Natureza e cultura não são separadas, o feminismo não precisa se opor às ciências, e a matéria não é oposto binário ao texto (ROY, D.; SUBRAMANIAM, B. Matter in the Shadows: Feminist New Materialism and the Practices of Colonialism. In: PITTS-TAYLOR, V. (Ed.) Mattering: feminism, science, and materialism. New York: New York University Press, 2016. p. 23-42., p. 26, tradução nossa).11Citação original: “Nature and culture are not separate, feminism need not be opposed to science, and matter is not the binary opposite of text”
O dossiê que aqui se apresenta, a convite da Revista Saúde e Sociedade, tem como objetivo construir cruzamentos e passagens entre os campos dos Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia; da Saúde; e das epistemologias feministas e decoloniais. Partindo da compreensão de que as ciências, a biomedicina e a biotecnologia tornaram-se eixos fundamentais para a constituição e compreensão dos corpos e dos fenômenos em torno da saúde e da doença, os trabalhos refletem sobre o fazer científico e biomédico, tomando-os como fenômenos que correspondem a um projeto social. Entre as abordagens articuladas pelos trabalhos, destacam-se: a atenção dada às práticas e à centralidade do corpo. Recolocada, a materialidade aqui reivindicada implica o reconhecimento de que não há matéria ou corpo biológico universal, ou seja, não pode haver corpo ou matéria genérica e descontextualizada.
A articulação em torno do Corpo, Saúde e Materialidades emergiu das problemáticas e referenciais teóricos que informam minha trajetória de pesquisa, parcialmente consolidada e representada aqui no artigo em coautoria com Marko Monteiro e Jenny Slatman. Tal arranjo, no entanto, tem diferentes trilhas e camadas, além de complexidades e problemáticas próprias nos enquadramentos propostos nos trabalhos que, por conexões parciais e provisórias, compõem esse conjunto.
Cada um desses estudos, à sua maneira, apresenta contribuições inovadoras aos seus campos de pesquisa e interlocução. Por essa definição, eu me refiro a colaborações que apresentam evidências empíricas significativas, além de contribuições teóricas politicamente informadas, que levantam questões e colocam problemas à literatura, sobretudo quando em diálogo com proposições do Norte Global, constituindo abordagens marcadamente locais. Cada trabalho apresenta arranjos particulares e produtivos a propósito do Corpo, Saúde e Materialidades.
Rosana Castro recoloca a atuação dos movimentos sociais na formulação da regulação ética de pesquisa no Brasil, reposicionando as análises promovidas pela literatura, centradas em eventos internacionais, com isso rearranjando e iluminando os eventos fundamentais em âmbito local que fazem parte desta genealogia.
Érica Renata de Souza, Marko Monteiro e Flora Rodrigues Gonçalves enfrentam a problemática da diferença, reivindicando sua importância para uma melhor compreensão da heterogeneidade das experiências e percepções acerca da doença de Alzheimer, algo que é negligenciado na literatura especializada.
Estefania Izrael, Estefania Ayala, Alejandra Roca e Margarita Caruso Stefanini se voltam à materialidade dos biofragmentos que compõem corpos e participam da produção material de paternidades híbridas, por meio da operacionalização de tecnologias de fertilização in vitro, evidenciando a tensa e contraditória articulação de sentidos pertinentes à reprodução, herança genética, parentesco, identidades, sexualidades, natureza, sagrado, corpos, controle e produção da vida.
Ao elaborar o encontro interepistêmico promovido por Maria Luiza Marcelino, César Guimarães nos leva a refletir sobre as noções de saúde, adoecimento e cura que se apresentam de maneiras distintas nos dois universos que se aproximam nesse encontro: o primeiro diz respeito à biomedicina e às abordagens próprias das ciências modernas; enquanto o segundo universo refere-se às práticas de cura e cuidado empreendidas pela benzedeira, mestra quilombola e umbandista, fundadora do Centro Espírita Caboclo Pena Branca. Sua fala revela que, na sua prática, as relações entre saúde e doença engendram aspectos e realidades distintos àqueles recortadosnasciênciasmodernas. Osdomíniosdedoença e cura nesse universo entrelaçam outras esferas, como a relação com a terra e com as entidades espirituais da Umbanda. Desse modo, o próprio entendimento do corpo é implodido, voltando-se também para o cuidado e a arte de curara Terra. Aquinão estamosno domínio estrito dos cuidados corpóreos, como sugere Guimarães, ou então o corpo precisa ser compreendido em sua composição na relação vital com a (T)terra e com as entidades espirituais. Detentora de saberes que a permitem aliar-se às ervas, Maria Luiza Marcelino nos oferece uma compreensão complexa do entendimento dos processos de doença, associados aos sofrimentos relacionados à escravidão e ao racismo que insiste em se perpetuar. Há aqui uma acepção ampla a respeito do processo de doença e cura que abarca as relações sociais adoecidas pelas estruturas responsáveis pela manutenção do racismo. Opera, então, uma lógica de cuidado e tratamento que insiste em recusar uma validade universal. Com os encontros interespistêmicos, seria possível engendrar formas de cura epistêmica? Eis a relevante questão que o trabalho nos deixa, além de permitir insights que nos levam a (re)considerar as próprias práticas e entendimentos científicos modernos. Haverá modos de tornar as eficazes estratégias de universalização da biomedicina mais robustas? Podemos ao menos atentar ao que é perdido ou excluído nos mecanismos de homogeneização que enunciam uma suposta universalidade?
É possível considerar que os trabalhos que compõem o dossiê, cada qual ao seu modo, permitem arejar o pensamento não só no campo das ciências sociais, mas também as problemáticas a respeito dos fenômenos de saúde e doença, apresentando questões fundamentais seja para (re)colocar os encontros epistêmicos no campo da saúde, ou a interlocução entre abordagens e atuações distintas - evidenciando a importância desses encontros para (re)considerar a eficácia das intervenções e práticas biomédicas -; seja para que as ciências sociais e médicas possam renovar suas práticas e responder às demandas conceituais e políticas da contemporaneidade.
A articulação das problemáticas em torno do Corpo, Saúde e Materialidades é um esforço despretensioso, ainda que disposto aos riscos. Uma tentativa de trazer temas que consideramos relevantes para a encruzilhada em que se encontram os debates entre as ciências sociais e médicas, na esperança de que possam suscitar boas reflexões e produzir questionamentos de ordens políticas e epistemológicas diversas e múltiplas, não facilmente articuláveis, nem plenamente relacionadas, mas buscando ensaiar arranjos provisórios e instáveis. Um movimento vacilante, sempre inconcluso e sempre coletivo, que busca impulsionar-se em sua delicadeza e cambaleio, o que talvez tenha permitido a Pedro Paulo Gomes Pereira - a quem confiei a apresentação do dossiê - sugerir o conjunto dos trabalhos como uma oportunidade para as ciências sociais se reinventarem continuamente.
Trata-se de contribuições teórico-metodológicas de caráter crítico e reflexivo, que podem apresentar bons insights sobre temas desafiadores e incontornáveis.
Marisol Marini (Organizadora)
Referência bibliográfica
- ROY, D.; SUBRAMANIAM, B. Matter in the Shadows: Feminist New Materialism and the Practices of Colonialism. In: PITTS-TAYLOR, V. (Ed.) Mattering: feminism, science, and materialism. New York: New York University Press, 2016. p. 23-42.
- 1Citação original: “Nature and culture are not separate, feminism need not be opposed to science, and matter is not the binary opposite of text”
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
26 Set 2022 - Data do Fascículo
2022