Acesso e direito à saúde para migrantes bolivianos em uma metrópole brasileira11Apoio financeiro foi fornecido pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico: CNPq 404336/2012-4.

Nivaldo Carneiro Junior Fernando Aith Rubens Antonio da Silva Dalva Marli Valério Wanderley Expedito José Luna Maria Aparecida Shikanai-Yasuda Sobre os autores

Resumo

Este artigo analisa as condições de acesso do imigrante boliviano ao sistema de saúde brasileiro e a percepção do direito à saúde. É um estudo transversal de metodologia quantitativa e qualitativa, realizado de 2013 a 2015. Foi elaborado um questionário com perguntas fechadas respondidas por 633 bolivianos, e em relação ao acesso à saúde por 472 indivíduos bolivianos maiores de 18 anos. A abordagem qualitativa foi feita por meio da análise de conteúdo de entrevistas semiestruturadas com 55 sujeitos (bolivianos, profissionais de saúde, representantes de Secretarias de Saúde, Consulado da Bolívia, Defensoria Pública da União, Ministério Público Federal e Organizações Não Governamentais). Os bolivianos conhecem o Sistema Único de Saúde (SUS) e utilizam com frequência a Atenção Primária à Saúde (APS). Todavia, barreiras de acesso são descritas, como falta de documentação, condições de trabalho, procedimentos de média e/ou alta complexidades, dificuldades para entenderem o que é dito assim como para serem compreendidos, entre outras. Sobressai-se a obtenção do Cartão Nacional de Saúde (CNS) como porta de entrada para o acesso à saúde, desempenhando papel de integração social. O reconhecimento da Saúde como direito social destaca-se entre os entrevistados, apontado como valor humano e solidário. A garantia desse reconhecimento fica ameaçada quando não se apoia na consolidação de políticas sociais que visem o fortalecimento da proteção social universal.

Palavras-chave:
Migração Boliviana; Direito à Saúde; Acesso à Saúde

Introdução

Os movimentos populacionais interpaíses têm gerado constantes desafios para os territórios que recebem essas populações, independentemente das questões de ordem econômica, política, cultural ou ambiental que os motivaram. Nas Américas, a imigração tem sido associada a aspectos econômicos, notadamente às precárias condições de vida de grupos populacionais que se deslocam em busca de melhores inserções sociais e de bem-estar (Goldberg; Martin; Silveira, 2015GOLDBERG, A.; MARTIN, D.; SILVEIRA, C. Towards a specific field of studies on migratory and health processes within public health. Interface, Botucatu, v. 19, n. 53, p. 229-232, 2015.).

A imigração boliviana no Brasil iniciou marcadamente na década de 1950 com a vinda principalmente de estudantes estimulados pelo intercâmbio científico-cultural (Silva, S., 2012SILVA, S. A. Bolivianos em São Paulo: dinâmica cultural e processos identitários. In: BAENINGER, R. (Ed.). Imigração boliviana no Brasil. Campinas: Núcleo de Estudos de População - Nepo, Unicamp, 2012. p. 19-34.). As características desse fluxo mudaram drasticamente de perfil a partir de 1980, quando jovens de escolaridade média e solteiros, em busca de melhores salários, e grupos familiares, em número crescente, incorporaram-se de forma precária ao processo de produção têxtil, no âmbito do mercado de trabalho informal, em situações de vulnerabilidade social, determinando riscos à saúde (Silva, S., 2012SILVA, S. A. Bolivianos em São Paulo: dinâmica cultural e processos identitários. In: BAENINGER, R. (Ed.). Imigração boliviana no Brasil. Campinas: Núcleo de Estudos de População - Nepo, Unicamp, 2012. p. 19-34.; Melo; Campinas, 2010MELO, R.; CAMPINAS, L. S. L. Multiculturalidade e morbidade referida por imigrantes bolivianos na Estratégia Saúde da Família. O Mundo da Saúde, São Paulo, v. 34, n. 1, p. 25-35, 2010. DOI: 10.15343/0104-7809.201012535
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).

O estado de São Paulo, pelo seu destaque no desenvolvimento socioeconômico latino-americano, exerce forte atração pela migração boliviana. Estima-se em 350 mil os bolivianos residentes na Região Metropolitana de São Paulo, cerca de 70% do contingente presente no Brasil, com concentração na cidade de São Paulo, capital do estado (Silva, S., 2006SILVA, S. A. Bolivianos em São Paulo: entre o sonho e a realidade. Estudos Avançados, São Paulo, v. 20, n. 57, p. 157-170, 2006. DOI: 10.1590/S0103-40142006000200012
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).

Implicações no perfil epidemiológico, particularmente em relação às doenças transmissíveis, emergem nesse contexto. Estudo em imigrantes bolivianos na cidade de São Paulo observou uma prevalência da infecção por Trypanosoma cruzi de 4,4%, sendo de 6,1% em mulheres na idade reprodutiva, ambas mais elevadas que a encontrada na população brasileira (Luna ., 2017LUNA, E. J. A. et al. Prevalence of Trypanosoma cruzi infection among bolivian immigrants in the city of São Paulo, Brazil. Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, v. 112, n. 1, p. 70-74, 2017.).

Por outro lado, o desconhecimento por parte dos profissionais de saúde sobre perfis epidemiológicos nessa população limita a assistência e, desse modo, contribui para sua vulnerabilidade na atenção à saúde (Carneiro Junior ., 2018CARNEIRO JUNIOR, N. et al. Migração boliviana e doença de Chagas: limites na atuação do Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS). Interface, Botucatu, v. 22, n. 64, p. 87-96, 2018. DOI: 10.1590/1807-57622016.0338
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).

Estudos que analisam dimensões macro e microestruturais envolvidas nas migrações internacionais contemporâneas contribuem para qualificação dos sistemas de proteção social, com particular potência àqueles que apreendem essas questões a partir dos sujeitos implicados. Nessa perspectiva, este artigo traz uma pesquisa empírica com resultados de alta relevância para a compreensão da atual situação das condições de vulnerabilidade dos imigrantes bolivianos no acesso ao sistema de saúde brasileiro. Os resultados apontam evidências sobre as percepções do próprio imigrante e de representantes de órgãos públicos e da sociedade civil em relação ao direito à saúde.

Métodos

Estudo transversal com abordagens quantitativa e qualitativa, realizado no período de 2013 a 2015. Foi utilizada uma amostra de 633 indivíduos bolivianos previamente dimensionada para atender os objetivos de um estudo maior (Luna ., 2017LUNA, E. J. A. et al. Prevalence of Trypanosoma cruzi infection among bolivian immigrants in the city of São Paulo, Brazil. Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, v. 112, n. 1, p. 70-74, 2017.), sendo 111 menores de 10 anos, selecionados do cadastro de matrícula de um serviço de atenção primária à saúde, localizado na região central da cidade de São Paulo, referência na assistência médico-sanitária dessa população (Silva, R. ., 2020SILVA, R. A. et al. Awareness of Chagas disease and socioeconomic characteristics of Bolivian immigrants living in Sao Paulo, Brazil. Revista do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo, São Paulo, v. 62, 2020. DOI: 10.1590/S1678-9946202062039
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). Os selecionados ou seus responsáveis assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), traduzido em espanhol, e responderam a um questionário estruturado aplicado em língua espanhola por entrevistador, abordando: data de nascimento, local (zona rural ou urbana), estado civil, escolaridade, ocupação e salário familiar; migração e tempo de permanência na cidade de São Paulo; acesso à saúde, incluindo compreensão da língua pelo imigrante e trabalhador de saúde. Características sociodemográficas, tais como sexo, faixa etária, tempo de moradia na cidade de São Paulo e renda familiar, tiveram suas frequências simples descritas previamente (Luna ., 2017LUNA, E. J. A. et al. Prevalence of Trypanosoma cruzi infection among bolivian immigrants in the city of São Paulo, Brazil. Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, v. 112, n. 1, p. 70-74, 2017.; Silva, R. ., 2020SILVA, R. A. et al. Awareness of Chagas disease and socioeconomic characteristics of Bolivian immigrants living in Sao Paulo, Brazil. Revista do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo, São Paulo, v. 62, 2020. DOI: 10.1590/S1678-9946202062039
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), sendo aqui analisadas junto a outras variáveis. Para descrever o acesso à saúde desta população segundo aspectos como ocupação, renda familiar e compreensão da linguagem, foram incluídos 472 indivíduos maiores de 18 anos. Entretanto, para descrever o acesso à saúde segundo o local de atendimento e outras variáveis aplicáveis a pessoas de quaisquer faixas etárias, foram utilizados todos os 633 sujeitos que compõem a amostra.

A abordagem qualitativa resulta de entrevistas semiestruturadas, individuais, gravadas e posteriormente transcritas, apreendendo questões sobre aspectos migratórios, assistência à saúde e direito social. Participaram 55 sujeitos, sendo 27 bolivianos adultos, 20 mulheres e 7 homens (selecionados aleatoriamente dentre os 472 bolivianos e entrevistados em língua espanhola); 19 profissionais de saúde - médicos, assistentes sociais, farmacêuticos, enfermeiros e administrativos. Esses foram convidados a partir das indicações dos gerentes dos respectivos serviços de saúde, tendo como critérios àqueles que pautavam nas reuniões da unidade questões sobre atendimentos aos imigrantes bolivianos; nove representantes das seguintes instituições com atuações e/ou atendimentos relacionados aos bolivianos: Consulado da Bolívia em São Paulo, Secretarias Estadual (SES) e Municipal de Saúde de São Paulo (SMS), duas Unidades Básicas de Saúde localizadas na região central da cidade de São Paulo, Pastoral do Migrante de São Paulo, Associação dos Residentes Bolivianos, Defensoria Pública da União e Ministério Público Federal. Todos assinaram o TCLE; no caso dos bolivianos, traduzido para o espanhol. O tratamento analítico desse material foi realizado por meio da análise de conteúdo.

Este trabalho é parte da pesquisa “A doença de Chagas em população de migrantes bolivianos na cidade de São Paulo: uma análise da prevalência da infecção por Trypanosoma cruzi e da morbidade da doença de Chagas; do conhecimento da população sobre a doença e do acesso aos diferentes níveis de atenção à saúde”, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Resultados

Processo migratório, condições de vida e trabalho

No circuito de migração, apenas um entrevistado boliviano dos 472 maiores de 18 anos relatou ter passado pela Argentina, antes de chegar ao Brasil. Os demais vieram diretamente da Bolívia para a cidade de São Paulo.

Em relação ao fluxo migratório, os entrevistados apontam aspectos econômicos, políticos, familiares e tráfico de pessoas:

Estamos trabalhando com a Secretaria da Cidadania e Direitos Humanos, Ministério da Justiça no tráfico de pessoas. (Consulado da Bolívia)

Muitos deles [bolivianos] vêm não tanto pela questão política, mas sobretudo econômica. (Defensoria Pública da União)

Um grupo [bolivianos] muito ligado à oficina de costura, mas não é só isso. Você já pode encontrar várias realidades. Aqueles que já estão aqui há mais tempo, tem as famílias que já tem filhos nascidos aqui. Tem os que fizeram a faculdade, que estão bem e aqueles que ainda continuam a chegar e que ainda assim tem bastante forte o serviço da costura. (Pastoral do Imigrante)

Nossa comunidade [bolivianos] trabalha muito na área da costura, dezoito, vinte horas, nós estamos trabalhando junto com o Ministério do Trabalho […] (Associação dos Residentes Bolivianos)

Pode-se observar que ter nível secundário ou superior não interfere na faixa salarial familiar, na sua maioria de até 2 salários mínimos. Outra característica é que a maioria trabalha em oficinas de costura (90,9%), independentemente da escolaridade (89,7% entre os que têm escolaridade fundamental, 91,6% entre os de escolaridade média e 81,0% entre os que têm nível superior). Paralelamente, esta ocupação é predominante em todas as faixas de rendas familiares mensais, 74,5%, quando a renda familiar é menor de 1 salário mínimo; 94,9%, com renda entre 1 e 2 salários mínimos; 90,4%, entre 2 e 3 salários mínimos e 75% com renda familiar maior de 3 salários mínimos (Tabela 1).

Tabela 1
Distribuição dos imigrantes bolivianos segundo o nível de escolaridade, ocupação e renda familiar

Acesso à saúde

Em relação ao acesso à serviço de saúde, do total de 633 imigrantes entrevistados, 96,5% utilizam o sistema público de saúde. Como pode ser visto na Tabela 2, 37,9% das mulheres de 20 a 39 anos afirmaram ir com frequência aos serviços de saúde, enquanto entre os homens desta mesma faixa etária foi de 20,0%. Entre as crianças de 1 a 9 anos esse índice subiu para 77,1%.

Tabela 2
Distribuição dos imigrantes bolivianos em relação a ida aos serviços de saúde segundo grupo etário e sexo

Quanto ao uso dos serviços hospitalares, 38,9% utilizaram e 61,1% procuraram uma Unidade Básica de Saúde (UBS). Cabe destacar que no atendimento hospitalar as mulheres na faixa etária de 20 a 45 anos representam maioria (Tabela 3).

Tabela 3
Local de atendimento de imigrantes bolivianos no serviço de saúde, segundo faixa etária e sexo

Dos 633 bolivianos entrevistados, 1,7% tiveram acesso a planos ou seguro saúde, sendo em sua maioria mulheres de 20 a 29 anos, escolaridade nível médio, trabalhando com costura, com renda familiar menor de 1 salário mínimo e vivendo em São Paulo até 2 anos. O Sistema Único de Saúde (SUS) foi o destino mais provável para 96,5% quando tiveram problemas de saúde. Chama a atenção que 86,4% relataram conhecimento sobre seu princípio constitucional da universalidade.

Desde os profissionais de saúde até os representantes das instituições governamentais e da sociedade civil, muitos ressaltam a importância dos serviços de atenção primária como “porta de entrada” à rede de atenção e o reconhecimento do sistema público de saúde, identificando algumas estratégias de acesso, como a presença do agente comunitário de saúde boliviano:

[…] As mulheres tão [estão] vindo muito no pré-natal e no papa [Papanicolau]. As crianças na puericultura, também tão vindo bastante […] (Profissional de saúde)

A saúde [serviços de saúde] é quem tem na maioria das vezes, o primeiro contato com essa população. (SMS)

Do ponto de vista da atenção ou atendimento a esse migrante, acho que a coisa que a gente trata com prioridade são as gestantes, hoje cinquenta porcento das nossas gestantes são bolivianas […] (Gerente Unidade de Saúde)

Os agentes comunitários [Estratégia Saúde da Família] tem o diferencial por serem bolivianos, tanto pelo contato nas famílias, como por conhecerem a realidade deles, então na própria equipe podem estar trazendo a questão dos costumes, da cultura deles, para estar tentando essa aproximação na língua. (Pastoral do Imigrante)

Dificuldades no acesso

A não documentação regular no Brasil e as condições de trabalho são questões que implicam no cuidado em saúde:

O motivo [não seguimento ambulatorial] geralmente é por trabalharem [bolivianos] nas oficinas de costura, os patrões não deixam eles saírem […]. Nós [profissionais de saúde] procuramos facilitar para eles [bolivianos], vendo qual horário é mais flexível […], a gente agiliza para ajudá-los […], pois o número de faltas [nas consultas de rotina] é muito grande. (Profissional de saúde)

É muito comum que o estrangeiro vá na DPU [Defensoria Pública da União] e diga que ele foi no posto [de saúde] e disseram no posto que ele não poderia ser atendido porque ele não tinha o documento pronto que é o RNE [Registro Nacional de Estrangeiro] […] (Defensoria Pública da União)

Alguma dificuldade que aconteceu no percurso, ou uma pessoa sozinha que está internada no hospital e precisa de acompanhamento, mais atenção, ou alguma atenção básica, ou se encaminhadas para as especialidades, elas às vezes precisam de alguma ajuda para entender porque tá demorando tanto. (Pastoral do Imigrante)

Outro limitante do acesso é a omissão do local de moradia por parte dos imigrantes:

Na verdade, o que limita [serviço de saúde] é não saber realmente onde ele [boliviano] mora, porque muitas vezes eles não dão o endereço correto. (Profissional de saúde)

Muitas vezes o boliviano informa um endereço que não é o dele, com medo que essa informação possa ser usada contra ele por autoridades de imigração. (Defensoria Pública da União)

A comunicação também está entre as dificuldades.

A barreira com o idioma representa um importante limite na utilização dos serviços de saúde pelos imigrantes bolivianos. Dos 472 bolivianos maiores de 18 anos, 41,5% disseram que os profissionais de saúde os entendiam bem. Todavia 42,6% dos entrevistados afirmaram que não conseguiam compreender adequadamente as orientações dos profissionais (Tabela 4).

Tabela 4
Compreensão dos profissionais de saúde em relação à fala dos Bolivianos (A) e compreensão dos Bolivianos em relação à fala dos profissionais de saúde (B) segundo grupo etário

Finalmente, 282 indivíduos (59,7%) informaram necessitar de ajuda por dificuldade de compreensão no atendimento. Desses, 92,1% (312/339) informaram não serem entendidos pelos profissionais de saúde.

Os entraves a respeito da comunicação foram apontados nas entrevistas:

O que acontece é que vários bolivianos vêm de zonas rurais e às vezes não falam bem, inclusive o espanhol. Eles falam dialetos indígenas […] (Profissional de saúde)

Yo vine cuando estaba embarazada. Fue muy difícil porque no comprendía la lengua, no sabía hablar. Fue muy difícil la comunicación […] (Imigrante boliviana)

Porque o idioma é espanhol, só que nós também temos mais de dois, três idiomas dentro da comunidade boliviana. Temos o aimará, que a maioria vem da região altiplano da Bolívia […]. Temos o quéchua e temos um mínimo de guarani, mas o forte mesmo é o espanhol […] (Consulado da Bolívia)

Direito à saúde

A percepção sobre direito à saúde, expressa-se nas falas dos bolivianos:

Si, conozco [SUS]. El atendimiento es universal, para todos y es gratuito. Es muy bueno. (Imigrante boliviano)

Por el SUS se consigue atendimiento medico, hospitales y emergencias sin tener que pagar nada. (Imigrante boliviano)

A ausência de visto de permanência no Brasil não é um impeditivo para que os imigrantes tenham acesso ao sistema de saúde público, segundo representantes institucionais:

[…] [Defensoria Pública] recebe muitos pedidos de tutela judicial de saúde, medicamentos de alto custo e internações são líderes disso [população migrante em geral]. Mas, aqui em São Paulo isso é uma situação bem peculiar, na unidade nós recebemos muito poucas demandas de saúde, comparada com o nosso cenário nacional. (Defensoria Pública da União)

Es un derecho por lo menos aquí en Brasil, es uno de los pocos países que tiene estabelecido, está en la constitución por lo menos que es un derecho a la salud, esta garantizado, no dice que no tiene que ser inmigrante, cualquier persona tiene que ser atendida. (Associação de Migrantes Bolivianos)

[…] É importante ressaltar que não é por ausência de política ou ações específicas que esta população não esteja sendo atendida. Pelo contrário, ela entra no bojo dos mesmos direitos da população geral, independente da nacionalidade ou da condição aqui. (SES)

Eu penso que nosso país é um país muito solidário, embora a gente tenha muita dificuldade, acho o SUS uma política pública muito importante, tanto para nós brasileiros, como para os povos que aqui vêm. E que aqui habitam […]. (Gerente Unidade de Saúde)

A questão da documentação é central na percepção e na garantia do direito. Nesse sentido, todos entrevistados, enfatizam o Cartão Nacional de Saúde (CNS) como primeiro documento que muitos desses imigrantes obtiveram no país, visto como condição de inserção social:

Te dan un cartón [Cartão Nacional de Saúde] que con él puede ser atendida en el puesto o en hospital. Es muy bueno. (Imigrante boliviano)

[…] A partir do momento que eles [bolivianos] conseguem o cartão SUS, eles se sentem brasileiros. (Profissional de saúde)

Muitos imigrantes já me relataram que o único documento oficial do Brasil que eles têm é o cartão SUS. (Consulado da Bolívia)

O cartão nacional de saúde pode ser um importante meio de cidadania para este grupo vulnerável, que são os imigrantes em situação irregular. Receber do Estado um documento que lhes dá acesso a um direito significa muita coisa em termos de cidadania. (Ministério Público Federal)

Discussão

Os resultados expõem uma precária inserção social de imigrantes latino-americanos na sociedade brasileira, no caso dos bolivianos na cidade de São Paulo, evidenciada pelas condições de trabalho a que a maioria deles se sujeita nas “oficinas de costuras” - parte da cadeia produtiva têxtil -, impulsionados pela migração não regulamentada (Freitas, 2011FREITAS, P. T. Imigração boliviana para São Paulo e setor de confecção - em busca de um paradigma analítico alternativo. Informe Gepec, Curitiba, v. 15, p. 222-240, 2011. DOI: 10.48075/igepec.v15i3.6280
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; Silva, S., 2006SILVA, S. A. Bolivianos em São Paulo: entre o sonho e a realidade. Estudos Avançados, São Paulo, v. 20, n. 57, p. 157-170, 2006. DOI: 10.1590/S0103-40142006000200012
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).

Essa situação laboral é fortemente denunciada pelos profissionais de saúde entrevistados, que a relacionam com vulnerabilidades no estado de saúde e limites no acesso aos serviços, constatados em estudos que evidenciam nos processos de exclusão social dessa população determinantes de iniquidades em saúde (Silveira ., 2013SILVEIRA, C. et al. Living conditions and access to health services by Bolivian immigrants in the city of São Paulo, Brazil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 29, n. 10, p. 2017-2027, 2013. DOI: 10.1590/0102-311X00113212
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).

Os indicadores de escolaridade e renda apresentados demonstram um segmento de classes sociais desfavorecidos socialmente, expressando bem o perfil da desigualdade social dos fluxos migratórios contemporâneos (Cucunuba ., 2017CUCUNUBA, Z. M. et al. How universal is coverage and access to diagnosis and treatment for Chagas disease in Colombia? A health systems analysis. Social Science & Medicine, Bethesda, v. 175, p. 187-198, 2017. DOI: 10.1016/j.socscimed.2017.01.002
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; Forsyth ., 2018FORSYTH, C. J. et al. “It’s like a phantom disease”: patient perspectives on access to treatment for Chagas disease in the United States. American Journal of Tropical Medicine and Hygiene, Bethesda, v. 98, n. 3, p. 735-741, 2018.; Manne-Goehler; Reich; Wirtz, 2015MANNE-GOEHLER, J.; REICH, M. R.; WIRTZ, V. J. Access to care for Chagas disease in the United States: a health systems analysis. American Journal of Tropical Medicine and Hygiene, Bethesda, v. 93, n. 1, p. 108-113, 2015. DOI: 10.4269/ajtmh.14-0826
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; Martini, 2005MARTINI, G. A globalização inacabada: migrações internacionais e pobreza no século 21. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 19, n. 3, p. 3-22, 2005. DOI: 10.1590/S0102-88392005000300001
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). Ressalta-se também que os imigrantes bolivianos correspondem a 1/3 do total de imigrantes internados no município de SP e que, em bolivianos, 75% correspondem à gravidez, parto e puerpério (Aguiar; Neves; Lira, 2015AGUIAR, B. S.; NEVES, H.; LIRA, M. T. A. M. Alguns aspectos da saúde de imigrantes e refugiados recentes no município de São Paulo. Boletim CEInfo Análise, São Paulo, n. 13, p. 49, 2015.).

Conforme indicado, a falta de oportunidade para o exercício profissional no período de chegada ao país a partir de 2008, com75,5% recebendo até 2 ou 3 salários mínimos e a predominância de trabalho em oficinas de costura foram anteriormente apontados (Silva, R. ., 2020SILVA, R. A. et al. Awareness of Chagas disease and socioeconomic characteristics of Bolivian immigrants living in Sao Paulo, Brazil. Revista do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo, São Paulo, v. 62, 2020. DOI: 10.1590/S1678-9946202062039
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). Portanto, são indivíduos desprovidos de recursos sociais, necessitando, assim, de políticas e programas intersetoriais.

Questão merecedora de melhor compreensão refere-se à singularidade do circuito migratório boliviano em São Paulo. Trata-se aqui do tempo de residência em São Paulo, que demonstra período menor de cinco anos entre a maioria dos imigrantes jovens (81,9% naqueles de 20 a 29 anos e 69,1% nos de 20 a 39 anos). Freitas (2011FREITAS, P. T. Imigração boliviana para São Paulo e setor de confecção - em busca de um paradigma analítico alternativo. Informe Gepec, Curitiba, v. 15, p. 222-240, 2011. DOI: 10.48075/igepec.v15i3.6280
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) chama atenção para essa particularidade, denominando-a “território circulatório”, caracterizado por movimento constante de idas e vindas Bolívia/Brasil, associado à sazonalidade da produção têxtil. Esse aspecto aparece nas falas dos profissionais de saúde como obstáculos no controle de doenças. Shikanai-Yasuda . (2017SHIKANAI-YASUDA, M. A. et al. Interdisciplinary approach at the primary healthcare level for Bolivian immigrants with Chagas disease in the city of São Paulo. PLOS Neglected Tropical Diseases, San Francisco, v. 11, n. 3, 2017. DOI: 10.1371/journal.pntd.0005466
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) analisaram as implicações de tais retornos periódicos dessa população para a Bolívia na falta de adesão ao tratamento e seguimento médico para doença de Chagas.

Além dessas, outras dimensões relacionadas às características do próprio grupo populacional em foco estão implicadas e constituem-se em desafios para o cuidado em saúde, isto é, quando temos 59,2% origem de zona rural (Silva, R. ., 2020SILVA, R. A. et al. Awareness of Chagas disease and socioeconomic characteristics of Bolivian immigrants living in Sao Paulo, Brazil. Revista do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo, São Paulo, v. 62, 2020. DOI: 10.1590/S1678-9946202062039
https://doi.org/10.1590/S1678-9946202062...
), influenciando na percepção processo saúde-doença-cuidado (Martes; Faleiros, 2013MARTES, A. C. B.; FALEIROS, S. M. Acesso dos imigrantes bolivianos aos serviços públicos de saúde na cidade de São Paulo. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 22, n. 2, p. 351-364, 2013. DOI: 10.1590/S0104-12902013000200008
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).

Nos resultados, ressalta-se a comunicação como obstáculo no atendimento dos serviços de saúde. O não domínio da língua portuguesa pelos bolivianos, como também do espanhol por parte dos profissionais, dificulta o atendimento, fator limitador na atuação dos serviços públicos de saúde, exigindo, portanto, capacitação de agentes públicos (Aith; Forsyth; Shikanai-Yasuda, 2020AITH, F. M. A.; FORSYTH, C.; SHIKANAI-YASUDA, M. A. Chagas disease and healthcare rights in the Bolivian immigrant community of São Paulo, Brazil. Tropical Medicine and Infectious. Disease, Bethesda, v. 5, n. 2, p. 62-73, 2020. DOI: 10.3390/tropicalmed5020062;5,62
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; Aguiar; Neves; Lira, 2015AGUIAR, B. S.; NEVES, H.; LIRA, M. T. A. M. Alguns aspectos da saúde de imigrantes e refugiados recentes no município de São Paulo. Boletim CEInfo Análise, São Paulo, n. 13, p. 49, 2015.; Martes; Faleiros, 2013MARTES, A. C. B.; FALEIROS, S. M. Acesso dos imigrantes bolivianos aos serviços públicos de saúde na cidade de São Paulo. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 22, n. 2, p. 351-364, 2013. DOI: 10.1590/S0104-12902013000200008
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). Acrescentam-se, ainda nesse cenário, outros aspectos como o desconhecimento de agravos à saúde da população boliviana, por exemplo a doença de Chagas, endêmica na Bolívia, não só por parte dos profissionais da saúde no Brasil, mas também de países como Estados Unidos (Carneiro Junior ., 2018CARNEIRO JUNIOR, N. et al. Políticas públicas no contexto dos processos migratórios no Brasil: a experiência da construção da política municipal de saúde para imigrantes e refugiados na cidade de São Paulo (2015-2016). In: GOLDBERG, A.; SILVEIRA, C.; COSTELLO, D. M. (Org.). Migração, refúgio e saúde. Santos: Editora Universitária Leopoldianum, 2018. p. 251-260.; Manner-Goehler; Reich; Wirz, 2015MANNE-GOEHLER, J.; REICH, M. R.; WIRTZ, V. J. Access to care for Chagas disease in the United States: a health systems analysis. American Journal of Tropical Medicine and Hygiene, Bethesda, v. 93, n. 1, p. 108-113, 2015. DOI: 10.4269/ajtmh.14-0826
https://doi.org/10.4269/ajtmh.14-0826...
; Manne ., 2013MANNE, J. M. et al. Barriers to treatment access for Chagas disease in Mexico. PLOS Neglected Tropical Diseases, San Francisco, v. 7, 2013. DOI: 10.1371/journal.pntd.0002488
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).

As informações descritas contribuem para o debate sobre potencialidades e limites do SUS quando se observa que os serviços públicos de saúde são expressamente referenciados por essa população. Cerca de 40% dos imigrantes bolivianos relataram idas frequentes a eles, sendo a Unidade Básica de Saúde o serviço mais utilizado (61,2%), principalmente por crianças e mulheres. Os relatos dos profissionais de saúde e dos próprios imigrantes ratificam esses resultados, mencionando atitudes acolhedoras nos atendimentos. Desse modo, o serviço cumpre um dos seus principais atributos na organização do sistema de saúde: ser acesso preferencial no Brasil (Brasil, 2017BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria n. 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília, DF, 2017. Disponível em: <Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prt2436_22_09_2017.html >. Acesso em: 27 set. 2019.
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) e em outros países (Stafield; Shi, 2015STARFIELD, B.; SHI, L. Policy relevant determinants of health: an international perspective. Health Policy, Bethesda, v. 60, n. 3, p. 201-2018, 2002. DOI: 10.1016/s0168-8510(01)00208-1
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).

Destacam-se, nesse contexto, iniciativas de arranjo técnico-gerencial promotoras da garantia do acesso dos imigrantes bolivianos às ações de saúde, isto é, flexibilização de horários, inserção de profissionais de saúde de origem boliviana, acolhimento às demandas espontâneas, estratégias de comunicação, entre outras (Steffens; Martins, 2016STEFFENS, I.; MARTINS, J. “Falta um Jorge”: a saúde na política municipal para imigrantes em São Paulo (SP). Lua Nova, v. 98, p. 275-299, 2016. DOI: 10.1590/0102-6445275-299/98
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; Martes; Faleiros, 2013MARTES, A. C. B.; FALEIROS, S. M. Acesso dos imigrantes bolivianos aos serviços públicos de saúde na cidade de São Paulo. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 22, n. 2, p. 351-364, 2013. DOI: 10.1590/S0104-12902013000200008
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; Silva, E., 2009SILVA, E. C. C. Rompendo barreiras: os bolivianos e o acesso aos serviços de saúde na cidade de São Paulo. Travessia: Revista do Migrante, São Paulo, v. 63, p. 26-31, 2009. DOI: 10.48213/travessia.i63.268
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). Essa organização dos processos de trabalho orientada às especificidades de determinado grupo populacional aponta para o princípio da equidade em saúde (Campos, 2006CAMPOS, G. W. S. Reflexões temáticas sobre equidade e saúde: o caso do SUS. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 15, n. 2, p. 23-33, 2006.).

Por outro lado, essas potencialidades observadas no SUS estão tensionadas por condições internas e externas do setor de saúde, como também pelas particularidades implicadas na migração boliviana, que impõem limites e comprometem a garantia do direito à saúde.

Nesses últimos anos, o Estado brasileiro vem adotando políticas sociais não redistributivas, que afetam sobremaneira o financiamento do SUS, e realizando mudanças na sua gestão, provocando, desse modo, fragilidades na integralidade da atenção à saúde (Mendes; Carnut, 2018MENDES, A.; CARNUT, L. Capitalismo contemporâneo em crise e sua forma política: o subfinanciamento e o gerencialismo na saúde pública brasileira. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 27, n. 4, p. 1105-1119, 2018. DOI: 10.1590/S0104-12902018180365
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).

A discussão sobre os fluxos migratórios contemporâneos nos países com políticas sociais universais é necessária, possibilitando qualificação e fortalecimento das mesmas, num cenário de crescentes concepções restritivas ao acesso de imigrantes aos serviços sociais (Fortes; Carvalho; Louvison, 2015FORTES, P. A. C; CARVALHO, R. R. P.; LOUVISON, M. C. P. Crise econômica e contrarreforma dos sistemas universais de saúde: o caso espanhol. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 49, p. 34-36, 2015. DOI: 10.1590/S0034-8910.2015049005469
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).

Nesse contexto, deve-se destacar importantes iniciativas locais de formulação e implementação de políticas e programas na administração pública, particularmente no município de São Paulo, visando a inclusão social de populações imigrantes, como a criação em 2013 da Coordenação de Políticas para Imigrantes e Promoção do Trabalho Decente/Secretaria Municipal dos Direitos Humanos e Cidadania para promover ações intersetoriais, a Lei Municipal n. 16.478/2016 que instituiu a Política Municipal para a População Imigrante, a Política Municipal de Saúde para Imigrantes e Refugiados em 2015, entre outras (Carneiro Junior ., 2018CARNEIRO JUNIOR, N. et al. Políticas públicas no contexto dos processos migratórios no Brasil: a experiência da construção da política municipal de saúde para imigrantes e refugiados na cidade de São Paulo (2015-2016). In: GOLDBERG, A.; SILVEIRA, C.; COSTELLO, D. M. (Org.). Migração, refúgio e saúde. Santos: Editora Universitária Leopoldianum, 2018. p. 251-260.; Otero; Lotta, 2020OTERO, G. A. P.; LOTTA, G. S. International migration and federative co-ordination in Brazil: São Paulo and Porto Alegre case studies between 2013 and 2016. Contexto Internacional, Rio de Janeiro, v. 42, n. 2, p. 277-301, 2020. DOI: 10.1590/S0102-8529.2019420200004
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).

Como parte da Política Municipal aprovada, a Prefeitura do Município de São Paulo, dando execução à Lei, organizou em 2019 a 2ª Conferência Municipal de Políticas para Imigrantes, de São Paulo, com expressiva participação de grupos imigrantes. Como fruto da Conferência foi elaborado o 1º Plano Municipal de Políticas para Imigrantes 2021-2024, instrumento de planejamento, implementação, monitoramento e avaliação da política municipal para a população de outras nacionalidades que vivem na cidade (São Paulo, 2020SÃO PAULO. Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania. Coordenadoria de Políticas para Imigrantes e Promoção do Trabalho Decente. 1º Plano municipal de políticas para imigrantes 2021-2024. São Paulo, 2020.).

Embora a Constituição de 1988 reconheça expressamente a saúde como um direito fundamental no Brasil, inclusive para os imigrantes, e mesmo com os esforços dos órgãos municipais para o seu acolhimento na Cidade de São Paulo, a vulnerabilidade dos imigrantes no Brasil ainda é presente, seja pelo desconhecimento que eles tem dos seus direitos, seja em decorrência de possíveis irregularidades dos documentos necessários para a permanência no país, com consequências inclusive na atenção à saúde por parte do SUS (Aith; Forsyth; Shikanai-Yasuda, 2020AITH, F. M. A.; FORSYTH, C.; SHIKANAI-YASUDA, M. A. Chagas disease and healthcare rights in the Bolivian immigrant community of São Paulo, Brazil. Tropical Medicine and Infectious. Disease, Bethesda, v. 5, n. 2, p. 62-73, 2020. DOI: 10.3390/tropicalmed5020062;5,62
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; Baeninger; Demétrio; Domeniconi, 2019BAENINGER, R.; DEMÉTRIO, N. B.; DOMENICONI, J. Imigração internacional na macrometrópole paulista: novas e velhas questões. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 22, n. 47, p. 17-40, 2019. DOI: 10.1590/2236-9996.2020-4701
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).

Ainda assim, chama a atenção que para os imigrantes o SUS representa uma possibilidade de inserção social, uma política de garantia de direitos sociais, expressamente em oposição à realidade em seu país (Martes; Faleiros, 2013MARTES, A. C. B.; FALEIROS, S. M. Acesso dos imigrantes bolivianos aos serviços públicos de saúde na cidade de São Paulo. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 22, n. 2, p. 351-364, 2013. DOI: 10.1590/S0104-12902013000200008
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). Destacam-se, nesse sentido, os relatos dos imigrantes e autoridades que evidenciam o direito à saúde no Brasil corporificado na obtenção do Cartão Nacional de Saúde.

Com efeito, muitos imigrantes utilizam o “cartão SUS”, fornecido desde que apresentem algum documento de identificação, mesmo de seu país de origem. Esse cartão representou uma das principais formas de integração com a sociedade, sendo por vezes o único documento brasileiro que possuíam. Segundo um representante institucional, o Cartão Nacional de Saúde pode ser um importante meio para o exercício da cidadania para este grupo vulnerável. Conforme registrado no presente trabalho e apontado por Xavier (2010XAVIER, I. R. Projeto Migratório e Espaço: os migrantes bolivianos na Região Metropolitana de São Paulo. Dissertação (Mestrado em Demografia) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010.), os imigrantes utilizam o SUS e expressaram percepções de mesmo direito à saúde dos cidadãos natos ou naturalizados.

Por fim, salienta-se a constatação da falta de itinerários terapêuticos para a doença de Chagas (Aith; Forsyth; Shikanai-Yasuda, 2020AITH, F. M. A.; FORSYTH, C.; SHIKANAI-YASUDA, M. A. Chagas disease and healthcare rights in the Bolivian immigrant community of São Paulo, Brazil. Tropical Medicine and Infectious. Disease, Bethesda, v. 5, n. 2, p. 62-73, 2020. DOI: 10.3390/tropicalmed5020062;5,62
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), como também a necessidade de treinamentos para médicos na atenção primária, implementando estratégias como manuais de atenção à doença de Chagas, assim como aplicativos de orientação, via celular, com especificidades para imigrantes bolivianos (Shikanai-Yasuda et al., 2017SHIKANAI-YASUDA, M. A. et al. Interdisciplinary approach at the primary healthcare level for Bolivian immigrants with Chagas disease in the city of São Paulo. PLOS Neglected Tropical Diseases, San Francisco, v. 11, n. 3, 2017. DOI: 10.1371/journal.pntd.0005466
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). A aprovação de um Protocolo de Diretrizes para o Diagnóstico e Terapêutica para doença de Chagas abre possibilidade de qualificar a atenção dessa doença no Brasil para os indivíduos infectados, na sua maioria assintomáticos, particularmente as mulheres em idade fértil e adultos jovens (Shikanai-Yasuda ., 2017SHIKANAI-YASUDA, M. A. et al. Interdisciplinary approach at the primary healthcare level for Bolivian immigrants with Chagas disease in the city of São Paulo. PLOS Neglected Tropical Diseases, San Francisco, v. 11, n. 3, 2017. DOI: 10.1371/journal.pntd.0005466
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).

Esse trabalho, apesar de uma amostragem considerável de 633 indivíduos, apresenta limitações. A amostra de bolivianos estudada vive numa área restrita da cidade de São Paulo, sendo usuária de um serviço de saúde. Seria também desejável um número maior de entrevistas qualitativas, incluindo serviços da assistência social.

Considerações Finais

A falta de documentação, condições de trabalho e baixos salários, associadas à dificuldade na comunicação apontam como importantes barreiras de acesso à saúde, necessitando de diferentes intervenções políticas e programáticas, como dispor de profissionais e/ou mediadores culturais que falem a língua espanhola para dirimir tais dificuldades.

Os dados deste artigo apontam o papel fundamental da obtenção do Cartão Nacional de Saúde, não só como porta de entrada à saúde, mas como meio de integração social do imigrante.

Os resultados agregam conhecimentos à literatura já existente sobre o tema, dialogado ao longo do texto, sobretudo no que se refere à necessidade de se organizar novas formas de atenção voltadas a essas comunidades específicas.

Agradecimentos

Nossos agradecimentos ao Grupos de Pesquisa em Atenção Básica e Imigração em Doença de Chagas e Imigração (Lia M. Brito Silva, Noemia Barbosa Carvalho, Ruth Moreira Leite, Magda Atala, Rosário Q. Ferrufino, Luzia Martinelli, Camila Sáfolo, Sonia Regina de Almeida e Cássio Silveira).

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  • 1
    Apoio financeiro foi fornecido pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico: CNPq 404336/2012-4.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    18 Mar 2022
  • Aceito
    26 Jun 2022
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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