Resumo
Este artigo analisa a divulgação das profilaxias pré (PrEP) e pós-exposição (PEP) ao HIV, considerando o papel histórico das campanhas de prevenção à aids. São utilizadas 24 peças de comunicação sobre PrEP, PEP e PC (Prevenção Combinada), produzidas entre 2016 e 2019 e publicadas no site e mídias sociais do Ministério da Saúde, e o depoimento de 30 usuários(as) das profilaxias - que incluem gays, mulheres trans/travestis e profissionais do sexo - na região metropolitana do Rio de Janeiro. As peças foram classificadas quanto ao tipo, ano, público e informação de acesso, e os resultados foram interpretados a partir de três eixos: sexualidade e risco; gênero, emoções e moralidades; deslocamentos do preservativo. A análise indicou o apagamento das expressões de sexualidade e o predomínio de uma linguagem abstrata e esquemática, pressupondo um público racional e individualista, com o preservativo associado à ideia de “risco sexual”. Os relatos dos(as) usuários(as) quanto à divulgação de informações sobre essas profilaxias evidenciaram sua insuficiência. Concluímos que ocorre uma baixa exploração do potencial das campanhas de comunicação, orientadas pela realidade sociocultural dos segmentos sociais, comprometendo o acesso às profilaxias. Assim, a biomedicalização da prevenção e o avanço do conservadorismo prejudicam a resposta brasileira à aids.
Palavras-chave:
HIV; Prevenção; Comunicação; Risco; Sexualidade
Introdução
Na trajetória das políticas públicas de enfrentamento do HIV/aids, é histórica a produção de campanhas voltadas para divulgação de informação e comunicação sobre diagnóstico, prevenção e tratamento da doença, entre diversos grupos populacionais. Tais estratégias assumem formatos heterogêneos - como folhetos, vídeos, cartazes, cards, entre outros - e resultam das diretrizes do contexto programático. A análise do conteúdo, dos fundamentos educacionais e do processo de produção, circulação e recepção dessas estratégias, doravante denominadas de peças de comunicação, permite problematizar o alcance de seus propósitos e as moralidades envolvidas (Monteiro; Vargas, 2006MONTEIRO, S; VARGAS, E. (Org.). Educação, comunicação e tecnologia educacional: interfaces com o campo da saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006.). Essa perspectiva se origina da crítica ao modelo informacional de comunicação e da literatura sobre a valorização dos elementos subjetivos, políticos, culturais e institucionais da comunicação (Martín-Barbero, 2003MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003.).
A partir dessa perspectiva e dos simbolismos das estratégias históricas de comunicação da aids, este trabalho analisa peças de comunicação acerca das novas tecnologias de prevenção pré e pós-exposição ao HIV, conhecidas pelo acrônimo PrEP e PEP, produzidas pelo Ministério da Saúde na última década. Além de caracterizar o tipo, ano, público, diretriz programática e informação de acesso, examinamos os conteúdos relativos à sexualidade e risco; gênero, emoções e moralidades; e uso do preservativo, bem como os depoimentos de usuários(as) da PEP e/ou da PrEP - homens gays, travestis/mulheres trans e trabalhadoras sexuais - sobre as fontes de conhecimento das profilaxias.
Convém destacar que as atuais estratégias globais e nacional de prevenção do HIV/aids têm sido caracterizadas pela ampliação e rotinização da testagem, em paralelo à dispensa do aconselhamento (Mora et al., 2014MORA, C. et al. Ampliación de las estrategias de consejería y prueba del VIH: desafíos técnicos y tensiones ético-políticas. Salud Colectiva, Buenos Aires, v. 10, n. 2, p. 253-264, 2014.). As evidências acerca dos efeitos do tratamento antirretroviral (ARV) na diminuição da carga viral e redução da transmissão do HIV, somada aos usos do ARV na prevenção da infecção, alavancaram mudanças no paradigma preventivo. Nesse cenário, ganharam destaque a PrEP, a PEP e a estratégia do Tratamento como Prevenção (TcP), caracterizado pelo estímulo ao diagnóstico precoce, seguido da terapia medicamentosa para os casos positivos. A despeito dos seus importantes benefícios, estudos sinalizam que a oferta de TcP, PrEP e PEP não tem sido acompanhada de intervenções comportamentais e estruturais, como o combate à homofobia e a garantia dos direitos sexuais e reprodutivos (Aggleton; Parker, 2015AGGLETON, P.; PARKER, R. Moving beyond biomedicalization in the HIV response: implications for community involvement and community leadership among men who have sex with men and transgender people. American Journal of Public Health, Washington, DC, v. 105, n. 8, p. 1552-1558, 2015. DOI: 10.2105/ajph.2015.302614
https://doi.org/10.2105/ajph.2015.302614... ; Monteiro et al., 2019MONTEIRO, S. et al. Challenges facing HIV treatment as prevention in Brazil: an analysis drawing on literature on testing. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 24, n. 5, p. 1796-1807, 2019. DOI: 10.1590/1413-81232018245.16512017
https://doi.org/10.1590/1413-81232018245... ). Segundo essa perspectiva, prevalecem no atual marco de enfrentamento da epidemia processos de biomedicalização, definidos pelos efeitos do avanço da biomedicina. Nesse contexto, o aprimoramento do corpo a partir das biotecnologias e a intensificação das práticas para atenção aos riscos se tornam preponderantes nos discursos sobre a saúde e cotidiano dos sujeitos (Clarke et al., 2003CLARKE, A. E. et al. Biomedicalization: technoscientific transformations of health, illness and U.S. biomedicine. American Sociological Review, Thousand Oaks, v. 68, n. 2, p. 161-194, 2003. DOI: 10.2307/1519765
https://doi.org/10.2307/1519765... ).
No Brasil, a introdução da PEP sexual e da PrEP integram as estratégias preconizadas pela Prevenção Combinada (PC) enquanto abordagem preventiva oficial (Brasil, 2017aBRASIL. Prevenção combinada do HIV: bases conceituais para profissionais, trabalhadores(as) e gestores(as) de saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2017a.). A PEP, disponível há mais de uma década no Sistema Único de Saúde - SUS (Brasil, 2010BRASIL. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para profilaxia pós-exposição (PEP) de risco à infecção pelo HIV, IST e hepatites virais. Brasília, DF: Ministério da Saúde , 2010.), consiste no uso de ARVs por 28 dias, com início em até 72 horas após exposição ao HIV (como em caso de rompimento ou não uso do preservativo), sendo dirigida para qualquer pessoa exposta ao vírus. A PrEP é mais recente, começando a ser ofertada no SUS no final de 2017 (Brasil, 2017bBRASIL. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para profilaxia pré-exposição (PrEP) de risco à infecção pelo HIV. Brasília, DF: Ministério da Saúde , 2017b.). Seu uso implica no consumo continuado de ARVs antes da exposição sexual ao vírus, tendo como foco casais sorodiferentes e populações com maior vulnerabilidade ao HIV (gays/homens que fazem sexo com homens - HSH, mulheres trans e profissionais do sexo). A oferta de TcP, PrEP e PEP no SUS tem resultado na reconfiguração das ações preventivas no âmbito programático, caracterizadas pelo predomínio de uma perspectiva clínica. Tal enfoque se contrapõe às abordagens até então dominantes, centradas no uso do preservativo, na testagem atrelada ao aconselhamento, na redução das condições de vulnerabilidade social ao HIV e nas estratégias de informação e comunicação em saúde.
Nessa direção, uma revisão da literatura entre 2000 e 2018 atesta declínio do protagonismo da comunicação no âmbito da resposta à epidemia. Os 15 estudos identificados abordavam aconselhamento, teste e cuidado de Pessoas Vivendo com HIV/Aids (PVHA), não sendo encontradas análises da PC (Barcelos; Aguiar, 2019BARCELOS, P. E. L.; AGUIAR, A. C. A comunicação sobre HIV nas práticas de saúde no Sistema Único de Saúde (SUS) Brasil. Revista española de comunicación en salud, Madrid, supl. 2, p. 100-111, 2019. DOI: 10.20318/recs.2019.4473
https://doi.org/10.20318/recs.2019.4473... ). Outra pesquisa sobre aspectos sociais e programáticos da prevenção do HIV aponta para a carência da produção e circulação local de materiais informativos sobre a PC, para a população geral e grupos mais vulneráveis ao HIV. Argumenta-se que a menor atenção às estratégias educativas resulta, em parte, da falta de visibilidade da epidemia na agenda pública e das respostas centradas em tecnologias biomédicas (Monteiro; Brigeiro, 2019MONTEIRO, S; BRIGEIRO, M. Prevenção do HIV/Aids em municípios da Baixada Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil: hiatos entre a política global atual e as respostas locais. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 23, e180410, 2019. DOI: 10.1590/Interface.180410
https://doi.org/10.1590/Interface.180410... ).
A despeito da ênfase na oferta das novas profilaxias, estudos apontam para a falta de estratégias de divulgação da PEP. Ademais, há significativos obstáculos para seu acesso, devido às representações estigmatizantes quanto à “falha” no uso do preservativo ou a práticas tidas como “desviantes” dos usuários (como prostituição e infidelidade) sob o ponto de vista dos profissionais da saúde (Ferraz et al., 2019FERRAZ, D. et al. Aids- and sexuality-related stigmas underlying the use of post-exposure prophylaxis for HIV in Brazil: findings from a multicentric study. Sexual and Reproductive Health Matters, Abingdon, v. 27, n. 3, p. 107-121, 2019. DOI: 10.1080/26410397.2019.1650587
https://doi.org/10.1080/26410397.2019.16... ). Um desafio correlato às lacunas na divulgação das novas profilaxias se refere a evidências de que a demanda por PrEP se concentra entre homens gays e bissexuais com alta/média renda e escolaridade (Magno et al., 2019MAGNO, L. et al. Knowledge and willingness to use pre-exposure prophylaxis among men who have sex with men in Northeastern Brazil. Global Public Health, Abingdon, v. 14, n. 8, p. 1098-1111, 2019. DOI: 10.1080/17441692.2019.1571090
https://doi.org/10.1080/17441692.2019.15... ), com reduzida demanda de populações igualmente vulneráveis ao HIV, como mulheres trans, trabalhadoras sexuais e gays/HSH de baixo poder aquisitivo.
Desse modo, esta análise buscou interpretar os significados dos conteúdos das peças de comunicação governamentais sobre PrEP e PEP e caracterizar suas formas de circulação entre homens gays, travestis/mulheres trans e trabalhadoras sexuais. A análise foi organizada em quatro eixos: contextualização das peças de comunicação e da experiência dos interlocutores com as informações; sexualidade e risco; gênero, emoções e moralidades; e deslocamentos do preservativo.
Metodologia
Trata-se de uma investigação de caráter qualitativo, fundamentada nas contribuições de pesquisas da área das ciências sociais na compreensão do significado cultural dos processos de saúde e doença (Castro, 2011CASTRO, R. Teoría social y salud. Buenos Aires: Lugar Editorial; Unam, 2011.). O estudo integra um projeto maior que abordou a implementação da PrEP e da PEP na região metropolitana do Rio de Janeiro, focalizando as condições de acesso e as moralidades de gênero, sexuais e de classe implicadas nessa proposição. Por meio de observações de campo e entrevistas, o projeto analisou as experiências de usuários de PEP e PrEP gays/HSH, mulheres trans/travestis e trabalhadoras sexuais, assim como as visões de gestores, profissionais de saúde e lideranças comunitárias envolvidos na implementação dessas tecnologias. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição e seguiu os procedimentos éticos previstos.
Os procedimentos metodológicos deste trabalho resultaram de três etapas complementares. A primeira envolveu coleta de materiais (impressos e digitais) de divulgação da PrEP, PEP e da PC (neste último caso, apenas as peças que faziam referência às profilaxias). Além da procura no site e nas redes sociais (Facebook e Instagram) do Ministério da Saúde (MS), foram feitas consultas aos gestores do âmbito municipal e estadual do Rio de Janeiro, profissionais de serviços de PrEP e PEP de cinco municípios (Rio de Janeiro, Niterói, São Gonçalo, Duque de Caxias e Nova Iguaçu) e representantes da sociedade civil, que atuaram como informantes do projeto maior, ao longo de 2019. Foram coletadas 44 peças, das quais 24 foram produzidas pelo MS. A pesquisa das peças de comunicação abarcou o período de 2010 a 2020, levando em consideração o marco inicial da implementação da PEP sexual (Brasil, 2010BRASIL. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para profilaxia pós-exposição (PEP) de risco à infecção pelo HIV, IST e hepatites virais. Brasília, DF: Ministério da Saúde , 2010.) e da PrEP (Brasil, 2017bBRASIL. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para profilaxia pré-exposição (PrEP) de risco à infecção pelo HIV. Brasília, DF: Ministério da Saúde , 2017b.) no Brasil enquanto política pública. A despeito do marco temporal de implementação oficial dessas estratégias (2010 e 2017), apenas foram identificadas peças publicadas entre 2016 e 2019. A análise privilegiou as peças produzidas pelo MS, frente ao seu papel histórico na produção e difusão das campanhas prevenção do HIV/aids. Tal recorte se justifica pelo protagonismo do MS, enquanto instituição de Estado, nas mudanças na abordagem preventiva oficial no país. Outras análises, em andamento, focalizam as peças de comunicação e os atores da implementação das profilaxias em nível local.
Na segunda etapa, com base nos princípios da “análise de conteúdo clássica” de textos e imagens (Bauer; Gaskell, 2002BAUER, M. W.; GASKELL, G. (Org.). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes, 2002.), as 24 peças de comunicação produzidas pelo MS foram classificadas quanto ao tipo (fôlder, card, cartaz); tema central (PrEP, PEP, PC); público-alvo; diretriz programática vigente; e informações de acesso aos serviços, como indicado no Quadro 1. O material empírico foi classificado e codificado segundo aspectos semânticos e contextuais visando identificar padrões, comparações e eixos de análise (formas de representação de sujeitos, conhecimentos etc.). Assim sendo, o exame preliminar do material, por parte dos dois primeiros autores, resultou na identificação dos seguintes eixos temáticos: sexualidade e risco; gênero, emoções e moralidades; deslocamentos do preservativo. Uma vez identificados esses eixos, todos os autores delimitaram os aspectos mais significativos de cada material.
A terceira etapa se refere à análise do depoimento de 30 usuários(as) de PEP e/ou PrEP, contando com 10 homens gays, 11 travestis/mulheres trans e nove trabalhadoras sexuais (todas mulheres cisgênero). O perfil dos(as) depoentes se encontra descrito no Quadro 2. As entrevistas, realizadas em 2019 no âmbito do projeto maior, trataram do perfil social, cotidiano, sociabilidade, discriminação, conhecimento, acesso e uso da PrEP e PEP, experiências com serviços de saúde, especialmente com relação às práticas sexuais, gestão do risco e prevenção do HIV. Privilegiamos aqui apenas as respostas relativas às fontes de conhecimento das profilaxias e à rememoração de campanhas recentes de prevenção, com vistas a ilustrar a circulação das informações.
Resultados e Discussão
Contextualização e divulgação das peças de comunicação
Dentre as 24 peças de comunicação - doravante referidas como M seguido de numeração, como no Quadro 1 -, houve predomínio do tipo card (20), seguido de foto (2) e fôlder (2), e foram produzidas durante um período de mudanças governamentais, envolvendo os governos Dilma Rousseff (2016), Michel Temer (2017 e 2018) e Jair Bolsonaro (2019). Esse contexto, marcado pela instabilidade nas instituições e avanço de forças conservadoras, se reflete na progressiva erosão da política federal de prevenção ao HIV no Brasil, com episódios de censura e falta de investimentos nesse tipo de campanha (Seffner; Parker, 2016SEFFNER, F.; PARKER, R. A neoliberalização da prevenção do HIV e a resposta brasileira à aids. In: BASTHI, A.; PARKER, R.; TERTO JR., V. (Coord.). Mito vs realidade: sobre a resposta brasileira à epidemia de HIV e aids em 2016. Rio de Janeiro: Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids, 2016. p. 22-30.) e educação sexual nas escolas, sob o prisma dos direitos sexuais e reprodutivos (Paiva; Antunes; Sanchez, 2020PAIVA, V.; ANTUNES, M. C.; SANCHEZ, M. N. O direito à prevenção da aids em tempos de retrocesso: religiosidade e sexualidade na escola. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 24, e180625, 2020. DOI: 10.1590/Interface.180625
https://doi.org/10.1590/Interface.180625... ). Também foram observados efeitos programáticos e simbólicos decorrentes da mudança de nome do antigo Departamento de IST/Aids e Hepatites Virais que, em 2019, passou a se chamar Departamento de Doenças de Condições Crônicas e IST. Ao longo desse período, não foram identificadas mudanças explícitas nas diretrizes da PC, mas a distribuição das peças segundo o ano de produção sugere variações: 2016 (duas peças), 2017 (sete peças), 2018 (13 peças) e 2019 (duas peças).
Grande parte das 24 peças analisadas informa acerca das novas tecnologias de prevenção e algumas reforçam o caráter combinado das profilaxias. Foram identificadas 10 peças exclusivas sobre PEP e sete sobre PrEP; duas focalizam ambas sem apelar à PC e cinco publicizam as duas profilaxias sob o escopo da PC. Embora no discurso de implementação das políticas prevaleça a ideia de imbricação entre as tecnologias, na divulgação elas aparecem como realidades paralelas (como observado na Figura 1). O direcionamento às populações mais vulneráveis ao HIV e suas formas de representação são diversificadas. Algumas peças sobre PrEP fazem um apelo à população LGBT por meio do uso discreto das cores do arco-íris. Outras enunciam o público nominalmente: “gays, HSM, travestis, transexuais, profissionais do sexo, casais sorodiferentes”. No caso da PEP, boa parte menciona genericamente indivíduos “expostos ao risco de infecção pelo HIV”.
Aproximadamente metade das peças foi confeccionada em função de datas comemorativas (Carnaval e Dia Mundial de Combate à Aids, em 1o de dezembro). Várias integram a campanha da PC, intitulada “Vamos combinar?”, no marco de 1o de dezembro (card M5 e foto M6) enquanto outra parte se circunscreve à divulgação de informações para potenciais usuários, profissionais de saúde e gestores. Cores, figuras e tamanhos de letras são fundamentais nas enunciações discursivas dos materiais. Nessa direção, o uso de imagens de frascos de medicamentos (M11, M23, M24) e de comprimidos (M3) ilustra o protagonismo dos fármacos na prevenção do HIV.
Quanto ao acesso à PEP e PrEP, prevalece a indicação de busca por serviços de saúde no site oficial do Programa ou nas principais mídias digitais do MS. Não são mencionados equipamentos específicos, como os Centros de Testagem e Aconselhamento (CTA) ou os Serviços de Atenção Especializada (SAE), historicamente responsáveis pela divulgação de informações e oferta de testagem e preservativos (Grangeiro et al., 2009GRANGEIRO, A. et al. Voluntary counseling and testing (VCT) services and their contribution to access to HIV diagnosis in Brazil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 25, n. 9, p. 2053-2063, 2009. DOI: 10.1590/S0102-311X2009000900019
https://doi.org/10.1590/S0102-311X200900... ). Algumas peças sugerem que o público procure um “serviço de saúde” ou “profissional da saúde” para saber mais sobre as profilaxias. Tais formas de acesso parecem refletir uma “normalização” das novas estratégias de prevenção nos distintos níveis assistenciais.
Nesse sentido, Lermen et al. (2020LERMEN, H. S. et al. Aids em cartazes: representações sobre sexualidade e prevenção da aids nas campanhas de 1º de dezembro no Brasil (2013-2017). Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 24, e180626, 2020. DOI: 10.1590/Interface.180626
https://doi.org/10.1590/Interface.180626... ) afirmam que as informações veiculadas nos cartazes de campanhas do MS para o Dia Mundial de Luta contra a Aids (2013-2017) podem ser interpretadas apenas por um público “iniciado” na PC. Isso significa integrar um grupo com acesso privilegiado a informações sobre prevenção ao HIV, capaz de compreender os significados das próprias siglas PEP e PrEP. Convergindo com essa observação, identificamos que a maioria dos usuários gays e algumas mulheres trans/travestis entrevistados parecem dominar o que podemos entender como uma “gramática biomedicalizada da prevenção ao HIV”. Seus depoimentos sugerem que as informações acerca das novas tecnologias circularam majoritariamente entre a rede de amigos, por meio da internet (sem detalhar fontes específicas) e eventualmente por leitura de revistas de grande alcance.
Entre as mulheres trans e travestis, o conhecimento da PrEP também se deu a partir da inserção em estudos de instituições de pesquisa. A chegada nessas instituições resultou da indicação da rede de amigas, que recebiam estímulos para recrutar conhecidas para estudos clínicos ou que recomendavam a instituição em função de suas experiências positivas. As trabalhadoras sexuais eram as mais ausentes dos serviços de PrEP e com menor conhecimento das profilaxias. Vários(as) entrevistados(as) afirmaram ainda que a busca pela PrEP decorreu da indicação de profissionais dos serviços de PEP, particularmente para aqueles(as) com exposição regular ao HIV e uso frequente da PEP.
Sexualidade e risco nos modos de enunciação das profilaxias
Ao tomarmos a linguagem comunicacional como uma espécie de dispositivo de enunciação, indagamos em que medida as práticas e discursos buscam o controle, classificação e gestão dos indivíduos (Foucault, 2014FOUCAULT, M. A vontade de saber. 9. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014. (História da sexualidade, v. 1).). Com base nesse olhar e no caráter construtivo do mundo social, entendemos que os materiais não estão isentos de escolhas racionais e de moralidades. Por exemplo, nos materiais sobre PEP a menção ao sexo vem acompanhada dos termos “risco” ou “exposição”. O único material que traz à tona as práticas sexuais é o card M3 (Figura 2): “A PrEP está disponível no SUS”. A mensagem escrita e esquematizada correlaciona o efeito do medicamento com o tipo de prática sexual: “7 dias de uso para relação anal; e 20 dias para relação vaginal”.
Estudos sobre as motivações para a procura das profilaxias indicam que a percepção de risco é fundamental (Hoagland et al., 2017HOAGLAND, B. et al. Awareness and willingness to use pre-exposure prophylaxis (PrEP) among men who have sex with men and transgender women in Brazil. Aids and Behavior, New York, v. 21, n. 5, p. 1278-1287, 2017. DOI: 10.1007/s10461-016-1516-5
https://doi.org/10.1007/s10461-016-1516-... ). Entretanto, as peças analisadas pouco exploram essa dimensão, exceto algumas sobre PEP que explicitam práticas com potencial risco de transmissão do HIV: “sexo sem camisinha”, “sexo desprotegido”, “violência sexual”. Outras situações de risco, como menor proteção nas relações estáveis ou dificuldade de negociar o uso do preservativo, não foram identificadas.
A linguagem da prevenção parece ser direcionada a corpos assexuados ou infantilizados, como o card M22, que exibe um desenho infantil de uma figura humana esboçando um leve sorriso. A imagem vem acompanhada de uma mensagem descontextualizada sobre a procura oportuna pela PEP, com uma frase imperativa: “Se você se expôs ao risco de contrair o HIV, seja como o Pedro”.
A maioria das 24 peças utiliza uma linguagem abstrata e esquemática sobre as necessidades preventivas de cada profilaxia, como ilustra o card M10: “Diferenças entre PEP e PrEP”. O card apresenta o vírus da aids no meio de duas figuras robotizadas, que remetem a personagens de games e enunciam a comparação: “PrEP: É um estilo de vida. Indicada para quem não tem HIV, mas está mais exposto ao vírus (pessoas trans e travestis, gays e outros HSH, profissionais do sexo e parcerias sorodiferentes”. “PEP é uma urgência. Indicada para quem pode ter sido exposto ao HIV em situações como sexo desprotegido, violência sexual e acidente de trabalho”. Outro aspecto notado foi a identificação de peças sobre PEP sexual somente a partir de 2016, apesar de essa profilaxia ter sido implementada em 2010, sugerindo que sua divulgação pelas redes sociais governamentais apenas ganhou força ao integrar as diretrizes da PC, adotada no país em 2016.
Como assinalado, parte dos(as) usuários(as) entrevistados(as) soube da existência da PrEP a partir dos profissionais dos serviços de PEP. Adicionalmente, gays e mulheres trans relataram a necessidade de comunicar a amigos e parceiros sexuais acerca da PreP, tendo em vista as vantagens do seu uso e a percepção da escassez na divulgação:
A questão da informação é fundamental, eu acho que boa parte da população não tem acesso e isso também contribui pro preconceito, pro estigma com relação com HIV. Inclusive eu acho que, com esse momento conservador, isso vai ficar cada vez mais difícil, da gente ter políticas públicas de livre acesso, mas isso não quer dizer que não vá ser falado nos nossos micro-espaços né? (Samuel, gay, 34)
Não tinha ouvido falar sobre nada disso, depois que eu fui tomando conhecimento e é muito bom. Por isso que eu divulgo. Se é pro povo se cuidar, vamos que vamos! Por mim, a PrEP já tavaaí distribuída pra Deus e o mundo. (Jaqueline, transexual, 26)
Tal situação foi registrada por Frankis et al. (2016FRANKIS, J. et al. Who will use pre-exposure prophylaxis and why? Understanding PrEP awareness and acceptability amongst men who have sex with men in the UK - a mixed methods study. Plos One, San Francisco, v. 11, n. 4, e0151385, 2016. DOI: 10.1371/journal.pone.0151385
https://doi.org/10.1371/journal.pone.015... ), indicando que o uso de medicamentos para prevenção do HIV entre homens gays produz efeitos e relações não previstas nos regimes prescritivos das profilaxias, e que as relações de sociabilidade e práticas sexuais estão associadas ao uso da PrEP.
A sobreposição de representações estigmatizantes derivadas do foco da PreP em pessoas com práticas tidas como “desviantes” e sua divulgação discreta regulam sua abordagem em interações comerciais e afetivas, como relatado por três prostitutas em entrevista grupal:
Carla: O que acontece? Vou tomar o comprimido, vamos dizer, aí você é minha amiga e eu tô tomando na faculdade, aí “ué D. que comprimido é esse?”, a pessoa é bicho curioso, vai jogar na internet pra saber o que é, de repente a pessoa pode até não me perguntar “tá tomando remédio de prevenção ao HIV por que?”
Sandra: Eu entendo a preocupação dela porque devido à falta de divulgação, só quem sabe é o público gay, público que trabalha com sexo…
Bruna: As pessoas não sabem diferenciar entre prevenir e estar cuidando, estar tratando, entendeu? Então eles vão achar que tá fazendo tratamento porque tá tomando o remédio […] Da última vez que eu conversei sobre a PrEP com o meu peguete (antigo cliente), eu até mostrei na internet, já que eu não tinha folheto informativo… até porque também tem clientes que se interessam pelo nosso bem-estar, então ele mesmo virou e falou “poxa, você tomou a atitude certa, você ta se prevenindo, até mesmo contra mim, de uma certa forma né?”, porque a gente não vê né. Ele até se interessou, perguntou se ele poderia ir.
Carla: O meu fala “me leva amor”, como é que eu vou levar o homem ali? Vai ver um monte de viado… enfim.
Gênero, emoções e moralidades
As poucas imagens de sujeitos reais representam mulheres cisgênero, como os cards M23 e M24, produzidos em 2018. A mensagem destaca que a prevenção depende de escolha e decisão individual frente às novas tecnologias como indica a frase: “A vida é sua. As escolhas também. Cada mulher com sua forma de prevenção”. As imagens retratam mulheres jovens adultas sorridentes, brancas e modernas, segurando a caixa do medicamento da PrEP ou da PEP. Embora as imagens venham acompanhadas de uma breve explicação acerca da eficácia de cada tecnologia medicamentosa, incluindo as “populações sob maior risco”, as mensagens não abordam o contexto de uso das profilaxias no universo feminino. Como relatado acima, existe a percepção de que as profilaxias são voltadas essencialmente para homens com práticas homoafetivas. Os relatos a seguir são ilustrativos:
A PrEP deveria ser levada até as mulheres casadas, porque quantas sabem da promiscuidade do marido […] também acho que falta uma campanha direcionada pra profissionais do sexo, inclusive pra elas saberem que a PrEP existe. E quando ficam sabendo não são atraídas. Várias vem de uma situação muito precária, de baixa escolaridade etc., e não entende. Mas se fizer algo visado, com uma forma de didática mais perto das profissionais, com certeza seria super aceito. (Ester, prostituta, 28)
Poderia colocar um pessoal nas boates né? Onde se aglomera todo mundo ou de repente de criarem uma página no Instagram, porque tem grupos enormes no Facebook etc., que tem uma concentração grande de pessoas trans, gays. Seria uma maneira de colocar todo mundo dentro e proteger todo mundo. (Thaisa, transexual, 28)
Estudos apontam que as profissionais do sexo não foram incluídas nos ensaios clínicos de PrEP e que elas enfrentam mais barreiras de acesso às profilaxias (Murray; Brigeiro; Monteiro, 2021MURRAY, L. R.; BRIGEIRO, M.; MONTEIRO, S. A retreat from human rights? A reflection on the place of sex workers in contemporary HIV prevention. Global Public Health , Abingdon, 2021. No prelo. DOI: 10.1080/17441692.2021.1896762
https://doi.org/10.1080/17441692.2021.18... ). O marketing da PrEP, por sua vez, não é inclusivo para as pessoas transsexuais e não aborda a assistência para o uso de hormônios (Sevelius et al., 2016SEVELIUS, J. M. et al. “I am not a man”: trans-specific barriers and facilitators to PrEP acceptability among transgender women. Global Public Health , Abingdon, v. 11, n. 7-8, p. 1060-1075, 2016. DOI: 10.1080/17441692.2016.1154085
https://doi.org/10.1080/17441692.2016.11... ). Essas constatações sugerem uma hierarquização entre as “populações chave”, que perpassa os distintos momentos da formulação das profilaxias.
Um terceiro material evoca a imagem feminina, uma mulher jovem de olhos fechados, cabeça baixa e com as mãos no rosto (card M21 - “Dicas para enfrentar a ressaca”). Com foco na embriaguez e na possibilidade do esquecimento do uso do preservativo, a peça indica o consumo de líquido e uso da PEP. As políticas emocionais do medo, temor e nojo retratados nesse material produzem representações acerca de supostas normas e desvios. Nesse caso, juventude, gênero e sexualidade se articulam, materializando o sexo como bom ou ruim, saudável ou adoecido, limpo ou enojado. Esses polos guardam relação com as imagens que expressam alegria pelo uso do medicamento e vergonha ou medo pelo não uso do preservativo; ambos em um cenário de escolha individual.
De modo geral, o conteúdo dos materiais apresenta a definição e formas de consumo das profilaxias, sendo recorrente o uso de texto e imagem no formato de fluxograma (presentes em M3, M7, M12, M15, M18). Por vezes, uma mesma composição de texto e imagem é acrescida de pontos coloridos, representando confetes para divulgação no Carnaval. Tais imagens parecem recriar a lógica do “imperativo das escolhas”, que permeia as diretrizes da PrEP, pressupondo um sujeito ideal alinhado à visão racionalista e individualista da prevenção (Oscar, 2019OSCAR, R. C. Pílulas diárias anti-HIV: a construção de uma narrativa antropológica sobre a profilaxia de pré-exposição à aids (PrEP). 2019. 186 f. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.). Os esquemas retratados insistem na importância da disciplina com os regimes temporais de uso dos ARVs, tendo em vista o sucesso terapêutico e a relação com os profissionais da saúde. Todavia, as rotinas de aconselhamento, consultas e testagens não emergem nas peças analisadas. O apelo aos direitos humanos e o enfrentamento do estigma ficam em segundo plano. Apenas a peça M1 se refere à prevenção como direito.
A ênfase em determinadas expressões de gênero e geração (feminina e juvenil) contrasta com a ausência de imagens relativas a gramáticas corporais masculinas ou associadas à diversidade sexual e de gênero. Outros estudos sobre materiais produzidos pelo MS evidenciam a redução do uso de imagens evocando diversos corpos e interações sociais. Para Cadaxa, Sousa e Mendonça (2015CADAXA, A. G.; SOUSA, M. F.; MENDONÇA, A. V. M. Conteúdos promotores de saúde em campanhas de aids no Facebook dos ministérios da saúde do Brasil e do Peru. Revista Panamericana de Salud Pública, Washington, DC, v. 38, n. 6, p. 457-463, 2015.), as mensagens e vídeos publicados no Facebook do MS em 1º de dezembro de 2013 apresentam traços difusos sobre marcadores sociais, como identidade sexual, escolaridade e gênero, enquanto a ênfase nos riscos individuais aparece mais nítida. Lermen et al. (2020LERMEN, H. S. et al. Aids em cartazes: representações sobre sexualidade e prevenção da aids nas campanhas de 1º de dezembro no Brasil (2013-2017). Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 24, e180626, 2020. DOI: 10.1590/Interface.180626
https://doi.org/10.1590/Interface.180626... ), cujo material empírico se situa no auge da incorporação da PC, igualmente sinalizam que, apesar da diversidade no público retratado (travestis, jovens, gestantes), as mensagens frisam a autovigilância por meio da testagem regular.
Deslocamentos do preservativo
No exame das mudanças na lógica da prevenção, os deslocamentos do preservativo ganham destaque. O protagonismo histórico da camisinha como principal método de prevenção, ao longo das décadas iniciais da epidemia, é tributário de iniciativas de comunicação, que ora mobilizavam um tom imperativo, ora convidavam sua erotização e insistiam no valor do cuidado mútuo. Boa parte dos entrevistados lembraram de campanhas de prevenção no Carnaval e outros eventos, mas não evocaram nenhuma das peças contempladas no estudo. Alguns expressaram expectativas, aprendizados e críticas: “Lembro do bordão genérico do “use camisinha”, Pabllo Vittar mordendo uma camisinha roxa e amarela, aquela camisinha clássica do SUS né, no carnaval isso fica mais evidente, mas fora do carnaval isso dá uma sumida” (Mauricio, gay, 32). “Tirando o ImPrEP, na Parada LGBT de Niterói e de Copacabana, a qual eu frequentei, não me lembro de outras campanhas” (Fabíola, transexual, 25).
A referência ao preservativo, por texto ou imagem, é recorrente nos materiais, mas ganha sentidos distintos segundo o tipo de profilaxia. No caso da PrEP, seu uso se associa à necessidade de proteção das demais ISTs, como ilustra a mensagem, em tom imperativo e emoldurada pela silhueta da camisinha masculina, do card M9: “Tomando a PrEP eu estou protegido de todas as IST? Não. A PrEP previne somente do HIV, mas não protege de outras IST, como sífilis e gonorreia. Também não previne da gravidez. Por isso, use camisinha.” Nas peças sobre PEP, a enunciação do preservativo está atrelada aos riscos do seu esquecimento ou rompimento durante o uso. No âmbito dos materiais sobre a PC, a camisinha integra a “constelação” das estratégias biomédicas de prevenção. No card M5, o laço vermelho - símbolo da luta contra a aids - é representado por duas mãos humanas entrelaçadas (de homem e mulher) e diversos desenhos, simbologias e frases que remetem a pílulas, camisinhas, testes de HIV, gênero feminino e masculino, transexualidade e a pergunta: “Vamos combinar? Prevenir é viver”. Ademais, notamos que o preservativo feminino aparece em menos da metade dos materiais; apenas o folder M1 ilustra sua forma de colocação.
Em suma, o preservativo é apresentado como complemento aos ARVs ou alternativa dentre as opções preventivas de cunho biomédico, que supostamente podem ser adaptadas às necessidades de cada sujeito. Contudo, com exceção da figura do médico, não são explicitados outros espaços ou processos de comunicação para auxiliar essas escolhas.
As mensagens das peças pressupõem a competência do público para compreender o significado das siglas (PrEP, PEP, PC), acessar as mídias sociais para identificar os locais dos serviços e, sobretudo, reconhecer suas práticas ou identidades (sexuais, de gênero, sociais) nos termos: “grupos vulneráveis”, “riscos”, “exposições”, “combinar”. Ou seja, as peças parecem objetivar apenas o reforço de informações já conhecidas pelo público. Todavia, em todas as entrevistas o significado do termo Prevenção Combinada, pelo menos nos termos da política pública, era desconhecido pelos(as) entrevistados(as), exceto uma mulher transexual (Sheila, 26), que relatou ter feito curso de educadora de pares financiado pelo MS.
Considerações finais
Orientada pelo pressuposto de que as peças de comunicação estão simbólica e historicamente implicadas no âmago biopolítico de construção social do saber-poder-discurso sobre a sexualidade e da conformação dos sujeitos, a análise das 24 peças sobre PrEP, PEP e PC e dos depoimentos dos entrevistados propiciaram reflexões acerca das relações entre comunicação, sexualidade e tecnologias preventivas. O apagamento da diversidade sexual e de gênero e o predomínio de uma linguagem técnica e racional podem, em parte, ser causados pelo recrudescimento de discursos moralizantes e pânicos morais no cenário político atual, somado à biomedicalização das respostas à epidemia.
Os achados deste estudo coadunam com a persistência de desafios da abordagem da sexualidade e das relações de gênero na trajetória das estratégias de comunicação do HIV, que dizem respeito à reafirmação de determinados estereótipos de gênero (Jardim; Perucci, 2012JARDIM, L. N.; PERUCCHI, J. Encrencas de gênero nas campanhas brasileiras de prevenção ao HIV/aids para a idade adulta avançada. Ex aequo, Lisboa, v. 26, p. 103-117, 2012.). Entretanto, alguns autores identificam contribuições significativas das campanhas. Alves (2013ALVES, W. Entre sentidos e desejos: as campanhas de carnaval para prevenção contra o HIV (1999-2009). Líbero, São Paulo, v. 16, n. 31, p. 89-104, 2013.) destaca a tendência das campanhas das décadas de 2000 e 1990 em ampliar públicos e mensagens, como a inclusão das pessoas vivendo com HIV/aids e a substituição da linguagem de interdição por mensagens de valorização do prazer. Para Paiva, Antunes e Sanchez (2020PAIVA, V.; ANTUNES, M. C.; SANCHEZ, M. N. O direito à prevenção da aids em tempos de retrocesso: religiosidade e sexualidade na escola. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 24, e180625, 2020. DOI: 10.1590/Interface.180625
https://doi.org/10.1590/Interface.180625... ), a difusão massiva de informações, somada às ações de natureza comunitária, tiveram papel relevante na promoção de mudanças socioculturais no país, incluindo o uso efetivo do preservativo. A descontinuidade dessas ações, em concomitância ao cerceamento progressivo da educação sexual nas escolas, vem deslocando atitudes preventivas eficazes por práticas como a abstinência sexual entre as novas gerações.
A minimização das expressões da sexualidade no plano imagético e sua substituição por um forte apelo à racionalidade se coadunam com os argumentos de Carrara (2015CARRARA, S. Moralidades, racionalidades e políticas sexuais no Brasil contemporâneo. Mana, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 323-345, 2015. DOI: 10.1590/0104-93132015v21n2p323
https://doi.org/10.1590/0104-93132015v21... ) acerca dos efeitos disciplinares do discurso inclusivo dos “direitos sexuais” e o reconhecimento da cidadania à luz de um imaginário dos “regimes sexuais”. Nessa direção, consideramos que as mensagens associadas às profilaxias dizem respeito a biotecnologias generificadas e sexualizadas em determinados indivíduos (mulheres jovens, cisgênero) e corpos inscritos sob a denominação abstrata das “populações mais vulneráveis”.
As peças de comunicação também mobilizam estratégias de controle das expressões sexuais tidas como “indisciplinadas” sob a denominação de “estilo de vida” ou de “emergência”, evocando corpos ou sujeitos assexuados. Notamos ainda que as peças de comunicação pouco incorporam fatores sociais e relacionais que motivam o uso das profilaxias, como tipo de relação afetivo-sexual, percepção de risco, estado sorológico, entre outros (Mitchell et al., 2016MITCHELL, J. W. et al. HIV-negative male couples’ attitudes about pre-exposure prophylaxis (PrEP) and using PrEP with a sexual agreement. Aids Care, Abingdon, v. 28, n. 8, p. 994-999, 2016. DOI: 10.1080/09540121.2016.1168911
https://doi.org/10.1080/09540121.2016.11... ). O conteúdo das peças reitera o risco sexual como algo óbvio e objetivo e pressupõe um público racional e individualista, orientado por preceitos baseados em evidências, se distanciando da vida real dos sujeitos.
Importa salientar que a análise das peças comunicacionais e dos relatos de usuários(as) não tem o alcance de um estudo de recepção. Porém, as fontes empíricas utilizadas permitiram identificar que as informações sobre as profilaxias foram capilarizadas pela rede de contatos pessoais, pelos profissionais de saúde dos serviços de PEP e por instituições de pesquisa. Tais dados indicam restrições na divulgação das novas profilaxias e carência de campanhas regulares. De fato, essas lacunas emergiram de modo significativo nos depoimentos dos entrevistados, assim como sugestões para superar esse quadro. Esses achados, somados à pouca valorização dos aspectos comunicacionais nos documentos que orientam a implementação e acesso às profilaxias anti-HIV, sugerem que a circulação de informações sobre a PEP e PrEP é controlada ou seletiva, relativa a um circuito de agentes e de relações institucionais. A falta de referência às organizações sociais na divulgação das profilaxias também é notável e caberia ser explorada no futuro.
O protagonismo dos saberes e insumos de cunho biomédico nas imagens e mensagens analisadas e as poucas evidências de uma relação de continuidade dessas estratégias preventivas frente àquelas estruturadas em décadas anteriores, sugerem as limitações das políticas de prevenção do HIV/aids no país. Depreendemos que atualmente a abordagem preventiva no Brasil, ao invés de caminhar em direção à publicização de uma base comum de práticas e informações para a população, tem contribuído para o acirramento do individualismo no âmbito da prevenção, como esboçado por Oscar (2019OSCAR, R. C. Pílulas diárias anti-HIV: a construção de uma narrativa antropológica sobre a profilaxia de pré-exposição à aids (PrEP). 2019. 186 f. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.), e para o apagamento dos próprios sujeitos da prevenção (e suas identidades e práticas).
Frente ao papel histórico das campanhas para prevenção e cuidado do HIV, podemos supor que as ações de comunicação sobre a PC, incluindo o enfrentamento do estigma e da vulnerabilidade ao HIV, auxiliariam na redução das inequidades no acesso às novas profilaxias. Esta reflexão diz respeito ao potencial das estratégias de informação e comunicação para impulsionar mudanças culturais e ampliar o acesso às estratégias preventivas disponíveis, em detrimento da cristalização de racionalidades biomédicas. Em suma, persiste o desafio de identificar os símbolos, as linguagens e os canais de comunicação mais pertinentes para reduzir a distância entre o público destinatário e as estratégias preventivas.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
12 Dez 2022 - Data do Fascículo
2022
Histórico
- Recebido
06 Maio 2022 - Aceito
26 Jun 2022