esses modos de vida estruturam seus próprios meios ao mesmo tempo que desenvolvem aptidões particulares. Nesse sentido, a norma da vida coletiva se define pelo processo vital de escolha. Nas palavras do próprio Canguilhem: “os meios oferecem ao homem apenas virtualidades de utilização técnica e de atividade coletiva... é a escolha que decide tudo” (Canguilhem, 2010CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010., p. 129).

As reflexões de Canguilhem sobre o normal e o patológico esboçam uma patologia paradoxal do homem normal, mostrando que a consciência da normalidade biológica inclui a relação com a doença, o recurso à doença, como única pedra de toque que essa consciência reconhece e, portanto, exige. “O que caracteriza a saúde é a possibilidade de ultrapassar a norma que define o normal momentâneo, a possibilidade de tolerar infrações à norma habitual e de instituir normas novas em situações novas” (Canguilhem, 2010CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010., p. 148).

Em síntese, o ser humano erra para sobreviver, e a relação com a doença é parte do movimento da existência; “esta condição de errar e vagar não é meramente acidental ou exterior à vida, mas é a forma fundamental da vida” (Rabinow, 2002RABINOW, P. Antropologia da razão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002., p. 131). Se a vida é capaz de se autorregular, a especificidade da humanidade está no fato de que ela criou um conhecimento sistemático e instrumentos que a ajudam a lidar ativamente com o ambiente. Seguindo o raciocínio de Canguilhem para a compreensão da vida social, as crises e conflitos sociais, vistos de uma perspectiva positivista como “patologia social”, podem aparecer como “expressão da capacidade transitiva da vida em sua procura por deslocar-se de um meio a outro” (Safatle, 2015SAFATLE, V. O circuito dos afetos. São Paulo: CosacNaify, 2015., p. 300).

Longe de impor uma normatividade reguladora única a nossas expectativas de realização, o conceito de vida permite expor a raiz da profunda anormatividade e indeterminação que parece nos guiar no interior dos embates na vida social...diremos que a saúde exige uma experiência na qual a capacidade de ultrapassar normas vigentes, de afirmar o que aparece como anômalo, assim como o poder de instituir novas normatividades, sejam fenômenos internos às dinâmicas sociais e políticas. (Safatle, 2015SAFATLE, V. O circuito dos afetos. São Paulo: CosacNaify, 2015., p. 300)

A partir dessa perspectiva de vida, tem sido possível revisitar a noção do discípulo Michel Foucault. Pensar a noção de biopolítica a partir da noção de vida canguilheniana significa uma política que visa garantir as condições para a experiência da paradoxal processualidade do vivente de experimentar dinâmicas de polaridades internas com a morte e as crises provocadas pela doença, para produzir sistemas em perpétua dialética de desequilíbrio e equilíbrio (Safatle, 2015SAFATLE, V. O circuito dos afetos. São Paulo: CosacNaify, 2015.).

No contexto das pessoas que passam pela experiência da prisão em São Paulo, uma fórmula comum para definir e analisar a vida é a expressão vida loka. Ela é síntese do imponderável na casualidade (Malvasi, 2012MALVASI, P. Interfaces da Vida Loka: um estudo sobre jovens, tráfico de drogas e violência em São Paulo. 2012. Tese (Doutorado em Saúde Pública) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.); revela a imponderabilidade da experiência comum, o aparente caos que cada indivíduo deve gerenciar, mas, também, o reconhecimento de que o mistério do fluxo da vida cotidiana não é controlado por ações governamentais (como aquelas presentes no sistema de justiça ou no sistema carcerário) (Malvasi, 2012MALVASI, P. Interfaces da Vida Loka: um estudo sobre jovens, tráfico de drogas e violência em São Paulo. 2012. Tese (Doutorado em Saúde Pública) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.).

De que modo a expressão vida loka pode nos ajudar na construção de uma abordagem sobre as relações entre vida e política e, metonimicamente, entre saúde e direitos humanos no sistema carcerário?

Vida loka e crime: processo vital além do sofrimento

A noção de vida loka surge nas periferias da cidade de São Paulo na passagem do século XX para o século XXI, como uma noção capaz de unificar a diversidade de experiências, demarcando o campo da comunicação e ação cotidiana entre os moradores desses bairros; ela baliza as interpretações sobre a vida e delimita o conhecimento disponível sobre as várias circunstâncias sócio-históricas que definem a experiência de moradores de periferias urbanas paulistas nos anos 2000. O uso desta noção marca a visão da vida cotidiana nas periferias como incerta e precária, “uma experiência social das incertezas da guerra” (Hirata, 2010HIRATA, D. Sobreviver na adversidade: entre o mercado e a vida. 2010. Tese (Doutorado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010., p. 327). Ela transcende uma visão normativa de “anomalia social”, cujo resultado tautológico seria populações vulneráveis fadadas ao cárcere e à morte/doença; a noção de vida loka ressoa, antes, com a perspectiva de normatividade em Canguilhem, cuja característica intrínseca é a flexibilidade do processo vital em um ambiente constantemente móvel.

A expressão vida loka pode ser mobilizada em diferentes níveis de significados: (1) como situações de vida daqueles que se identificam como “bandido” (“o vida loka”, um sujeito); (2) como expressão das dificuldades da vida cotidiana - como uma síntese da imponderabilidade da vida, de um modo geral, para todos os moradores das periferias de São Paulo; e (3) como um conjunto de considerações mais gerais sobre a vida humana, a partir da perspectiva da periferia (Malvasi, 2012MALVASI, P. Interfaces da Vida Loka: um estudo sobre jovens, tráfico de drogas e violência em São Paulo. 2012. Tese (Doutorado em Saúde Pública) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.).

Como expressão do sujeito que está ligado ao crime, a noção de vida loka descreve a conjuntura de limite de vida e morte que, concreta e simbolicamente, permeia o trabalho em mercados criminais (Malvasi, 2012MALVASI, P. Interfaces da Vida Loka: um estudo sobre jovens, tráfico de drogas e violência em São Paulo. 2012. Tese (Doutorado em Saúde Pública) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.). A imponderabilidade, a incerteza do amanhã, a possibilidade da prisão, de perder tudo em uma apreensão, e depois “se levantar”. Ser um vida loka é ser um “bandido”: estar preso em um dia, sair no outro, ser convidado para uma “nova fita” (crime), ser abordado pela polícia, fugir, ser preso, estar de volta para a rua - “nada como a expressão vida loka para nomear essa experiência” (Feltran, 2011FELTRAN, G. S. Fronteiras de tensão: um estudo sobre política e violência nas periferias de São Paulo. São Paulo: Ed. UNESP; CEM Cebrap, 2011.). A vida loka, entretanto, não é exclusiva da experiência do bandido. Todos os moradores das periferias de São Paulo experimentam (potencialmente) uma vida loka. A “favela” é um lugar “cabuloso”, onde há miséria, violência, toda sorte de adversidades, o que estabelece uma identificação com a imponderabilidade de suas existências, na condição de moradores de bairros periféricos (Malvasi, 2012MALVASI, P. Interfaces da Vida Loka: um estudo sobre jovens, tráfico de drogas e violência em São Paulo. 2012. Tese (Doutorado em Saúde Pública) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.).

A vida loka pode ainda significar um conjunto de interpretações sobre a vida a partir da perspectiva de um morador da periferia. Toda a experiência de sobreviver na adversidade, de estar em um sistema social desigual. Para um morador desses bairros, a vida loka é a condição que marca um campo de possibilidades em sua vida - o desemprego, a prisão, a morte, assim como o aumento da renda, a liberdade e o bem-estar (Malvasi, 2012MALVASI, P. Interfaces da Vida Loka: um estudo sobre jovens, tráfico de drogas e violência em São Paulo. 2012. Tese (Doutorado em Saúde Pública) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.). Estar ou não no crime não é garantia de que, no jogo da vida, qualquer das possibilidades dadas ao vivente possa ocorrer.

Uma dimensão importante no contexto das periferias paulistas, que envolve a noção de vida loka: as interpretações locais sobre a diminuição dos homicídios. Em uma série de estudos sobre o crime nas periferias paulistas (Biondi, 2010BIONDI, K. Junto e misturado: uma etnografia do PCC. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2010.; Feltran, 2008FELTRAN, G. S. Fronteiras de tensão: um estudo sobre política e violência nas periferias de São Paulo. Tese (Doutorado em Ciências Políticas) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas -Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2008. ; 2011FELTRAN, G. S. Fronteiras de tensão: um estudo sobre política e violência nas periferias de São Paulo. São Paulo: Ed. UNESP; CEM Cebrap, 2011.; Hirata, 2010HIRATA, D. Sobreviver na adversidade: entre o mercado e a vida. 2010. Tese (Doutorado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.; Malvasi, 2012MALVASI, P. Interfaces da Vida Loka: um estudo sobre jovens, tráfico de drogas e violência em São Paulo. 2012. Tese (Doutorado em Saúde Pública) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.; Marques, 2009MARQUES, A. Crime, proceder, convívio-seguro: um experimento antropológico a partir de relações entre ladrões. 2009. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.), a versão apresentada pelos moradores da periferia de São Paulo foi a de que o Primeiro Comando da Capital (PCC)1414Primeiro Comando da Capital (PCC) é principal facção criminosa de São Paulo. instituiu uma prática chamada de “debate” (procedimento utilizado para mediar contendas entre membros do “mundo do crime” e conflitos comunitários) cuja principal função foi deliberar sobre o controle da vida, ou melhor, interditar ou liberar o homicídio (Biondi, 2010BIONDI, K. Junto e misturado: uma etnografia do PCC. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2010.; Feltran, 2008FELTRAN, G. S. Fronteiras de tensão: um estudo sobre política e violência nas periferias de São Paulo. Tese (Doutorado em Ciências Políticas) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas -Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2008. ).

Marques (2009MARQUES, A. Crime, proceder, convívio-seguro: um experimento antropológico a partir de relações entre ladrões. 2009. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.) identificou o modo particular de existir - o “ladrão” - que se baseia na capacidade de “blindar a própria mente” e “entrar na mente do outro”. O autor reconheceu um jogo de forças, modos de defesa da própria mente, envolvido em situações concretas que expõe os vínculos entre “ladrões”. Os exemplos citados por Marques revelam que há toda uma tessitura da linguagem que se desenrola nos conflitos da mente presente nos “debates”. Biondi (2010BIONDI, K. Junto e misturado: uma etnografia do PCC. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2010.) também ressaltou que na relação entre dois prisioneiros existe a tentativa de “dar um psicológico”, “invadir a mente” do outro para vencer o “debate” e, ao mesmo tempo em que se tenta invadir a mente do outro, tenta-se blindar a própria.

A mente não é a expressão de vontades; ela é o lócus do pensamento que determina a ação. Ela se expressa como locução em ato e as suas consequências em termos de prestígio e poder. O jogo de forças da disputa de mentes situa uma versão do que seja a inteligência humana. A inteligência, segundo a versão nativa dos “bandidos”, se refere a percepções da realidade, autocontrole das emoções, concepções e manipulação racional - que são trabalhadas nas relações cotidianas; ela é escolha, decisão e ação. A dor de levar um “tapa na cara”, o medo de morrer (e o de matar também), a demonstração da prova em um “debate”, cada um dos processos envolvidos no exercício da mente criminal indica que há um conhecimento nativo que envolve os sentidos, o emocional e o cognitivo. Por meio do desempenho de uma fusão de racionalidade prática de gestão da vida cotidiana com a coordenação da palavra e a capacidade de ação, a mente criminal se fixa nas periferias como um exemplo de realização no mundo, como um modo de vida (Malvasi, 2012MALVASI, P. Interfaces da Vida Loka: um estudo sobre jovens, tráfico de drogas e violência em São Paulo. 2012. Tese (Doutorado em Saúde Pública) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.).

Essa noção de inteligência, geralmente sintetizada na expressão ter uma mente, contesta a visão do senso comum sobre a periferia - como lócus da exclusão e da ignorância que levam à fronteira do humano, à miséria e à violência. Desse modo, resiste-se a construção no imaginário da bestialidade do “bandido”, que pode situá-lo como “menos humano”. Em síntese, essa inteligência recupera na vida cotidiana das periferias paulistas uma visão humanizada do criminoso (Malvasi, 2012MALVASI, P. Interfaces da Vida Loka: um estudo sobre jovens, tráfico de drogas e violência em São Paulo. 2012. Tese (Doutorado em Saúde Pública) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.).

O sentido da ação dos “bandidos” não deve se confundir com uma moral universal humanista. A interdição dos homicídios se baseia em costumes e condutas desenvolvidas em territórios marcados pela omissão do poder público e pelo silenciamento político, cujas expressões mais fortes na vida das pessoas são o encarceramento e a morte. Dessa perspectiva, o homicídio pode ser visto como um esforço regular - mas apenas parcialmente exitoso - de resistência à morte (física e/ou simbólica), de autorregulação das relações sociais nas diversas interfaces internas e externas do “mundo do crime” nas periferias. Revelam-se estratégias para lidar com situações concretas do cotidiano que se desenvolveram em certos contextos, fortemente marcados por incertezas, violências e adversidades - sintetizados na noção de vida loka.

A noção de vida loka pode, portanto, ser analisada em perspectiva com o entendimento de normatividade apresentado por Canguilhem (2010CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.): a vida tida como uma inteligência engenhosa e flexível do mundo, e a razão (mente) um mecanismo do vivente que deve se adaptar a um ambiente e agir usando os conceitos e instrumentos que estão disponíveis para ele.

Desafios na encruzilhada: direitos humanos e saúde coletiva

As conexões que articulam saúde e direitos humanos são extensas e complexas demais para o fim deste ensaio, que se propõe a elaborar um arcabouço teórico voltado à sustentação de um programa de pesquisa que problematize os impactos da violação de direitos e da dignidade humana, como nos casos de prisão sob condições desumanas e na saúde de populações marginalizadas. Nesta parte final do ensaio, propõe-se: (1) sustentar argumentos sobre a relevância de uma biopolítica vitalista transformadora (Safatle, 2015SAFATLE, V. O circuito dos afetos. São Paulo: CosacNaify, 2015.), como um enfoque teórico capaz de gerar articulações entre a promoção e a proteção da saúde e dos direitos humanos; (2) defender a necessidade de estudos no campo da saúde coletiva sobre populações socialmente marginalizadas, discriminadas e estigmatizadas (a população carcerária, por exemplo) como um vetor potente para a atualização do campo no contexto do Brasil contemporâneo.

A seletividade penal faz com que populações pobres e pretas sejam os alvos preferenciais da justiça criminal. Tal conjuntura marca uma subdivisão da população em subgrupos e estabelece uma censura biológica entre uns e outros. O racismo estaria na base desse processo, representando, em termos foucaultianos, uma tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder. “Na economia do biopoder, a função do racismo é regular a distribuição da morte e tornar possíveis as funções assassinas do Estado” (Mbembe, 2019MBEMBE, A. Necropolítica. São Paulo: N-1 edições, 2019., p. 18).

Essa violência, discursivamente dirigida aos “bandidos”, se expande para muitos cidadãos moradores de bairros periféricos e, além disso, se coaduna com a estigmatização das “favelas”/“quebradas”/“periferias” no mundo público. Esse contexto de violência contra parcelas da população pobre brasileira fere corpos e os silenciam.

A interdição do homicídio como epicentro da prática política do PCC compõe o cenário do sistema carcerário, apontando para as fissuras no tecido social brasileiro. Considera-se que a proibição do assassinato entre “bandidos” não é apenas obra de uma organização criminosa, mas, antes, expõe expectativas e anseios de moradores de bairros onde há grande concentração de presidiários (e ex-presidiários): condições mais dignas aos parentes que estão cumprindo pena e a diminuição da violência fatal nos bairros.

Estudar a trajetória de pessoas que vivem a experiência da prisão a partir da perspectiva de Canguilhem, considerando, portanto, que essas experiências não se resumem a simples exclusão, mas compõem processos vitais que estruturam modos de vida singulares, pode contribuir em articulações entre a promoção e a proteção da saúde e a dos direitos humanos. Consideramos que a abordagem de Georges Canguilhem sobre o processo vital fornece uma perspectiva potente para discutir a atualidade do campo da saúde coletiva.

Com efeito, a obra de Canguilhem é referência central no debate sobre a construção e a concepção de saúde coletiva: desde a crítica ao paradigma biomédico dominante (Ayres, 2016AYRES, J. R. C. M. Georges Canguilhem e a construção do campo da saúde coletiva brasileira. Intelligere, São Paulo, v. 2, n. 1, p. 138-154, 2016. DOI: 10.11606/issn.2447-9020.intelligere.2016.115732
https://doi.org/10.11606/issn.2447-9020....
; Neves; Porcaro; Curvo, 2017NEVES, T. I.; PORCARO, L. A.; CURVO, D. R. Saúde é colocar-se em risco: normatividade vital em Georges Canguilhem. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 26, n. 3, p. 626-637, 2017. DOI: 10.1590/S0104-12902017170016
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201717...
) até o argumento do erro como elemento central para se compreender o processo vital (Ayres, 2016AYRES, J. R. C. M. Georges Canguilhem e a construção do campo da saúde coletiva brasileira. Intelligere, São Paulo, v. 2, n. 1, p. 138-154, 2016. DOI: 10.11606/issn.2447-9020.intelligere.2016.115732
https://doi.org/10.11606/issn.2447-9020....
; Coelho; Almeida-Filho, 1999COELHO, M. T. A. D.; ALMEIDA FILHO, N. Normal-patológico, saúde-doença: revisitando Canguilhem. Physis, Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, p. 13-36, 1999. DOI: 10.1590/S0103-73311999000100002
https://doi.org/10.1590/S0103-7331199900...
; Neves; Porcaro; Curvo, 2017NEVES, T. I.; PORCARO, L. A.; CURVO, D. R. Saúde é colocar-se em risco: normatividade vital em Georges Canguilhem. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 26, n. 3, p. 626-637, 2017. DOI: 10.1590/S0104-12902017170016
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201717...
), passando pela definição de saúde como capacidade de resposta às infidelidades do correr da vida (Ayres, 2016AYRES, J. R. C. M. Georges Canguilhem e a construção do campo da saúde coletiva brasileira. Intelligere, São Paulo, v. 2, n. 1, p. 138-154, 2016. DOI: 10.11606/issn.2447-9020.intelligere.2016.115732
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), na qual o processo vital pode implicar a não obediência às normas (Coelho; Almeida-Filho, 1999COELHO, M. T. A. D.; ALMEIDA FILHO, N. Normal-patológico, saúde-doença: revisitando Canguilhem. Physis, Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, p. 13-36, 1999. DOI: 10.1590/S0103-73311999000100002
https://doi.org/10.1590/S0103-7331199900...
). A perspectiva da vida canguelhiana subsidia a construção histórica do campo da saúde coletiva.

Recupera-se aqui a noção bourdieusiana de que a ação social acontece em campos. Bourdieu afirma que os conflitos epistemológicos são inseparáveis dos conflitos políticos. Campo é, portanto, uma noção que devolve ao espaço científico sua dimensão política, revelando-se, assim, fortemente estratégica para entendermos a “economia interna” e as disputas que se expressam em debates conceituais, mas com reflexos decisivos no plano político (Bourdieu, 1983BOURDIEU, P. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.). Nesse sentido, a abordagem de Canguilhem propõe o reconhecimento das influências “externas” sobre os desenvolvimentos científicos, tais como condições sociais e tecnológicas, e o papel positivo atribuído aos obstáculos, falhas e acidentes no progresso das disciplinas científicas. Essas características da abordagem teórica de Canguilhem foram cruciais para promover a articulação entre os interesses políticos e acadêmicos do movimento de constituição da saúde coletiva, e ainda permanecem sendo elementos desafiadores para as reflexões históricas e filosóficas do campo (Ayres, 2016AYRES, J. R. C. M. Georges Canguilhem e a construção do campo da saúde coletiva brasileira. Intelligere, São Paulo, v. 2, n. 1, p. 138-154, 2016. DOI: 10.11606/issn.2447-9020.intelligere.2016.115732
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).

Considerações finais

As reflexões elaboradas neste ensaio partem dos debates presentes na constituição do grupo de pesquisa Direitos Humanos e Saúde Coletiva, que compõe o Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da FCM da Santa Casa de São Paulo. Pretende-se desenvolver uma série de pesquisas qualitativas que visem compreender o fluxo da vida de pessoas que passaram pela experiência da prisão e as dinâmicas das instituições e atores sociais que lidam com o tema do encarceramento. Considera-se que tal alinhamento teórico em pesquisas qualitativas junto a populações que sofrem violações de direitos humanos contribui para a atualização do campo da saúde coletiva na medida em que produzem dados mais circunscritos e aprofundados sobre a vida cotidiana em contextos de violência e vulnerabilidade e, consequentemente, conhecimentos úteis para a elaboração de políticas de saúde que atendam às demandas desse enorme contingente de pessoas e famílias afetadas pelo encarceramento no Brasil.

O panorama do Brasil contemporâneo de acirramento político e desconstrução da pauta da Constituição Federal de 1988 implica enfraquecimento do esforço público para a efetivação dos princípios da universalidade, da integralidade e da equidade. Neste cenário, as premissas da saúde coletiva que estão ancoradas na análise das condições de vida e dos determinantes sociais da saúde, na democratização das práticas a partir do SUS e no direito à saúde (Passos; Sade; Macerata, 2020PASSOS, E.; SADE, C.; MACERATA, I. Abordagem enativa: conhecimento e cuidado. In: PASSOS, E.; SADE, C.; MACERATA, I. Entre clínica e política: produção de conhecimento e cuidado em saúde. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2020. p. 15-43.) estão ameaçadas pelo desmonte das políticas públicas. Ao considerar o contexto da população carcerária, a garantia ao direito à saúde é uma virtualidade no cotidiano das penitenciárias.

O sistema de saúde demanda, atualmente, uma reorganização para lidar com as consequências do aumento da população carcerária nas últimas décadas. As políticas de saúde encontram o desafio de lidar com as consequências da tortura e de outras formas de violência recorrentes no cárcere, demandas por cuidado de longo prazo, como nos casos de doenças crônicas e impactos na saúde mental dos afetados pelas consequências da prisão. Tais imperativos, entretanto, só serão respondidos e efetivados se houver mecanismos de controle e responsabilização que assegurem os direitos humanos dessa população.

Consideramos, em suma, que enfrentar a questão do direito à saúde para a população carcerária abre uma chave analítica potente para compreender os desafios para o campo da saúde coletiva no Brasil contemporâneo. Pesquisas com populações que são afastadas em grande medida do sistema de saúde, em fronteiras porosas e encruzilhadas, podem estudar aspectos da saúde relacionados aos direitos humanos, como o aumento das mortes e adoecimentos por causas externas, a ampliação dos problemas de saúde mental na população pobre, a reprodução social de preconceitos, discriminações e violências no tecido social.

As respostas em direitos humanos devem priorizar as populações mais vulneráveis à experiência da prisão. Nesse sentido, a incorporação de políticas para redução da pobreza e melhoria nos determinantes sociais de saúde - água, saneamento básico, habitação, educação, cultura, lazer etc. - são essenciais para mudar o próprio quadro da criminalidade urbana e da saúde da população. Além dessa demanda estrutural e intersetorial, consideramos o desafio de constituir uma atenção que respeite a autonomia do sujeito e, ao mesmo tempo, reforce suas próprias estratégias de autocontrole, o que pode ser conhecido, entre outras possibilidades, por meio de pesquisas qualitativas e da perspectiva teórica da vida em Canguilhem.

Referências

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  • 1
    Ao abordar o contexto de encarceramento norte-americano, Alexander afirma que os chamados “criminosos” fazem parte de um grupo do qual se é assegurado permissão social para odiá-los. Assim, quando se afirma que alguém foi “tratado como criminoso”, está se afirmando que foi tratado como “menos humano” (Alexander, 2017ALEXANDER, M. A nova segregação: racismo e encarceramento em massa. São Paulo: Editora Boitempo, 2017., p. 212).
  • 2
    Em Bourdieu, a ação social se explica em termos de uma interação socialmente estruturada. Acontece em campos nos quais as posições dos sujeitos já estão objetivamente estruturadas, embora tais posições sejam o resultado de um jogo dinâmico que depende dos objetos de disputa de cada campo. Partir da ideia de campo de Bourdieu, implica observar a existência de atores estruturados que estão competindo; a pensar nas diferentes áreas do conhecimento na saúde coletiva - epidemiologia, ciências sociais, política, planejamento e gestão - e nas alianças e disputas entre elas (Bourdieu, 1983BOURDIEU, P. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.).
  • 3
    Último período disponível (julho a dezembro 2020): https://www.gov.br/depen/pt-br/sisdepen
  • 4
    A quantidade de unidades prisionais no estado de São Paulo são as seguintes: Penitenciárias (88), Centro de Detenção Provisória (49), Centro de Progressão Penitenciária (16), Centros de Ressocialização (22), Regime Disciplinar Diferenciado (01) Hospital de Custódia (03) (http://www.sap.sp.gov.br/)
  • 5
  • 6
    Levantamento feito a partir de dados colhidos do site da SAP (http://www.sap.sp.gov.br/uni-prisionais/cdp.html#, acessado em 07/08/2019).
  • 7
    Penitenciária de Lavínia II “Luiz Aparecidos Fernandes”.
  • 8
    Em 22 de maio de 2015, as Nações Unidas oficializaram as regras mínimas para o tratamento das pessoas presas.
  • 9
    Instituição judiciária autônoma, que tem como objetivo a aplicação e a interpretação da Convenção Americana de Direito Humanos.
  • 10
    Disponível em: http://glo.bo/3JayU2D. Acesso em: 7 dez. 2021.
  • 11
    Os relatórios de inspeção são públicos e podem ser acessados pelo link: https://bit.ly/3r6KWUB.
  • 12
    Reconhecimento judicial que declara como inconstitucionais a insalubridade, a superlotação, a precariedade etc. presentes no cárcere, uma vez que são incompatíveis com a dignidade humana.
  • 13
    Feltran (2011)FELTRAN, G. S. Fronteiras de tensão: um estudo sobre política e violência nas periferias de São Paulo. São Paulo: Ed. UNESP; CEM Cebrap, 2011. enfoca o contraste entre duas gerações de moradores das periferias de São Paulo. A primeira geração chegou à periferia nos anos 70, e a segunda geração nasceu ali nos anos 90. Ao contrastar as perspectivas de ambas e articulá-las, o autor revela como o projeto de ascensão baseado no grupo familiar e no modelo do trabalhador estável tornou-se incerto (para a nova geração), e passou a concorrer com um “anteprojeto” (o “mundo do crime”) que propicia renda, possibilidade de consumo e status.
  • 14
    Primeiro Comando da Capital (PCC) é principal facção criminosa de São Paulo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    16 Dez 2021
  • Revisado
    16 Dez 2021
  • Aceito
    18 Jan 2022
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br