Atenção primária à saúde e os serviços especializados de atendimento a mulheres em situação de violência: expectativas e desencontros na voz dos profissionais11Os dados apresentados e a seguir discutidos resultam de duas pesquisas multicêntricas do Grupo de Pesquisa em Saúde Global Healthcare Responding to Violence and Abuse (HERA) (D’Oliveira et al., 2020b), circunscritos ao Brasil, na cidade de São Paulo. O trabalho de campo ocorreu de 2017 a 2019. Esta pesquisa foi financiada pelo Medical Research Council of the United Kingdom e NIHR - National Institute for Health Research.

Primary health care and the specialized care services to women in situation of violence: expectations and mismatches in the voice of professionals

Janaina Marques de Aguiar Lilia Blima Schraiber Stephanie Pereira Cecilia Guida Vieira Graglia Beatriz Diniz Kalichman Marina Silva dos Reis Nayara Portilho Lima Yuri Nishijima Azeredo Ana Flávia Pires Lucas D’Oliveira Sobre os autores

Resumo

O trabalho em rede tem papel central na assistência a mulheres em situação de violência. Este estudo analisa as diferentes perspectivas desse trabalho para profissionais da Atenção Primária e profissionais de serviços especializados nas áreas de assistência social, assistência jurídica e segurança pública, na cidade de São Paulo, Brasil. Realizaram-se entrevistas semi-estruturadas com 16 profissionais dos serviços especializados e 46 da saúde. Os eixos para a análise temática foram: o que os profissionais sabem e pensam sobre os demais serviços; sua atuação a partir disso; e suas expectativas. Os dados revelaram conhecimento insuficiente sobre os distintos serviços, resultando em dificuldades comunicativas, bem como em encaminhamentos equivocados pautados em idealizações sobre como deveria atuar o outro serviço. Concluímos que cada setor é bastante autônomo e seus serviços partem de seu próprio campo de atuação para definir aquilo que seria melhor para a mulher. O conjunto funciona mais como uma trama de serviços do que como uma rede.

Palavras-chave:
Violência contra a mulher; Atenção Primária em Saúde; Rede de serviços

Abstract

Networking plays a central role in assisting women in situations of violence. This study analyzes how different the work perspectives are for Primary Care professionals and specialized services professionals in the areas of social and law assistance, and public security in the city of São Paulo, Brazil. Semi-structured interviews were carried out with 16 professionals from specialized services and 46 from the health sector. The axes for a thematic analysis were: what professionals know and think about services other than their own; their performance based on that; and their expectations. The findings revealed insufficient knowledge of the different services, resulting in communication difficulties as well as wrong referrals to other services, based on how other services would ideally work. We concluded that each sector is autonomous and its services start from its own field of action to define what would be best for women. The set works more like a mesh of services than a network.

Keywords:
Violence against women; Primary Health Care; Network of services

Introdução

Desde os anos 1980, a violência contra a mulher é tema de políticas públicas voltadas tanto para seu enfrentamento, quanto para a assistência a casos individuais nos setores de saúde, assistência social, assistência jurídica e segurança pública. Esses setores deveriam atuar em rede, constituindo política e programa assistencial comuns, e não apenas como justaposição de ações autônomas entre si, ainda que complementares, situação concebida como uma trama de serviços (Schraiber et al, 2012SCHRAIBER, L. B. et al. Assistência a mulheres em situação de violência - da trama de serviços à rede intersetorial. Athenea Digital, Bellaterra, v. 12, n. 3, p. 237-254, 2012. DOI: 10.5565/rev/athenead/v12n3.1110
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). A partir de 2000, houve importante fortalecimento da perspectiva intersetorial, com a criação da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), a Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006 - Lei Maria da Penha (LMP) (Brasil, 2006BRASIL. Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2006.), da Política e do Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, dentre outras ações (Gonsalves; Schraiber, 2021bGONSALVES, E.; SCHRAIBER, L. B. Intersetorialidade e Atenção Básica à Saúde: a atenção a mulheres em situação de violência. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 45, n. 131, p. 958-969, 2021b. DOI: 10.1590/0103-1104202113102
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; Aguiar; D’Oliveira; Schraiber, 2020AGUIAR, J. M.; D’OLIVEIRA, A. F. P. L.; SCHRAIBER, L. B. Mudanças históricas na rede intersetorial de serviços voltados à violência contra a mulher - São Paulo, Brasil. Interface-Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 24, p. 1-16, 2020. DOI: 10.1590/Interface.190486
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). O trabalho em rede, então, passa a assumir um papel central, constituindo-se como rede de enfrentamento à violência e também de atendimento às mulheres em situação de violência.

A rede de enfrentamento é composta por instituições governamentais, não-governamentais, serviços especializados e não especializados de atendimento às mulheres, universidades e diversos representantes da comunidade, visando a articulação entre agentes, de forma a garantir o desenvolvimento de políticas públicas e estratégias de prevenção voltadas para a garantia dos direitos das mulheres, a responsabilização dos agressores e a qualidade da assistência prestada. Dentro da rede de enfrentamento temos a rede de atendimento, composta por serviços de vários setores, visando atendimento integral e humanizado às mulheres (Brasil, 2011aBRASIL. Rede de enfrentamento à violência contra as mulheres. Brasília, DF: Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, 2011a.).

Prevista na LMP (2006), a rede conta com serviços especializados, como as Delegacias de Defesa da Mulher, as Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, os Centros de Referência da Mulher e, no campo da saúde, os serviços e hospitais de referência para violência sexual e aborto legal. Entretanto, também serviços não especializados integram a rede de atendimento e devem ter, no horizonte de suas práticas, ações voltadas para a violência de gênero. Um exemplo são os serviços de Atenção Primária à Saúde (APS), que, ao proverem uma assistência geral e de acompanhamento longitudinal às mulheres, podem constituir um primeiro acolhimento para esses casos (D’Oliveira et al., 2009D’OLIVEIRA, A. F. P. L. et al. Atenção integral à saúde de mulheres em situação de violência de gênero: uma alternativa para a atenção primária em saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 4, p. 1037-1050, 2009. DOI: 10.1590/S1413-81232009000400011
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, 2020aD’OLIVEIRA, A. F. P. L. et al. Obstáculos e facilitadores para o cuidado de mulheres em situação de violência doméstica na atenção primária em saúde: uma revisão sistemática. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 24, 2020a. DOI: 10.1590/Interface.190164
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).

Nesse sentido, os serviços de APS, tal como o são as Unidades Básicas de Saúde (UBS), podem compor essa rede de atenção, atuando na identificação do caso e encaminhando-o, sempre que necessário e acordado com as mulheres, aos outros serviços complementares à Saúde.

Contudo, uma recente revisão bibliográfica, ao apontar como um dos principais obstáculos para a construção dessa rede a atuação desarticulada e fragmentada entre os serviços; e como importante facilitador o conhecimento dos diferentes serviços que compõem a rede e a forma como funcionam (Gonsalves; Schraiber, 2021aGONSALVES, E. N.; SCHRAIBER, L. B. Obstáculos e Facilitadores para o trabalho em rede de serviços de atendimento às mulheres em situação de violência. Saúde em Redes, Porto Alegre, v. 7, n. 2, p. 14, 2021a. DOI: 10.18310/2446-4813.2021v7n2p239-252
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), reforça o funcionamento mais no modo de trama, do que como rede.

Moreira et al. (2014MOREIRA, T. das N. F. et al. A construção do cuidado: o atendimento às situações de violência doméstica por equipes de Saúde da Família. Saúde e Sociedade , v. 23, n. 3, p. 814-827, 2014. DOI: 10.1590/S0104-12902014000300007
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), apontam para o fato de que as relações entre as UBS e os diversos serviços mais especializados não são as de entrosamento, e nem mesmo de complementaridade de ações, até os dias atuais. Ao contrário, cada setor provedor de assistência parece ainda se conceber independente dos demais e com total autonomia na atenção a ser provida, registrando-se o afastamento do setor Saúde de uma possível atuação em rede. Foram essas hipóteses que nortearam este artigo.

Dessa forma, este estudo tem por objetivo contribuir para o conhecimento sobre o funcionamento atual da rede de atendimento a mulheres em situação de violência no município de São Paulo, apresentando a concepção que profissionais da APS e de serviços especializados nas áreas de assistência jurídica, social e de segurança pública têm uns dos outros. Acreditamos que a análise dessas concepções ajuda a compreender algumas das dificuldades nas relações entre os serviços.

Metodologia

Os dados resultam do braço brasileiro de duas pesquisas multicêntricas internacionais, conduzidas por The Global Healthcare Responding to Violence and Abuse (HERA) Research Group22Disponível em: <https://www.bristol.ac.uk/primaryhealthcare/researchthemes/hera/>. Acesso em: 5 jan. 2023., realizadas nos Territórios Ocupados da Palestina, Siri Lanka, Brasil e Nepal. No Brasil, a pesquisa foi realizada na cidade de São Paulo, centrando-se na resposta da APS ao enfrentamento da violência contra mulheres. O trabalho de campo ocorreu de 2017 a 2019, abrangendo sete UBS distribuídas em duas regiões da cidade, em amostra de conveniência para garantir a diversidade de organização e funcionamento assistencial dessas unidades em São Paulo. Nas UBS, os entrevistados foram médicos e enfermeiros, tal como indicado pelo desenho comparativo entre os países participantes, acrescido de outras categorias profissionais, nem sempre as mesmas entre os países, mas que estivessem envolvidas no atendimento a casos de mulheres em situação de violência.

Foram entrevistados para o este estudo - sobre rede intersetorial de atendimento a mulheres em situação de violência -, profissionais de oito serviços especializados: duas Delegacias de Defesa da Mulher (DDM); uma Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; a Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPESP) e o seu Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (NUDEM), a Promotoria Especializada de Violência Doméstica (GEVID) do Ministério Público do Estado de São Paulo; e dois Centros de Defesa e Convivência da Mulher (CDCM). Esses serviços corresponderam aos que foram citados pelos profissionais das UBS como referência dos encaminhamentos por eles efetuados. Os entrevistados desses serviços foram selecionados com base em posições-chaves que ocupavam na prática assistencial, de modo a fornecer informações sobre o conjunto das ações de cada serviço.

As entrevistas foram realizadas pelo grupo de pesquisadores treinados para tal e com experiência pregressa no tema há, no mínimo, cinco anos. Gravadas em áudio, elas seguiram um roteiro previamente testado, abordando a organização e fluxo assistencial dos serviços; acesso e acolhimento das mulheres, bem como desafios encontrados na articulação com outros serviços. As entrevistas, durando em média 60 minutos, foram transcritas e conferidas quanto à fidelidade da transcrição. Para a codificação das entrevistas, foi utilizado o programa NVivo12. A produção dos dados empíricos foi encerrada sob o critério de saturação, conforme Bertaux (1980BERTAUX, D. L’approche biographique. Sa validité méthodologique, ses potencialités. Cahiers Internationaux de Sociologie, Paris, v. 69, p. 197-225, 1980.). Os dados gerados foram submetidos à análise de conteúdo e agrupados nos seguintes eixos: o que os profissionais sabem e o que pensam sobre os outros serviços, o que fazem no atendimento aos casos e o que esperam dos demais serviços.

As pesquisas citadas foram submetidas e aprovadas pelo Comitê de Ética em Pesquisa (Cappesq nº 2.079.832 e nº 3.084.387; Pós-doutorado CNPq nº 2017-864). O anonimato das regiões da cidade, das instituições, bem como dos entrevistados, fez parte do consentimento previamente informado da pesquisa.

Resultados e discussão

Entrevistamos 16 profissionais dos serviços especializados, todas mulheres e distribuídas conforme a tabela 1.

Tabela 1
Profissionais dos Serviços Especializados Entrevistadas

Nas UBS entrevistamos 46 profissionais - 35 mulheres e 11 homens -, dos quais havia: seis gerentes; 14 médicos; 10 enfermeiros; seis assistentes sociais; três psicólogos; um educador físico; quatro agentes comunitários, um técnico de enfermagem e um fonoaudiólogo. Destes, sete eram profissionais das equipes de Núcleo Apoio à Saúde da Família (NASF), que apoia a atuação dos profissionais na APS (Brasil, 2008BRASIL. Portaria n. 154, de 24 de Janeiro de 2008. Cria os Núcleos de Apoio à Saúde da Família - NASF. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2008.) e cinco deles também participavam do Núcleo de Prevenção da Violência (NPV) - programa da APS voltado ao enfrentamento da violência em São Paulo (São Paulo, 2015SÃO PAULO. Portaria-SMS No 1.300 de 14 de Julho de 2015. Institui os Núcleos de Prevenção da Violência (NPV) nos estabelecimentos de Saúde do Município de São Paulo. Secretaria Municipal de Saúde, 2015.) - de sua respectiva UBS de cobertura. Os demais entrevistados eram todos do quadro de funcionários das UBS e, dentre eles, 11 profissionais também atuavam em atendimentos a casos de violência no NPV de sua UBS.

O que pensam os profissionais

Todas as entrevistadas dos serviços especializados consideram que a violência de gênero impacta na saúde da mulher, sobretudo na saúde mental, cabendo aos profissionais de saúde, além dos cuidados clínicos, uma escuta atenta aos sinais e sintomas dessa violência.

a gente percebe que ela está fragilizada emocionalmente, que precisa de um suporte psicológico e muitas vezes psiquiátrico. Às vezes, ela até precisa tomar uma medicação mesmo, para que essa mulher consiga levantar a autoestima dela, se perceber como gente, como pessoa. (CDCM 1, Gerente)

A maioria destas entrevistadas ressalta a falta de psicólogos e psiquiatras para absorver a demanda de acompanhamento dessas mulheres. Os profissionais entendem que seria papel do Sistema Único de Saúde (SUS) suprir essa demanda, e não do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), como ocorre no cotidiano dos serviços. Pela falta de profissionais em ambos os sistemas, além da ausência de consenso entre os dois setores sobre esta atribuição, o que se percebe é um encaminhamento cruzado dos serviços: a APS encaminha para o CDCM, para que a mulher possa ter um acompanhamento psicológico; e o CDCM encaminha para a APS, porque entende não fazer parte das atribuições dos psicólogos da assistência social o acompanhamento em psicoterapia.

Parece haver pouca reflexão, ou mesmo desconhecimento, sobre outras modalidades de cuidado (como NASF e atendimentos de grupo, por exemplo) que podem ser ofertadas pelas/os psicólogas/os com potencial para ampliar a oferta dessa atenção como complementar e interativa com as demais formas de atendimento. Ressaltamos também a falta de uma discussão mais crítica sobre os limites da psicoterapia, vista por muitos entrevistados como um recurso para “levantar a autoestima” da mulher e convencê-la a romper com o agressor. Um diálogo entre os setores poderia ajudar a ter uma perspectiva mais reflexiva do que parece ser uma “psicologização” da violência (Porto, 2006PORTO, M. Violência contra a mulher e atendimento psicológico: o que pensam os/as gestores/as municipais do SUS. Psicologia: ciência e profissão, Brasília, DF, v. 26, n. 3, p. 426-439, 2006.). Ressaltamos ainda que, embora a saúde mental seja trazida como uma questão importante, não houve qualquer menção dos entrevistados da APS a encaminhamentos para o Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).

As entrevistadas também reconhecem algumas dificuldades e limites da saúde para prover assistência a mulheres em situação de violência, tais como falta de tempo com a sobrecarga na demanda do serviço, medo de represálias do agressor, falta de capacitação e julgamento de valores acerca da violência, dados que são corroborados pela literatura (Hasse; Vieira, 2014HASSE, M.; VIEIRA, E. M. Como os profissionais de saúde atendem mulheres em situação de violência? Uma análise triangulada de dados. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 38, n. 102, p. 482-493, 2014. DOI: 10.5935/0103-1104.20140045
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).

Eu acho que o desafio é o território. Porque, querendo ou não, o equipamento de saúde, de algum modo ele está exposto, né? Então, é tratar da mulher que está com violência, e a UBS atende a família inteira! (…) para o equipamento de saúde, é um desafio. Como que eu vou trabalhar a questão da violência, encaminhar essa mulher para um serviço de referência, e o agressor está aqui? (CDCM 2, Psicóloga)

A APS também é vista como o primeiro lugar no qual a mulher poderia falar sobre a violência sofrida, como uma espécie de celeiro para captação de casos de violência e, por essa razão, funcionaria como uma porta de entrada para a rede especializada.

a UBS (…) é a maior porta para identificar a violência doméstica, que uma mulher passa. (…) Porque a UBS é a porta de entrada em que todas as mulheres vão. Todas as mulheres vão fazer exame de rotina, a mulher vai por ter dor de cabeça, para tomar vacina, por levar filho, para passar no médico. (CDCM 1, Assistente Social)

Por sua vez, as/os entrevistadas/os dos serviços de saúde têm pouco conhecimento sobre a diversidade dos serviços especializados ou de suas atuações detalhadas. Os mais conhecidos são os CDCM, os abrigos e as DDM. Observamos que aqueles que atuam também no NPV ou NASF, programa que, entre outros objetivos, apoia esse enfrentamento da violência (Brasil, 2008BRASIL. Portaria n. 154, de 24 de Janeiro de 2008. Cria os Núcleos de Apoio à Saúde da Família - NASF. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2008.), detêm maior conhecimento que os demais profissionais sobre os serviços especializados da rede, principalmente as/os assistentes sociais, identificados como os/as profissionais mais bem preparados/as para fazer encaminhamentos (Pereira-Gomes et al., 2015PEREIRA-GOMES, N. et al. Apoio social à mulher em situação de violência conjugal. Revista de Salud Pública, Bogotá, v. 17, n. 6, p. 823-835, 2015. DOI: 10.15446/rsap.v17n6.36022
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).

As DDM são o serviço mais conhecido pela maioria das/os entrevistadas/os na saúde. Ainda que não saibam a localização da DDM de sua região, possuem alguma informação de sua finalidade. Isso se deve, principalmente, à maior divulgação desse serviço pelos veículos de comunicação, em grande parte pelo próprio reconhecimento desta violência como um crime, e também porque foram historicamente os primeiros serviços criados para lidar com situações de violência doméstica contra as mulheres (Oliveira; Moreira, 2016OLIVEIRA, C. M.; MOREIRA, M. I. C. Os sentidos produzidos para a violência contra as mulheres a partir da perspectiva dos profissionais da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher de Betim-MG. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 22, n. 3, p. 729-748, 2016. DOI: 10.5752/P.1678-9523.2016V22N3P729
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). Ainda assim, há percepções distintas sobre sua finalidade e atuação, prevalecendo a imagem de que há pouca ou nenhuma efetividade na proteção da mulher e descrença quanto à qualidade do atendimento, o que parece ser reforçado pelo desencontro entre as expectativas das mulheres e a oferta de assistência na DDM, como apontado pela literatura (Aguiar; D’Oliveira; Schraiber, 2020AGUIAR, J. M.; D’OLIVEIRA, A. F. P. L.; SCHRAIBER, L. B. Mudanças históricas na rede intersetorial de serviços voltados à violência contra a mulher - São Paulo, Brasil. Interface-Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 24, p. 1-16, 2020. DOI: 10.1590/Interface.190486
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; Frugoli et al., 2019FRUGOLI, R. et al. De conflitos e negociações: uma etnografia na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher. Saúde e Sociedade. v. 28, n. 2, p. 201-214, 2019. DOI: 10.1590/S0104-12902019170842
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; Oliveira; Moreira, 2016OLIVEIRA, C. M.; MOREIRA, M. I. C. Os sentidos produzidos para a violência contra as mulheres a partir da perspectiva dos profissionais da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher de Betim-MG. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 22, n. 3, p. 729-748, 2016. DOI: 10.5752/P.1678-9523.2016V22N3P729
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).

Ainda assim, a necessidade do Boletim de Ocorrência (BO) é apontada como condição para o atendimento da mulher em outros serviços, sobretudo no que se refere ao atendimento em hospitais para os casos de violência sexual e aborto legal - embora essa condição não seja tratada na LMP ou prevista nas normas técnicas que orientam os serviços de saúde (Brasil, 2011bBRASIL. Atenção humanizada ao abortamento: norma técnica. 2. ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde , 2011b.). Dessa forma, toda a compreensão do funcionamento da rede fica centralizada na obrigatoriedade da denúncia, mas em um cenário de pouca confiança na capacidade dos policiais de darem uma assistência qualificada para esses casos.

Em outros momentos, essa relação se inverte, e é o BO que fica condicionado a um atendimento médico, com base em uma lógica de fluxo que nem sempre faz sentido para as/os profissionais de saúde.

Porque geralmente ela chega com hematomas, chega machucada, então (…) a enfermeira encaminha para ela ser atendida pelo médico do AMA, porque infelizmente pra ela registrar o boletim de ocorrência ela tem que chegar com uma cartinha do médico dizendo que ela passou por atendimento. Sem essa cartinha ela não consegue abrir o boletim de ocorrência (…) Eu acho isso um absurdo. É claro, ela precisa de atendimento médico dependendo da situação, se ela tiver muito machucada ela precisa ser atendida sim, mas ter que ser realizado um relatório médico para que seja feito um boletim de ocorrência, eu acho nada a ver uma coisa com a outra. (…) cada local que ela vai ela tem que relatar toda a história de novo, vivenciar toda aquela situação. (UBS.6 Assistente Social, NASF e NPV)

Os serviços menos conhecidos pelas/os profissionais de saúde são os de assistência jurídica, tanto no que se refere à sua existência quanto à clareza de suas distintas finalidades de atuação. No que se refere à Defensoria Pública, há uma desconfiança de que a assistência seja pouco eficaz pela morosidade do sistema judiciário. Nas entrevistas, este serviço foi mais associado às seguintes atuações: de orientação jurídica, quando a mulher está decidida a se separar, pela garantia de um advogado gratuitamente; de proteção, no sentido de ser responsável por conseguir um abrigo para a mulher e seus filhos quando esta sai de casa; e de mediação da relação familiar diante de conflito violento. Vale ressaltar que a gratuidade de defensor é garantida, por lei, a qualquer mulher independentemente de sua renda (Lewin; Prata, 2016LEWIN, A. P. de O. C. M.; PRATA, A. R. S. Da atuação da Defensoria Pública para Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher. Revista Digital de Direito Administrativo, São Paulo, v. 3, n. 3, p. 525-541, 2016. DOI: 10.11606/issn.2319-0558.v3i3p525-541
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).

Estou meio em dúvida, sei que a Defensoria está meio sobrecarregada, quanto que ela consegue acolher um caso ou não. Eu sei que tem alguns critérios para entrar na Defensoria, tipo até 3 salários mínimos de renda, tem umas coisas assim. Mas não sei especificamente em violência o que a Defensoria faria diferente da Vara, sabe? Qual a especificidade entre a Vara e a Defensoria… (UBS.4 Médico, NPV)

Há ainda, entre alguns entrevistados, uma compreensão de que o bom trabalho de todas as instâncias jurídicas estaria sempre condicionado ao trabalho policial, dependendo da denúncia nas delegacias e registro de BO. O trabalho dessas instâncias da justiça criminal fica condicionado, de fato, ao inquérito policial. Entretanto, na justiça civil, não há esse condicionamento e é importante destacar que, de acordo com a LMP, as Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher devem ter dupla atuação: civil e criminal (Lewin; Prata, 2016LEWIN, A. P. de O. C. M.; PRATA, A. R. S. Da atuação da Defensoria Pública para Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher. Revista Digital de Direito Administrativo, São Paulo, v. 3, n. 3, p. 525-541, 2016. DOI: 10.11606/issn.2319-0558.v3i3p525-541
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).

O que fazem os profissionais

O fluxo das DDM para os serviços de saúde se dá especialmente nos casos de violência física e abuso sexual, quando a mulher precisa de atendimento clínico. São, portanto, casos considerados mais graves e que exigem atendimento emergencial, que pontuam o contato das DDM com os serviços de saúde (Frugoli et al, 2019FRUGOLI, R. et al. De conflitos e negociações: uma etnografia na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher. Saúde e Sociedade. v. 28, n. 2, p. 201-214, 2019. DOI: 10.1590/S0104-12902019170842
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), o que não chega a caracterizar uma articulação de ações entre esses serviços. Entendemos que a falta dessa articulação em rede se deve, em parte, à própria estrutura e finalidade das DDM, voltadas especificamente para a tipificação do crime dentro das normas legais (Aguiar; D’Oliveira; Schraiber, 2020AGUIAR, J. M.; D’OLIVEIRA, A. F. P. L.; SCHRAIBER, L. B. Mudanças históricas na rede intersetorial de serviços voltados à violência contra a mulher - São Paulo, Brasil. Interface-Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 24, p. 1-16, 2020. DOI: 10.1590/Interface.190486
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; Frugoli et al, 2019FRUGOLI, R. et al. De conflitos e negociações: uma etnografia na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher. Saúde e Sociedade. v. 28, n. 2, p. 201-214, 2019. DOI: 10.1590/S0104-12902019170842
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).

As profissionais dos CDCM e NUDEM, por sua vez, são as que mais se colocam à disposição para essa articulação, com orientação e discussão de casos com as/os profissionais das UBS. A ida de profissionais do CDCM 2 às UBS para apoio e discussão de casos, atendimento conjunto e apresentação do serviço contribui para um maior conhecimento deste, reforçando a articulação e favorecendo os encaminhamentos, de acordo com as/os profissionais de saúde. Também configuram ações de maior interação entre os profissionais dos distintos serviços, potencializando a relação em rede, como apontado por outros estudos sobre a articulação intersetorial no enfrentamento da violência (Pereira-Gomes et al., 2015PEREIRA-GOMES, N. et al. Apoio social à mulher em situação de violência conjugal. Revista de Salud Pública, Bogotá, v. 17, n. 6, p. 823-835, 2015. DOI: 10.15446/rsap.v17n6.36022
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; Menezes et al., 2014MENEZES, P. R. M. et al. Enfrentamento da violência contra a mulher: articulação intersetorial e atenção integral. Saúde e Sociedade , São Paulo, v. 23, n. 3, p. 778-786, set. 2014. DOI: 10.1590/S0104-12902014000300004
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).

Para alguns profissionais dos serviços especializados, entretanto, haveria limites para a atuação das/os profissionais de saúde no que se refere a orientações legais sobre os direitos das mulheres e sobre a atuação dos demais serviços. Isto porque, da perspectiva dessas entrevistadas, as/os profissionais de saúde, por desconhecimento, acabam gerando expectativas muito idealizadas, que prejudicam a compreensão e confiança das mulheres ao utilizarem esses serviços.

em algumas questões que a vítima faz para a gente que é do setor do Direito, a gente fala para elas assim: não, mas veja, tudo é caso a caso, eu preciso ver o que a senhora vai trazer para mim, em termos do que a senhora consegue me provar, porque as coisas não são simples. E aí ela sai do sistema de Saúde com uma expectativa, e aí ela vem para o sistema de Justiça e ela fala: “mas não foi isso que me falaram lá na UBS! Nossa, aqui tudo demora mesmo, né?”, porque elas já acham, e com razão, que o sistema de Justiça é moroso. Elas já acham que muitas vezes elas não são bem atendidas. É verdade. Então, a minha preocupação é no sentido de ser mais uma fonte de frustração, essa orientação. Porque nada é tão simples no Direito. Embora devesse ser. (Vara Violência, Juíza)

Parece haver, por parte da juíza, um receio de que esse desencontro das expectativas das mulheres com a oferta de assistência no judiciário, tal como ocorre com as DDM por uma diferença de perspectivas e linguagem na abordagem da violência (Frugoli et al., 2019FRUGOLI, R. et al. De conflitos e negociações: uma etnografia na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher. Saúde e Sociedade. v. 28, n. 2, p. 201-214, 2019. DOI: 10.1590/S0104-12902019170842
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201917...
; Oliveira; Moreira, 2016OLIVEIRA, C. M.; MOREIRA, M. I. C. Os sentidos produzidos para a violência contra as mulheres a partir da perspectiva dos profissionais da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher de Betim-MG. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 22, n. 3, p. 729-748, 2016. DOI: 10.5752/P.1678-9523.2016V22N3P729
https://doi.org/10.5752/P.1678-9523.2016...
), resulte em maiores obstáculos na própria efetividade dessa assistência.

Por outro lado, percebe-se, também, uma compreensão instrumentalizada do trabalho em saúde, como se devesse estar restrito à atuação biomédica e encaminhamentos, favorecendo o trabalho dos outros serviços. Na prática, mesmo tendo algum conhecimento sobre a LMP, as/os profissionais de saúde também não se sentem à vontade para lidar com normas legais e reconhecem a utilidade dos serviços especializados.

eu faço a orientação, explico quais são os procedimentos, o que a lei favorece, o que é a lei Maria da Penha, e o que ela poderia fazer como precaução, dependendo do caso. E a gente fala do Boletim de Ocorrência, mas fala também da não obrigatoriedade sobre ele. E quando a gente vê que a pessoa está disposta, mas que ela está confusa com a parte jurídica (…) o meu encaminhamento aqui hoje é para o CDCM (…) para que eles possam atuar nessa parte jurídica, que é essa parte que nós não podemos falar. (UBS.4 Assistente Social, NASF e NPV)

Nas UBS, as relações entre os serviços ficam a cargo dos integrantes do NPV e NASF, sobretudo psicólogos e assistentes sociais. Essas/es profissionais se preocupam em ligar antes para o serviço que estão referenciando, averiguar as condições de transporte da mulher ou, em alguns casos, levá-la ao local e, posteriormente, saber como ela foi atendida. A busca por uma comunicação mais pessoal, com um profissional específico do outro serviço, também parece ser um critério para fortalecer a confiança no sucesso do encaminhamento, ainda que tal comunicação não represente construção de uma assistência em comum para o caso.

faz muita diferença, porque quando a gente liga e fala com as pessoas, funciona melhor, as pessoas compram mais os casos. (…) Porque tem coisa que a gente não liga, a gente passa direto, marca no sistema, mas isso a gente liga, porque quando a gente liga a gente (…) percebe que muda como as pessoas recebem o caso, ele cria uma relação de corresponsabilidade maior. Dá mais trabalho, porque quando a gente tá na corrida da vida do dia-a-dia, ligar dá trabalho (…) mas é um esforço que a gente acha que vale a pena. (UBS.6 Gerente)

O CDCM é reconhecido pela maioria dos profissionais que atuam no NPV e NASF como um serviço mais adequado para primeiro encaminhamento, por seu perfil de atuação multiprofissional, principalmente se a mulher está em dúvida quanto a decisão a ser tomada. Tal atuação, na visão dessa gerente, facilitaria inclusive o trabalho dos profissionais de saúde, otimizando o seu tempo no cuidado a esses casos e estando em acordo com a percepção dos serviços especializados sobre o papel da UBS ser o de celeiro de casos.

CDCM acho que foi uma das parcerias mais relevantes; primeiro porque eles simplificam (…) eles têm uma potência da gente mandar para eles e eles fazem lá articulação, então encurta o nosso papel, porque eles vão abrir o leque de intersecções com o fórum, por exemplo. (…) aí depois eles contam se a pessoa foi, como é que foi, o que aconteceu, se abrigou ou não, se conversou com advogado, com a psicóloga, o que é que fez (…) Eles contam o que fizeram, por isso não sou eu quem manda, eles mandam e simplifica aqui, considerando que nós somos o começo daqui do funil, então se eu posso gastar quinze minutos e eles podem gastar duas horas, que bom! Eu gasto quinze minutos e pego mais gente para eles. Mas eles só fazem isso, eles são um serviço especializado, eu atendo um mundo de coisas, isso é só uma das coisas que eu atendo. (UBS.6 Gerente)

A respeito dos contatos entre os serviços, outros profissionais de saúde se queixaram da falta de uma contrarreferência mais ativa por parte dos serviços especializados. Essa ausência sugere a simplificação do que seria um efetivo atendimento complementar, pois pode levar ao entendimento de que apenas enviar a outro serviço já seria um referenciamento. Queremos reforçar aqui o conceito de que referenciar, no sentido de dar um atendimento adicional com vistas à atenção integral ao caso, sempre será ofertar um complemento interativo com aquele que encaminhou, para garantir que a complementaridade se dê em interação com o outro serviço.

O que eu percebo é que eu não tenho devolutiva depois. (…) deveria ter esse retorno até para eu saber como eu continuo aquele caso. (UBS.4 Assistente Social, NASF e NPV)

acho que de fato ter uma contrarreferência, um retorno desses serviços pra gente, porque quando a equipe tem um serviço que encaminha e não tem um retorno daquele serviço eles acabam não querendo encaminhar porque: “Ah, ninguém diz o que aconteceu. Foi pra lá e sumiu a pessoa?Eu vejo que as vezes perde a rede por conta disso (UBS.5 Gerente, NPV)

O que esperam os profissionais

As expectativas das/os entrevistados, em relação à atuação dos outros serviços, parecem partir sempre da perspectiva do que consideram mais importante para o seu trabalho, e não no sentido de um projeto assistencial comum centrado na mulher. Entre as profissionais do CDCM, a expectativa é de a APS cumpra seu papel de identificar e encaminhar esses casos, antes que se tornem mais graves, além de reforçar a adesão destas mulheres aos serviços especializados.

se é uma UBS que encaminha ela, essa mulher veio uma vez, mas não veio outra, vamos perguntar a ela, também, quando ela chega na UBS, porque é mais fácil ela chegar na UBS do que aqui. Então, pergunta: “você foi lá? Como foi o atendimento?” Sabe, tem que ter essa conversa, essa comunicação. “A senhora não foi; por quê?” E a profissional que está encaminhando, tem que também conhecer nosso serviço. (CDCM 1, Gerente)

Entre as profissionais das DDM e da assistência jurídica há uma expectativa de que os profissionais de saúde ajudem na evidência da violência, por meio dos registros em prontuários, que, desta forma, se tornariam provas importantes nos processos criminais contra o agressor.

O prontuário é a única prova que comprova que ela realmente passou naquela data, que sofreu aquela lesão. Às vezes, eles não liberam o prontuário facilmente. (…) O Prontuário é uma coisa que é da paciente. (…) Porque não é que ela resolveu inventar dali dois meses que foi agredida dois meses atrás. Não. Ela veio agora falar e ela faz prova, que há dois meses atrás ela passou pelo médico e teve determinada lesão. (Delegada 1)

Para a juíza, o relato do profissional de saúde que atendeu a vítima traria elementos que a ajudariam numa compreensão mais humana e ampliada do caso, como um retrato da situação, e não apenas das informações técnicas.

eu gostaria - vamos dizer assim, trabalhando com o mundo ideal - que esse histórico, por exemplo, que esse médico pudesse dizer: “a vítima chegou aqui, no dia seguinte ao atendimento, ainda visivelmente abalada”; que houvesse uma descrição, ou alguma coisa; que aquele laudo ficasse um pouco mais humano. (Vara Violência, Juíza)

Uma das delegadas chama a atenção para a dificuldade apresentada por alguns profissionais de saúde, em função do que parece ser um receio em se comprometer com o atestado de uma violência. A promotora, por sua vez, reconhece que tal dificuldade pode se dar em função de um desconhecimento dos profissionais de saúde sobre como informações a respeito das condições de saúde podem ajudar legalmente a mulher. Seu argumento sobre a importância dessas informações no prontuário, para ajudar os agentes do direito a traduzir os tipos de violência contra a mulher para os tipos penais, se baseia principalmente no artigo 129 do Código Penal, que entende a lesão corporal como atentado à integridade física ou à saúde da mulher.

Eu acho que tem dificuldades, mas eu acho que é falta de conhecimento de que aquele prontuário, com aquela informação, vai ser subsídio para uma ação penal. É falta de conversa entre as instituições. (…) Se trata de olhar para essa vítima e enxergar que o pano de fundo, que a raiz de todas aquelas queixas, daqueles problemas de saúde (…) é a violência psicológica. (…) nós temos na nossa legislação penal uma dificuldade muito grande de traduzir em crimes, tipos penais, todas as violências da Lei Maria da Penha e as violências que existem. (…) Esse exercício de tradução (…) é muito difícil, mas ele é possível quando a rede auxilia. (…) não é só o tapa, a mordida, e a queimadura, que vai configurar o artigo 129, mas é a lesão à saúde. (…) é desenvolver o transtorno pós-traumático (…) DST (…) Transtorno alimentar, transtorno de sexualidade, isso é muito comum na violência sexual. (…) É isso que a gente precisa para entrar com ação penal. (GEVID, Promotora)

Nas UBS, as/os profissionais também trouxeram uma expectativa sobre o alcance - quer de proteção, quer de punição - do agressor, por parte dos serviços especializados, principalmente das delegacias. Destas, esperam o registro da denúncia, a vigilância do agressor, mediação de conflito e a garantia do cumprimento da medida protetiva.

Por outro lado, manifestaram o receio de encaminhar a mulher para a rede especializada, não só pela competência do outro serviço, mas também pelo risco de fragilizar o vínculo da mulher com o serviço de saúde, diante de um encaminhamento malsucedido. Assim, os relatos são idealizados quanto ao papel dos serviços especializados, no sentido de que atuem como uma extensão do serviço de saúde, que estejam sempre acessíveis a essa mulher e deem conta de suas demandas da forma mais resolutiva possível - tal qual a lógica que rege o próprio serviço de saúde. A perspectiva que rege tais expectativas parece estar em consonância com a finalidade da APS como reorientadora do sistema de saúde, cabendo-lhe o papel de organização de fluxos e contrafluxos, centralizando a comunicação e as informações dentro da rede interna à saúde (Ribeiro; Cavalcanti, 2020RIBEIRO, S. P.; CAVALCANTI, M. L. T. Atenção Primária e Coordenação do Cuidado: dispositivo para ampliação do acesso e a melhoria da qualidade. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 5, p. 1799-1808, 2020. DOI: 10.1590/1413-81232020255.34122019
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)

Sobre a expectativa de que a saúde tenha um papel mais atuante na denúncia dos casos de violência, vale ressaltar que, no início de 2021, foi lançada a Portaria GM/MS Nº 78 pelo Ministério da Saúde, estabelecendo que os casos de violência contra a mulher que forem atendidos em serviços públicos ou privados devem ser comunicados à autoridade policial, não contendo dados que identifiquem a mulher ou o agressor, exceto quando houver risco à ela ou à sua comunidade, mas sempre com seu conhecimento prévio (Brasil, 2021BRASIL. Portaria GM/MS No 78, de 18 de Janeiro de 2021. Altera a Portaria de Consolidação GM/MS nº 4, de 28 de setembro de 2017, para dispor sobre as diretrizes para a comunicação externa dos casos de violência contra a mulher às autoridades policiais, no âmbito da Lei nº 10.778, de 24 de novembro de 2003. Brasília, DF: Ministério da Saúde , 2021.).

Diante do exposto, há que se considerar que tal comunicação para autoridade policial sem identificação dos envolvidos, embora não tenha caráter denunciante, mas informativo, se soma à sobrecarga de trabalho dos profissionais de saúde e pode resultar em sua maior resistência, como já ocorre com a notificação compulsória para vigilância epidemiológica (Kind et al., 2013KIND, L. et al. Subnotificação e (in)visibilidade da violência contra mulheres na atenção primária à saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 29, n. 9, p. 1805-1815, set. 2013. DOI: 10.1590/0102-311X00096312
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). A comunicação com caráter denunciante, da mesma forma, pode encontrar resistência entre os profissionais de saúde e nas próprias mulheres, uma vez que compromete o vínculo de confiança quanto à confidencialidade de seu relato. Afinal, esta já é uma barreira na assistência aos casos (D’Oliveira et al., 2020aD’OLIVEIRA, A. F. P. L. et al. Obstáculos e facilitadores para o cuidado de mulheres em situação de violência doméstica na atenção primária em saúde: uma revisão sistemática. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 24, 2020a. DOI: 10.1590/Interface.190164
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). Existe, portanto, uma diferença sensível e importante entre o profissional de saúde incentivar a mulher a fazer a denúncia na DDM e a mulher saber que, se relatar a violência para o profissional, seu caso poderá ser denunciado à autoridade policial, mesmo que ela não queira fazê-lo.

Considerações finais

O conhecimento insuficiente das/os distintos profissionais sobre a rede de serviços e sobre a atuação de cada um resulta não só em dificuldades na comunicação e articulação, mas também em encaminhamentos equivocados, baseados em idealizações.

Tais expectativas, tanto dos serviços especializados em relação à saúde, quanto desta para com os especializados, são de que o outro serviço atue no sentido de reforçar o seu próprio, uma vez que cada serviço toma o seu papel como central e bastante autônomo na assistência à mulher em situação de violência.

É possível que, pelo SUS ter uma visão sistêmica de fluxos assistenciais de referência e contrarreferência, isso favoreça, até certo ponto, a busca pelos profissionais de saúde de encaminhamentos para serviços especializados, mais do que destes para a saúde. Isso, da perspectiva da APS, continuaria, contudo, sendo uma ação complementar à sua própria.

Assim, cada serviço busca definir aquilo que entende ser melhor para a mulher da perspectiva de seu campo de atuação. Os CDCM esperam que a saúde reforce a adesão da mulher ao próprio serviço; os agentes de justiça esperam que a saúde produza provas para a finalidade do trabalho da justiça e as agentes de polícia esperam que a saúde promova a denúncia dos casos. O que resulta, portanto, em articulações entre os serviços mais no sentido de uma trama do que uma rede, propriamente dita.

Nesse sentido, a superação desse modo de funcionamento em trama vai além do maior conhecimento sobre a atuação dos serviços da rede de assistência, pois envolve a interação entre os profissionais dos distintos serviços, em diálogos trocados em torno a uma reflexão crítica de cada campo de atuação e à adoção efetiva de um modo de operar que se volte para a construção de um projeto compartilhado pelos distintos profissionais e serviços, no atendimento às necessidades da mulher. Além disso que seja projeto de ação que a inclua, buscando centrar-se na própria mulher, de quem depende, afinal, o sucesso prático da atenção integral a ser prestada. Alcançar esse objetivo depende, ainda, de uma construção em comum da política pública compartilhada nos diversos setores, o que não tem sido a prática no Brasil.

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    » https://doi.org/10.5565/rev/athenead/v12n3.1110

  • 1
    Os dados apresentados e a seguir discutidos resultam de duas pesquisas multicêntricas do Grupo de Pesquisa em Saúde Global Healthcare Responding to Violence and Abuse (HERA) (D’Oliveira et al., 2020bD’OLIVEIRA, A. F. P. L. et al. Are we asking too much of the health sector? Exploring the readiness of brazilian primary healthcare to respond to domestic violence against women. International Journal of Health Policy and Management, Kerman, v. 11, n. 7, p. 961-972, 2020b. DOI: 10.34172/IJHPM.2020.237
    https://doi.org/10.34172/IJHPM.2020.237...
    ), circunscritos ao Brasil, na cidade de São Paulo. O trabalho de campo ocorreu de 2017 a 2019. Esta pesquisa foi financiada pelo Medical Research Council of the United Kingdom e NIHR - National Institute for Health Research
  • 2
    Disponível em: <https://www.bristol.ac.uk/primaryhealthcare/researchthemes/hera/>. Acesso em: 5 jan. 2023.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    27 Jul 2022
  • Aceito
    03 Out 2022
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br