Resumo
Este artigo objetiva analisar a produção científica brasileira sobre empreendedorismo em enfermagem produzida de 2008 a 2020. Considera-se, como método, a crítica à ideologia proposta pelo materialismo histórico-dialético, enfocando, em particular, a problemática entre ideologia e ciência. A pesquisa conclui que os textos acadêmico-científicos reproduzem o tratamento apaziguador das contradições da forma societária do capital, pelo qual ocultam-se as relações entre empreendedorismo e exploração, bem como coloca-se a atividade empreendedora como a única e inovadora possibilidade de sobrevivência, e mesmo existência, para a classe trabalhadora.
Palavras-chave:
Enfermagem; Empreendedorismo; Ideologia
Abstract
This article aims to analyze the Brazilian scientific production on entrepreneurship in nursing from 2008 to 2020. It considers, as a method, the critique of the ideology proposed by the historical-dialectical materialism, focusing, in particular, on the problem between ideology and science. The research concludes that academic-scientific texts reproduce the appeasement treatment of the contradictions of the social form of capital, by which the relation between entrepreneurship and exploitation is hidden, as well as place entrepreneurial activity as the only and innovative possibility of survival, or even existence, for the working class.
Keywords:
Nursing; Entrepreneurship; Ideology
Introdução
Discutir empreendedorismo no campo da enfermagem significa pautar o conjunto de investidas contra os trabalhadores e as trabalhadoras, no âmbito das mutações do trabalho no capitalismo e, em particular, na ofensiva neoliberal. O desassalariamento; o crescente desemprego; a desregulamentação e relativização dos direitos trabalhistas; e a desestruturação do mercado de trabalho - processos consubstanciados na designação genérica de precarização do trabalho - são marcas deste contexto, assim como o fortalecimento do empreendedorismo como solução para os problemas sociais (Oliveira; Castro; Santos, 2017OLIVEIRA, A. S.; CASTRO, C. A.; SANTOS, H. S. Trabalho informal e empreendedorismo: faces (in)visíveis da precarização. Revista Brasileira de Sociologia do Direito, Recife, v. 4, n. 3, p. 86-105, 2017. DOI: 10.21910/rbsd.v4n3set./dez..2017.124
https://doi.org/10.21910/rbsd.v4n3set./d... ). Nos termos diretos de Laval (2017LAVAL, C. Precariedade como estilo de vida na era neoliberal. Revista Parágrafo, São Paulo, v. 5, n. 1, p. 101-108, 2017. Disponível em: <Disponível em: http://revistaseletronicas.fiamfaam.br/index.php/recicofi/article/view/566/500 >. Acesso em: 20 mar. 2021.
http://revistaseletronicas.fiamfaam.br/i... , p. 101) e na conjunção das políticas neoliberais, a precariedade é definida por palavras positivas, como “empreendedor”, “empresa” ou “empreendedorismo”, vinculadas a um largo quadro de produção de inseguranças sociais de toda ordem.
No que se refere ao Brasil, transformações na instância jurídica compuseram o processo de afirmação do empreendedorismo. Simultaneamente à dinâmica que concilia desemprego com o alto índice de informalidade, foi produzida, no país, a figura do Microempreendedor Individual (MEI) (Lei Complementar 128/2008), propagada como uma resposta ao desemprego estrutural - contradição própria da relação capital-trabalho - e como uma conquista da formalização daqueles à margem das legislações trabalhistas. No entanto, cumpre afirmar, após anos de implantação desta regulamentação, que a Lei estimula a degradação do trabalho e a continuidade da concentração de renda, além do barateamento da força de trabalho (Damião; Santos; Oliveira, 2013DAMIÃO, D. R. R.; SANTOS, D. F. L.; OLIVEIRA, L. J. A ideologia do empreendedorismo no Brasil sob a perspectiva econômica e jurídica. Ciências Sociais Aplicadas em Revista, Marechal Cândido Rondon, v. 13, n. 25, p. 191-207, 2013. Disponível em: <Disponível em: http://e-revista.unioeste.br/index.php/csaemrevista/article/view/9515/7654 >. Acesso em: 29 fev. 2020.
http://e-revista.unioeste.br/index.php/c... ). Observe-se, ainda, que esse panorama não foi criado pela pandemia de covid-19, mas agravou-se nessa conjuntura, pois brasileiros buscam, na atividade empreendedora, uma alternativa de renda (Vilela, 2020VILELA, P. R. Pandemia faz Brasil ter recorde de novos empreendedores. Agência Brasil, Brasília, DF, 5 out. 2020. Economia. Disponível em: <Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-10/pandemia-faz-brasil-ter-recorde-de-novos-empreendedores >. Acesso em: 18 mar. 2021.
https://agenciabrasil.ebc.com.br/economi... ).
Não é novidade que as pesquisas sobre o trabalho da enfermagem evidenciam condições precarizadas, tais como sobrecarga de trabalhadores, escassez de material, longas jornadas de trabalho, salários não condizentes com a atividade laboral, bem com pouco reconhecimento profissional e social (Machado et al., 2017MACHADO M. H. et al. (Coord.). Pesquisa perfil da enfermagem no Brasil: relatório final. Rio de Janeiro: Fiocruz; Cofen, 2017. Disponível em: <Disponível em: http://www.cofen.gov.br/perfilenfermagem/pdfs/relatoriofinal.pdf >. Acesso em: 18 jan. 2021.
http://www.cofen.gov.br/perfilenfermagem... ). Tais condições são prejudiciais, inclusive, para a saúde mental dos trabalhadores de enfermagem e tendem a se agravar diante de um cenário como o atual, de pandemia de covid-19 (Souza et al., 2021SOUZA, N. V. D. O. et al. Trabalho de enfermagem na pandemia da covid-19 e repercussões para a saúde mental dos trabalhadores. Revista Gaúcha de Enfermagem, Porto Alegre, v. 42, n. esp, e20200225, 2021. DOI: 10.1590/1983-1447.2021.20200225
https://doi.org/10.1590/1983-1447.2021.2... ; Fernandez et al. 2021FERNANDEZ, M. et al. Condições de trabalho e percepções de profissionais de enfermagem que atuam no enfrentamento à covid-19 no Brasil. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 30, n. 4, e201011, 2021. DOI: 10.1590/S0104-12902021201011
https://doi.org/10.1590/S0104-1290202120... ).
É com esta realidade que a sedução do empreendedorismo dialoga. Como a precarização tem atravessado o universo do trabalho através de várias formas e modalidades, o empreendedorismo, para o trabalhador de enfermagem, pode se apresentar como uma solução para o desemprego e como um escape das condições aviltantes de trabalho. Não é aleatório o fato de que a precarização e a flexibilização do uso da força de trabalho apresentam íntima conexão com o avanço da razão empreendedora, conforme se pode depreender a partir de Oliveira, Castro e Santos (2017OLIVEIRA, A. S.; CASTRO, C. A.; SANTOS, H. S. Trabalho informal e empreendedorismo: faces (in)visíveis da precarização. Revista Brasileira de Sociologia do Direito, Recife, v. 4, n. 3, p. 86-105, 2017. DOI: 10.21910/rbsd.v4n3set./dez..2017.124
https://doi.org/10.21910/rbsd.v4n3set./d... ).
Longe de ser uma resposta, o empreendedorismo, de fato, representa uma nova forma de precarização do trabalho, com o agravante de que o sujeito, cercado de impossibilidades, o considera como único ou melhor caminho de subsistência - ou de vida financeira mais confortável (Oliveira; Moita; Aquino, 2016OLIVEIRA, E. N. P; MOITA, D. S; AQUINO, C. A. B. O empreendedor na era do trabalho precário: relações entre empreendedorismo e precarização laboral. Revista Psicologia política, São Paulo, v. 16, n. 36, p. 207-226, 2016. Disponível em: <Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-549X2016000200006 >. Acesso em: 20 nov. 2019
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr... ). Dessa forma, a razão empreendedora ganha força no âmbito de um conjunto de práticas, inclusive ideológicas, e instâncias sociais - dentre as quais elencamos a produção científica. Embora a ciência seja comumente considerada como oposta aos processos ideológicos, a questão que orienta a presente pesquisa é a análise do tratamento do empreendedorismo pela literatura acadêmica no campo da enfermagem.
O artigo se organiza em quatro itens. No primeiro, discutimos a relação entre ciência e ideologia, a partir de uma breve revisão deste conceito nas abordagens de matriz marxiana. O segundo apresenta os procedimentos teórico-metodológicos da pesquisa. O terceiro discute a conceituação de empreendedorismo pela literatura acadêmica brasileira na área de enfermagem. O quarto dá continuidade à análise, abordando, neste mesmo corpus, as motivações para empreender dos profissionais de enfermagem.
Ideologia e ciência
Para Marx e Engels (2007MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas. São Paulo: Boitempo , 2007., p. 34), em A ideologia alemã, a vida social determina a consciência e não o oposto. As ideias são produzidas na práxis, pois os homens e mulheres se organizam materialmente em uma forma societária. Sem o conhecimento destas determinações, não se compreende a consciência. Ademais, o poder material da classe dominante faz com que suas ideias, que são particulares, sejam universais.
O tratamento da noção de ideologia atravessa a história dos marxismos e de outras epistemologias, o que leva Eagleton (2019EAGLETON, T. Ideologia: uma introdução. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2019.) a discutir uma miríade de definições da categoria. Contudo, sem prejuízo das demais, há uma definição atribuída pelo autor à ideologia que sintetiza nossa perspectiva neste trabalho: ideias que auxiliam na legitimação dos interesses de uma classe dominante, através da distorção e da dissimulação (Eagleton, 2019EAGLETON, T. Ideologia: uma introdução. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2019., p. 47). Ademais, Chauí (2008CHAUÍ, M. O que é ideologia? 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 2008.) considera a ideologia um conceito crítico-negativo, ao apontar que a sua função é oferecer “aos membros de uma sociedade dividida em classes uma explicação racional para as diferenças sociais, políticas e culturais, sem jamais atribuir tais diferenças à divisão da sociedade em classes a partir das divisões na esfera da produção” (Chauí, 2008CHAUÍ, M. O que é ideologia? 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 2008., p. 108-109). Em suma, a ideologia é uma ocultação da realidade na sociedade de classes e uma produção do ser social afeita à aceitação da desigualdade.
É importante ressaltar, no entanto, na nossa análise da produção acadêmica científica, seguindo Lowy (1994LÖWY, M. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: Marxismo e Positivismo na Sociologia do Conhecimento. São Paulo: Cortez, 1994. ) e Jaeggi (2008JAEGGI, R. Repensando a ideologia. Civitas Revista de Ciências Sociais, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 137-165, 2008. DOI: 10.15448/1984-7289.2008.1.4326
https://doi.org/10.15448/1984-7289.2008.... ), que o processo ideológico incorpora em seu movimento conhecimentos verdadeiros. Nas palavras de Lowy (1994LÖWY, M. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: Marxismo e Positivismo na Sociologia do Conhecimento. São Paulo: Cortez, 1994. , p. 101, grifos do autor), “o que define a ideologia (ou utopia) não é esta ou aquela ideia isolada, tomada em si própria, este ou aquele conteúdo doutrinário, mas uma certa “forma de pensar’, uma certa problemática, um certo horizonte intelectual (‘limites da razão’)”.
A crítica da ideologia revela, portanto, “as circunstâncias que permitem que a dominação se imponha”, como afirma Jaeggi (2008JAEGGI, R. Repensando a ideologia. Civitas Revista de Ciências Sociais, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 137-165, 2008. DOI: 10.15448/1984-7289.2008.1.4326
https://doi.org/10.15448/1984-7289.2008.... , p. 139). Destarte, a crítica da ideologia tem a finalidade de revelar o movimento contraditório da práxis, destacando as mediações que compõem a realidade e trazendo à tona os condicionantes da forma social.
Neste sentido, é possível relacionar a ideologia a diversas mediações da produção e reprodução social, dentre as quais situamos a ciência11Cabe enfatizar que nossa argumentação aqui não se inscreve nem em um negacionismo, nem em uma epistemologia pós-moderna. O materialismo histórico-dialético se opõe a estas duas abordagens.. Para discutir esta temática, nos remetemos à crítica da economia política, através de Netto e Braz (2008NETTO, J. P; BRAZ, M. Economia política: uma introdução crítica. 2. ed. São Paulo: Cortez , 2008.) e Lowy (1994LÖWY, M. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: Marxismo e Positivismo na Sociologia do Conhecimento. São Paulo: Cortez, 1994. ). Os autores tematizam a historicidade do conhecimento científico, a partir da distinção marxiana entre economia política clássica e vulgar, rompendo com pressupostos positivistas ou metafísicos sobre a verdade. Tais discussões nos oferecem elementos para explorar a relação entre ciência e ideologia na sua historicidade.
Netto e Braz (2008NETTO, J. P; BRAZ, M. Economia política: uma introdução crítica. 2. ed. São Paulo: Cortez , 2008., p. 16-25), ao considerarem a economia política a maior e mais importante ciência burguesa, afirmam que os clássicos elaboraram com objetividade a análise da nova sociedade, oriunda da transição do feudalismo ao socialismo. Já os economistas políticos vulgares emergem precisamente no momento de decadência da burguesia como classe revolucionária, levando ao esquecimento o estudo da produção, em detrimento apenas da distribuição de riquezas, e esvaziando o tratamento do valor-trabalho.
Lowy (1994LÖWY, M. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: Marxismo e Positivismo na Sociologia do Conhecimento. São Paulo: Cortez, 1994. )22Lowy dedica a primeira parte da obra em questão para analisar o positivismo como marca do desenvolvimento das ciências sociais no século XIX e suas relações com a afirmação da burguesia como classe reacionária. As implicações ideológicas da epistemologia positivista não são objeto do presente artigo. também discute a questão, observando que Marx, Smith e, sobretudo, Ricardo apresentam um valor científico indiscutível, pois elucidam a produção burguesa, embora não consigam desvelar a origem do lucro; os economistas vulgares, ao contrário, relacionados a uma burguesia tornada historicamente conservadora, “não fizeram mais do que sistematizar, dogmatizar, “pedantizar” e proclamar como verdades eternas as concepções cotidianas (banais, auto-suficientes e limitadas) dos agentes da produção capitalista” (Lowy, 1994LÖWY, M. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: Marxismo e Positivismo na Sociologia do Conhecimento. São Paulo: Cortez, 1994. , p. 103). Para Lowy (1994LÖWY, M. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: Marxismo e Positivismo na Sociologia do Conhecimento. São Paulo: Cortez, 1994. , p. 109), “a ideologia burguesa não implica a negação de toda ciência, mas a existência de barreiras que restringem o campo da visibilidade cognitiva”.
Se considerarmos a fronteira entre ciência e ideologia como uma problemática na reflexão epistemológica marxiana, é possível afirmar que o tratamento ideológico da organização do trabalho, da desigualdade e da divisão de classes pode ser observado também na produção acadêmica, como uma instância de elaboração das contradições que atravessam a forma social. Essa perspectiva não implica necessariamente em uma negação absoluta do caráter científico desta produção, tampouco em uma classificação estanque entre abordagens científicas e ideológicas. A questão se desloca para a investigação dos processos discursivos e efeitos político-ideológicos, não se limitando a identificar conteúdos verdadeiros ou falsos no material analisado.
Método e procedimentos de levantamento do corpus da pesquisa
O método seguido pela pesquisa consiste na crítica da ideologia, conforme definido no item anterior do presente texto. Tomamos, assim, como ponto de partida, a seguinte definição de ideologia: ideias e processos discursivo-culturais que auxiliam na legitimação dos interesses de uma classe dominante, mesmo que trabalhem com elementos verdadeiros e factuais da realidade social. A respeito do método, observamos que não faremos uma separação entre resultados e discussão, pois, conforme Jaeggi (2008JAEGGI, R. Repensando a ideologia. Civitas Revista de Ciências Sociais, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 137-165, 2008. DOI: 10.15448/1984-7289.2008.1.4326
https://doi.org/10.15448/1984-7289.2008.... , p. 140-141), a relação entre organização analítica dos conteúdos e a crítica é uma característica deste tipo de abordagem. Em outras palavras, a análise não é apenas condição instrumental prévia, mas parte integrante do processo.
Cabe observar ainda que Eagleton (2019EAGLETON, T. Ideologia: uma introdução. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2019.) nos fornece um vocabulário descritivo das características da ideologia, base de nossa análise da produção acadêmico científica sobre empreendedorismo na área de enfermagem. Segundo o crítico marxista, as ideologias são unificadoras, orientadas para a ação, racionalizantes, legitimadoras, universalizantes e naturalizantes. A unificação se relaciona com o fato de que as ideologias outorgam coesão aos grupos, unindo-os em uma identidade unitária, mesmo que internamente diferente. Além disso, podem ser consideradas como conjunto de crenças orientadas para a ação: para que tenham êxito, é necessário que funcionem na prática e na teoria, abrangendo não só um sistema de pensamento elaborado, como também os detalhes e pormenores da vida cotidiana. A propriedade de serem racionalizantes indica que as ideologias concedem justificativas para comportamentos sociais danosos para a maioria dos seres humanos. A legitimação se refere ao processo através do qual um poder dirigente assegura uma aprovação à sua autoridade. Através da universalização, valores e interesses próprios de uma época ou lugar são projetados como se representassem toda a humanidade: tem-se a representação de que ideias específicas de uma classe tomem a aparência de pertencerem a todos os indivíduos, obscurecendo a verdade dos interesses privados de classe. Por fim, no que concerne à naturalização, as ideologias só podem ser exitosas se congelarem a história em uma “segunda natureza”, apontando-a como espontânea, inevitável e, consequentemente, imutável.
Nosso corpus de pesquisa é de caráter bibliográfico. A busca por produções científicas (artigos, teses, dissertações e editoriais de periódicos) sobre empreendedorismo em enfermagem foi realizada nas seguintes bases de dados: SCIELO, LILACS, BVS e Banco de Teses e Dissertações da CAPES; além disso, se deu através dos seguintes termos, combinados à palavra “enfermagem”: “empreendedorismo”, “empreendedor”, “empreender”, “empreendimento” e “negócios”. Foram selecionados apenas textos acadêmicos completos. O recorte temporal utilizado para busca das produções foi do ano de 2008, marco de fundação da figura de Microempreendedor Individual (MEI), através da Lei Complementar 128, de 19 de dezembro de 2008 (Brasil, 2008BRASIL. Lei complementar nº 128, de 19 de dezembro de 2008. Altera a Lei Complementar no 123, de 14 de dezembro de 2006, altera as Leis nos 8.212, de 24 de julho de 1991, 8.213, de 24 de julho de 1991, 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, 8.029, de 12 de abril de 1990, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2008. Disponível em: <Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp128.htm >. Acesso em: 6 out. 2020.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei... ), até o fim do 1º semestre do ano de 2020, período de elaboração da análise.
Foram estabelecidos os seguintes critérios de exclusão: produções em língua estrangeira e relativas a cenário estrangeiro, bem como produções cujo tema de discussão fosse empreendedorismo não relacionado a negócios. A não inclusão de produções que não abordassem empreendedorismo de negócios se deu pela pretensão inicial de abranger e discutir questões mais específicas ao campo do trabalho em enfermagem. Após a exclusão de duplicidades, a pesquisa chegou ao número total de 15 produções a serem analisadas (ver Tabela 1).
Conceituação de empreendedorismo
Os textos analisados revelam definições de “empreendedorismo” e “empreendedor” apoiadas nas noções de risco, inovação, riqueza e oportunidade, conforme se observa no trecho a seguir:
Um movimento gerado pela pessoa empreendedora que tem como características a coragem para assumir riscos, a visão diferenciada das situações, a criatividade para criar e a inovação para construir algo novo mediante uma oportunidade (Villarinho, 2016VILLARINHO, P. L. R. Características e habilidades dos enfermeiros empreendedores adquiridas por meio do aprendizado na formação e na prática profissional, 2016. 171 p. Dissertação (Mestrado em Enfermagem) - Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016. Disponível em: <Disponível em: http://objdig.ufrj.br/51/teses/855296.pdf >. Acesso em: 12 fev. 2021.
http://objdig.ufrj.br/51/teses/855296.pd... , p. 29).
No que tange ao risco, destacamos a figura do empreendedor, sobre a qual podemos observar as seguintes conceituações:
Pessoa que transfere recursos econômicos de um setor de produtividade mais baixa para um setor de produtividade mais elevada e de maior rendimento. Faz referência a pessoas visionárias, capazes de obter lucro a partir do surgimento de oportunidades, assumindo os riscos do negócio (Rodrigues, 2017RODRIGUES, E. Empreendedorismo: um pensamento fora da caixa. 2017. 81 p. Dissertação (Mestrado em Ciência e Tecnologia em Saúde) - Universidade de Mogi das Cruzes, Mogi das Cruzes, 2017. Disponível em: <Disponível em: http://pergamumweb.umc.br/pergamumweb/vinculos/000002/00000251.pdf >. Acesso em: 30 nov. 2020.
http://pergamumweb.umc.br/pergamumweb/vi... , p. 13).
O empreendedor, por definição, tem de assumir riscos, e seu sucesso está em sua capacidade de conviver com eles e sobreviver a eles. Os riscos fazem parte de qualquer atividade e é preciso aprender a administrá-los. O empreendedor não é malsucedido nos seus negócios porque sofre revezes, mas porque não sabe superá-los (Roncon; Munhoz, 2009RONCON, P. F; MUNHOZ, S. Estudantes de enfermagem têm perfil empreendedor? Revista Brasileira de Enfermagem , Brasília, DF, v. 62, n. 5, p. 695-700, 2009. DOI: 10.1590/S0034-71672009000500007
https://doi.org/10.1590/S0034-7167200900... , p. 696).
A ideologia que naturaliza os riscos como condição humana encobre que este empreendedor - que sobrevive da venda de sua força de trabalho e é culpabilizado por seu insucesso - não possui recursos financeiros, logísticos e operacionais semelhantes aos de um grande empresário, necessários para manter uma empresa e evitar sua “quebra”, principalmente em um contexto de crise do capital. Racionaliza-se a lógica de riscos e a necessidade de condições para superá-los, bem como universaliza-se o risco como traço do desenvolvimento humano, legitimando a forma social tal como ela se apresenta.
Ainda sobre a conceituação de “empreendedorismo” e “empreendedor”, é encontrada nos textos analisados a recorrência do tema “inovação”, o que pode ser observado, por exemplo, a seguir:
Criação ou aperfeiçoamento de algo, com o intuito de propiciar benefícios para os indivíduos e para a sociedade, tendo avançado nas últimas décadas em decorrência das transformações econômicas, inovações tecnológicas e da globalização (Costa et al., 2020COSTA, C. C. P. et al. Os sentidos de ser enfermeiro estomaterapeuta: complexidades que envolvem a especialidade. Revista Estima, São Paulo, v. 18, e0620, 2020. DOI: 10.30886/estima.v18.825_PT
https://doi.org/10.30886/estima.v18.825_... , p. 8).
(...) [As ações empreendedoras] resultam na incorporação de novos conhecimentos, produtos, serviços e processos de atendimento às necessidades dos clientes em um método contínuo de busca de qualidade para o alcance das necessidades emergentes (Moura et al., 2016MOURA, D. C. A. et al. Processo de concepção de uma tecnologia para o cuidado em enfermagem e saúde.Ciência, Cuidado e Saúde, Maringá, v. 15, n. 4, p. 774-779, 2016. DOI: 10.4025/ciencuidsaude.v15i4.29456
https://doi.org/10.4025/ciencuidsaude.v1... , p. 774).
Nesses trechos, a criação e a inovação são apontadas como dispositivos e recursos para geração de valor e atendimento às necessidades; no entanto, equivale-se a inovação humana ao empreendedorismo, restringindo a história humana à forma do capital. Neste sentido, o universal e natural do homem é o ser capitalista, pressupondo-se até que, se a forma social deixar de ser capitalista, não haverá mais inovação. Ocorre, assim, um processo de universalização e naturalização do empreendedorismo, intentando torná-lo a estratégia que representa a todos, de maneira unificada.
Uma terceira noção abordada, quanto à conceituação de empreendedorismo, foi a de produção de riquezas:
Para alguns autores, o empreendedorismo consiste em um conjunto de práticas adotadas com a finalidade de garantir a geração de riqueza e o melhor desempenho das sociedades (Colichi et al., 2019COLICHI, R. M. B. et al. Empreendedorismo de negócios e enfermagem: revisão integrativa. Revista Brasileira de Enfermagem , Brasília, DF, v. 72, n. supl. 1, p. 335-345, 2019. DOI: 10.1590/0034-7167-2018-0498
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0... , p. 336).
Empreendedorismo ou “espírito” empreendedor pode ser definido como o ato de criar um recurso, ou seja, encontrar um uso para alguma coisa na natureza e assim, dotá-lo de valor econômico (Couto Filho, 2014COUTO FILHO, J. C. F. Educação empreendedora na formação de enfermeiros. 2014. 97 p. Dissertação (Mestrado em Enfermagem e Saúde) - Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Jequié, 2014. Disponível em: <Disponível em: http://www2.uesb.br/ppg/ppges/wp-content/uploads/2017/03/DissertaC3A7C3A3o-ZECA.-final1.pdf >. Acesso em: 19 set. 2020
http://www2.uesb.br/ppg/ppges/wp-content... , p. 21).
É o processo de fazer algo novo (criação) e/ou algo diferente (inovação), com o propósito de criar riqueza para o indivíduo e agregar valor para a sociedade (Andrade; Sanna, 2012ANDRADE, A. C; SANNA, M. C. A trajetória de enfermeiros empreendedores paulistanos na década de 1980: nota prévia. História da Enfermagem Revista Eletrônica, Brasília, DF, v. 3, n. 1, p. 93-96, 2012. Disponível em: <Disponível em: http://www.here.abennacional.org.br/here/vol3num1artigo7.pdf >. Acesso em: 13 jun. 2020.
http://www.here.abennacional.org.br/here... , p. 94).
O empreendedorismo é o envolvimento de pessoas e processos que, em conjunto, leva a transformação de ideias em oportunidades. Este processo de fazer algo novo (criação) e/ou diferente (inovação) tem como objetivo criar riqueza para o indivíduo e também agregar valor para a comunidade local e a sociedade (Villarinho, 2016VILLARINHO, P. L. R. Características e habilidades dos enfermeiros empreendedores adquiridas por meio do aprendizado na formação e na prática profissional, 2016. 171 p. Dissertação (Mestrado em Enfermagem) - Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016. Disponível em: <Disponível em: http://objdig.ufrj.br/51/teses/855296.pdf >. Acesso em: 12 fev. 2021.
http://objdig.ufrj.br/51/teses/855296.pd... , p. 19).
Nesses trechos, observa-se que o objetivo apresentado para o ato de empreender é a produção de riquezas nos termos do capitalismo. Nesse percurso, ocorre a tentativa de racionalizar o processo da intensificação da exploração via empreendedorismo, ao conceder justificativas socialmente aceitáveis à lógica perversa. Ao se naturalizar e universalizar a ideia de que, ao empreender, se produz riqueza e desenvolvimento à sociedade, é ocultado que o trabalho precarizado é a tradução da privação dos direitos da classe trabalhadora e sua exploração. Por fim, ao se apresentar o empreendedorismo como forma de produzir riquezas para um bem comum, unificam-se as classes, encobrindo que a riqueza gerada é privada.
Por fim, ainda foi observado o tema do aproveitamento de oportunidades, conforme os trechos a seguir:
O empreendedorismo se configura como um dos principais fatores promotores do desenvolvimento econômico e social de um país e sua operacionalização se evidencia a partir da identificação de oportunidades e da concretização do processo de transformação entre possibilidades e atividades potencialmente lucrativas (Schröder, 2013SCHRÖDER, S. R. Empreendedorismo na enfermagem mineira. Revista Mineira de Enfermagem, Belo Horizonte, v. 17, n. 4, p. 751-752, 2013. DOI: 10.5935/1415-2762.20130055
https://doi.org/10.5935/1415-2762.201300... , p. 749).
Ciência que estuda os atributos inerentes ao profissional de sucesso e sua visão de mundo, possuidor de uma atitude proativa e ética, capaz de ler, interpretar e trabalhar as demandas e necessidades sociais e mercadológicas latentes, na incansável busca pelo aprimoramento de seu expertise, estar receptivo à novas oportunidades e crer que a inovação, a persistência e o comprometimento são as alavancas motivadoras desta engrenagem (Souza, 2019SOUZA, H. A. Educação empreendedora:contribuições para a formação do perfil empreendedor de alunos da enfermagem, 2019. 265 p. Tese (Doutorado em Enfermagem Psiquiátrica) - Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2019. Disponível em: <Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/22/22131/tde-20032020-144316/publico/HELCIMARAAFFONSODESOUZA.pdf >. Acesso em: 20 jul. 2020
https://www.teses.usp.br/teses/disponive... , p. 82).
Nestas citações, é apresentado como pressuposto à ação empreendedora a atenção às oportunidades, sendo estas demonstradas como o instrumento para a realização de transformações, criações, enriquecimento e lucratividade. Entretanto, no capitalismo, isso origina novas formas de obtenção de lucro à classe dominante e aumento da desigualdade. Observa-se, neste sentido, no aproveitamento de oportunidades, uma tentativa de unificar ideologicamente as classes burguesa e trabalhadora, conciliando seus interesses. O empreendedorismo traduz, assim, desemprego e precariedade como oportunidades, quando, na verdade, muitos dos que se enveredam por essa alternativa o fazem por necessidade. Opera-se, assim, a ideologia através da racionalização dos motivos reais para se empreender, obscurecendo as verdadeiras determinações da forma social. Tal ideologia, em um contexto de desemprego, orienta a ação do indivíduo que, convencido de que atuar profissionalmente em novos campos denota fator positivo, é incentivado a enveredar-se em quaisquer oportunidades para obtenção de sustento, potencializando sua exploração.
Empreendedorismo e trabalho em enfermagem
Nos textos, podem ser identificadas inúmeras atividades empreendedoras na área de enfermagem: consultas; administração de medicamentos e tratamentos prescritos em clínicas de enfermagem; orientação para auto aplicação de medicamentos; e cuidado e controle de pacientes crônicos, gestantes e curativos (Andrade; Dal Ben; Sanna, 2015ANDRADE, A. C; DAL BEN, L. W; SANNA, M. C. Empreendedorismo na Enfermagem: panorama das empresas no Estado de São Paulo. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, DF, v. 68, n. 1, p. 40-44, 2015. DOI: 10.1590/0034-7167.2015680106p
https://doi.org/10.1590/0034-7167.201568... , p. 44). Sobrinho (2013SOBRINHO, R. S. Empreendedorismo na enfermagem mineira. Revista Mineira de Enfermagem , Belo Horizonte, v. 17, n. 4, 2013. Disponível em: <Disponível em: https://cdn.publisher.gn1.link/reme.org.br/pdf/v17n4a01.pdf >. Acesso em: 19 jul. 2020
https://cdn.publisher.gn1.link/reme.org.... ) aponta as possibilidades do empreendedorismo em enfermagem também do ponto de vista dos espaços laborais e das cadeias de contratação, ao indicar que o profissional empreendedor pode atuar em consultórios, home care, cooperativas (via terceirização), consultorias e auditorias, eventos, estabelecimentos de ensino (como proprietário), ou ainda na “prestação de serviços especializados (como vacinação, amamentação, esterilização de material médico-hospitalar, transporte de pacientes, aluguel de equipamentos e comercialização de produtos da área hospitalar)” (Sobrinho, 2013SOBRINHO, R. S. Empreendedorismo na enfermagem mineira. Revista Mineira de Enfermagem , Belo Horizonte, v. 17, n. 4, 2013. Disponível em: <Disponível em: https://cdn.publisher.gn1.link/reme.org.br/pdf/v17n4a01.pdf >. Acesso em: 19 jul. 2020
https://cdn.publisher.gn1.link/reme.org.... , p. 749).
Observamos, então, que a descrição de atividades exercidas pelo profissional de enfermagem empreendedor compreende aquelas que, em sua maioria, são exercidas sob a forma de trabalho assalariado, muitas vezes por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), através de hospitais, postos de saúde, Clínicas da Família, dentre outros espaços. Estas atividades foram extraídas, portanto, de uma organização do trabalho em que esses profissionais possuíam alguma proteção e alguns direitos, se transfigurando em possibilidades de realização empreendedora.
No material analisado, três aspectos se destacam no tratamento do trabalho em enfermagem, relacionados às razões para empreender neste campo. O primeiro diz respeito à abordagem da precariedade do trabalho em enfermagem; o segundo, ao desemprego e ao subemprego; e, por fim, o terceiro, às inseguranças e insatisfações do trabalhador e da trabalhadora.
Quanto ao primeiro aspecto, o corpus indica um tratamento da precarização relacionada a “medidas de austeridade”, estas traduzidas como o “modelo neoliberal de assistência à saúde” e “desregulamentação das leis trabalhistas”; em particular, na saúde, aponta-se “o sucateamento do SUS” e o “estímulo à privatização da saúde” como os tópicos que mais afetam a enfermagem (Bolina, 2019BOLINA, A. F. A. enfermagem no contexto sociopolítico e econômico contemporâneo: estímulo ao empreendedorismo privado e/ou fortalecimento do empreendedorismo social? Revista de Enfermagem e Atenção à Saúde, Uberaba, v. 8, n. 1, p. 1-3, 2019. DOI: 10.18554/reas.v8i1.3898
https://doi.org/10.18554/reas.v8i1.3898... , p. 1-2). Para uma parte significativa dos textos, a precarização do trabalho do enfermeiro figura, assim, como o contexto para que a atividade empresarial em enfermagem se apresente como uma “realidade mais presente na atualidade” (Andrade; Dal Ben; Sanna, 2015ANDRADE, A. C; DAL BEN, L. W; SANNA, M. C. Empreendedorismo na Enfermagem: panorama das empresas no Estado de São Paulo. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, DF, v. 68, n. 1, p. 40-44, 2015. DOI: 10.1590/0034-7167.2015680106p
https://doi.org/10.1590/0034-7167.201568... , p. 44).
Observamos, assim, a apresentação de dificuldades vivenciadas pela classe da enfermagem, oriundas das consequências impostas por um modelo neoliberal. Trata-se de aspectos relacionados à precarização do trabalho, a partir das manifestações próprias do neoliberalismo, como a privatização da saúde, a desregulamentação das leis trabalhistas, a redução dos direitos do trabalhador, a extinção do serviço/servidor público, a baixa remuneração ao profissional e o vínculo empregatício frágil. Contudo, não obstante a defesa do empreendedorismo possuir base na realidade, a relação entre justificativa e solução oferecidas pela ideologia é equivocada. Como efeitos ideológicos do tratamento das mutações no trabalho em enfermagem, apontamos que ocorre uma naturalização da precarização, como uma suposta condição dada a qualquer sociedade humana. O trabalho assalariado regulamentado não figura como um direito a ser (re)conquistado; o empreendedorismo é apresentado como a possibilidade mais inovadora e promissora na obtenção de sucesso e satisfação financeira e profissional. Ideologicamente, se busca demonstrar também que, empreendendo, a exploração não existirá e o ganho financeiro será mais expressivo. Apaga-se que a precarização e a exploração não são tônicas exclusivas do trabalho assalariado, mas do sistema capitalista que o engendra. Ademais, o empreendedorismo se legitima como opção racionalizada , dirigindo o trabalhador para uma única forma de ação, o que conflui para sustentar a universalização da forma social do capital como único horizonte possível.
Aliado à precarização do trabalho em enfermagem, emerge, no material analisado, a temática do desemprego e do subemprego, na qual destacamos os seguintes trechos:
Devido ao alto índice de desemprego no Brasil, aumentou o interesse das pessoas desempregadas na abertura de empresas de pequeno porte, evitando assim o aumento do emprego informal (Rodrigues, 2017RODRIGUES, E. Empreendedorismo: um pensamento fora da caixa. 2017. 81 p. Dissertação (Mestrado em Ciência e Tecnologia em Saúde) - Universidade de Mogi das Cruzes, Mogi das Cruzes, 2017. Disponível em: <Disponível em: http://pergamumweb.umc.br/pergamumweb/vinculos/000002/00000251.pdf >. Acesso em: 30 nov. 2020.
http://pergamumweb.umc.br/pergamumweb/vi... , p. 19).
O ensino do empreendedorismo vem sendo foco de debates e estudos por todos os continentes e sua propagação ocorre com o objetivo de se criar ferramentas e estratégias de enfrentamento de questões como o desemprego e a pobreza, diante de um novo contexto produtivo, caracterizado como uma crescente ordem de competitividade e globalmente tecnológico (Souza, 2019SOUZA, H. A. Educação empreendedora:contribuições para a formação do perfil empreendedor de alunos da enfermagem, 2019. 265 p. Tese (Doutorado em Enfermagem Psiquiátrica) - Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2019. Disponível em: <Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/22/22131/tde-20032020-144316/publico/HELCIMARAAFFONSODESOUZA.pdf >. Acesso em: 20 jul. 2020
https://www.teses.usp.br/teses/disponive... , p. 90).
De acordo com estudos sobre a dificuldade de se conseguir emprego, diante da instabilidade do mercado profissional de todas as áreas e inclusive na saúde, pesquisadores alertam para a necessidade de redesenhar a carreira, abrir um negócio próprio, ou mesmo, continuar como assalariado, mas agir e pensar como um empreendedor, ou seja, definir metas, ser obstinado e propor ideias inovadoras. As vagas de emprego para enfermeiros nos hospitais e serviços de saúde estarão cada vez mais escassas no Brasil, devido à conformação do mercado e da força de trabalho (Andrade; Dal Ben; Sanna, 2015ANDRADE, A. C; DAL BEN, L. W; SANNA, M. C. Empreendedorismo na Enfermagem: panorama das empresas no Estado de São Paulo. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, DF, v. 68, n. 1, p. 40-44, 2015. DOI: 10.1590/0034-7167.2015680106p
https://doi.org/10.1590/0034-7167.201568... , p. 41).
Nos trechos acima, o empreendedorismo é representado como saída em tempos de escassez de oportunidades de emprego, sendo apontado como uma nova injunção da configuração do trabalho, uma vez que o trabalho assalariado é apresentado como cada vez mais exíguo, seja pelas problemáticas da realidade brasileira, seja pela reestruturação produtiva global. Contudo, a despeito de o desemprego constituir um dado de realidade, ocorre uma racionalização ao se apresentar o empreendedorismo como a única saída. Essa racionalização torna aceitáveis e justas, na sociedade capitalista, os interesses de uma classe dominante burguesa, ocultando que o empreendedorismo é a expressão da precarização do trabalho, tendo a sua naturalização como uma suposta solução.
Acrescente-se que, se o assalariamento seria pertencente ao passado e se, neste novo tempo de surgimento de novas tecnologias, de oportunidades e de reformulação do padrão produtivo existiriam novas formas de obter renda como fruto do trabalho, o empreendedorismo figura como a modalidade do futuro. Tal argumento se explicita no trecho a seguir:
O emprego padrão de hoje, com vínculo salarial, patrão e horário rígido, já é um artefato pertencente ao passado. Neste novo século as vagas de emprego nos hospitais e serviços de saúde estarão cada vez mais enxutas, devido às crises financeiras do setor e à falta de conhecimento atualizado dos profissionais. Com tão poucas oportunidades, o emprego assalariado na área de saúde em curto espaço de tempo estará caminhando para a extinção no Brasil a exemplo de países da América do Norte e Europa (Roncon; Munhoz, 2009RONCON, P. F; MUNHOZ, S. Estudantes de enfermagem têm perfil empreendedor? Revista Brasileira de Enfermagem , Brasília, DF, v. 62, n. 5, p. 695-700, 2009. DOI: 10.1590/S0034-71672009000500007
https://doi.org/10.1590/S0034-7167200900... , p. 696).
A ideologia cumpre seu papel, fundamentando a perspectiva do assalariamento não mais como parte do universo do trabalho. Reiteramos os processos de naturalização e legitimação da precarização do trabalho como algo pertinente e inerente; o oferecimento de argumentos racionais para empreender; e a orientação dos trabalhadores na direção de uma determinada forma de ação, conforme já apontamos. O que se adiciona aqui é o tratamento específico do desemprego e da superação do trabalho assalariado, representados como uma condição natural, sem determinações. Em outros termos, apaga-se que o crescente desemprego é estrutural ao capital.
Estes processos ideológicos se reproduzem nas razões para empreender em função da busca por satisfação e autonomia profissional, como identificamos nos seguintes trechos:
Muitos dos enfermeiros pesquisados sentem-se limitados e querem fazer a diferença para os pacientes e suas famílias, têm necessidade de seguir suas próprias metas, seus valores, ir além de medicações e procedimentos, colocar em prática seus conhecimentos e capacidades. Muitos querem ser seu próprio chefe; ter maior autonomia; ser capaz de praticar de uma maneira melhor; ter controle de carreira; estar no comando; correr riscos; enfim, ser bem sucedido (Colichi et al., 2019COLICHI, R. M. B. et al. Empreendedorismo de negócios e enfermagem: revisão integrativa. Revista Brasileira de Enfermagem , Brasília, DF, v. 72, n. supl. 1, p. 335-345, 2019. DOI: 10.1590/0034-7167-2018-0498
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0... , p. 340).
Foi possível verificar nos resultados da pesquisa que todos os empreendedores foram motivados pela oportunidade nos negócios. O despertar do interesse em abrir seu próprio negócio para sete participantes surgiu a partir da busca pela satisfação profissional, exercendo uma prática diferenciada com o paciente e a família (Morais et al., 2013MORAIS et al. Práticas de enfermagem empreendedoras e autônomas. Revista Cogitare Enfermagem, Curitiba, v. 18, n. 4, p. 695-701, 2013. DOI: 10.5380/ce.v18i4.46422
https://doi.org/10.5380/ce.v18i4.46422... , p. 697).
Para muitos indivíduos a motivação ao empreendedorismo se dá pela identificação de uma oportunidade ou necessidade, para outros, pela possibilidade de adquirirem autonomia (Chagas et al., 2018CHAGAS, S. C. et al. O empreendedorismo de negócios entre enfermeiros. Revista Enfermagem UERJ, Rio de Janeiro, v. 26, e31469, 2018. DOI: 10.12957/reuerj.2018.31469
https://doi.org/10.12957/reuerj.2018.314... , p. 6).
O Empreendedorismo surge nesta situação como gerador de novas possibilidades de emprego e renda, modificando as relações sociais de trabalho, trazendo um renovado olhar na prestação de serviços, proporcionando a emancipação profissional, a construção de novos paradigmas e o tão almejado reconhecimento profissional e a satisfação financeira (Villarinho, 2016VILLARINHO, P. L. R. Características e habilidades dos enfermeiros empreendedores adquiridas por meio do aprendizado na formação e na prática profissional, 2016. 171 p. Dissertação (Mestrado em Enfermagem) - Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016. Disponível em: <Disponível em: http://objdig.ufrj.br/51/teses/855296.pdf >. Acesso em: 12 fev. 2021.
http://objdig.ufrj.br/51/teses/855296.pd... , p. 47).
Nos exemplos apontados, pode-se observar o destaque dado ao desejo por satisfação profissional e autonomia como molas propulsoras para o enveredar-se no empreendedorismo. Expressões como “satisfação financeira”, “emancipação profissional”, “ser bem-sucedido”, “estar no comando”, “autonomia” e “satisfação profissional” são traduções, na chave da ideologia, daquilo que intencionam e esperam aqueles que optam por empreender por insatisfações na profissão, racionalizando que, a partir do empreendedorismo, tais objetivos são possíveis. Entretanto, a ideologia empreendedora não revela - e essa é uma das suas funções - que abrir seu próprio negócio não garante ao trabalhador independência financeira e estabilidade profissional, nem mesmo liberdade e autonomia, inclusive porque qualquer perspectiva de organização do trabalho se enquadra, nestes processos ideológicos, apenas em duas opções: manter-se no trabalho precarizado ou empreender.
De fato, não se pode negar que, nos limites da organização contemporânea do trabalho, são efetivamente reduzidas as opções para a classe trabalhadora, pela própria forma social da relação capital-trabalho. Entramos no terreno da ideologia, no entanto, quando esta escassez se legitima em termos de duas únicas opções universalizadas e naturalizadas , dirigindo o trabalhador para uma única forma de ação. Em última instância, discute-se a operação ideológica que consiste precisamente no ocultamento do empreendedorismo como mais uma face da exploração do trabalhador, embora, no corpus analisado, sua defesa se sustente exatamente no suposto contraponto entre, de um lado, empreendedorismo e, de outro, precarização, desemprego e insatisfações de toda ordem. Assim, a oportunidade de empreender é apresentada como inovadora e revolucionária de atividade profissional, quando, na realidade, ocorre uma racionalização: diante de inseguranças - e adoecimento - da classe trabalhadora, a solução e a explicação apontadas pela ideologia são equivocadas.
Considerações finais
Tratar de precarização e empreendedorismo no corpo de enfermagem - enfermeiros, auxiliares e técnicos - implica colocar em tela a corporação responsável por mais da metade de todo contingente de saúde do país (Machado et al, 2016MACHADO M. H. et al. Aspectos gerais da formação da enfermagem: o perfil da formação dos enfermeiros, técnicos e auxiliares. Revista Enfermagem em Foco, Brasília, DF, v. 7, n. esp, p. 15-34, 2016. DOI: 10.21675/2357-707X.2016.v7.nESP.687
https://doi.org/10.21675/2357-707X.2016.... ). Em outras palavras, pautar a ideologia do empreendedorismo no campo da enfermagem significa enfrentar tais temáticas a partir de um conjunto expressivo de profissionais de saúde.
O tratamento do empreendedorismo nas produções científicas analisadas configura uma ideologia, encobrindo a existência de desigualdade de classes no capitalismo, bem como a exploração do trabalho e a reprodução do capital, naturalizando e legitimando o desemprego e a precarização do trabalho, sobretudo o da enfermagem; unificando os interesses divergentes e opostos da classe trabalhadora e da classe burguesa; universalizando a figura do empreendedor; racionalizando motivos para empreender na enfermagem; e orientando a ação da classe trabalhadora do campo da enfermagem nos modos de ser e agir conforme o capital.
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- 1Cabe enfatizar que nossa argumentação aqui não se inscreve nem em um negacionismo, nem em uma epistemologia pós-moderna. O materialismo histórico-dialético se opõe a estas duas abordagens.
- 2Lowy dedica a primeira parte da obra em questão para analisar o positivismo como marca do desenvolvimento das ciências sociais no século XIX e suas relações com a afirmação da burguesia como classe reacionária. As implicações ideológicas da epistemologia positivista não são objeto do presente artigo.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
17 Mar 2023 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
11 Out 2022 - Revisado
11 Out 2022 - Aceito
19 Dez 2022