Percepção de risco de moradoras em áreas sujeitas a escorregamentos de encostas

Risk perception of female residents in areas subject to landslides

Jane Zandomenico Denise Martin Sobre os autores

Resumo

A exposição a riscos naturais pode provocar impactos sobre a saúde. A precariedade das moradias, das condições de vida e a ausência de proteção social tornam a sobrevivência em áreas de risco um problema de saúde pública. Esta pesquisa buscou compreender o lugar que o risco natural ocupa na vida de moradoras de dois bairros mapeados como zonas de alto risco para escorregamentos em São José dos Campos (SP). Foi realizada uma pesquisa qualitativa na qual a pesquisadora, acompanhada por agentes comunitários de saúde, entrevistou 12 moradoras e realizou observações etnográficas de campo. O risco percebido pelas entrevistadas, em seu contexto sociocultural, era de serem removidas de suas casas pelo poder público. Concluiu-se que estudos socioculturais na interface entre saúde coletiva e meio ambiente são fundamentais para redução da exposição de alguns grupos sociais ao risco natural e para a criação de políticas públicas que visem à diminuição das iniquidades.

Palavras-chave:
Percepção de Risco; Saúde Coletiva; Meio Ambiente; Gerenciamento de Risco; Desastres Naturais.

Abstract

Exposure to natural hazards can have an impact on health. The precariousness of housing, living conditions and the lack of social protection, make surviving in risk areas a public health issue. This research sought to understand the place that natural hazards occupy in the lives of female residents of two neighborhoods mapped as areas of very high risk for landslides in São José dos Campos (state of São Paulo). Qualitative research was carried out in which the researcher, accompanied by community health agents, interviewed 12 female residents and made field ethnographic observations. The risk perceived by the interviewees, in their sociocultural context, was of being removed from their homes by the government. In conclusion, sociocultural studies at the interface between collective health and the environment are essential to reduce the exposure of some social groups to natural hazards and to create public policies that seek to reduce inequities.

Keywords:
Risk Perception; Public Health; Environment; Risk Management; Natural Disasters.

Introdução

A ocorrência de escorregamentos de encostas ou deslizamentos tem sido frequente no Brasil. Entre os anos de 1991 a 2012 foram documentados 699 eventos; dos quais 165 ocorreram no estado de São Paulo, ocasionando 61 óbitos. Dados do Anuário Brasileiro de Desastres Naturais (Siqueira; Santos, 2014SIQUEIRA, A. R. C.; SANTOS, M. S. (Coord.). Anuário Brasileiro de Desastres Naturais 2013. Brasília, DF: Ministério da Integração Nacional, 2014. Disponível em: <Disponível em: https://antigo.mdr.gov.br/images/stories/ArquivosDefesaCivil/ArquivosPDF/publicacoes/Anurio-Brasileiro-de-Desastres-Naturais-2013.pdf >. Acesso em: 20 ago. 2018.
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, p. 54) mostram que em 2013 os escorregamentos afetaram 223.659 moradores da região Sudeste, deixando 5.453 pessoas em situação de desalojamento, 2.663 desabrigados e 41 mortos.

Embora não tenha sido publicado um novo anuário desde 2014, dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que, no estado de São Paulo, há 1.521.386 habitantes vivendo em áreas de risco, com 14% da área total desse estado exposta à alta probabilidade de escorregamentos (IBGE, 2018IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. População em áreas de risco no Brasil. Rio de Janeiro, 2018. Disponível em: <Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101589.pdf >. Acesso em: 19 jun. 2019.
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualiza...
).

Os escorregamentos, por sua vez, são “[…] processos de movimento de massa envolvendo materiais que recobrem as superfícies das vertentes ou encostas, tais como solos, rochas e vegetação” (Tominaga, 2009TOMINAGA, L. K. Escorregamentos. In: TOMINAGA, L. K.; SANTORO, J.; AMARAL, R. (Org.). In: Desastres Naturais: Conhecer para Prevenir. São Paulo: Instituto Geológico, 2009. Capítulo 2., p. 27). A suscetibilidade desses eventos aumenta em decorrência da interferência humana no meio ambiente por meio de ações como desmatamentos, mineração, lançamento de águas servidas, acúmulo de lixo, aterramento mal planejado e/ou executado e vazamentos na rede de esgoto (Tominaga, 2009TOMINAGA, L. K. Escorregamentos. In: TOMINAGA, L. K.; SANTORO, J.; AMARAL, R. (Org.). In: Desastres Naturais: Conhecer para Prevenir. São Paulo: Instituto Geológico, 2009. Capítulo 2.; Mendes; Valério Filho, 2014MENDES, R. M.; VALÉRIO FILHO, M. (Coord.). Mapeamento das áreas de risco associados a escorregamentos de encostas no município de São José dos Campos - SP. São José dos Campos: Univap, 2014. Disponível em: <Disponível em: http://planodiretor.sjc.sp.gov.br/resources/uploads/Link/Arquivo/2016_AreasRisco.pdf >. Acesso em: 02 jun. 2017.
http://planodiretor.sjc.sp.gov.br/resour...
; Mendes et al., 2018MENDES, R. M.; ANDRADE, M. R. M.; TOMASELLA, J. et al. Understanding shallow landslides in Campos do Jordão municipality - Brazil: disentangling the anthropic effects from natural causes in the disaster of 2000. NHESS, Gottingen, v. 18, p. 15-30, 2018. DOI 10.5194/nhess-18-15-2018
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).

Junto à exposição a que moradores de áreas de risco de escorregamento estão sujeitos, outras adversidades estão presentes na vida dessas pessoas, como violência urbana, desemprego, baixa escolaridade, enfermidades, entre outros. Considerando que a promoção da saúde coletiva deve levar em conta essas singularidades presentes no meio ambiente, saúde e doença devem ser examinadas a partir de contextos socioculturais específicos (Langdon; Wiik, 2010LANGDON, E. J.; WIIK, F. B. Antropologia, saúde e doença: uma introdução ao conceito de cultura aplicado às ciências da saúde. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 18, n. 3, p. 174-181, 2010. DOI: 10.1590/S0104-11692010000300023
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). Nesse caso, é necessário compreender se os moradores dessas áreas conhecem ou entendem sobre risco natural, como o avaliam e, quando tais riscos são considerados, que atitudes são adotadas para proteção. É importante, também, analisar as diferenças de percepção entre moradores e peritos.

Desastres naturais enquanto fenômenos sociais

Os escorregamentos de encostas configuram eventos de desastres naturais, especialmente quando ocorrem em áreas urbanas e com grande densidade populacional. O desastre é um processo social causado por um evento físico deflagrador, como a chuva, por exemplo, e o agravamento de seus efeitos se dá pela multiplicidade de vulnerabilidades preexistentes, tanto no local de ocorrência quanto em determinados grupos sociais (Spink, 2014SPINK, M. J. P. Viver em áreas de risco: tensões entre gestão de desastres ambientais e os sentidos do risco no cotidiano. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 19, n. 9, p. 3743-3754, 2014. DOI: 10.1590/1413-81232014199.01182014
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; 2018SPINK, M. J. P. Viver em áreas de risco: reflexões sobre vulnerabilidades socioambientais. Perdizes: EDUC, 2018.; Valencio, 2009VALENCIO, N. F. L. S. Da morte da Quimera à procura de Pégaso: a importância da interpretação sociológica na análise do fenômeno denominado desastre. In: VALENCIO, N.; SIENA, M.; MARCHEZINI, V. et al. (Org.). Sociologia dos desastres: construção, interfaces e perspectivas no Brasil. São Carlos: RiMa, 2009. p. 3-18; Valencio; Valencio, 2017VALENCIO, N. F. L. S.; VALENCIO, A. Vulnerability as social oppression: the traps of risk-prevention actions. In: MARCHEZINI, V.; WISNER, B.; LONDE, L. R. et al. (Org.). Reduction of vulnerability to disasters: from knowledge to action. São Carlos: RiMa , 2017. Capítulo 3.; Vargas, 2016VARGAS, M. A. R. Moradia e pertencimento: a defesa do Lugar de viver e morar por grupos sociais em processo de vulnerabilização. Cadernos Metrópole, Perdizes, v. 18, n. 16, p. 535-57, 2016. DOI: 10.1590/2236-9996.2016-3611
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).

Para Spink (2014SPINK, M. J. P. Viver em áreas de risco: tensões entre gestão de desastres ambientais e os sentidos do risco no cotidiano. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 19, n. 9, p. 3743-3754, 2014. DOI: 10.1590/1413-81232014199.01182014
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, p. 3746), a vulnerabilidade é caracterizada “[…] por processos sociais relacionados à precariedade das condições de vida e proteção social que tornam certos grupos, principalmente entre os mais pobres, mais vulneráveis aos desastres”. Segundo a autora, as mudanças ambientais resultantes da degradação do meio ambiente podem tornar certas áreas mais vulneráveis, piorando, assim, a qualidade de vida das populações que nelas vivem. Somadas a isso, as desigualdades sociais geram as dificuldades que alguns grupos têm em habitar espaços melhores, então morar em loteamentos irregulares passa a ser uma solução habitacional para os mais pobres (Cardoso, 2006CARDOSO, A. L. Risco urbano e moradia: a construção social do risco em uma favela do Rio de Janeiro. Cadernos IPPUR, Rio de Janeiro, ano XX, v. 12, n. 1, p. 27-48, 2006.).

Embora as moradias estejam expostas ao mesmo evento físico, a exposição ocorre de forma diferente devido à presença de vulnerabilidades distintas entre uma comunidade e outra, o que pode ocasionar aumento, redução ou manutenção da exposição ao risco (Kuhnen, 2009KUHNEN, A. Meio ambiente e vulnerabilidade: a percepção ambiental de risco e o comportamento humano. Geografia, Londrina, v. 18, n. 2, p. 37-52, 2009. Disponível em: <Disponível em: https://www.uel.br/revistas/uel/index.php/geografia/article/view/3287 >. Acesso em: 2 jul. 2020.
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). Os desastres, por outro lado, causam os mesmos efeitos negativos diretos em uma comunidade, tais como danos materiais, físicos, traumas, óbitos e doenças. Em estudo realizado em uma comunidade atingida por um evento climático extremo, Xavier, Barcellos e Freitas (2014XAVIER, D. R.; BARCELLOS, C.; FREITAS, C. M. Eventos climáticos extremos e consequências sobre a saúde: o desastre de 2008 em Santa Catarina segundo diferentes fontes de informação. Ambiente & Sociedade, São Paulo, v. XVII, n. 4, p. 273-294, 2014. DOI: 10.1590/1809-4422ASOC1119V1742014
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) mostraram que houve, além dos óbitos, aumento do número de internações e de atendimentos devido a doenças infecciosas e fraturas, assim como agravamento de enfermidades crônicas como a hipertensão. Portanto, os efeitos de um desastre costumam perdurar por longo período na saúde de moradores das comunidades atingidas.

Ao estudar esse fenômeno social, portanto, deve-se considerar as vulnerabilidades a que determinados grupos sociais estão expostos, sua cultura local e suas práticas cotidianas, tendo em vista que “[…] os desastres são processos resultantes de condições críticas preexistentes nas quais a vulnerabilidade acumulada e a construção social do risco ocupam lugares determinantes em sua associação com uma determinada ameaça natural” (García Acosta, 2004GARCÍA ACOSTA, V. La perspectiva histórica en la antropología del riesgo y del desastre. Acercamientos metodológicos. Relaciones: Estudios de Historia y Sociedad, Zamora, v. XXV, n. 97, p. 123-142, 2004. Disponível em: <Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=13709704&idp=1&cid=14773 >. Acesso em: 04 jul. 2020.
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, p. 129, tradução nossa).

Cultura e percepção de risco

É importante esclarecer as diferenças entre perigo e risco (Olímpio; Zanella, 2017OLÍMPIO, J. L. S.; ZANELLA, M. E. Riscos naturais: conceitos, componentes e relações entre natureza e sociedade. Raega: O Espaço Geográfico em Análise, Curitiba, v. 40, p. 94-109, 2017. DOI: 10.5380/raega.v40i0.45870
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). Perigo é a possibilidade de ocorrência de um fenômeno potencialmente danoso à vida, aos bens e ao meio ambiente que pode originar problemas sociais, econômicos, políticos e ambientais. Por outro lado, os riscos indicam a “[…] probabilidade de formação de uma crise, produzida pelos potenciais impactos de um perigo sobre um sistema social vulnerável” (Olímpio; Zanella, 2017OLÍMPIO, J. L. S.; ZANELLA, M. E. Riscos naturais: conceitos, componentes e relações entre natureza e sociedade. Raega: O Espaço Geográfico em Análise, Curitiba, v. 40, p. 94-109, 2017. DOI: 10.5380/raega.v40i0.45870
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, p. 101). Dessa forma, os riscos naturais teriam origem na relação entre sociedade e natureza.

Outros autores, como Spink, Medrado e Mello (2002SPINK, M. J. P., MEDRADO, B., MELLO, R. P. Perigo, probabilidade e oportunidade: a linguagem dos riscos na mídia. Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v. 15, n. 1, p. 151-164, 2002. DOI: 10.1590/S0102-79722002000100017
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), definem risco como a probabilidade de haver consequências prejudiciais a uma comunidade ou perda das formas de subsistência, ferimentos ou mortes. Kuhnen (2009KUHNEN, A. Meio ambiente e vulnerabilidade: a percepção ambiental de risco e o comportamento humano. Geografia, Londrina, v. 18, n. 2, p. 37-52, 2009. Disponível em: <Disponível em: https://www.uel.br/revistas/uel/index.php/geografia/article/view/3287 >. Acesso em: 2 jul. 2020.
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), sob outra perspectiva, vê o risco enquanto um processo no qual atitudes, valores, crenças, sentimentos e normas sociais influenciam a forma de entender o ambiente.

A possibilidade de que indivíduos receiem eventos distintos e percebam diferentes tipos de perigo dependendo do meio cultural em que estão inseridos é objeto de pesquisa da Teoria Cultural do Risco. Ao estudarem a sociedade americana, Douglas e Wildavsky (2012DOUGLAS, M.; WILDAVSKY, A. Risco e Cultura: um ensaio sobre a seleção de riscos tecnológicos e ambientais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.) concluíram que cada comunidade tende a produzir alguns riscos que ignora, enquanto outros são percebidos conforme um conjunto de referenciais que moldam o estilo de vida de determinada sociedade. Por essa razão, a percepção de riscos varia de acordo com a cultura dos grupos sociais e a sua posição socioeconômica na sociedade.

Portanto, na abordagem teórica do risco, é fundamental examinar os princípios e valores de um determinado contexto sociocultural utilizados para justificar comportamentos e nos quais os infortúnios são identificáveis e explicados (Martin, 2003MARTIN, D. Riscos na prostituição: um olhar antropológico. São Paulo: Humanitas, 2003.) como, por exemplo, a maneira como os moradores pensam, se comportam e, sobretudo, percebem e vivem com os riscos.

Ademais, vale notar que grupos detentores de maior poder econômico estão expostos a riscos distintos e seu nível de resiliência pode ser maior do que o encontrado em grupos sociais menos favorecidos, já que para os primeiros existe a possibilidade de deslocar “[…] o risco no tempo (para futuras gerações), no espaço (para outras regiões) e/ou para outros grupos sociais” (Sulaiman; Aledo, 2016SULAIMAN, S. N.; ALEDO, A. Desastres naturais: convivência com o risco. Estudos Avançados, São Paulo, v. 30, n. 88, p. 11-23, 2016. DOI: 10.1590/S0103-40142016.30880003
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, p. 19).

É provável que, ao ignorar um risco preexistente, uma comunidade possa adotar comportamentos que aumentem a probabilidade de que ele ocorra, potencializando-o. Isso acontece quando um evento físico inicialmente produzido pela natureza se agrava devido às modificações feitas pelo homem no meio ambiente.

A complexidade cultural, histórica e social na qual está imersa uma sociedade determina quais riscos são ignorados ou não e qual o grau de exposição a que alguns grupos estão submetidos. Dessa forma, deve ser considerado que diferentes grupos apresentam formas distintas de ver e de interagir com o meio ambiente.

Metodologia

Para a análise, foi realizada uma pesquisa qualitativa que teve como objetivo principal compreender o lugar do risco natural na vida de moradoras de áreas de alto risco para escorregamentos de encostas. Os objetivos específicos buscam compreender o contexto sociocultural das moradoras e suas percepções sobre os escorregamentos de encostas nos bairros.

A pesquisa ocorreu em 2018, no município de São José dos Campos, São Paulo, onde existem 16 bairros nos quais foram identificados riscos associados a escorregamentos. O mapeamento dessas áreas, feito por Mendes e Valério Filho (2014MENDES, R. M.; VALÉRIO FILHO, M. (Coord.). Mapeamento das áreas de risco associados a escorregamentos de encostas no município de São José dos Campos - SP. São José dos Campos: Univap, 2014. Disponível em: <Disponível em: http://planodiretor.sjc.sp.gov.br/resources/uploads/Link/Arquivo/2016_AreasRisco.pdf >. Acesso em: 02 jun. 2017.
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), possibilitou a escolha dos bairros Buquirinha I e II como área de pesquisa. Nesses bairros, há 169 moradias classificadas como setor R4 (risco muito alto) para escorregamento de encostas. O grau de probabilidade R4 indica que o terreno apresenta condicionantes geológico-geotécnicos (declividade, tipo de terreno etc.) e evidências de instabilidade, como trincas no solo, nas moradias ou em muros de contenção e, também, árvores ou postes inclinados e cicatrizes de escorregamento. Tais características estavam presentes em grande número nas áreas selecionadas e indicavam um avançado processo de instabilização (Mendes; Valério Filho, 2014MENDES, R. M.; VALÉRIO FILHO, M. (Coord.). Mapeamento das áreas de risco associados a escorregamentos de encostas no município de São José dos Campos - SP. São José dos Campos: Univap, 2014. Disponível em: <Disponível em: http://planodiretor.sjc.sp.gov.br/resources/uploads/Link/Arquivo/2016_AreasRisco.pdf >. Acesso em: 02 jun. 2017.
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).

Três equipes de Estratégia Saúde da Família (ESF) atuavam na Unidade Básica de Saúde (UBS) que atendia a microrregião onde estão localizados os dois bairros e, por isso, foi possível que duas agentes comunitárias de saúde auxiliassem no acompanhamento da pesquisadora principal durante as visitas e na identificação das famílias que moravam nas casas mapeadas. As entrevistas ocorreram dentro de um período de duas semanas, devido à disponibilidade das agentes. No entanto, a pesquisadora principal retornou aos bairros durante três meses.

Realizou-se observação etnográfica amparada por um roteiro de observação e por entrevistas semiestruturadas com 12 moradoras dessas áreas. Tanto o roteiro quanto as entrevistas auxiliaram a abordar o contexto social das moradoras e as percepções que elas tinham sobre o território em que habitavam. O critério para a realização das entrevistas foi “morar em área de risco muito alto - R4” para escorregamento de encostas e ser do sexo feminino. A escolha por mulheres deveu-se ao fato de estarem presentes no horário de visita da equipe ESF e também por manterem maior contato com a UBS, de acordo com as informações das agentes comunitárias.

Os registros das observações em campo e das percepções da pesquisadora sobre o contexto local, assim como as conversas informais com as agentes comunitárias, foram feitos em um diário de campo. As entrevistas foram gravadas com o auxílio de um aplicativo e depois transcritas. A transcrição foi classificada nas categorias definidas com a ajuda do software NVIVO® (versão experimental), enquanto as observações descritas no diário de campo foram incorporadas na análise e discussão dos resultados, dialogando com o referencial teórico que orientou a pesquisa. Além disso, a pesquisadora, quando autorizada pelas moradoras, fotografou algumas casas e áreas dos bairros.

O estudo das entrevistas e das observações relatadas no diário de campo permitiu inserir a questão do risco no contexto sociocultural. Para a análise dos dados coletados nas entrevistas foram utilizadas as seguintes categorias: condições socioeconômicas e acesso ao lazer; construção da casa; dinâmica familiar e comunitária; infraestrutura pública e saúde; percepção da violência e violência cotidiana; migrações; e sugestões ao poder público.

A execução da pesquisa foi previamente aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) por meio do parecer nº 2.313.632.

Caracterização do bairro e das participantes

No bairro Buquirinha I estão localizadas 108 moradias em área de risco, e elevada probabilidade de escorregamento foi encontrada em 72 casas. No bairro Buquirinha II, das 113 moradias avaliadas, 97 são de risco muito alto (Mendes; Valério Filho, 2014MENDES, R. M.; VALÉRIO FILHO, M. (Coord.). Mapeamento das áreas de risco associados a escorregamentos de encostas no município de São José dos Campos - SP. São José dos Campos: Univap, 2014. Disponível em: <Disponível em: http://planodiretor.sjc.sp.gov.br/resources/uploads/Link/Arquivo/2016_AreasRisco.pdf >. Acesso em: 02 jun. 2017.
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).

Os locais contam com uma UBS localizada na parte baixa dos bairros e fora da área de risco de escorregamentos. Há também duas escolas, lojas de material de construção, mercados, igrejas católica e evangélica, um centro de umbanda, pesqueiro e bares. O que chamou a atenção é o grande número de chácaras destinadas à locação para festas particulares. A pesquisadora não viu nenhuma praça ou parque.

A rua asfaltada vai até o início dos dois bairros e, a partir daí, o caminho é de terra, com subidas muito íngremes. Existem quatro linhas de ônibus cujos horários são limitados nos finais de semana e feriados. Os ônibus não sobem as encostas e só chegam até a rua que está localizada na entrada dos dois bairros. Ali, existe uma placa de advertência instalada pela prefeitura que indica que a área é sujeita a escorregamentos de encostas e proíbe a construção de qualquer edificação, como mostra a Figura 1.

Figura 1
Placa instalada pela prefeitura na entrada dos dois bairros

As entrevistas foram realizadas nas casas de 12 moradoras com idades entre 19 e 84 anos, conforme a Tabela 1.

Tabela 1
Relação de moradoras entrevistadas nos bairros Buquirinha I e II

Como exposto na Tabela 1, sete das participantes dedicavam seu tempo exclusivamente aos cuidados com a casa, duas recebiam rendimentos de aposentadoria e as demais dedicavam-se ao serviço doméstico e/ou realizavam pequenos serviços para renda adicional. A média de renda das moradoras era de um salário mínimo. Três moradoras completaram o ensino médio e uma foi alfabetizada em casa. Apenas uma das entrevistadas não tinha filhos.

A pesquisadora principal não conhecia os bairros Buquirinha I e II e, chegando ao local, teve a impressão de que os moradores tinham uma vida bucólica e tranquila. Essa percepção foi mudando à medida que conhecia o bairro e conversava com as moradoras. O isolamento do local trouxe muitas vezes uma sensação de insegurança, apesar dos deslocamentos entre uma casa e outra serem feitos de carro. Durante a realização da pesquisa, não houve contratempos.

Morar em áreas consideradas de risco… para quem?

Os resultados deste estudo apresentam-se em dois tópicos: o primeiro corresponde ao contexto sociocultural das moradoras e o segundo busca explicar o lugar que o risco de escorregamentos de encostas ocupa em suas vidas.

O contexto sociocultural das moradoras

A paisagem dos bairros era composta por casas autoconstruídas e inacabadas em contraste com casas erguidas com mão de obra profissional e bons materiais de construção, evidenciando a desigualdade social presente nesses locais.

A autoconstrução ocorre com a participação de familiares, amigos e vizinhos. No início, os terrenos são ocupados com a criação de um ou dois cômodos e, ao longo dos anos, as construções tornam-se casas de dois pavimentos. Segundo as moradoras, quando sobra dinheiro, elas investem na reforma e ampliação da casa.

O uso de materiais como barro, placas de alumínio, restos de madeira, tijolo cerâmico e de concreto é comum. Devido à variedade de materiais utilizados, as casas tornaram-se mosaicos, representando as fases na vida dessas moradoras, tais como: o nascimento de um filho ou neto, a chegada de um parente distante ou o ganho de dinheiro extra, que possibilita a compra de material de construção adequado.

Nos relatos, as moradoras expõem as conquistas e dificuldades vividas nos dois bairros e ilustram o sentimento de pertencimento e apego às suas construções. O investimento na casa e o desejo de permanecer no local são expressivos: “A gente quer dar uma melhorada nela, reformar ela. Ele quer mais para frente, fazer mais uns dois cômodos né, vai demorar né” (E8)

As moradoras estavam inseridas na camada da população mais desfavorecida, e algumas delas esperavam há quase 20 anos por investimentos do poder público nesses bairros. Apesar da ausência de condições econômicas para compra de imóveis em bairros mais valorizados e com equipamentos públicos adequados ser motivo importante da permanência nesses locais, vale notar que as moradoras preferiam viver na área rural, pois essa oferece a possibilidade de construir casas em terrenos mais amplos.

A convivência com moradores e vizinhos na maior parte do tempo era tranquila; apenas às vezes ocorriam algumas provocações e conflitos. Algumas moradoras gostavam de ir à missa e aproveitavam para participar de atividades como coral e aulas de capoeira. Quando terminavam o serviço doméstico, bordavam, costuravam e assistiam à televisão. Em algumas ruas, a existência de poucas casas levava moradoras ao isolamento e, para aquelas que residiam nas áreas mais movimentadas, esse estado passava a ser uma opção, pois elas preferiam ficar em casa por se intitularem “caseiras” e para evitar conflitos com vizinhos.

O distanciamento físico entre as casas, a presença de chácaras alugadas para fins recreativos somente aos finais de semana - que acabavam aumentando a circulação de pessoas estranhas no bairro - e a ausência de áreas de lazer eram características que dificultavam o relacionamento entre os moradores. Outro aspecto importante é a paisagem rural, que ajudava a mascarar as desigualdades sociais.

O conceito de família ancorada nas atividades domésticas e em redes de ajuda mútua (Fonseca, 2005FONSECA, C. Concepções de família e práticas de intervenção: uma contribuição antropológica. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 14, n. 2, p. 50-59, 2005. DOI: 10.1590/S0104-12902005000200006
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) era evidente na dinâmica familiar dessas moradoras. Para elas, era positivo ter a família sempre próxima, e por isso desejavam que as casas tivessem muitos cômodos para receber familiares em dificuldades. Por outro lado, porém, dividir o mesmo terreno com parentes, segundo as moradoras, facilitaria as interferências na rotina da família, trazendo alguns aborrecimentos.

Nos bairros Buquirinha I e II, o estado legal dos terrenos era conhecido pela maioria das entrevistadas. Segundo elas, eles foram vendidos por um advogado por meio de contrato de compra e venda que comprova a posse. As moradoras justificaram a situação irregular de alguns terrenos do bairro responsabilizando a prefeitura pela falta de fiscalização e regulamentação.

Em relação aos equipamentos públicos de saúde, as moradoras se mostraram satisfeitas com o atendimento oferecido pela UBS. Entretanto, o atendimento hospitalar, especialmente para o agendamento de cirurgias, foi considerado ineficiente. As queixas referiram-se à demora no agendamento de procedimentos cirúrgicos, o que dificulta os tratamentos das enfermidades que, em muitos casos, agravam-se com o decorrer do tempo, gerando frustração e revolta.

Nos bairros, o abastecimento de água era feito via encanamento e, em algumas ruas, por meio de carros-pipa. A água entregue pelo carro-pipa era armazenada em várias caixas d’água instaladas nos terrenos dos moradores. Não existia rede de esgoto nos dois bairros, portanto, utilizava-se a fossa séptica. Destaca-se o acúmulo de lixo em algumas ruas, sobretudo restos de construções, móveis e roupas.

A ausência de pavimento nas ruas incomodava as moradoras. As encostas, muito íngremes, no tempo seco geravam poeira em suspensão, tornando necessário que os habitantes tomassem cuidado ao transitar de carro. A maioria das casas passava boa parte do dia com janelas e portas fechadas por causa do pó originado pela circulação de veículos. Durante os períodos de chuva, o transtorno era provocado pela presença de barro, que impossibilitava o uso de qualquer meio de transporte. Os moradores, incluindo as crianças, subiam as encostas a pé e os idosos evitavam sair de casa.

A negação dos benefícios provindos dos avanços econômicos, culturais e políticos obtidos pela sociedade torna alguns grupos sociais mais vulneráveis que outros ao sofrimento e à morte (Minayo, 1994MINAYO, M. C. S. A violência social sob a perspectiva da saúde pública. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 10, p. 07-18, 1994. Suplemento 1. DOI: 10.1590/S0102-311X1994000500002
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). Desse modo, a violência atingia a vida dessas mulheres de múltiplas formas. A percepção da violência e sua ocorrência apareceram nos relatos das moradoras de quatro maneiras distintas: produzida pelo comércio ilegal de drogas; experiência particular com situações de mortes de familiares por assassinato; violência doméstica; e outras situações de violência associadas à ausência do poder público.

Nos bairros existia uma carência de equipamentos de lazer, o que contribuía para crianças e jovens se exporem a situações arriscadas, como brincar em ruas desertas ou nadar em lagos inapropriados para banho. Essa carência evidencia a ausência do poder público e pode ser exemplificada por meio de um fato que ocorreu alguns meses antes das entrevistas. Uma das moradoras relatou que um adolescente morreu afogado em um lago localizado em terreno particular e, apesar do acontecimento ter causado muita comoção no bairro, foi visto apenas como um infortúnio pelos moradores.

As moradoras viviam nos Bairros Buquirinha I e II, em média, há mais de 20 anos, e antes de chegarem ali moravam em outros bairros da cidade. Elas e seus familiares chegaram de outros estados, como Minas Gerais e Paraná, e vieram para São Paulo em busca de emprego e melhores condições de vida.

Suas trajetórias têm muito em comum com a de outros migrantes que nem sempre conseguem atingir uma condição socioeconômica favorável, pois fatores como baixa escolaridade, ausência de políticas públicas que contemplem o problema da migração e seus desdobramentos, vulnerabilidade à violência, entre outros contribuem para que o migrante permaneça nas mesmas condições com as quais saiu de seu lugar de origem (Pereira; Tuma Filho, 2012PEREIRA, A. G.; TUMA FILHO, F. D. A. O fenômeno migratório brasileiro no contexto capitalista. Informe GEPEC, Toledo, v. 15, n. 3, p. 279-287, 2012. Suplemento 1. DOI: 10.48075/igepec.v15i3.6283
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).

Quando interpeladas se gostariam de mudar de bairro, a resposta era sempre negativa. De acordo com as entrevistadas, não havia outro bairro em São José dos Campos tranquilo e espaçoso em que fosse possível viver cultivando hortas e cuidando de animais. Essa é uma parte da vida que elas temiam perder em caso de realocação para outros bairros.

As entrevistas e observações evidenciaram a vulnerabilidade social e econômica presente no ambiente e na vida dessas mulheres. A naturalização da pobreza, bem como de suas dificuldades, sejam elas familiares, relacionais, educacionais ou de saúde, reforçam que as oportunidades desse grupo social diante de outros estão reduzidas, por maior que seja o esforço exercido para melhorar suas vidas. As melhorias, quando ocorrem, infelizmente não ultrapassam o ponto determinado pelo processo histórico e sociocultural no qual vivem.

O lugar do risco natural: os escorregamentos de encostas

Apesar do mapeamento de risco realizado por peritos geotécnicos a pedido da prefeitura de São José dos Campos e da presença da placa de advertência na entrada dos dois bairros alertando sobre o risco de escorregamentos, as moradoras apresentavam seu próprio ponto de vista sobre o tema. Segundo elas, a presença do risco de escorregamento está somente em alguns terrenos na vizinhança e os vizinhos deveriam ter observado as condições de seus terrenos quando fizeram a compra. Quando se referiam às suas próprias terras, algumas explicavam que o risco foi minimizado por meio de “recursos caseiros”. Elas consideravam que as soluções encontradas por elas e seus familiares eram eficazes para o gerenciamento do risco:

[…] Que nem aqui ó… aqui era assim, ó. Eu que tirei… no enxadão, né? Que era mais prano, né… lá mais alto e aqui é mais baixo. Por exemplo, ali eu tirei, né? Ali é um formigueiro… muito bem feito. Foi muito ferro e tudo, não tem perigo de desabar nada ali, muito bem feito. Ele fez… a moça veio, foi lá, viu tudo… explicou pra ela… ele começou aqui, o formigueiro era ali em cima. (E1)

Embora argumentassem que seus terrenos não apresentavam risco de escorregamento, executavam melhorias para aumentar a segurança e diminuir as incertezas sobre os riscos, feitas com base no conhecimento empírico de amigos e familiares, devido às suas condições econômicas e à confiança depositada no conhecimento apresentado por eles.

As moradoras afirmaram desconhecer o mapeamento das áreas de risco executado pelos peritos. Consideravam que, como moravam ali há muito tempo e nada havia acontecido, não fazia sentido preocupar-se com escorregamentos. Elas questionaram o método de trabalho adotado pela prefeitura municipal, pois, segundo suas opiniões, o poder público criava problemas em vez de trazer soluções. Em suas percepções, é o risco de terem suas casas removidas por estarem em um loteamento irregular que é mais real e presente. Portanto, o medo que predomina é da remoção, e não do escorregamento:

Mas, a gente pensa, a gente comprou na mão de advogado isso daqui, pagou. Como que a gente pode sofrer alguma coisa aqui? Por exemplo, já falaram de tirar a gente daqui. Mas, como que vai fazer isso sendo que a gente pagou e tudo, comprou na mão de advogado e tudo, né? Então a gente acha que não pode acontecer esse tipo de coisa. A gente fica nesse impasse. Não sei como é que fica. (E7)

No entanto, o receio de ocorrência de escorregamento foi exposto por duas entrevistadas, E5 e E12. A entrevistada E5 morava em um terreno que, segundo ela, aos poucos escorregava. A casa já havia perdido mais da metade do quintal nas últimas chuvas (Figura 2). A pesquisadora observou que a água utilizada para lavar roupas também era jogada na encosta, contribuindo para acelerar o processo de escorregamento.

Figura 2
Imagem do quintal da casa da moradora que já perdeu metade do terreno; ao fundo está a casa de um vizinho

Contribuem para a negação do risco, também, o ceticismo em relação ao diagnóstico dado pela prefeitura ao bairro e expresso na placa de advertência, a baixa confiança na capacidade governamental de regularizar os terrenos, a existência de casas de alto padrão na mesma área e, especialmente, a ausência de casos de escorregamento no local. Sobre esse último tópico, a moradora E8 comentou: “Já. Passou, sempre passa na televisão e a gente vê. Eu já ouvi falar, mas não aqui na nossa rua, né”. (E8).

A negação do risco de escorregamento pode ser interpretada também como um duplo ganho: o conforto emocional de pensar que não está colocando a família em risco e a possibilidade de ter um lugar para morar. Devido à incerteza de que o escorregamento se concretize e à impossibilidade de resolver o problema da moradia, a única escolha passa a ser morar com a família nessas áreas.

Pra mim, não tem risco. Eu jamais me colocaria e nem minha família em risco, porque, se for considerar os morrinhos desse risco, então, tem que ir no Rio de Janeiro, em vários lugar, derrubar tudo e reconstruir o Brasil, porque a maioria é assim. (E4)

Apesar disso, os peritos afirmam que, nos locais mapeados e identificados como setor R4, existe alta probabilidade de ocorrência de escorregamento de encosta (Mendes; Valério Filho, 2014MENDES, R. M.; VALÉRIO FILHO, M. (Coord.). Mapeamento das áreas de risco associados a escorregamentos de encostas no município de São José dos Campos - SP. São José dos Campos: Univap, 2014. Disponível em: <Disponível em: http://planodiretor.sjc.sp.gov.br/resources/uploads/Link/Arquivo/2016_AreasRisco.pdf >. Acesso em: 02 jun. 2017.
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). As modificações executadas sem qualquer orientação profissional nos terrenos podem acelerar o processo e aumentar a exposição ao perigo de escorregamento (Mendes et al., 2018MENDES, R. M.; ANDRADE, M. R. M.; TOMASELLA, J. et al. Understanding shallow landslides in Campos do Jordão municipality - Brazil: disentangling the anthropic effects from natural causes in the disaster of 2000. NHESS, Gottingen, v. 18, p. 15-30, 2018. DOI 10.5194/nhess-18-15-2018
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).

No entanto, ficou claro que as moradoras apresentavam uma visão própria sobre os riscos, e suas teorias se sobrepunham às defendidas pelos peritos. Para elas, a crença de que um escorregamento não ocorreria deve-se a diversos motivos e todos poderiam ser bem fundamentados.

A ausência de escorregamentos na realidade dessas mulheres, apesar das advertências dos peritos, promove um distanciamento do risco, contribuindo para que o fator tempo passe a ser fundamental para a permanência dessas famílias nessas áreas. Portanto, o risco não é percebido porque ele não faz parte da vivência dessas moradoras, na medida em que “o sujeito só vai perceber que uma determinada situação local pode representar um risco se tiver informações e referências anteriores sobre a questão” (Nascimento, 2012NASCIMENTO, M. F. F. Percepção de Risco: a visão dos atores sociais da comunidade de Padre Hugo, Bairro de Canabrava, Salvador - Bahia. Revista VeraCidade, Salvador, ano VIII, n. 12, p. 1-16, 2012. Disponível em: <Disponível em: http://www.veracidade.salvador.ba.gov.br/v8/pdf/artigo4.pdf >. Acesso em: 15 out. 2018.
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, p. 5).

Além disso, a valorização do saber perito em detrimento do saber leigo que é visto “como fruto da ignorância ou do descuido da população” (Valencio, 2014VALENCIO, N. F. L. S. Desastres: tecnicismo e sofrimento social. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 19, n. 9, p. 3631-44, 2014. DOI: 10.1590/1413-81232014199.06792014
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, p. 4) gera a exclusão da cultura, dos valores locais e da experiência dos moradores na elaboração de propostas de prevenção e resposta a desastres naturais. É preciso notar, porém, que nenhum tipo de conhecimento consegue dar conta de oferecer todas as respostas às demandas da sociedade. Para Santos (2013SANTOS, B. S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. (Org.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2013. p. 23-72.), o saber científico deve dar espaço e interagir com outras formas de conhecimento construídas ao longo dos anos e pelo convívio das pessoas e comunidades em interação com seu meio. Essas experiências podem apresentar tanto complementariedades quanto contradições, de modo que todos os saberes, científicos ou populares, estão passíveis de apresentar sapiências e ignorâncias.

No caso das moradoras de áreas de risco de escorregamento, um encontro entre saberes poderia ser facilitado por meio do mapeamento da área com a participação de peritos e moradores (Olivato, 2013OLIVATO, D. Análise da participação social no contexto da gestão de riscos ambientais na bacia hidrográfica do rio Indaiá, Ubatuba-SP-Brasil. 2013. 292f. Tese (Doutorado em Geografia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. DOI: 10.11606/T.8.2013.tde-27022014-104304
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), a fim de que os profissionais ouvissem as experiências das moradoras e o conhecimento que elas acumularam durante os anos no relacionamento com o ambiente em que vivem. A construção de uma sabedoria coletiva entre peritos e moradores viabilizaria a produção de conhecimentos que estimulassem mudanças duradouras tanto na forma de perceber o meio ambiente quanto de se comportar em relação a ele. Nesse cenário, estudos sobre a mudança comportamental em nível individual e comunitário gerados por essas parcerias e a investigação quanto à efetividade de projetos relacionados à educação e a prevenção de desastres poderiam ser promovidos.

Contudo, nem sempre ações de prevenção pautadas na conscientização conseguem dar conta da complexidade das mudanças de comportamento e, por isso, as metodologias de intervenção devem considerar as práticas e os valores existentes em diferentes grupos sociais e comunidades, com o objetivo de criar programas que considerem necessidades divergentes. Pesquisas realizadas sobre uso do capacete por motociclistas (Mascarenhas et al., 2016MASCARENHAS, M. D. M.; SOUTO, R. M. C. V.; MALTA, D. C. et al. Características de motociclistas envolvidos em acidentes de transporte atendidos em serviços públicos de urgência e emergência. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 12, p. 3661-3671, 2016. DOI: 10.1590/1413-812320152112.24332016
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), adoção do preservativo nas relações sexuais (Dourado et al., 2015DOURADO, I.; MACCARTHY, S.; REDDY, M. et al. Revisitando o uso do preservativo no Brasil. Revista Brasileira de Epidemiologia, São Paulo, v. 18, p. 63-88, 2015. Suplemento 1. DOI: 10.1590/1809-4503201500050006
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), separação do lixo orgânico do reciclável ou descarte adequado do óleo de cozinha (Marques et al., 2017MARQUES, R.; BELLINI, E. M.; GONZALES, C. E. F. et al. Compostagem como ferramenta de aprendizagem para promover a educação ambiental no ensino de ciências. In: 8º FÓRUM INTERNACIONAL DE RESÍDUOS SÓLIDOS, 8., 2017, Curitiba. Anais… Porto Alegre: Instituto Venturi, 2017. Disponível em: <Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/330093084 >. Acesso em: 10 nov. 2018.
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) e também sobre comportamento protetivo e covid-19 (Peixoto et al., 2020PEIXOTO, S. V.; NASCIMENTO-SOUZA, M. A.; MELO MAMBRINI, J. V. et al. Comportamentos em saúde e adoção de medidas de proteção individual durante a pandemia do novo coronavírus: iniciativa ELSI-COVID-19. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 36, p. 1-14, 2020. Suplemento 3. DOI: 10.1590/0102-311X00195420
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) - temas pertencentes à saúde coletiva e ambiental - demostram o quanto pode ser difícil a adoção de novos comportamentos.

Por outro lado, atribuir responsabilidade a pessoas que não tiveram possibilidade de escolher livremente parece contraproducente. Logo, devem ser sempre privilegiadas as políticas que possibilitam o acesso à moradia, a distribuição uniforme de renda, a geração de empregos, entre outros. Nesse sentido, abordar o risco natural seria apenas uma parte do processo.

Considerações finais

Pelos mais variados motivos - desde o conhecimento dos fenômenos meteorológicos e do território de moradia até fatores socioeconômicos -, ao conhecer os riscos estabelecidos, nem sempre é evitado o contato com situações em que haja exposição ao perigo (Martin, 1997MARTIN, D. Mulheres e Aids: uma abordagem antropológica. Revista USP, São Paulo, n. 33, p. 88-101, 1997. DOI: 10.11606/issn.2316-9036.v0i33p88-101
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). Para as mulheres que participaram da pesquisa, por exemplo, o risco mais expressivo provém da possibilidade de perderem suas casas e, em seu contexto sociocultural, a principal preocupação é a remoção dos moradores e a demolição de seus imóveis.

Estudos sobre o morar em áreas de risco, bem como acerca da percepção cultural do risco na relação sociedade e ambiente, devem considerar que indivíduos inseridos em diversos contextos sociais e com diferentes experiências de vida podem interpretar os riscos de maneiras variadas, inclusive negando-os. Apesar disso, ignorar um risco não faz com que ele deixe de existir.

Nesse sentido, se o desconhecimento do risco não leva à adoção de comportamentos mais seguros, tampouco o conhecimento poderá fazê-lo sem que se considere o desafio de formular políticas públicas que levem em conta as práticas culturais das populações expostas aos riscos naturais. É oportuno, também, ter em mente as diferenças de gênero, de faixa etária e de contexto sociocultural no qual vivem as pessoas expostas aos riscos de escorregamentos.

Ao buscar entender o que as moradoras dos bairros Buquirinha I e II definem como risco, assim como o conhecimento delas sobre seu território, este estudo poderá contribuir para a criação de ações e políticas públicas mais eficazes voltadas ao gerenciamento de riscos e desastres naturais e, consequentemente, para a redução da exposição dos grupos sociais mais vulneráveis ao risco natural.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    27 Jan 2022
  • Aceito
    15 Mar 2022
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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