Lei do acompanhante na mídia: a pandemia e suas implicações nos direitos do parto11Kamilla Thaís Vulcão da Silva foi bolsista de mestrado Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) de março de 2020 a fevereiro de 2022.

Kamilla Thaís Vulcão da Silva Mariana De Gea Gervasio Angela Maria Belloni Cuenca Sobre os autores

Resumo

Gestantes têm direito a acompanhante de sua escolha durante o período de internação, pré-parto, parto e pós-parto, em todo o território nacional garantido pela Lei 11.108/2005. Contudo, com a pandemia da covid-19, protocolos de saúde restringiram esses direitos sob o argumento de cuidados contra o vírus. Buscou-se compreender abordagens, atores envolvidos e argumentações sobre o descumprimento da lei de acompanhante durante a pandemia de covid-19 por meio de análise de matérias do portal G1 publicadas de março de 2020 a abril de 2022, utilizando o recurso de mapas. Os dados evidenciaram que o descumprimento da Lei do Acompanhante se concentrou no primeiro semestre de 2020 e as principais justificativas foram questões de biossegurança, falta de orçamento para compras de equipamentos de proteção individual e o momento atípico. Em vários locais foram necessárias intervenções jurídicas para cumprimento da lei, tornando-se pauta jornalística, e o caso mais emblemático foi o do Tocantins, cuja proibição perdurou até abril de 2022. Houve uma discrepância em relação à garantia do direito em diversos municípios e estados, apesar do Ministério da Saúde e diversos órgãos jurídicos terem emitido pareceres e protocolos recomendando a presença de acompanhante.

Palavras-chave:
Covid-19; Pandemia; Acompanhante no Parto; Direitos da Parturiente; Parto

Introdução

No Brasil, a Lei nº 11.108, de 7 de abril de 2005, conhecida como Lei do Acompanhante, garante às gestantes a presença de acompanhante de sua escolha durante o pré-parto, parto e pós-parto. Entretanto, em meados de 2020, com a chegada da pandemia da covid-19, esse direito foi restringido em vários hospitais e maternidades brasileiras.

Essa violação, num contexto tão vulnerável quanto o parto, favoreceu um cenário de medo, em que parturientes se viram desamparadas para viver esse momento. Diniz et al. (2014DINIZ, C. S. G. et al. Implementação da presença de acompanhantes durante a internação para o parto: dados da pesquisa nacional Nascer no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, São Paulo, v. 30, p. S140-S153, 2014. Suplemento 1. DOI: 10.1590/0102-311X00127013
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, p. 141) destacam que “existem poucas experiências humanas comparáveis com o parto e o nascimento, em termos de intensidade física, psicológica e social, ou que sejam ao mesmo tempo tão desafiadoras e transformadoras”.

O acompanhante exerce papel importante, tanto emocional quanto psicológico no parto, e é também uma barreira diante da possibilidade de violências. A pesquisa nacional Nascer no Brasil revelou que a presença de acompanhante oferece segurança à parturiente e a deixa menos vulnerável à violência no trabalho de parto, tanto no serviço público quanto no particular (Diniz et al., 2014DINIZ, C. S. G. et al. Implementação da presença de acompanhantes durante a internação para o parto: dados da pesquisa nacional Nascer no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, São Paulo, v. 30, p. S140-S153, 2014. Suplemento 1. DOI: 10.1590/0102-311X00127013
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).

Apesar disso, com a pandemia da covid-19, esse direito foi cerceado em diversos estados. Protocolos de saúde retiraram o poder de agência e autonomia de mulheres no parto, impactando o direito ao acompanhante sob o argumento de prevenção e cuidados ante a circulação do vírus. Neste artigo apresentamos um mapeamento de notícias jornalísticas do site G1 sobre o descumprimento da Lei 11.108/2005 durante a pandemia de covid-19 no Brasil, para compreender as abordagens, os dispositivos acionados e as argumentações.

Métodos

Trata-se de pesquisa qualitativa, ancorada nos pressupostos conceituais das práticas discursivas e produção de sentidos (Spink, 2004SPINK, M. J. P. (Org.). Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2004.), que concebe a linguagem como o lugar de construção de sentidos no cotidiano.

O estudo também está fundamentado na concepção que entende o discurso jornalístico como narrativa possível de acontecimentos sociais. Ou seja, a notícia é compreendida como resultado de uma seleção e transformação de informações e ocorrências, na perspectiva de que o jornalista não é neutro, mas um participante ativo desse processo (Traquina, 2005TRAQUINA, N. Porque as notícias são como são. Florianópolis: Insular, 2005. (Coleção Teoria do Jornalismo, v. 1).).

Foram analisadas 20 notícias do portal G1, que reúne conteúdo jornalístico de sucursais e afiliadas da capital e interior dos estados brasileiros. Selecionaram-se para análise textos de notícias e reportagens por meio de busca realizada de março de 2020 a maio de 2022, a partir das palavras-chave “parto”, “acompanhante” e “pandemia”. No caso de publicações acompanhadas de vídeos de telejornais, considerou-se apenas a redação textual. Para a organização dos dados foi produzido um quadro com as seguintes informações: data, local, título, identificação do tema central da reportagem. Para cada texto, buscou-se responder ao objetivo do presente trabalho, apresentando como o problema foi abordado, como foi a argumentação (posicionamentos e justificativas) da editoria, quais atores estavam envolvidos no caso e, quando houve, como foi o desfecho do caso abordado (Quadro 1).

Quadro 1
Reportagens analisadas sobre a proibição de acompanhante no parto durante a pandemia da covid-19, produzidas de 31/03/2020 a 12/04/2022, de acordo com a abordagem jornalística, argumentação, atores envolvidos e desfecho

Resultados e discussão

Para compreensão, dispomos as informações das notícias analisadas conforme pode ser observado no Quadro 1.

Abordagem jornalística

Na concepção de Traquina (2005TRAQUINA, N. Porque as notícias são como são. Florianópolis: Insular, 2005. (Coleção Teoria do Jornalismo, v. 1).) um fato noticiável se enquadra em critérios de valores-notícia, como o de seleção, considerando a notoriedade, proximidade, relevância, novidade, tempo, notabilidade, inesperado conflito, controvérsia, infração, disponibilidade, equilíbrio, visualidade e concorrência do tema; o de construção, que leva em conta a possibilidade de simplificação, ampliação, personalização, dramatização e consonância do fato noticiado; e a linha editorial do veículo de mídia, que define a forma como as notícias - que se pretendem neutras, embora muitas vezes não alcancem neutralidade - serão abordadas. Desse modo, o material selecionado no site G1 levou em consideração os elementos que constituem seus valores-notícia para compreender a abordagem e direcionamento.

Sobre as múltiplas abordagens encontradas na análise, destacam-se nos princípios editoriais do grupo Globo:22Disponível em: <https://g1.globo.com/principios-editoriais-do-grupo-globo.html#principios-editoriais>. Acesso em: 13 dez 2022

  • Seção I, item 1.b “A isenção”: na apuração da notícia, “[…] os diversos ângulos que cercam os acontecimentos que ela busca retratar ou analisar devem ser abordados. O contraditório deve ser sempre acolhido, o que implica dizer que todos os diretamente envolvidos no assunto têm direito à sua versão sobre os fatos”;

  • Seção III, “Os valores cuja defesa é um imperativo do jornalismo”: “não será, portanto, nem a favor nem contra governos, igrejas, clubes, grupos econômicos, partidos. Mas defenderá intransigentemente o respeito a valores sem os quais uma sociedade não pode se desenvolver plenamente”, assim elencados, “a democracia, as liberdades individuais, a livre iniciativa, os direitos humanos, a república, o avanço da ciência e a preservação da natureza”.

No entanto, como pode ser visto no Quadro I, notícias com conteúdos algumas vezes similares foram abordadas pelo mesmo veículo de comunicação sob diferentes vieses e perspectivas, nem sempre neutros.

Nas notícias 1, 2 e 3 (Quadro 1), publicadas entre março e abril de 2020, o fato - cerceamento ao direito a acompanhante - é abordado como medida de prevenção e biossegurança. Seus títulos trazem as expressões “suspensão”, “veto”, “acompanhante” e “maternidade” como descritoras da situação que atribuem valores-notícia de: relevância, em razão do impacto na vida das pessoas; de conflito, enquanto uma violência simbólica; de infração, pela violação de um direito; de personalização, conferindo um caráter de identificação do leitor com as personagens - as gestantes e a dramatização, dada a dimensão simbólica e emocional do nascimento. O contraditório, no entanto, favorece as instituições que justificaram o descumprimento da lei sob a prevenção e dão a palavra final.

É noticiado enquanto perda do direito sob perspectiva das usuárias nas notícias 4, 17 e 19, e na notícia 13, sob o viés do acompanhante. Essa abordagem atribui valor-notícia de personalização. Nas notícias 12 e 14 a perspectiva adotada é a da mobilização popular, atribuindo caráter de notabilidade, por ser um fato tangível, sobre o que Traquina (2005TRAQUINA, N. Porque as notícias são como são. Florianópolis: Insular, 2005. (Coleção Teoria do Jornalismo, v. 1)., p. 82) diz que “tem que acontecer qualquer coisa de específico que tenha uma forma evidente, tem que haver qualquer aspecto manifesto”.

Abordagens que humanizam as personagens são recursos que favorecem a identificação com o fato e a empatia dos interlocutores. Spink e Gimenes (1994SPINK, M. J. P.; GIMENES, M. G. G. Práticas discursivas e produção de sentido: apontamentos metodológicos para a análise de discursos sobre a saúde e a doença. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 3, n. 2, p. 149-171, 1994. DOI: 10.1590/s0104-12901994000200008
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, p. 152) apontam que nas práticas discursivas de produção de sentido a compreensão de um self - um “eu” na narrativa - implica “adentrar pelo campo da retórica em busca da argumentação e da depositação de valores: os qualificadores reveladores do investimento afetivo”. Spink (2004SPINK, M. J. P. (Org.). Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2004., p. 36) afirma ainda que “as práticas discursivas, portanto, implicam necessariamente o uso de repertórios e posicionamentos identitários”.

Nas notícias 15 e 16, a perda é noticiada com viés institucional, isto é, considerando os atores envolvidos na luta pelo direito (Ministério Público e Defensoria Pública). Essa abordagem é comum em textos jornalísticos porque, segundo Wolf (2002WOLF, M. Teorias da comunicação. Lisboa: Presença, 2002.), as fontes oficiais conferem credibilidade do ponto de vista oficial.

A manutenção do direito ao acompanhante, ou seja, ações judiciais que resultaram em favor do direito, foi abordada nas notícias 5, 6, 7, 8, 9, 10 (informe publicitário), 11, 18 e 20. Nessa abordagem hospitais e maternidades com frequência são colocados em primeiro plano, ainda que sofrendo a penalização, como por exemplo na notícia 7, cujo título é “Liminar de ação coletiva da Defensoria Pública garante acompanhante para gestantes na Santa Casa de Mogi”. Mais uma vez, sob o viés da controvérsia, sobressai a palavra final da instituição e dos atores envolvidos sobre o desfecho, por vezes em detrimento do bem-estar das denunciantes.

A Justiça atendeu um pedido da Defensoria Pública determinando que a Secretaria de Estado da Saúde apresente um plano para permitir a presença de acompanhantes para gestantes em trabalho de parto, mediante alguns cuidados. Isso é um direito assegurado por lei, mas o estado vinha restringindo este acesso desde 2020 por causa da pandemia de coronavírus. A justificativa era para prevenir o risco de disseminação da Covid-19.

Na decisão publicada nesta quinta-feira (26) o juiz Gil de Araújo Corrêa, da Vara de Execuções Fiscais e Saúde de Palmas, atendeu parcialmente os pedidos da defensoria.

O G1 procurou o governo do Tocantins para comentar a decisão e aguarda retorno. (Notícia 16, grifo nosso)

Essa abordagem institucionalista não reflete a neutralidade e isenção a que o veículo se propõe e impacta na formação democrática da opinião pública em saúde. Nesse sentido, Santos et al. (2022SANTOS, R. T. et al. Saúde pública e comunicação: impasses do SUS à luz da formação democrática da opinião pública. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 27, n. 4, p. 1547-1556, 2022. DOI: 10.1590/1413-81232022274.02622021
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, p. 1550) apontam que “os meios de comunicação ganham pleno sentido político, cuja democratização se coloca como requisito para a construção de um sistema de saúde fundamentado no interesse público”.

Argumentação

O descumprimento da Lei do Acompanhante não se restringe ao momento da pandemia e tampouco é recente. Em um inquérito nacional realizado em 2012, cerca 25% das entrevistadas não tiveram nenhum acompanhante, pouco mais da metade (55,2%) tiveram acompanhante em momentos parciais da internação, e menos de 20% tiveram a acompanhante durante toda a internação (DINIZ et al., 2014DINIZ, C. S. G. et al. Implementação da presença de acompanhantes durante a internação para o parto: dados da pesquisa nacional Nascer no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, São Paulo, v. 30, p. S140-S153, 2014. Suplemento 1. DOI: 10.1590/0102-311X00127013
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).

Na perspectiva teórica adotada (Spink, 2004SPINK, M. J. P. (Org.). Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2004.), é importante notar que as reportagens sempre traziam argumentos de autoridades, justificados principalmente no discurso da biossegurança. Palavras como “restringir”, “suspender” ou “proibir” foram encontradas na maioria das publicações, em referência à retirada do direito. Nesse sentido, é interessante observar como e quais justificativas são utilizadas para a supressão do direito.

Foram encontradas notícias de São Paulo, Tocantins, Minas Gerais, Santa Catarina, Paraná, Paraíba e Amazonas, com maior incidência nos dois primeiros. As notícias têm em comum o aspecto jurídico, a intervenção e interlocução do Judiciário no contexto saúde, principalmente hospitalar. Nesse contexto, cabe mencionar a atuação da Defensoria Pública e do Ministério Público em favor do direito das mulheres e que o tema - apesar de aparecer em algumas reportagens - não é tratado na esfera do direito privado, mas sim, do direito coletivo.

Biossegurança foi o argumento mais utilizado pelos hospitais e maternidades para justificar o veto, usado como principal justificativa, ainda que não esteja explicitado em todas as notícias. O parto solitário é justificado pela necessidade de medidas sanitárias.

[…] Isabela Santos Machado, de 25 anos, teve que ter seu terceiro filho sozinha em um hospital de Belo Horizonte. O parto do pequeno Gabriel, no dia 26 de março, foi no início da pandemia do novo coronavírus, e nenhum acompanhante, nem o pai da criança, pode entrar na maternidade, em Belo Horizonte. (Notícia 4, MG, grifo nosso)

Considerando o direito da gestante e as medidas de prevenção e biossegurança, nas notícias 1, 2, 4, 7, 8, 9, 11, 12 e de 14 a 20 (neste último intervalo as notícias tratam do mesmo lugar - Tocantins), a proibição do acompanhante foi total, impedindo sua presença no pré-parto, parto e pós-parto.

Após uma reunião promovida pela Defensoria Pública de São Paulo em Registro, no Vale do Ribeira, o Hospital São João, localizado no município, com apoio da Secretaria de Estado da Saúde, estabeleceu um plano de retomada do direito de gestantes a acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-parto. O plano passou a ser implementado na última segunda-feira (27). (Notícia 11, SP)

A liberação de entrada do acompanhante após o parto é descrita apenas na notícia 13.

Na decisão ela escreveu, “a medida igualmente buscava a preservação da saúde da equipe médica responsável pelo procedimento (obstetra, anestesista, pediatra, enfermeiros), o que se mostra absolutamente legítimo”.

O parto aconteceu em março deste ano, início da pandemia no Brasil. A juíza disse ainda que, por a doença estar no começo no país, justificou ainda mais a proibição imposta na ocasião, período de poucas informações sobre a doença.

A juíza disse ainda que não houve restrição integral do direito de acompanhante, apenas ao ato cirúrgico em si. O pai pôde acompanhar a gestante no pré e pós-parto. (Notícia 13, SP)

A presença do acompanhante na hora do parto - e sua saída após - é descrita na notícia 3.

A partir desta quarta-feira (22), ficou suspensa a entrada de acompanhantes de mães no período de pós-parto até a alta. A medida pegou a professora Roselaine Pires da Silva de surpresa. (Notícia 3, SP)

Apesar de ter havido certo atraso e dificuldade de organização da gestão da pandemia no Brasil, com reflexos perduráveis (Sodré, 2020SODRÉ, F. Epidemia de covid-19: questões críticas para a gestão da saúde pública no Brasil. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 18, n. 3, p. 1-12, 2020. DOI: 10.1590/1981-7746-sol00302
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), estados e municípios adotaram medidas preventivas em diversas esferas.

O Ministério da Saúde se manifestou, na Nota Técnica nº 9/2020, pela manutenção do direito (Brasil, 2020BRASIL. Ministério da Saúde. Nota Técnica nº 9/2020-Cosmu/CGCIVI/Dapes/Saps/MS. Recomendações para o trabalho de parto, parto e puerpério durante a pandemia da covid-19. Brasília, DF, 10 abr. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3TvQHYU >. Acesso em: 11 set. 2021.
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). A presença de acompanhante representa apoio emocional e psicológico, encorajamento e advocacy33poder de argumentação que ajuda a mulher e o(a) companheiro(a) a expressar seus desejos e necessidades para os demais na experiência de parir, podendo melhorar a segurança da mulher no parto, sua capacidade de autonomia e agência (OMS, 2014OMS - Organização Mundial da Saúde. Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde. Genebra, 2014. Disponível em: <Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/134588/3/WHO_RHR_14.23_por.pdf >. Acesso em: 12 mar 2022
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). Segundo Diniz et al. (2014DINIZ, C. S. G. et al. Implementação da presença de acompanhantes durante a internação para o parto: dados da pesquisa nacional Nascer no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, São Paulo, v. 30, p. S140-S153, 2014. Suplemento 1. DOI: 10.1590/0102-311X00127013
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, p. 142), é especialmente valiosa em casos de complicações graves, principalmente no auxílio do atendimento de urgência, “considerada um indicador de segurança, de qualidade do atendimento e de respeito pelos direitos das mulheres na assistência”.

A Nota Técnica nº 9/2020 recomendava que o acompanhante estivesse assintomático e não pertencesse a grupos de risco (Brasil, 2020BRASIL. Ministério da Saúde. Nota Técnica nº 9/2020-Cosmu/CGCIVI/Dapes/Saps/MS. Recomendações para o trabalho de parto, parto e puerpério durante a pandemia da covid-19. Brasília, DF, 10 abr. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3TvQHYU >. Acesso em: 11 set. 2021.
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). Contudo, diferenciava os momentos da internação em dois períodos: (1) antes e durante o parto, e (2) depois do parto, ficando fora o período do puerpério, cuja recomendação independe do status de infecção do SARS-Cov-2. Previa acompanhante somente em casos de instabilidade clínica da parturiente ou em condições específicas do recém-nascido, bem como para parturiente menor de idade. Nos demais casos, recomendava a suspensão temporária. Portanto, a nota restringiu o direito ao acompanhante ao período do pós-parto (puerpério).

Uma interpretação correta da Nota Técnica nº 9/2020 aconteceu em São Paulo, onde o médico responsável permitiu a presença de acompanhante, depois do parto:

De acordo com o médico infectologista responsável pelo serviço de controle de infecções hospitalares da maternidade, a restrição só vale para depois do nascimento do bebê. Antes disso o acompanhante ainda está autorizado a entrar, respeitando a lei federal. (Notícia 3, SP, grifo nosso)

Esse entendimento diverso da lei e da nota técnica por parte das instituições - de que estariam respeitando a norma se permitissem o acompanhamento em apenas um período da internação, no caso o parto - mostra desconsideração do processo de nascimento como um evento biopsicossocial e de interpretação incorreta da lei - que informa a permissão de acompanhante “durante todo o período de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato” (Brasil, 2005BRASIL. Lei n° 11.108, de 7 de abril de 2005. Altera a Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990, para garantir às parturientes o direito à presença de acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato, no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 8 abr. 2005. Disponível em: <Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11108.htm >. Acesso em: 28 out. 2021.
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). Esse caso exemplifica a visão reducionista sobre a importância da presença de alguém da escolha da parturiente. O acompanhante não está como expectador do parto, como se esse fosse um “produto”, mas para oferecer apoio e suporte durante todo o processo, além dos primeiros cuidados ao recém-nascido, favorecendo inclusive a adoção de boas práticas (Diniz et al., 2014DINIZ, C. S. G. et al. Implementação da presença de acompanhantes durante a internação para o parto: dados da pesquisa nacional Nascer no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, São Paulo, v. 30, p. S140-S153, 2014. Suplemento 1. DOI: 10.1590/0102-311X00127013
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; Monguilhott et al., 2018MONGUILHOTT, J. J. da C. et al. Nascer no Brasil: the presence of a companion favors the use of best practices in delivery care in the South region of Brazil. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 52, p. 1-11, 2018. DOI: 10.11606/S1518-8787.2018052006258
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). Essa visão aparece no título de uma das matérias, ao dizer apenas “assistir ao parto” (Notícia 5).

Restrições orçamentárias também foram apontadas como causa da proibição de acompanhantes, pela ausência de equipamentos de proteção individual (EPI) - que permitiriam a entrada segura. São explicitadas nas notícias 8, 17 e 19 (as duas últimas referentes ao estado do Tocantins).

Outro motivo, segundo o diretor, foi a dificuldade em fornecer equipamento de proteção individual (EPI) para todos.

“No início dessa crise tivemos problema de fornecimento desse material. A gente não conseguia comprar esse material. Isso foi uma coisa que nos preocupou demais e tivemos que priorizar a distribuição do EPI para os colaboradores para que os pacientes ficassem protegidos.”

O diretor da Santa Casa ressalta que antes da pandemia da Covid-19, o hospital pagava por uma caixa de máscara, uma média, de R$, 6,50 e atualmente paga R$ 170. (Notícia 8, SP)

Atores envolvidos, judicialização e desfecho

A judicialização foi um recurso recorrente nas notícias. Em Campina Grande (Notícia 6), por exemplo, não foi noticiado o descumprimento, mas sim o pedido do Ministério Público para salvaguardar o direito das mulheres. Entre as recomendações, a reportagem destaca:

As maternidades deverão garantir o direito ao acompanhante, mas restringindo-o a apenas uma pessoa, que esteja sem sintomas e que não pertença aos grupos de risco. Essa triagem deverá ser feita de forma rigorosa, proibindo o acompanhante de circular no hospital, de realizar trocas ou rodízios. (Notícia 6, PB, grifo nosso)

No âmbito da saúde, o acionamento do Judiciário acontece quando não há a garantia dos direitos estabelecidos por lei. Os principais atores envolvidos na busca por garantias de direitos foram o Ministério Público, as Defensorias Públicas e pessoas que recorreram a advogados para fazer valer a lei:

Para garantir os direitos das gestantes, a Defensoria Pública entrou com uma ação na Justiça questionando a decisão da Secretaria Estadual da Saúde. Só em Palmas, mais de 40 mulheres procuraram ajuda dos defensores públicos. (Notícia 2, TO, grifo nosso)

A Defensoria Pública de Minas Gerais informou que enviou à Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte uma recomendação para que gestantes e parturientes não sejam privadas da companhia de um acompanhante durante internação em maternidades. (Notícia 4, MG, grifo nosso)

De acordo com o Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR), esse foi o primeiro caso aberto aprovado no Brasil autorizando uma grávida a ter acompanhante no momento do parto em meio a quarentena de Covid-19. (Notícia 5, PR, grifo nosso)

Apenas uma notícia abordou a decisão desfavorável a um pedido de indenização, porque o pai não pôde acompanhar o parto - a notícia não comenta o desfecho. As demais mostram o importante papel de órgãos jurídicos públicos na garantia desse direito, inclusive na tentativa de construção de diálogos para uma solução consensual, antes de ações judiciais:

Conforme explica a Defensoria Pública de São Paulo, desde o início da pandemia, o Nudem e as Unidades da Defensoria têm se mobilizado para efetivar o direito a acompanhante durante o parto, por meio de diálogos com a Secretaria de Estado da Saúde, envio de recomendações a hospitais e, quando necessário, ações judiciais. (Notícia 11, SP)

No que tange à saúde da mulher e à obstetrícia, a mediação por instituições jurídicas é um caminho cada vez mais noticiado. Casos como de Adelir Lemos de Góes, que foi retirada de sua casa por liminar assinada por uma juíza e submetida a uma cirurgia cesariana contra sua vontade (Simas; Mendonça, 2017SIMAS, R.; MENDONÇA, S. S. O Caso Adelir e o Movimento pela Humanização do Parto: Reflexões sobre violência, poder e direito. Vivência: Revista de Antropologia, Natal, v. 1, n. 48, p. 89-103, 2017. DOI: 10.21680/2238-6009.2016v1n48ID11504
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), mostram como o sistema e o jogo de poder entre os discursos médicos e jurídicos podem ter leituras discrepantes dos direitos da mulher.

Chama a atenção matéria publicada em Manaus (Notícia 10) sobre um projeto de lei para assegurar às gestantes o direito ao acompanhante. A autora da lei comentou que o objetivo é garantir esse direito mesmo em situações de calamidade.

[…] não ocorrerão impedimentos desse direito, mesmo em momentos de calamidade pública; além de estabelecer penalidades como advertência e multa para as unidades hospitalares que estabelecerem restrições à presença de acompanhantes das parturientes. (Notícia 10, AM, grifo nosso)

Nesse caso, a restrição ao acompanhante motivou um projeto de lei que buscou legislar sobre um direito já garantido há mais de 15 anos.

No Brasil, um país com altos índices de violações no momento do parto, com assistência intervencionista (Leal et al., 2014LEAL, M. C. et al. Intervenções obstétricas durante o trabalho de parto e parto em mulheres brasileiras de risco habitual. Cadernos de Saúde Pública , São Paulo, v. 30, p. S17-S32, 2014. Suplemento 1. DOI: 10.1590/0102-311X00151513
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), a figura do acompanhante é um fator de proteção para a mulher (OMS, 2014OMS - Organização Mundial da Saúde. Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde. Genebra, 2014. Disponível em: <Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/134588/3/WHO_RHR_14.23_por.pdf >. Acesso em: 12 mar 2022
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). Nesse sentido, a perda desse direito na pandemia resulta em violência obstétrica. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), “a gravidez não é interrompida em uma pandemia, nem os direitos humanos fundamentais. A experiência do parto de uma mulher é tão importante quanto seu atendimento clínico” (WHO, 2020WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Every woman’s right to a companion of choice during childbirth. [ WHO News], Geneva, 9 set. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.who.int/news/item/09-09-2020-every-woman-s-right-to-a-companion-of-choice-during-childbirth >. Acesso em: 28 out. 2021.
https://www.who.int/news/item/09-09-2020...
, tradução nossa).

Pesquisas anteriores já mostraram como esse é um direito desrespeitado, inclusive, apontando a desigualdade nas relações de poder entre profissionais de saúde e as tradicionais estruturas das instituições como “questões” que influenciam diretamente na efetivação ou não desse direito (Rodrigues et al., 2017RODRIGUES, D. P. et al. O descumprimento da Lei do Acompanhante como agravo à saúde obstétrica. Texto & Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 26, n. 3, e5570015, 2017. DOI: 10.1590/0104-07072017005570015
https://doi.org/10.1590/0104-07072017005...
).

Não permitir a presença do acompanhante no momento do parto e nascimento é uma prática que se expressa culturalmente nas relações com os profissionais de saúde, segundo a qual o acompanhante é uma “complicação” nesse momento. Assim, em algumas situações, o profissional acaba utilizando sua autoridade e poder institucional para impedir que a mulher faça valer esse direito legal, o que pode caracterizar uma violação dos direitos sexuais, reprodutivos e humanos. (Rodrigues et al., 2017RODRIGUES, D. P. et al. O descumprimento da Lei do Acompanhante como agravo à saúde obstétrica. Texto & Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 26, n. 3, e5570015, 2017. DOI: 10.1590/0104-07072017005570015
https://doi.org/10.1590/0104-07072017005...
, p. 8)

Caso Tocantins

As notícias sobre o Tocantins (2, 14, 15, 16, 17, 18, 19 e 20) relatam um cenário problemático, visto que a proibição ao acompanhante partiu da Secretaria de Estado de Saúde (SES-TO) e perdurou por mais tempo: de abril de 2020 a abril de 2022. Em abril de 2020 (Notícia 2) é noticiado que a Defensoria Pública entrou com ação questionando a decisão, que violou as recomendações do Ministério da Saúde e da OMS.

As mobilizações pela retomada do direito são descritas a partir da Notícia 14, de 19 de novembro de 2020. A restrição da SES-TO abrangeu 18 hospitais da rede estadual. Em 27 de julho de 2021 a reivindicação de mulheres pelo retorno do direito foi novamente pautada (Notícia 15). Nesse momento estavam sendo feitas audiências judiciais com a própria SES-TO, a Defensoria Pública e o Ministério Público.

A partir da Notícia 16, de 27 de agosto de 2021, é relatado que a Vara de Execuções Fiscais e Saúde de Palmas atendeu parcialmente os pedidos da Defensoria e estabeleceu prazo para o Estado apresentar um plano de retomada com planejamento estrutural. Foram determinadas medidas transitórias para garantir a presença dos acompanhantes durante o trabalho de parto, incluindo a apresentação de teste RT-PCR negativo para covid-19. Mas relata-se dificuldade de acesso ao exame RT-PCR, com pouca disponibilidade na rede pública do estado (Notícia 17).

As notícias 18, 19 e 20, publicadas entre setembro de 2021 e abril de 2022, descrevem a morosidade e ineficiência da SES-TO em divulgar e aplicar o plano de retomada, principalmente a testagem RT-PCR de acompanhantes. Essas dificuldades tornaram-se novas barreiras, até a normalização do direito, em 2022.

Em todas as notícias a justificativa da SES-TO para proibir ou restringir o acesso de acompanhante no pré-parto, parto e pós-parto foi justificada por questões de biossegurança, alegadamente apoiada em seu plano de contingência, sobreposto ao direito.

Considerações finais

A noticiabilidade da temática dos direitos reprodutivos seguiu a lógica da controvérsia ao adotar os vieses da perda ou manutenção do direito, o que conferiu valor dramático e de personalização da notícia. Quando adotado, o viés institucional reforçou a credibilidade das fontes oficiais, por vezes em detrimento das denúncias. Houve pouco espaço para debate sobre a ótica de quem mais sofre as consequências dessas arbitrariedades: as mulheres.

Houve discrepância em relação à interpretação da lei em diversos municípios e estados, apesar do claro posicionamento da OMS informando a garantia do direito da mulher e ressaltando que a pandemia não é uma exceção. No cenário brasileiro, o Ministério da Saúde, enquanto autoridade maior, e diversos órgãos jurídicos emitiram pareceres e protocolos reafirmando o direito à presença de acompanhante. Em alguns locais, para além do descumprimento da lei, mesmo as medidas que reiteraram a manutenção do direito não foram cumpridas.

A restrição no Tocantins perdurou até maio de 2022 e a decisão partiu da SES-TO, justificada supostamente em recomendações da OMS e do Ministério da Saúde. Mas é oportuno destacar que desde abril de 2020 as duas entidades publicaram diversos protocolos que recomendavam a manutenção de acompanhante. Assim, nesse caso, o argumento generalista refletiu a inflexibilidade da instituição e gerou prejuízo às gestantes. O sistema de saúde, representado pela SES, falhou em se atualizar sobre os protocolos e práticas propostas em resposta à pandemia, e também em dialogar com usuárias do serviço de saúde.

Stoffel et al. (2021)STOFEL, N. S. et al. Perinatal care in the COVID-19 pandemic: analysis of Brazilian guidelines and protocols. Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil, Recife, v. 21, pp. 89-98, 2021. Suplemento 1. DOI: 10.1590/1806-9304202100S100005
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, ao analisar os protocolos brasileiros, destacam a importância de reconhecer demandas e particularidades de cada situação. A questão de raça/cor, classe e localidade foi determinante para o número de óbitos maternos na pandemia da covid-19 (Alves et al., 2022ALVES, R. P. et al. Maternal mortality in times of the COVID-19 pandemic: An integrative review. Research, Society and Development, [s. l.], v. 11, n. 4, p. 1-8, 2022. DOI: 10.33448/rsd-v11i4.26942
https://doi.org/10.33448/rsd-v11i4.26942...
), deixando às claras a vulnerabilidade das mulheres brasileiras na assistência obstétrica.

A cronologia das notícias traça um paralelo entre as demandas de gestantes e a intransigência do Estado, ineficiente em amparar mulheres grávidas e parturientes num momento de tanta fragilidade, como é o parto, num contexto tão amedrontador de pandemia.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    22 Jul 2022
  • Revisado
    23 Nov 2022
  • Aceito
    13 Mar 2023
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br