O trabalho em saúde pode ser considerado “tecnologia leve”?

Can health work be considered as “soft technologies”?

Francis Sodré Pablo Cardozo Rocon Sobre os autores

Resumo

Neste ensaio trazemos uma discussão sobre o conceito de tecnologia leve aplicado ao trabalho em saúde, como proposto por Emerson Merhy. Objetivamos problematizar a ideia de tecnologia leve e, para isso, estabelecemos duas linhas de análise. Na primeira, há um diálogo com Antonio Negri, Michael Hardt e Maurízio Lazzarato na reflexão sobre a dimensão produtiva do trabalho vivo, como trabalho imaterial e produção de valor no campo da saúde. Na segunda, orientados por Michel Foucault, analisamos a dimensão ética de um trabalho que tem na imprevisibilidade do encontro, da experiência e do acontecimento a produção de um saber. Concluímos apontando que o trabalho em saúde se trata de uma tecnologia que produz relações de cuidado e, assim, solicita a criação de modos de cuidar, trabalhar e gerir com os cotidianos da saúde pela metamorfose de um êthos.

Palavras-chave:
Trabalho; Trabalho em Saúde; Cuidado; Trabalho Imaterial; Êthos

Abstract

In this essay we discuss the concept of soft technology applied to health work proposed by Emerson Merhy. We aimed to discuss the idea of soft technology and, to that end, we established two analytical paths. The first one dialogues with Antonio Negri, Michael Hardt, and Maurízio Lazzarato in thinking about the productive dimension of living labour, such as immaterial labour and value production in the healthcare field. In the second, driven by Michel Foucault, we analyze the ethical dimension of a work that has the production of a knowledge in the unpredictability of the encounter, the experience, and the event. We conclude by pointing out that healthcare work is a technology that produces care relationships and, thus, calls for the creation of ways of caring, working, and managing daily health by the metamorphosis of an ethos.

Keywords:
Labour; Health Work; Care; Immaterial Labour; Ethos

Introdução

A paisagem existencial na qual acontecem os cotidianos dos serviços de saúde é marcada por um diagrama de forças, em que a produção de saberes, exercícios de poderes, discursos de verdade e criação de modos de subjetivação atravessam trabalhadores, gestores e usuários. Esse espaço é compreendido por uma clínica que, segundo Foucault (2014FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 8. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.), surge na nascente modernidade entre as formulações de uma medicina social; na reforma hospitalar, com a disciplinarização e normalização da arquitetura à organização do trabalho em saúde; bem como na ascensão de uma política de saúde no século XVIII (Foucault, 2014FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 8. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.).

Assim, pensar o trabalho em saúde supõe compreendê-lo dentro da maquinaria de normalização da vida, entre biopoder e disciplina (Foucault, 1999FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes , 1999. Coleção Tópicos.). Isso faz emergir uma sociedade calcada nas ideias de norma e não-norma, deixar ou fazer morrer ou viver, uma vida capturada por cálculos matemáticos e exercícios sanitários que tomam o corpo como objeto de trabalho para controle e normalização, operados sob signos de cura e resgate à norma, uma vez que o poder acessa os corpos em nome de sua proteção (Foucault, 1999FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes , 1999. Coleção Tópicos.; 2014FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 8. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.).

O lugar de quem trabalha com a saúde coletiva, assim, é atravessado pela produção de discursos, relações e narrativas no encontro com os atores do cotidiano da saúde - os usuários (Rocon, 2021ROCON, P.C. Clínica (Trans)sexualiza(dor)a. Processos formativos de trabalhadores da saúde. 1. ed. Salvador: Devires, 2021. ). Disso, emerge uma realidade na qual, quando não situada em serviços de média e alta complexidade, parece haver uma compreensão de baixa produtividade em relação ao processo de trabalho e, em resposta, os trabalhadores vivenciam estratégias de controle para aumento de tal produtividade a partir da mensuração de procedimentos operacionais padronizados, protocolos, fluxos, linhas de cuidado com a solicitação de planilhas ou relatórios em que constam os procedimentos realizados.

Dessa forma, tal qual números de exames de alta complexidade, cirurgias etc., na atenção primária em saúde e nos atendimentos ambulatoriais, as medicações aplicadas, visitas domiciliares, cadastros, vínculos, conversas, diálogos e encontros passam a ser requeridos num enquadramento que obedeça a uma medida numérica. Isso reflete no relato massivo por parte dos trabalhadores, que se referem a um constante cansaço decorrente da relação direta de atendimento à população.

Neste ensaio estabelecemos um diálogo com um texto clássico produzido por Merhy (2005MERHY, E. E. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. 2. ed. São Paulo: Hucitec , 2005.) sobre a tecnologia do cuidado em saúde, denominado A Cartografia do Trabalho Vivo. Essa tentativa se constitui num exercício de problematização e de crítica, na medida em que leva em conta muitos resultados de pesquisas acumulados após o estudo da categoria trabalho em saúde. Analisamos que, quanto menos hierarquizado e comprometido com as necessidades em saúde dos usuários for o tipo de atendimento gerado pelo trabalhador da saúde, mais problemático seria considerá-lo como uma tecnologia leve.

Muito nos instiga a criação de paralelos e linhas de análise sobre esse tipo de trabalho, que é puramente relacional. O debate suscitado por Merhy (2005MERHY, E. E. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. 2. ed. São Paulo: Hucitec , 2005.), quando conceitua as tecnologias do trabalho em saúde, produz questionamentos e análises fecundas para a compreensão da dimensão social dessas operações. O estudo minucioso, feito pelo autor, proporciona reflexões importantes aos que se dedicam a compreender o processo de trabalho em saúde.

A obra referida proporciona um olhar diferenciado sobre esse processo específico de trabalho, ao problematizar suas particularidades e subdividi-lo em três modos na relação que estabelecem: tecnologias leves, duras e leve-duras (Merhy, 2005MERHY, E. E. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. 2. ed. São Paulo: Hucitec , 2005.). A partir de então, cria-se um didatismo na análise que demonstra que a saúde não se resume somente à operação de equipamentos ou máquinas de diagnósticos e conclusão de exames. Merhy (2005MERHY, E. E. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. 2. ed. São Paulo: Hucitec , 2005.) cunha a expressão que circunscreve a saúde como um trabalho vivo, isto é, que se dá em ato.

O autor, ainda, traz para os anos 2000 um debate que potencializa o trabalho desenvolvido por inúmeros funcionários da saúde no dia a dia dos serviços. A potência política desses atores é resgatada quando se evidencia que o fazer saúde extrapola a operação de máquinas, centros cirúrgicos, prontos-socorros, enfermarias hospitalares etc. Promove-se, então, um olhar que desperta para a dimensão rica de produção de encontros e subjetividades, que só se concretiza na dimensão relacional entre trabalhadores e usuários.

Merhy (2005MERHY, E. E. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. 2. ed. São Paulo: Hucitec , 2005.) destaca que se deve compreender por tecnologia os saberes que são constituídos para a produção de produtos singulares e mesmo para a organização humana nos processos produtivos. Desse modo, o conceito de tecnologia extrapola o que corriqueiramente entendemos como máquinas e equipamentos. Em razão disso, neste ensaio se estabelecem duas linhas de análise a fim de problematizar a ideia de tecnologia leve (Merhy, 2005MERHY, E. E. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. 2. ed. São Paulo: Hucitec , 2005.).

Na primeira, num diálogo com Antonio Negri; Michael Hardt (2001NEGRI, A.; HARDT, M. Império. 11. ed. São Paulo: Record, 2001.; 2004NEGRI, A.; HARDT, M. O Trabalho de Dioniso: para crítica ao Estado pós-moderno. Rio de Janeiro: Pazulin, 2004.; 2005NEGRI, A.; HARDT, M. Multidão. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005.); e Maurizio Lazzarato (2001LAZZARATO, M; NEGRI, A. Trabalho imaterial: formas de vida e produção de subjetividade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.), firmamos uma reflexão sobre a dimensão produtiva do trabalho vivo em saúde como imaterial e produtor de valor em ato, na medida em que os modos de trabalhar e cuidar emergem no “entre”, na relação trabalhador e usuário, não sendo, portanto, apriorísticos.

Na segunda, acompanhados por Michel Foucault (1995FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: RABINOW, P.; DREYFUS, H. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária , 1995. p. 231-278.; 2004FOUCAULT, M. A ética do cuidado de si como prática de liberdade. In: FOUCAULT, M. Ditos e escritos: ética, sexualidade e política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. p. 264-288.; 2010FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.) em sua genealogia do sujeito, analisamos a dimensão ética de um trabalho que tem na imprevisibilidade do encontro, da experiência e do acontecimento a produção de um saber etopoiético. Nesse espaço, forjam-se maneiras de cuidar e se relacionar com usuários e serviços de saúde a partir da produção de um saber na relação com um cuidado de si para cuidar do outro, em que há permanente transfiguração e emergência de um êthos.

Trabalho em saúde: artesania, criação permanente e produção de modos de vida

Em Richard Sennett (2009SENNETT, R. O artífice. 2.°ed. Rio de Janeiro: Record , 2009.) encontramos a categorização do trabalho do “artífice”, definido como aquele que realiza um trabalho bem feito, desafiador, com engajamento, curioso e dotado de criatividade no processo de construção ao produto final e que, portanto, aprende com a incerteza. Sennett (2009SENNETT, R. O artífice. 2.°ed. Rio de Janeiro: Record , 2009.) também observou que o trabalho do artífice, em sua melhor síntese, quando associado às oficinas do século XIX, caracterizava-se nos espaços que misturavam o trabalho à vida, local onde poucos trabalhavam no isolamento.

O artífice não se limitava à simples metáfora do trabalho com as mãos, mas se estendia ao desenvolvimento de habilidades táteis, sensibilidade aguçada e observação misturada com todos os campos dos sentidos, com o sensível. Seu trabalho era também um simbolismo de resistência ao capitalismo e à chegada avassaladora das máquinas. Ou seja, diferentemente do que poderíamos imaginar diante do título da obra, Sennett (2009SENNETT, R. O artífice. 2.°ed. Rio de Janeiro: Record , 2009.) nos diz que temos um artífice em cada um de nós. A resistência manifesta nesse trabalho é também uma forma de produção de (re)existência, de potência criadora.

O sentido análogo entre o trabalho do artífice e o trabalho da saúde centra-se no fato que seu objeto não é plenamente organizado a priori; sua melhor tecnologia é o processo de intervenção em ato. O planejamento desse trabalho é aberto, pois não se tem total controle sobre o produto final ou sobre o desenvolvimento dos seus processos e não é focado somente nos procedimentos, mas sim, e principalmente, nos processos. Trata-se de um trabalho que em essência é relacional, que contém um grau de liberdade significativo no modo de fazer essa produção. É a partir disso, então, que Merhy (2005MERHY, E. E. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. 2. ed. São Paulo: Hucitec , 2005.) identifica essa função com as tecnologias de tipo leve - tecnologias das relações -, que se norteiam para a produção de vínculos, encontros e acolhimento.

Todavia, o que se pretende ressaltar é que esse trabalho de tipo relacional é político por excelência. São as formas de vida, nas suas expressões coletivas e cooperativas, que se constituem como fonte de inovação. O que é produtivo, então, é o jogo das relações sociais.

Existe um excedente de relações sociais durante esse processo de trabalho, e isso é o que gera novas formas e estilos de vida. Até mesmo a capacidade constante de produção desse excedente é um ato criativo, base do trabalho imaterial. Podemos ainda afirmar que, nesse caso, rompe-se com a divisão entre trabalho material e intelectual na medida em que, no fazer saúde, ambos se influenciam e se produzem mutuamente, de forma a criar uma unidade.

Político e relacional: o processo de trabalho em saúde

O trabalho do profissional de saúde mostra-se, ao contrário do que análises macrossocietárias propõem, extremamente produtivo no capitalismo atual. Isso ocorre porque o trabalho produtivo de tipo novo é composto pelo conhecimento e também pelas relações que se constroem de forma completa no tecido social. Relação, flexibilidade temporal e mobilidade espacial tornam-se características da nova qualidade de trabalho que nosso tempo conhece. O profissional da saúde traz consigo o “modo de fazer”, o que é abstrato em sua mais alta expressão.

A ferramenta do trabalho e sua matéria prima é a própria vida e tudo o que pertence ao sentir. Uma vida individual não poderia ser produtiva, pois a linguagem se torna essencial na produção desse processo e se exprime por meio das potências de viver, o que poderia chamar-se de afeto, resultado de uma prática que é repleta de sentido, pois envolve e tece relações. O afeto torna-se uma das expressões da ferramenta de trabalho, em linguagens que são racionais e levam à implicação. Tudo isso tem importante consequência na definição dos sujeitos. Todos os que possuem potências vitais, as quais apresentam-se na forma de linguagem e afeto, estão no interior desse processo. Entendemos aqui, como Rolnik (2018ROLNIK, S. Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetina. São Paulo: n-1, 2018.), que

o afeto não deve ser confundido com afeição, carinho, ternura, que corresponde a um dos sentidos dessa palavra nas línguas latinas. É que não se trata aqui de uma emoção psicológica, mas sim de uma “emoção vital”, a qual pode ser contemplada nessas línguas pelo sentido do verbo afetar - tocar, perturbar, abalar, atingir; sentido que, no entanto, não é usado nas mesmas em sua forma substantivada. (Rolnik, 2018ROLNIK, S. Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetina. São Paulo: n-1, 2018., p. 53)

Daí surgem os questionamentos que aparecem em todos os serviços de saúde pública: como demarcar a produtividade desse trabalho? De que forma daríamos a ele visibilidade e o que o tornaria mensurável? Há medidas para a produtividade sobre esse trabalho? O tempo gasto na sua realização condiz com a forma e a medida de pagamento do salário dos funcionários da saúde?

Negri e Hardt (2005NEGRI, A.; HARDT, M. Multidão. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005.) chegam a apontar um devir-mulher no cenário do trabalho contemporâneo, no intuito de dotá-lo de uma realidade que se tornou impossível de ser imaginada sem passar pela produção de subjetividade, e, portanto, da reprodução geral dos pensamentos vitais. As mulheres sempre estiveram historicamente no centro da produção de relações de trabalho que valorizam a subjetividade, ou seja, reproduzindo aspectos essenciais à vida. Viveram (e ainda vivem) a confusão do tempo de trabalho que se mistura ao tempo da vida. O devir-mulher do trabalho em saúde não significa afirmar que o trabalho do atual capitalismo é algo restrito somente às mulheres ou que somente elas viverão esse processo (Negri; Hardt, 2005NEGRI, A.; HARDT, M. Multidão. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005.), mas implica reconhecer que a transformação que agora discutimos é transgressora e se dá na reprodução geral da riqueza por meio dos processos de produção de saber, de comunicação, de linguagem e de afeto (Sodré, 2011SODRÉ, F. O Trabalho e as redes. In: MINAYO, C.; HUET, J. M.; PENA, P. G. L. (Org.). Saúde do trabalhador na sociedade brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011. p. 297-314. DOI: 10.7476/9788575413654
https://doi.org/10.7476/9788575413654...
).

O diferencial que deve ser considerado é que as mulheres sempre foram excluídas do reconhecimento de sua capacidade de produção de valor econômico e agora assistem a uma mudança conceitual e prática do trabalho que requer a feminilização dos homens e a masculinização das mulheres. Isso se expressa no trabalho de todos os profissionais da saúde, mas principalmente entre aqueles a que o cuidado se manifesta sob a forma de escuta e acolhimento, como no caso dos enfermeiros, assistentes sociais, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, psicólogos, nutricionistas etc. Isso revela que “quando a produção afetiva torna-se parte do trabalho assalariado pode ser vivida de forma extremamente alienante: estou vendendo minha capacidade de estabelecer relações humanas, algo extremamente íntimo” (Hardt & Negri, 2005 apud Sodré, 2011SODRÉ, F. O Trabalho e as redes. In: MINAYO, C.; HUET, J. M.; PENA, P. G. L. (Org.). Saúde do trabalhador na sociedade brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011. p. 297-314. DOI: 10.7476/9788575413654
https://doi.org/10.7476/9788575413654...
, p. 302)

Por esse ângulo, não é possível adjetivar como leve o trabalho em saúde, visto que essa mesma função é viva em ato, enquanto as tecnologias duras são repletas de trabalho morto. No pensamento marxista, quando a racionalidade tecnológica domina o trabalho vivo, esse passa a ser conduzido pelo trabalho morto, ou seja, pela produção anterior de conhecimento, sintetizado em forma de ferramentas, máquinas, manuais de conduta e arranjos organizacionais (Campos, 2011CAMPOS, G. W. S. A mediação entre conhecimento e práticas sociais: a racionalidade da tecnologia leve, da práxis e da arte. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 7, p. 3033-3040, 2011. DOI: 10.1590/S1413-81232011000800002
https://doi.org/10.1590/S1413-8123201100...
).

No encontro com os usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), é esse contato inserido no campo do sensível (do tato aos demais sentidos) que produz as boas práticas de cuidado. O que o profissional de saúde coloca à venda, então, é sua capacidade de escuta e produção de vínculos - algo aprendido somente na dinâmica da sua vivência, nunca ensinado em graduações ou cursos de capacitação. Em um referencial sociológico, o trabalho em saúde poderia ser considerado extremamente alienante. Contudo, ele não pode ser visto apenas como uma simples venda de serviços, uma vez que trata-se de uma exploração sobre uma dinâmica subjetiva da vida. Falamos da produção de relações humanas como produção de uma mercadoria, portanto.

Quando denominamos por tecnologia leve esse trabalho, que é também relacional, político e imaterial, colocamos na mesma categoria o campo das relações sociais. Não se pode perder de vista, porém, que essa ocupação é tensionada, pois é atravessada por um campo de forças e disputas em jogos de verdade e produção de saber. Tomá-la como leve, portanto, proporcionaria uma ideia equivocada com uma harmonia inexistente, fazendo parecer que nos encontros é produzida uma linguagem comum.

Ao contrário, da polifonia que representa o encontro com os usuários apontam-se também as ausências das equipes e a surdez desse trabalho, muitas vezes manifesto no fracasso dos diálogos ou nos jogos institucionais que entram em questão quando as práticas não se efetivam. Por outro lado, essa base tensional permite almejar a exploração de territórios de potências singulares a esse campo de práticas sociais. “A saúde, então, se constitui como produtora de novos locus de poderes instituintes” (Negri; Hardt, 2005NEGRI, A.; HARDT, M. Multidão. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005., p. 160).

Os produtos são frutos do trabalho de um coletivo. A linguagem, por exemplo, depende da capacidade de inovar em ambientes diferenciados, sempre em mutação ou com base em práticas e hábitos já vividos. O profissional da saúde, na execução de inúmeras tarefas e funções, demonstra a capacidade de produzir vários tipos de enunciados, e seu poder de falar e criar informação é fundamentado em uma base comum, na medida em que toda produção de linguagem é compartilhada.

O ato da fala é político pois é conduzido em comum, em diálogo, em comunicação (Negri; Hardt, 2005NEGRI, A.; HARDT, M. Multidão. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005.). A produção de saúde é biopolítica em si. Por isso, podemos afirmar uma incomensurabilidade relativa à produção biopolítica, já que não pode ser quantificada em unidades fixas de tempo, enquanto, por outro lado, é sempre excessiva na produção de valor (Negri; Hardt, 2005NEGRI, A.; HARDT, M. Multidão. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005.). O excedente gerado no trabalho em saúde, portanto, também não pode ser mensurado; ainda que existam inúmeras tentativas de transformar essas práticas em produtos quantificáveis de planilhas estatísticas ou boletins de produtividade, muito “mais-valor” foi gerado neste trabalho de reprodução da vida.

Merhy (2005MERHY, E. E. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. 2. ed. São Paulo: Hucitec , 2005.) afirma que tais momentos produtivos, essencialmente o de trabalho vivo, são abertos à disputa de capturas por várias lógicas sociais, que procuram guiar as ações de saúde de acordo com certos interesses, ao mesmo tempo em que buscam interditar outros. Todavia, ressaltamos a complexidade e o virtuosismo desse trabalho, que se dá em fluxos. Quanto maiores os esforços de captura, mais expressivas serão também as tentativas de transversalidade nas ações do trabalhador da saúde em busca de liberdade em sua ação.

O trabalho como força-invenção, criação e potência, como diriam Negri e Hardt (2001NEGRI, A.; HARDT, M. Império. 11. ed. São Paulo: Record, 2001.), é o animal feroz que destrói todo o limite disciplinar. Para o capitalismo é necessário, então, domá-lo. Se o trabalho em saúde é composto por dinâmicas dos modos de vida, também essas formas de viver se tornam objeto de captura do capitalismo. O atual discurso predominante da saúde pressupõe a obrigatoriedade de capturar o hábito, as relações, a rotina, o comportamento e o cotidiano dos sujeitos pelo profissional, para que possa intervir em sua realidade em um nível mais subjetivo. Assim, os modos de vida tornaram-se uma matéria-prima para o trabalhador da saúde.

Do ponto de vista desse ator, seu trabalho é agora ferramenta central na busca por estilos de vida, para tornar sua intervenção cada vez mais eficaz nas relações biopolíticas estabelecidas, assim como transformá-la em objeto de ação de seu biopoder. Por outro lado, sob o ponto de vista dos usuários, suas vidas, no sentido mais sublime, nunca foram tão interessantes como objetos de intervenção. Esse jogo constante entre produção de biopolítica e de biopoder é a cartografia do trabalho em saúde. Nessa medida,

em sua racionalidade instrumental, os usuários procuram, ao consumir produtos do trabalho em saúde, pelo menos serem acolhidos nesse processo, a ponto de que na sua dinâmica haja um momento em que se possa “escutá-los” nas suas manifestações-necessidades, que permita sua expressão do que “deseja” buscar; ao mesmo tempo, que possibilite o início de um processo de vinculação/resolução com um conjunto de trabalhadores, para que ali, em ato, se estabeleça uma relação de compromissos e responsabilizações entre saberes (individuais e coletivos), na busca efetiva de soluções em torno da defesa de sua vida, que envolvem atividades de promoção, proteção e recuperação, e que almejam em última instância ganhos maiores de autonomia. (Negri; Hardt, 2005NEGRI, A.; HARDT, M. Multidão. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005., p. 173)

Observamos que esse trabalho é envolto em produtos e processos imateriais. Os afetos, como a alegria e a tristeza, o sofrimento e a satisfação, revelam o estado da vida em todo o organismo, expressando certa condição do corpo e forma de pensamento. O trabalho afetivo manipula afetos, como a sensação de bem-estar, tranquilidade e satisfação. Nesse sentido, “Os trabalhadores do setor Saúde desempenham tarefas afetivas, cognitivas e lingüísticas a par de tarefas materiais, como trocar curativos ou despejar o conteúdo das comadres” (Negri; Hardt, 2005NEGRI, A.; HARDT, M. Multidão. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005., p. 150).

Nessa recombinação entre atividades materiais e imateriais, Merhy (2005MERHY, E. E. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. 2. ed. São Paulo: Hucitec , 2005.) afirma que o cerne da ação, ou seja, a direção desse trabalho, deveria apontar para o ato de cuidar. Nas palavras do autor, “o ato de cuidar é a alma dos serviços de saúde” (Merhy, 2005MERHY, E. E. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. 2. ed. São Paulo: Hucitec , 2005., p. 115), e o trabalhador no processo de produção da saúde é apontado como produtor do cuidado. O trabalho em saúde também conta com momentos em que o corpo é posto a produzir, operando máquinas, equipamentos, medicamentos ou mesmo a higiene dos usuários. Todavia, a produção desse cuidado é também derivada de um trabalho imaterial. Segundo Negri (2001NEGRI, A.; HARDT, M. Império. 11. ed. São Paulo: Record, 2001.),

não há liberdade suficiente para a alma, não há salário suficiente para o corpo, e por isso o trabalho (que é cada vez mais alma e cada vez mais sublima o corpo), nós o experimentamos como separação e exílio. É uma nova experiência de exploração a que vivemos. Mas é também uma nova experiência de constituição ontológica, ou melhor, de metamorfose. (Negri, 2001NEGRI, A.; HARDT, M. Império. 11. ed. São Paulo: Record, 2001., p. 11)

Da impossibilidade de distinguir o tempo de trabalho do tempo da vida, tomamos como referencial que o trabalho produzido em ato é base fundamental da produção em saúde, visto que concretiza a reprodução da vida, produz subjetividades e cria interfaces entre a sua produção e o seu consumo. O trabalho em saúde não se destrói no ato de consumo, mas se alarga, transforma e cria o ambiente ideológico e cultural. Ele não reproduz a capacidade física da força de trabalho, mas transforma o seu utilizador (Lazzarato, 2001LAZZARATO, M; NEGRI, A. Trabalho imaterial: formas de vida e produção de subjetividade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.).

Na sociedade do capitalismo cognitivo pós centralidade industrial, esse trabalho contém uma dinâmica extremamente produtiva, uma vez que detém as relações sociais como matéria-prima e produto final. Essas relações podem ser, então, compreendidas como o trabalho excedente e/ou não pago, pertencente à dinâmica da vida, rico em potência de agir e repleto de tentativas de captura.

Denominar esse trabalho virtuosista e conflituoso - inserido nos jogos de poder - por tecnologia leve nos parece necessário de ser problematizado, visto que comporta continuamente todos os jogos político-relacionais das instituições e de suas relações com os usuários dos serviços de saúde. O trabalho em saúde solicita permanentemente um reposicionamento ético e a produção de um saber etopoiético para acolher, produzir vínculos e cuidar, e não apenas a aplicação de cartilhas sobre modos de ouvir, observar, recepcionar e encontrar-se com os usuários.

Movimentos etopoéticos com o trabalho em saúde

O encontro trabalhador-usuário convoca um movimento de coemergência na busca por respostas às necessidades em saúde, na medida em que cuidar do outro supõe também uma relação de cuidado consigo, e tal movimento não possui característica leve. Talvez seja essa a tecnologia mais dura presente no processo de trabalho, uma vez que não se trata apenas de gerir ou operar maquinários externos a serem acoplados aos corpos, mas operar em si, no âmbito relacional, mudanças em modos de pensar, cuidar e se relacionar com usuários, a fim de alcançar respostas efetivas às necessidades em saúde que emergem nos cotidianos dos serviços.

Tal reflexão inicial nos faz retornar às análises que Foucault (2010FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.) realizou sobre os modos em que os gregos se produziam como sujeitos. Contudo, essa retomada não significa buscar conhecimentos aplicáveis no presente, mas sim perceber, a partir de dispositivos e tesouros históricos, que nossa ética já esteve relacionada com uma estética da existência (Foucault, 1995FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: RABINOW, P.; DREYFUS, H. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária , 1995. p. 231-278.).

Convivemos com uma organização da vida que compreende o acesso ao conhecimento como a busca por algo externo ao sujeito, o qual não dependerá de quaisquer operações em si para acessá-lo. Em chave foucaultiana, na modernidade “as condições segundo as quais o sujeito pode ter acesso à verdade, é o conhecimento e tão somente o conhecimento” (Foucault, 2010FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010., p. 18). Essa relação com a verdade se dá numa virada cientificista que conheceu o que o autor nomeou por momento cartesiano, em que acessar a verdade supõe uma série de condições, embora nenhuma delas solicite aos sujeitos uma relação ascética consigo.

Nessa segunda linha de argumentação, pensamos estar o problema da ideia de tecnologia leve na relação que estabelece com a produção de saberes. Parece haver uma espécie de hierarquização numa escala de menor a maior grau de complexidade tecnológica acoplada ao trabalho em saúde. Aqui centra-se o que Foucault (2010FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.) traz sobre a relação com o conhecimento na modernidade, na qual o indivíduo não precisa de qualquer operação em si, mas somente o acúmulo de determinadas informações para operá-las, não somente em si, mas nas relações que estabelece com o mundo. Logo, adjetivar como “leve” determinadas configurações das práticas em saúde não nos parece ser apropriado, tendo em vista as operações etopoiéticas as quais trabalhadores(as) são convocados(as) a operarem em si para produção do trabalho em saúde com usuários(as). Kastrup (2013KASTRUP, V. Um mergulho na experiência: uma política para a formação dos profissionais da saúde. In: CAPAZZOLO, A.; CASETTO, S. J.; HENZ, A. O. (Org.). Clínica comum: itinerários de uma formação em saúde. São Paulo: Hucitec, 2013. p. 151-162., p. 152-153), problematiza que:

a ênfase tem sido na formação baseada na informação. Grande parte do meio acadêmico ainda trabalha com a dicotomia teoria-prática, bem como com a ideia de que a prática deve ser a aplicação de uma teoria previamente conhecida. Por outro lado, a formação atual que é hegemônica é pautada nos especialismos e na ênfase diagnóstica, baseada no domínio das informações veiculadas no DSM e no CID.

Ao discutir a formação de trabalhadores da saúde, a autora analisa uma espécie de desprocessualização dos processos formativos, o que produz um tipo de formação estanque que apresenta o conhecimento como informação a ser acumulada para posterior aplicação - como se a paisagem existencial dos serviços de saúde não escapasse aos protocolos que as tentam enquadrar por disciplinas e clínicas. Partindo de leituras sobre o cognitivismo propostas por Francisco Varela, esses processos formativos ignoram a dimensão experiencial, na medida em que formar supõe uma adaptação do sujeito cognoscente ao mundo, trata-se de um modelo “que desconsidera, portanto, a fluidez da experiência viva e vivida” (Varela, 1993VARELA, F. J. O reencantamento do concreto. Cadernos de Subjetividade, São Paulo, n. 1, p. 71-86, 1993. DOI: 10.2354/cs.v0i11.38767
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, p. 74).

Aplicar manuais diagnósticos, checklists ou protocolos de atendimento procedimentais talvez possa ser compreendido como tecnologia leve. Contudo, encontrar-se com o terreno experiencial, o que escapa por todos os lados às aplicações - produzir vínculos, acolher e implicar o processo de trabalho -, supõe uma abertura ao saber da experiência. Segundo Larrosa (2017LARROSA, J. Tremores: escritos sobre experiências. Belo Horizonte: Autêntica; 2017. Coleção Educação: Experiência e Sentido.),

o saber da experiência não está, como o conhecimento científico, fora de nós, mas, somente tem sentido no modo como configura uma personalidade, um caráter, uma sensibilidade ou, em definitivo, uma forma humana singular de estar no mundo, que é por sua vez uma ética (um modo de conduzir) e uma estética (um estilo). (Larrosa, 2017LARROSA, J. Tremores: escritos sobre experiências. Belo Horizonte: Autêntica; 2017. Coleção Educação: Experiência e Sentido., p. 32)

Nesse sentido, fazer saúde implica uma constante produção etopoiética. Segundo Foucault (2004FOUCAULT, M. A ética do cuidado de si como prática de liberdade. In: FOUCAULT, M. Ditos e escritos: ética, sexualidade e política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. p. 264-288., p. 271), “O êthos de alguém se traduz pelos seus hábitos, por seu porte, por sua maneira de caminhar, pela calma com que responde a todos os acontecimentos etc.”. Em sua leitura sobre a cultura de si antiga, nomeada também como arte da existência, era pela produção e transformação de um ethos construídas por meio das práticas de si que os indivíduos acessavam a verdade e a modificação; o cuidado de si era o preço para acessar a verdade (Foucault, 2010FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.). Tal movimento supunha uma relação com o outro - o governante-governado, mestre-discípulo, médico-paciente etc. -, uma prática eminentemente relacional e coletiva.

O acolhimento, a escuta, olhar, pensar, receber, encontrar etc. são movimentos do cotidiano dos serviços de saúde que escapam aos cálculos dos procedimentos operacionais padronizados (POP) e ao manuseio de tecnologias ditas duras por sua robustez tecno-científica. Assim, eles devem ser percebidos como tecnologias determinantes para o acesso e permanência dos usuários(as) aos serviços de saúde.

Essas tecnologias solicitam aos trabalhadores(as) uma gerência do imprevisível, abertura ao acontecimento, experimentação ativa, enfim, uma relação ética consigo, a produção de um êthos num encontro de coemergência com o usuário, em ato, em relação. Aqui, falamos da produção de um saber pela transfiguração de um êthos, não passível de acúmulo ou transmissão, acessado apenas por operações em si na produção de novos contornos corporais para existir, com modos de viver e trabalhar até então não experimentados.

Há um elemento imprescindível que faz dessa tecnologia de si a mais dura de todas: encontrar-se com o usuário em sua multiplicidade como diferença significa deparar-se com elementos que perturbam os ambientes normalizados dos serviços de saúde. No “normalizados para normalizar” foucaultiano (Foucault, 2014FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 8. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.) não há acolhida, somente enquadramento, e para tal basta aplicar fórmulas disciplinares.

Contudo, se falamos de acolhimento não segundo perspectivas individuais que compreendem humanização sob conotações de benevolência e hospitalidade, mas sim sob um modo de caminhar e fazer inclusão pautado na produção do comum entre usuários e trabalhadores da saúde (Pasche; Passos, 2010PASCHE, D. F.; PASSOS, E. Inclusão como método de apoio para a produção de mudanças na saúde - aposta da Política de Humanização da Saúde. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 86, p. 423-432, 2010. Disponível em: <Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/4063/406341769003.pdf >. Acesso em: 5 ago. 2022.
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), falamos de abertura à diferença e, assim, de uma clínica que não se separa de sua dimensão política. Segundo Rolnik (1995bROLNIK, S. Ninguém é deleuziano. O Povo, Fortaleza, Caderno Sábado, n. 6, 18 nov. 1995b. Disponível em: <Disponível em: https://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/ninguem.pdf >. Acesso em: 5 ago. 2022.
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),

o que nos força é o mal-estar que nos invade quando forças do ambiente em que vivemos, e que são a própria consistência de nossa subjetividade formam novas combinações, promovendo diferenças de estado sensível em relação aos estados que conhecíamos e nos quais nos situávamos. Neste momento é como se estivéssemos fora de foco, e reconquistar um foco exige de nós o esforço de constituir uma nova figura. É aqui que entra o trabalho do pensamento: com ele fazemos a travessia destes estados sensíveis que, embora reais, são invisíveis e indizíveis, para o visível e o dizível. O pensamento, neste sentido, está a serviço da vida em sua potência criadora. Quando é este o trabalho do pensamento, o que vem primeiro é a capacidade de nos deixar afetar pelas forças de nosso tempo e de suportar o estranhamento que sentimos quando somos arrancados do contorno através do qual até então nos reconhecíamos e éramos reconhecidos. (Rolnik, 1995bROLNIK, S. Ninguém é deleuziano. O Povo, Fortaleza, Caderno Sábado, n. 6, 18 nov. 1995b. Disponível em: <Disponível em: https://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/ninguem.pdf >. Acesso em: 5 ago. 2022.
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, p. 1)

Encontrar-se com os usuários é encontrar-se com o que difere: homens e mulheres e sua diversidade de cor, gênero, sexualidade, raça, classe, regionalidade, sotaques, costumes alimentares, crenças religiosas etc. Acolher tal diversidade exige superar o mal-estar do encontro com o que difere, possibilitando um reposicionamento ético-estético e político pela produção de um êthos calcado em modos de trabalhar e cuidar com a saúde que afirmem a vida como diferença. Cria-se, assim, uma clínica política que, como resistência aos dispositivos disciplinares, empreende “fazer do pensamento uma ferramenta a serviço da criação de sentido para aquilo que o mal-estar nos indica, de modo a trazê-lo para existência” (Rolnik, 1995bROLNIK, S. Ninguém é deleuziano. O Povo, Fortaleza, Caderno Sábado, n. 6, 18 nov. 1995b. Disponível em: <Disponível em: https://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/ninguem.pdf >. Acesso em: 5 ago. 2022.
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, p. 5).

O trabalho com a saúde implicado na garantia do acesso e permanência dos usuários nos serviços “é criação de novas práticas de saúde, de novos modos de gestão, tarefas inseparáveis da produção de novos sujeitos protagonistas e corresponsáveis” (Pasche; Passos, 2010PASCHE, D. F.; PASSOS, E. Inclusão como método de apoio para a produção de mudanças na saúde - aposta da Política de Humanização da Saúde. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 86, p. 423-432, 2010. Disponível em: <Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/4063/406341769003.pdf >. Acesso em: 5 ago. 2022.
https://www.redalyc.org/pdf/4063/4063417...
, p. 428). É produzido coletivamente um plano comum, “não por ser homogêneo ou por reunir atores (sujeitos e objetos; humanos e não humanos) que manteriam entre si relações de identidade, mas porque opera comunicação entre singularidades heterogêneas, num plano que é pré-individual e coletivo […]” (Kastrup; Passos, 2013KASTRUP, V.; PASSOS, E. Cartografar é traçar um plano comum. Fractal: Revista de Psicologia, Niterói, v. 25, n. 2, p. 263-280, 2013. DOI: 10.1590/S1984-02922013000200004
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, p. 265), ou seja, um plano que emerge como comum por se constituir num “campo imanente de pulsão vital de um corpo social quando a toma em suas mãos, de modo a direcioná-la a criação de modos de existência para aquilo que pede passagem” (Rolnik, 2018ROLNIK, S. Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetina. São Paulo: n-1, 2018., p. 33).

Afirmar as dimensões do trabalho em saúde que analisamos até aqui como tecnologia leve pode apresentar-se perigoso, uma vez que pode ser traduzida a ideia de acolhimento como hospitalidade e de humanização como benevolência, valores morais que congregam perspectivas neoliberais individualistas, na medida em que não congregam com a saúde como direito. Esses conceitos supõem ações individuais e vislumbram anular a diferença em nome de uma harmonização do cotidiano dos serviços de saúde, além de considerarem possível treinar padrões de comportamento sobre como escutar, falar e portar-se, modelando modos de agir e cuidar enquadrados em cálculos disciplinares.

Contudo, quando afirmamos um processo de trabalho que afirme a diferença, abrir-se ao mal-estar exige acessar tecnologias e técnicas de si para transfigurar um êthos, um reposicionamento que transforma tal perspectiva ética em uma estética para o trabalho em saúde, solicitando também a produção de uma nova matéria subjetiva dos trabalhadores (Rocon, 2021ROCON, P.C. Clínica (Trans)sexualiza(dor)a. Processos formativos de trabalhadores da saúde. 1. ed. Salvador: Devires, 2021. ). Em termos deleuzianos, trata-se de considerar a subjetividade como dobras do fora, da verdade, do saber e das relações de poder, bem como campo de resistência (Deleuze, 2019DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense: 2019.). Produzir modos de viver e trabalhar com cotidianos que acolham e respondam efetivamente às necessidades em saúde trazidas pelos usuários demanda dar passagem ao que difere como mal-estar num exercício de cuidado consigo, com os pensamentos, modos de olhar, ouvir, cuidar, gerir e trabalhar, para que possa emergir o homem da ética, cujo compromisso

não pode ser simplesmente com o cumprimento de um conjunto de normas […] que não é suficiente para conquistar uma melhor qualidade de existência, na medida em que não inclui a consideração daquilo que se impõe como diferença no invisível e que exige criação (inclusive no campo das normas). (Rolnik, 1995aROLNIK, S. À sombra da cidadania: alteridade, homem da ética e reinvenção da democracia. In: MAGALHÃES, M. C. R. (Org.). Na sombra da cidadania. São Paulo: Escuta, 1995a. p. 1-17. Disponível em: <Disponível em: http://www4.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/homemetica.pdf >. Acesso em: 4 maio 2020.
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, p. 12).

Este movimento não pode ser considerado leve, pois rompe com a ditadura do homem da moral enrijecido pelas normas numa subjetividade estanque e, assim, cobra o preço das operações e do cuidado de si para a produção de um saber e acesso à verdade. Contudo, um movimento etopoiético supõe alcançar uma qualidade de existência e trabalho com a saúde em direção à efetivação de uma política de saúde universal, com justiça social e efetivamente integral, uma vez que tais princípios são impensáveis na acolhida da diferença e dos movimentos éticos que o cotidiano em saúde em sua imprevisibilidade solicita todos os dias.

Pensar tendências: o trabalho vivo na política pública de saúde

Na micropolítica do trabalho está aquilo que apontamos como tentativa de criar alternativas anti-hegemônicas, em contraste com aquelas que reconhecemos no campo da saúde até agora. A maior parte das políticas em saúde ainda reproduz linhas de biopoder sobre os seus usuários, mimeticamente imbuídas de um poder de Estado que fala em nome de um SUS verticalizado, biomédico e hospitalar. Entretanto, é somente a partir do investimento macro e micropolítico nos profissionais da saúde que esse trabalho poderá ser conduzido de diferentes modos e de acordo com as necessidades dos diferentes territórios, de forma instituinte, como deve ser.

Este mesmo SUS, após mais de 30 anos de existência, criou programas e estratégias que não aproveitam do melhor do trabalho humano. Com grande dificuldade para reverter o modelo disciplinar hospitalocêntrico, uma gama de profissionais é alocada para trabalhar em um cotidiano que reflete uma atuação muito conservadora da saúde pública e que, muitas vezes, reproduz a dinâmica hospitalar em vários outros serviços de saúde. A potência desses trabalhadores não é aproveitada em sua dimensão criadora, quadro agravado, ainda, pela subdivisão do trabalho de acordo com as patologias, ou seja, a fragmentação em clínicas.

Por isso, com observação atenta ao discurso de profissionais da saúde, as técnicas gerenciais consideram que os processos de trabalhos podem ser contabilizados por meio de uma métrica fabril. Mede-se, assim, o trabalho de profissionais de saúde por hora, atendimento, produção, metas, quantidade gerada de produtos etc. e, desta forma, cria-se um campo de diálogo ruidoso, porque as instituições de saúde não estão preparadas para gestar (e sim gerenciar) o trabalho vivo.

Ao entendermos que o produto desse trabalho é a própria vida e que a ferramenta dele também é outra vida, se torna impossível estabelecer uma gestão do trabalho em saúde - imaginando uma prática que afirme a produção de um comum entre usuários e trabalhadores - se estivermos gerenciando esses trabalhadores como produtores materiais, apenas.

Nessa análise, a relação com o saber também solicita problematizações, uma vez que o pensar como informação transmissível e passível de aplicação conduz a um enrijecimento da processualidade do cotidiano em saúde que pulsa vida por todos os lados. Não deve ser admitida, logo, uma relação com o saber profundamente atrelada às quantificações e cálculos que tentam enquadrá-lo nas planilhas de controle sobre o trabalho em saúde.

Este, deve ser compreendido como mover-se sobre e pela própria vida, numa relação lateralizada e transversal entre trabalhadores e usuários pela produção de um comum, supõe acessar o saber e a verdade a partir das relações consigo, com os pensamentos e os modos de ser e estar no mundo e no trabalho, um saber etopoiético que emerge e produz uma estética de existência.

Considerações finais

O trabalho em saúde trata-se de uma tecnologia que produz o cuidado à medida em que produz os sujeitos - trabalhador/usuário. A isto damos o nome de trabalho vivo - trabalho que se dá em ato -, que não pode ser enquadrado como tecnologia leve. Ao contrário, para o trabalhador da saúde trata-se da entrega diária de sua capacidade de reprodução e produção da vida de forma conflituosa, relacional, no encontro com a diferença e o mal-estar que essa suscita e, por isso, requer dele um reposicionamento ético e a produção de uma estética da existência e dos modos de trabalhar e gerir com as políticas de saúde, em consonância com uma perspectiva política de defesa da vida como direito à diferença.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    30 Dez 2021
  • Aceito
    22 Mar 2022
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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