Resumo
O objetivo deste artigo é apontar hipóteses de contradições que estariam incubadas historicamente nos sistemas de atividades da Vale, e que podem ter levado ao maior desastre ambiental do Brasil: o rompimento da barragem B I em Brumadinho, bem como à interdição de muitas outras barragens da empresa no estado de Minas Gerais, Brasil. Trata-se de uma análise de caso a partir de dados secundários disponíveis em entrevistas, documentos e textos publicados em diferentes mídias entre 2011 e 2021. Procuramos demonstrar, a partir da Teoria Histórico-Cultural da Atividade, as contradições verificadas em e entre sistemas de atividades da Vale, pois a empresa distribuiu dividendos vultosos aos seus acionistas, remunerou como nunca seus diretores, reduziu os custos em relação às receitas e diminuiu brutalmente a dívida interna, mas manteve investimentos insuficientes na gestão das barragens, culminando no rompimento da B I em 2019 e em 29 barragens interditadas em março de 2021. A financeirização tornou-se central para as operações da empresa. Este estudo aponta para um caminho metodológico do diálogo interdisciplinar que ajuda a esclarecer como as decisões gerenciais estratégicas, especialmente aquelas da gestão financeira, poderiam influenciar a gestão de produção, de manutenção e de segurança das barragens de rejeitos.
Palavras-chave:
Rompimento de Barragem; Acidente de Trabalho; Mineração; Financeirização
Introdução
Desastres causados por barragens na mineração são mais comuns do que se imagina, com 146 eventos no mundo entre 1961 e 2022. No Brasil, somente no estado de Minas Gerais (MG), ocorreram oito eventos de 1986 a 2022 (Wise, 2022WISE Uranium Project. Chronology of major tailings dam failures from 1960. Arnsdorf, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.wise-uranium.org/mdaf.html >. Acesso em: 15 maio 2021.
https://www.wise-uranium.org/mdaf.html... ).
Em 5 de novembro de 2015, rompeu-se a Barragem de Rejeitos do Fundão (BRF) - operada pela Samarco Mineração S.A., mineradora controlada pela Vale S.A. (Vale) e pela anglo-australiana BHP Billiton -, no município de Mariana, MG, Brasil, que causou a morte de 19 pessoas. Apesar da grande repercussão desse desastre, em 25 de janeiro de 2019, ocorreu o rompimento da Barragem de Rejeitos B I (B1) na mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho, MG, também pertencente à Vale, culminando nas mortes de 270 pessoas e na lesão de mais 64 trabalhadores (Ministério da Economia, 2019MINISTÉRIO DA ECONOMIA. Superintendência Regional do Trabalho em Minas Gerais. Relatório de Análise de Acidente: rompimento da barragem de Rejeitos I, em Brumadinho - MG. Belo Horizonte, 2019. Disponível em: <Disponível em: https://sinait.org.br/docs/305346580-relatorio_bi_-_a_corpo_assinado.pdf >. Acesso em: 26 fev. 2021.
https://sinait.org.br/docs/305346580-rel... ). O desastre trouxe inúmeras consequências sócio-econômico-ambientais para a região do rio Paraopeba, com 315 km de rios atingidos, 294 hectares de vegetação impactada, além de prejuízos para a agricultura, a pesca e o turismo local (Arcadis, 2020ARCADIS. Caracterização socioambiental pós-rompimento e avaliação de impactos. In: ARCADIS. Plano de reparação socioambiental da bacia do rio Paraopeba. Rompimento das Barragens B1, B4 e B4-A do Complexo Paraopeba II da Mina Córrego do Feijão. São Paulo, 2020. Volume 1. Disponível em: <Disponível em: https://www.mg.gov.br/sites/default/files/paginas/cap1_diagn%C3%B3stico_preterito_revisado/vol4_anexos/Volume%204_Anexos_pt1_2.pdf >. Acesso em: 11 jul. 2022.
https://www.mg.gov.br/sites/default/file... ).
Observamos que, apesar dos grandes impactos, rompimentos de barragens de mineração ocorrem com relativa frequência. Mas por que isso acontece? Quais são as causas profundas?
As grandes tragédias ocorridas, especialmente na década de 1980, voltaram com força no século XXI e são explicadas por alguns autores como decorrentes de mudanças no processo produtivo no contexto da economia global. Esse fenômeno relaciona-se à introdução e à intensificação de tecnologia de informação e automação, aumento da terceirização e ao acirramento da competição global, bem como da pressão por resultados para atender aos acionistas (Metzger; Maugeri; Benedetto-Meyer, 2012METZGER J.L.; MAUGERI S.; BENEDETTO-MEYER M. Predomínio da gestão e violência simbólica. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, v. 37, n. 126, p. 225-242, 2012. DOI: 10.1590/S0303-76572012000200005
https://doi.org/10.1590/S0303-7657201200... ; Dias; Lima, 2014DIAS A.V.; LIMA F.A.P. Work organization and occupational health in the contemporary capitalism. In: RIBEIRO, M. G. (Ed.). Frontiers in occupational health and safety, 2014. p. 3-31. v. 1).
Reason (1997REASON J. Managing the risks of organizational accidents. Farnham: Ashgate Publishing, 1997.) apontou que a história dos acidentes começa com os fatores organizacionais - como decisões estratégicas e processos organizacionais genéricos. Esses processos são delineados em face da cultura corporativa da empresa e da maneira como a organização conduz seus negócios, com consequências transmitidas para os ambientes de trabalho. Rasmussen (1997RASMUSSEN J. Risk management in a dynamic society: a modeling problem. Safety Science, Amsterdam v. 27, n. 2/3, p. 183-213, 1997.) mostrou que um sistema sociotécnico é forçado por um ritmo acelerado de mudanças tecnológicas, por um ambiente agressivo e competitivo, pela mudança de práticas regulatórias e pela pressão pública.
O objetivo deste artigo é contribuir com uma análise sistêmica e organizacional de eventos, a partir da Teoria Histórico-Cultural da Atividade (TAHC), na qual os acidentes são entendidos como manifestações de contradições dentro e entre sistemas de atividade (Lopes; Vilela; Querol, 2018LOPES M.G.R.; VILELA R.A.G.; QUEROL M.A.P. Anomalias e contradições do processo de construção de um aeroporto: uma análise histórica baseada na Teoria da Atividade Histórico-Cultural. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 34, n. 2, e00130816, 2018. DOI: 10.1590/0102-311X00130816
https://doi.org/10.1590/0102-311X0013081... ). Hipotetizamos contradições que estariam incubadas historicamente no sistema e que podem ter contribuído para o rompimento da B1 e a interdição de outras barragens da Vale em MG, entre elas, destacamos o processo de financeirização que vem se acirrando na companhia desde 2015.
O artigo visa responder às seguintes perguntas: 1) Quais mudanças na gestão da Vale impactaram na segurança e na manutenção das barragens nos anos anteriores ao acidente da B1?; 2) Quais foram as consequências dessas mudanças para a segurança das barragens?; e 3) Quais contradições levaram e foram criadas por tais mudanças?
Começamos com uma breve introdução da abordagem teórica de como os acidentes são entendidos e analisados. Em seguida, apresentamos os dados e o método de análise, bem como mostramos o caso Vale e a sua gestão financeira. Posteriormente, destacamos a estagnação dos baixos investimentos em barragens e a interdição de muitas delas, além de apontarmos mudanças na forma de gerir as estruturas de contenção e achados da investigação do desastre com a B1. Finalizamos discutindo as hipóteses de contradições históricas dentro da Vale.
Acidentes como manifestação de contradições em e entre sistemas de atividades
Segundo a TAHC, a interação dos humanos com o ambiente e com outros seres humanos ocorre através do uso de ferramentas e signos. Essa interação levou a uma forma especificamente humana da atividade e a um novo princípio de desenvolvimento, baseado no aprendizado cultural e na evolução histórica das formas de mediação das atividades vitais do ser humano. Nessa teoria, a unidade básica de análise é um sistema de atividade (SA) que representa as relações múltiplas de mediação cultural da atividade humana. Os sujeitos da atividade utilizam-se de instrumentos, comunidade, regras e divisão do trabalho para interagir com o objeto. O objeto define a atividade, é o propósito do SA, que motiva e define o horizonte de possíveis metas e ações (Virkkunen; Newnham, 2015VIRKKUNEN, J.; NEWNHAM, D.S. O laboratório de mudança: uma ferramenta para o desenvolvimento colaborativo do trabalho e a educação. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2015.).
Um SA assume forma e é transformado em longos períodos,. Somente é possível compreender um organismo em função das interações que ocorrem dentro de seu mundo de vida e da história de sua evolução (Virkkunen; Newnham, 2015VIRKKUNEN, J.; NEWNHAM, D.S. O laboratório de mudança: uma ferramenta para o desenvolvimento colaborativo do trabalho e a educação. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2015.).
Nessa abordagem, acidentes são entendidos como manifestação de contradições, que não são problemas ou conflitos, mas tensões estruturais historicamente acumulativas dentro e entre SA (Lopes; Vilela; Querol, 2018LOPES M.G.R.; VILELA R.A.G.; QUEROL M.A.P. Anomalias e contradições do processo de construção de um aeroporto: uma análise histórica baseada na Teoria da Atividade Histórico-Cultural. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 34, n. 2, e00130816, 2018. DOI: 10.1590/0102-311X00130816
https://doi.org/10.1590/0102-311X0013081... ). Elas manifestam-se como perturbações, rupturas e desperdícios no processo, mediante o qual se realiza a atividade, bem como conflitos e discordância entre indivíduos. Uma contradição primária existe em cada componente constituinte da atividade central e se refere à relação entre o valor de troca e o valor do uso desses componentes. Na teoria marxista, o valor do objeto produzido atende, simultaneamente, duas condições: possui valor de mercado - dito de troca - e de uso, para atender necessidades humanas. Uma contradição secundária significa que dois elementos dentro do SA são incompatíveis, portanto, estabelecem exigências contraditórias para ações dos indivíduos do sistema (Virkkunen; Newnham, 2015VIRKKUNEN, J.; NEWNHAM, D.S. O laboratório de mudança: uma ferramenta para o desenvolvimento colaborativo do trabalho e a educação. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2015.).
Não é incomum que diversas atividades estejam envolvidas na realização de um objeto, isto é, podemos ter dois ou mais SA na coconstrução de um objeto potencialmente compartilhado (Virkkunen; Newnham, 2015VIRKKUNEN, J.; NEWNHAM, D.S. O laboratório de mudança: uma ferramenta para o desenvolvimento colaborativo do trabalho e a educação. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2015.). Veremos adiante que a B1 era um objeto compartilhado.
A contribuição da TAHC para análise de acidentes e entendimento de riscos em sistemas complexos é recente. No Brasil, Lopes, Vilela e Querol (2018LOPES M.G.R.; VILELA R.A.G.; QUEROL M.A.P. Anomalias e contradições do processo de construção de um aeroporto: uma análise histórica baseada na Teoria da Atividade Histórico-Cultural. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 34, n. 2, e00130816, 2018. DOI: 10.1590/0102-311X00130816
https://doi.org/10.1590/0102-311X0013081... ) fizeram uso da TAHC para explicar as contradições que contribuíram para a ocorrência de acidente fatal em obra de construção de um aeroporto.
Material e métodos
Trata-se de uma análise de caso que aborda as barragens de contenção de rejeitos pertencentes à Vale em MG, a partir de dados secundários disponíveis em entrevistas, documentos e textos publicados em diferentes mídias.
Estas publicações compreendem o período entre 2011 e 2021, entre elas destacamos: dois relatórios da Fundação Estadual do Meio Ambiente (FEAM), cinco relatórios da Agência Nacional de Mineração (ANM), o relatório de análise de acidente do trabalho da Superintendência Regional do Trabalho de MG (SRT/MG), 11 relatórios financeiros e dois relatórios de sustentabilidade da Vale, dois pedidos de suspensão de interdição de barragens encaminhados pela Vale à SRT/MG e cinco documentos extraídos do site eletrônico da Vale. Também enviamos à Vale, por meio eletrônico, quatro perguntas sobre a gestão da B1. Foi concedida a um dos autores autorização do Superintendente Regional do Trabalho de Minas Gerais para fazer uso de quaisquer documentos referentes à fiscalização de barragens na VALE.
A análise do material foi feita com base nos conceitos da TAHC e da abordagem sociotécnica. Apontamos as mudanças históricas que levaram à financeirização da Vale e ao comprometimento da gestão de barragens, que podem ter relação proximal ou distal com o desastre de Brumadinho e com a interdição de inúmeras outras estruturas de contenção de rejeitos da empresa.
O caso Vale
A Vale, maior mineradora do Brasil e a do mundo na produção de minério de ferro, possuía 150 barragens e diques destinados à contenção de rejeitos, sedimentos e água no país, em 2017 (Vale, 2017bVALE. Relatório de sustentabilidade 2016. Rio de Janeiro, 2017b. Disponível em: <Disponível em: https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/53207d1c-63b4-48f1-96b7-19869fae19fe/de5a44e5-22fa-4e38-9484-fa70694ed479?origin=1 >. Acesso em: 20 maio 2022.
https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/... ; 2018bVALE. Relatório de sustentabilidade 2017. Rio de Janeiro, 2018b. Disponível em: <Disponível em: https://vale.com/documents/d/guest/v_vale_relatoriosustentabilidade_2017_v >. Acesso em: 13 out. 2022.
https://vale.com/documents/d/guest/v_val... ).
Nos meses de março e setembro de cada ano, cabe às mineradoras contratar empresa de auditoria para atestar a segurança de suas barragens e emitir a Declaração de Condição de Estabilidade (DCE) (Brasil, 2017BRASIL. Ministério das Minas e Energia. Agência Nacional de Mineração. Portaria n° 70.389, de 17 de maio de 2017. Diário Oficial da União. Seção 1, Brasília, DF, Ano 154, n. 95, p. 68-71, 19 mai. 2017.). Desde o rompimento da B1, a empresa não tem conseguido a DCE de muitas de suas barragens em MG (Brasil, 2019BRASIL. Ministério das Minas e Energia. Resolução nº 4, de 15 de fevereiro de 2019. Diário Oficial da União . Seção 1, Brasília, DF, Ano 157, n. 34, p. 58, 18 fev. 2019a.; 2020aBRASIL. Ministério das Minas e Energia. Resumo Campanha Entrega DCE Março 2020. Brasília: Ministério das Minas e Energia, 2020a. Disponível em: <Disponível em: https://www.gov.br/anm/pt-br/assuntos/barragens/declaracao-de-condicao-de-estabilidade-dce/resumo-campanha-entrega-dce-marco-2020/view >. Acesso em: 28 maio 2021.
https://www.gov.br/anm/pt-br/assuntos/ba... ; 2020bBRASIL. Ministério das Minas e Energia. Resumo Campanha Entrega DCE Setembro 2020. Brasília, DF: Ministério das Minas e Energia, 2020b. Disponível em: <Disponível em: https://www.gov.br/anm/pt-br/assuntos/barragens/declaracao-de-condicao-de-estabilidade-dce/resumo-campanha-entrega-dce-setembro-2020 >. Acesso em: 27 dez. 2022.
https://www.gov.br/anm/pt-br/assuntos/ba... ; 2021aBRASIL. Ministério das Minas e Energia. Resumo Campanha Entrega DCE Março 2021. Brasília: Ministério das Minas e Energia, 2021a. Disponível em: <Disponível em: https://www.gov.br/anm/pt-br/assuntos/barragens/declaracao-de-condicao-de-estabilidade-dce/resumo-campanha-entrega-dce-mar2021.pdf >. Acesso em: 27 dez. 2022.
https://www.gov.br/anm/pt-br/assuntos/ba... ; 2021bBRASIL. Ministério das Minas e Energia. Resumo Campanha Entrega DCE Setembro 2021. Brasília, DF: Ministério das Minas e Energia, 2021b. Disponível em: <Disponível em: https://www.gov.br/anm/pt-br/assuntos/barragens/declaracao-de-condicao-de-estabilidade-dce/resumo-campanha-entrega-dce-set2021-v2.pdf >. Acesso em: 27 dez. 2022.
https://www.gov.br/anm/pt-br/assuntos/ba... ; Vale, 2019cVALE. Vale informa sobre Declarações de Condição de Estabilidade. Rio de Janeiro, RJ, 2019c. Disponível em: Disponível em: http://saladeimprensa.vale.com/Paginas/Releases.aspx?r=Vale_informa_sobre_Declaracoes_de_Condicao_de_Estabilidade&s=Mineracao&rID=2378&sID=6 . Acesso em: 7mar. 2021.
http://saladeimprensa.vale.com/Paginas/R... ). A última informação disponibilizada pela ANM sobre barragens no Brasil apontou para 23 estruturas da Vale interditadas em setembro de 2022, todas em Minas Gerais (Brasil, 2022BRASIL. Ministério das Minas e Energia. Resumo Campanha Entrega DCE Setembro 2022. Brasília, DF: Ministério das Minas e Energia, 2021b. Disponível em: Disponível em: https://www.gov.br/anm/pt-br/assuntos/barragens/declaracao-de-condicao-de-estabilidade-dce/resumo-campanha-entrega-dce-setembro-de-2022.pdf . Acesso em: 27 dez. 2022.
https://www.gov.br/anm/pt-br/assuntos/ba... ).
Para tentar entender quais razões levaram ao rompimento da B1 e a não obtenção da DCE para as outras barragens, é necessário verificar as mudanças profundas que ocorreram na Vale ao longo do tempo. Entre essas, destacam-se: a implementação de medidas para satisfazer o mercado financeiro, como a redução de custos operacionais e da dívida líquida da empresa; assim como o aumento na distribuição de dividendos aos acionistas. Uma de nossas hipóteses de contradição é que foi investido valor insuficiente de recursos na gestão de barragens para mantê-las seguras.
A gestão financeira e a posse do novo CEO
A estratégia de internacionalização da Vale, levada a cabo durante a gestão de Roger Agnelli como presidente executivo, coincidiu com o boom das commodities entre 2002 e 2011. No pós-boom, o minério de ferro teve uma forte retração em seu preço, obrigando as mineradoras a mudarem suas estratégias, dentre elas a redução de custos operacionais e o aumento da produtividade (Wanderley, 2017WANDERLEY L. J. de M. Do boom ao pós-boom das commodities: o comportamento do setor mineral no Brasil. Versos - Textos para discussão PoEMAS, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, 2017., p. 3).
Segundo Milanez et al. (2019MILANEZ B. et al. Minas não há mais: avaliação dos aspectos econômicos e institucionais do desastre da Vale na bacia do rio Paraopeba. Versos - Textos para discussão PoEMAS, Brasília, DF, v. 3, n. 1, 2019.), a partir de 2015 ocorreram mudanças significativas na estrutura da Vale, como a escolha do novo Diretor-Presidente, Fábio Schvartsman, em 2017, executivo com vasta experiência no setor financeiro e em empresas da indústria da transformação. A companhia implementou processo de mudanças diretamente relacionado às exigências do mercado financeiro.
A Vale aumentou a relação entre custo operacional e receita operacional líquida para 80,2% durante o ano de 2015, principalmente pelo baixo valor do minério de ferro no mercado internacional, que chegou ao preço médio de US$ 44,61 por tonelada, em comparação com US$ 75,43 em 2014. Conseguiu reduzi-la significativamente para 64,2% em 2016, até chegar a 46,7% em 2020, porcentagem inferior àquela de 2013 (Tabela 1).
A remuneração fixa da diretoria executiva (DE) da Vale manteve-se com pouca variação de 2011 até 2014 e sofreu uma queda de 22,7% de 2014 para 2015 (Tabela 2). A remuneração variável veio caindo de 2011 até 2015 e despencou em 2016, em razão do rompimento da BRF. Contudo, comparando 2017 com o ano anterior, houve um crescimento de aproximadamente 13,5 vezes.
A partir de 2018, a forma como a remuneração da DE foi apresentada no relatório anual mudou um pouco. A remuneração total cresceu ao longo dos anos, com exceção de 2019 - ano do rompimento da B1: R$ 166,1 milhões (mi) em 2018, R$ 85,40 mi em 2019, R$ 165,42 mi em 2020 e R$ 246,49 mi em 2021 (Vale, 2019aVALE. Formulário 20 F. Relatório anual para o exercício encerrado em 31 de dezembro de 2018. Rio de Janeiro, 2019a. Disponível em: <Disponível em: https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/53207d1c-63b4-48f1-96b7-19869fae19fe/0b52c197-9c7e-4c67-b3f4-c60d658cf0de?origin=1 >. Acesso em: 6 mar. 2023.
https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/... ; 2020VALE. Formulário 20 F. Relatório anual para o exercício encerrado em 31 de dezembro de 2019. Rio de Janeiro, 2020a. Disponível em: <Disponível em: https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/53207d1c-63b4-48f1-96b7-19869fae19fe/d097db59-c956-4aa4-9d64-6b55d82fb0a4?origin=1 >. Acesso em: 6 mar. 2023.
https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/... ; 2021bVALE. Formulário 20 F. Relatório anual para o exercício encerrado em 31 de dezembro de 2020. Rio de Janeiro, 2021b. Disponível em: <Disponível em: https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/53207d1c-63b4-48f1-96b7-19869fae19fe/6425a6c6-6caf-41c2-ab60-f848dda39fb7?origin=1 >. Acesso em: 6 mar. 2023.
https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/... ; 2022bVALE. Formulário 20 F. Relatório anual para o exercício encerrado em 31 de dezembro de 2021. Rio de Janeiro, 2022b. Disponível em: <Disponível em: https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/53207d1c-63b4-48f1-96b7-19869fae19fe/102c9ca4-dea3-7079-6576-38d6a6d8917b?origin=1 >. Acesso em: 6 mar. 2023.
https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/... ). Apesar do desastre de 2019 e a repercussão mundial do caso, a remuneração da DE quase triplicou entre 2019 e 2021.
Quanto à distribuição dos dividendos e de juros sobre capital próprio aos acionistas, o valor caiu entre 2011 e 2014, em razão da queda acentuada do preço médio da tonelada de minério de ferro. Despencou para US$ 0,25 bilhões (bi) em 2016, ainda por causa da queda do valor da commodity e do rompimento da BRF em 2015. A promessa em 2017 do novo Diretor-Presidente foi cumprida, qual seja: “nos próximos anos não haverá outra (mineradora) produzindo mais valor para seus acionistas do que a Vale”. De 2015 a 2021, o valor distribuído aos acionistas cresceu nove vezes (Vale, 2012VALE. Formulário 20 F. Relatório anual para o exercício encerrado em 31 de dezembro de 2011. Rio de Janeiro, 2012. Disponível em: <Disponível em: https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/53207d1c-63b4-48f1-96b7-19869fae19fe/cd552a7e-7544-4be0-8f6d-3028afe578d8?origin=1 >. Acesso em: 6 mar. 2023.
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https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/... ; 2020VALE. Formulário 20 F. Relatório anual para o exercício encerrado em 31 de dezembro de 2019. Rio de Janeiro, 2020a. Disponível em: <Disponível em: https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/53207d1c-63b4-48f1-96b7-19869fae19fe/d097db59-c956-4aa4-9d64-6b55d82fb0a4?origin=1 >. Acesso em: 6 mar. 2023.
https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/... ; 2021bVALE. Formulário 20 F. Relatório anual para o exercício encerrado em 31 de dezembro de 2020. Rio de Janeiro, 2021b. Disponível em: <Disponível em: https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/53207d1c-63b4-48f1-96b7-19869fae19fe/6425a6c6-6caf-41c2-ab60-f848dda39fb7?origin=1 >. Acesso em: 6 mar. 2023.
https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/... ; 2022bVALE. Formulário 20 F. Relatório anual para o exercício encerrado em 31 de dezembro de 2021. Rio de Janeiro, 2022b. Disponível em: <Disponível em: https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/53207d1c-63b4-48f1-96b7-19869fae19fe/102c9ca4-dea3-7079-6576-38d6a6d8917b?origin=1 >. Acesso em: 6 mar. 2023.
https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/... ).
Em relação à redução do endividamento, a dívida líquida da empresa cairia de US$ 18,143 bi, ao final de 2017, para US$ 9,650 bi ao término de 2018 (Vale, 2018aVALE. Formulário 20 F. Relatório anual para o exercício encerrado em 31 de dezembro de 2017. Rio de Janeiro, 2018a. Disponível em: <Disponível em: https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/53207d1c-63b4-48f1-96b7-19869fae19fe/c82de250-86e5-4d60-8d96-669b6732a105?origin=1 >. Acesso em: 6 mar. 2023.
https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/... , 2019aVALE. Formulário 20 F. Relatório anual para o exercício encerrado em 31 de dezembro de 2018. Rio de Janeiro, 2019a. Disponível em: <Disponível em: https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/53207d1c-63b4-48f1-96b7-19869fae19fe/0b52c197-9c7e-4c67-b3f4-c60d658cf0de?origin=1 >. Acesso em: 6 mar. 2023.
https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/... ).
O valor gasto na manutenção das operações da Vale decresceu significativamente entre 2013 e 2017, passando de US$ 4,6 bi para US$ 2,2 bi (Vale, 2017bVALE. Relatório de sustentabilidade 2016. Rio de Janeiro, 2017b. Disponível em: <Disponível em: https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/53207d1c-63b4-48f1-96b7-19869fae19fe/de5a44e5-22fa-4e38-9484-fa70694ed479?origin=1 >. Acesso em: 20 maio 2022.
https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/... ; 2018bVALE. Relatório de sustentabilidade 2017. Rio de Janeiro, 2018b. Disponível em: <Disponível em: https://vale.com/documents/d/guest/v_vale_relatoriosustentabilidade_2017_v >. Acesso em: 13 out. 2022.
https://vale.com/documents/d/guest/v_val... ), o que pode ter impactado também no gerenciamento das barragens.
Como visto, a estratégia financeira tornou-se central nas operações da empresa, sugerindo que a dimensão operacional de suas atividades estava perdendo relevância na alocação de recursos. Demonstraremos a seguir que, a partir de 2015, o investimento na segurança de barragens ficou muito distante do ritmo do crescimento da remuneração da DE e da distribuição de lucros aos acionistas.
Estagnação do investimento nas barragens
A Vale informou que, no período de 2016 a 2019, os investimentos em gestão de barragens totalizariam cerca de US$ 221 mi, sendo aplicados em ações de manutenção e segurança de barragens, tais como: manutenção, monitoramento, obras de melhorias, auditorias, análises de riscos, revisões dos planos de ação para emergências de barragens de mineração (PAEBM), implantação de sistemas de alerta, videomonitoramento e instrumentação (Vale, 2019dVALE. Vale informa que o investimento em gestão de barragens cresce 180% entre 2015 e 2019. Rio de Janeiro, RJ, 2019d. Disponível em: Disponível em: http://saladeimprensa.vale.com/Paginas/Releases.aspx?r=Investimento_em_gestao_de_barragens_cresce_180_entre_2015_e_2019&s=Mineracao&rID=2299&sID=6 . Acesso em: 7 mar. 2021.
http://saladeimprensa.vale.com/Paginas/R... ).
De 2015 para 2016 houve acréscimo de US$ 3,53 mi nessa gestão, equivalente a 12,7% (Vale, 2019dVALE. Vale informa que o investimento em gestão de barragens cresce 180% entre 2015 e 2019. Rio de Janeiro, RJ, 2019d. Disponível em: Disponível em: http://saladeimprensa.vale.com/Paginas/Releases.aspx?r=Investimento_em_gestao_de_barragens_cresce_180_entre_2015_e_2019&s=Mineracao&rID=2299&sID=6 . Acesso em: 7 mar. 2021.
http://saladeimprensa.vale.com/Paginas/R... ). Esse é um valor pequeno ao se considerar que, com o rompimento da BRF em 2015, a Vale deveria ter ligado o ‘sinal de alerta’ em relação às suas barragens. Dois consultores foram contratados e começaram os estudos de liquefação para as barragens alteadas a montante (Ministério do Trabalho, 2019MINISTÉRIO DA ECONOMIA. Superintendência Regional do Trabalho em Minas Gerais. Relatório de Análise de Acidente: rompimento da barragem de Rejeitos I, em Brumadinho - MG. Belo Horizonte, 2019. Disponível em: <Disponível em: https://sinait.org.br/docs/305346580-relatorio_bi_-_a_corpo_assinado.pdf >. Acesso em: 26 fev. 2021.
https://sinait.org.br/docs/305346580-rel... ), fenômeno no qual uma massa de solo saturada, geralmente areias fofas ou siltes pouco plásticos, perde grande parte de sua resistência ao cisalhamento quando sujeito a um carregamento estático ou dinâmico, movimentando-se como um fluido. Além disso, as barragens Norte/Laranjeiras, Forquilha V e Borrachudo II entraram em funcionamento em 2016, aumentando os custos da gestão (FEAM, 2017FEAM - Fundação Estadual do Meio Ambiente. Inventário de Barragens 2017. Belo Horizonte, 2017. Disponível em: <Disponível em: http://www.feam.br/gestao-de-barragens/inventario-de-barragens >. Acesso em: 7 mar. 2021.
http://www.feam.br/gestao-de-barragens/i... ; 2018FEAM - Fundação Estadual do Meio Ambiente. Inventário de Barragens 2018. Belo Horizonte, 2018. Disponível em: <Disponível em: http://www.feam.br/gestao-de-barragens/inventario-de-barragens >. Acesso em: 7 mar. 2021.
http://www.feam.br/gestao-de-barragens/i... ).
De 2016 para 2017 ocorreu um acréscimo de US$ 25,28 mi (80,71%) na gestão de barragens (Vale, 2019dVALE. Vale informa que o investimento em gestão de barragens cresce 180% entre 2015 e 2019. Rio de Janeiro, RJ, 2019d. Disponível em: Disponível em: http://saladeimprensa.vale.com/Paginas/Releases.aspx?r=Investimento_em_gestao_de_barragens_cresce_180_entre_2015_e_2019&s=Mineracao&rID=2299&sID=6 . Acesso em: 7 mar. 2021.
http://saladeimprensa.vale.com/Paginas/R... ). Tendo como justificativa a Portaria DNPM nº 70.389 de 2017 (Brasil, 2017BRASIL. Ministério das Minas e Energia. Agência Nacional de Mineração. Portaria n° 70.389, de 17 de maio de 2017. Diário Oficial da União. Seção 1, Brasília, DF, Ano 154, n. 95, p. 68-71, 19 mai. 2017.), que trouxe uma série de obrigações acessórias para as mineradoras que possuíam barragens, dentre elas a elaboração da revisão periódica de segurança de barragem, do relatório de inspeção de segurança regular e das respectivas declarações de condição de estabilidade (DCE) duas vezes por ano, bem como do PAEBM, incluindo os estudos de inundação, comumente chamados de Dam Break.
A Vale contratou outros estudos técnicos, como o “Gerenciamento de Riscos Geotécnicos”, que incluía consolidação de dados e identificação de riscos, cálculo de probabilidades, estudos de Dam Break e valoração das consequências em caso de rompimento das barragens (Ministério da Economia, 2019MINISTÉRIO DA ECONOMIA. Superintendência Regional do Trabalho em Minas Gerais. Relatório de Análise de Acidente: rompimento da barragem de Rejeitos I, em Brumadinho - MG. Belo Horizonte, 2019. Disponível em: <Disponível em: https://sinait.org.br/docs/305346580-relatorio_bi_-_a_corpo_assinado.pdf >. Acesso em: 26 fev. 2021.
https://sinait.org.br/docs/305346580-rel... ). Somando-se a isto, entraram em operação as barragens Capitão do Mato e Barnabé 1 em 2017 (FEAM, 2017FEAM - Fundação Estadual do Meio Ambiente. Inventário de Barragens 2017. Belo Horizonte, 2017. Disponível em: <Disponível em: http://www.feam.br/gestao-de-barragens/inventario-de-barragens >. Acesso em: 7 mar. 2021.
http://www.feam.br/gestao-de-barragens/i... ; 2018FEAM - Fundação Estadual do Meio Ambiente. Inventário de Barragens 2018. Belo Horizonte, 2018. Disponível em: <Disponível em: http://www.feam.br/gestao-de-barragens/inventario-de-barragens >. Acesso em: 7 mar. 2021.
http://www.feam.br/gestao-de-barragens/i... ).
Em razão das novas obrigações impostas pelo DNPM, houve um aumento expressivo nos gastos com a gestão, mas não se pode falar que as barragens estavam seguras. A elaboração de estudos sobre Dam Break e PAEBM, bem como a utilização de softwares modernos para cálculo do fator de segurança (FS) não tornam as barragens mais seguras do ponto de vista da estabilidade. Além da manutenção física da barragem, faz-se necessário manter a linha freática tão baixa quanto possível - isto é, mantê-la longe de seus diques -, pois influencia diretamente no cálculo do FS de estabilidade da estrutura. Para tal, a drenagem interna e externa da estrutura tem de estar funcionando de forma a retirar o máximo de água possível de seu interior.
De 2017 para 2018, o custo com a gestão aumentou 16%, reflexo das obrigações criadas pelo DNPM em 2017. Impacta também, nesse valor, os novos alteamentos realizados nas barragens entre 2015 e 2018, já que aumentam os custos com instrumentação, inspeção e manutenção. De 2018 para 2019, o acréscimo planejado no custo da gestão das barragens era de apenas US$ 2,42 mi (Vale, 2019dVALE. Vale informa que o investimento em gestão de barragens cresce 180% entre 2015 e 2019. Rio de Janeiro, RJ, 2019d. Disponível em: Disponível em: http://saladeimprensa.vale.com/Paginas/Releases.aspx?r=Investimento_em_gestao_de_barragens_cresce_180_entre_2015_e_2019&s=Mineracao&rID=2299&sID=6 . Acesso em: 7 mar. 2021.
http://saladeimprensa.vale.com/Paginas/R... ). Contudo, a empresa teve que gastar bem mais com a gestão de suas barragens após o rompimento da B1, como veremos a seguir.
Havia estudo para a descaracterização da B1, contratado junto à empresa TÜV SÜD em 21 de setembro de 2018, com prazo de finalização para 18 de fevereiro de 2019. Uma apresentação, datada de 17 de janeiro de 2019, demonstrou todo o trabalho desenvolvido pela contratada em relação ao projeto conceitual e a escolha da alternativa de fechamento (Ministério da Economia, 2019MINISTÉRIO DA ECONOMIA. Superintendência Regional do Trabalho em Minas Gerais. Relatório de Análise de Acidente: rompimento da barragem de Rejeitos I, em Brumadinho - MG. Belo Horizonte, 2019. Disponível em: <Disponível em: https://sinait.org.br/docs/305346580-relatorio_bi_-_a_corpo_assinado.pdf >. Acesso em: 26 fev. 2021.
https://sinait.org.br/docs/305346580-rel... ). Contudo, o esforço seria em vão, pois a barragem romperia oito dias depois.
Tentamos obter junto à VALE informações sobre o valor investido na gestão da B1 de 2015 a 2018, mas a empresa informou não ser possível individualizar tais valores em seus sistemas internos antes de 2019, o que dificultou a análise da evolução histórica da segurança da B1.
A interdição de outras barragens
Após o rompimento da B1, as empresas de auditoria externa contratadas revisaram seus conceitos em relação aos parâmetros geotécnicos adotados para os rejeitos armazenados, o que diminuiu os FS calculados. Inúmeras barragens não tiveram suas DCE emitidas pelos auditores externos em março de 2019 (Vale, 2019cVALE. Vale informa sobre Declarações de Condição de Estabilidade. Rio de Janeiro, RJ, 2019c. Disponível em: Disponível em: http://saladeimprensa.vale.com/Paginas/Releases.aspx?r=Vale_informa_sobre_Declaracoes_de_Condicao_de_Estabilidade&s=Mineracao&rID=2378&sID=6 . Acesso em: 7mar. 2021.
http://saladeimprensa.vale.com/Paginas/R... ).
Em razão disso, nove barragens da Vale foram interditadas pela SRT/MG por trazerem riscos para os trabalhadores (Cunha, 2019CUNHA R. Auditores do trabalho interditam nove barragens da Vale em Minas. Hoje em dia, Belo Horizonte, 10 abr. 2019. Disponível em: <Disponível em: http://hoje.vc/2dsoa >. Acesso em: 7 mar. 2021.
http://hoje.vc/2dsoa... ), são elas (identificadas pelos nomes de suas minas): Forquilhas I, II e III, Marés II e Grupo (Fábrica); Sul Superior (Gongo Soco); B3 e B4 (Mar Azul); Maravilhas II (Pico); Vargem Grande (Abóboras). Não houve interdição da B1, pois foi praticamente destruída quando do rompimento (Ministério da Economia, 2019).
Outras estruturas foram interditadas pela ANM: oito em março de 2019 (Vale, 2019dVALE. Vale informa que o investimento em gestão de barragens cresce 180% entre 2015 e 2019. Rio de Janeiro, RJ, 2019d. Disponível em: Disponível em: http://saladeimprensa.vale.com/Paginas/Releases.aspx?r=Investimento_em_gestao_de_barragens_cresce_180_entre_2015_e_2019&s=Mineracao&rID=2299&sID=6 . Acesso em: 7 mar. 2021.
http://saladeimprensa.vale.com/Paginas/R... ), uma em setembro de 2019, seis em março de 2020 e oito em setembro de 2020 (Brasil, 2019bBRASIL. Ministério das Minas e Energia. Resumo Campanha Entrega DCE Setembro 2019. Brasília, DF: Ministério das Minas e Energia, 2019b. Disponível em: <Disponível em: https://www.gov.br/anm/pt-br/assuntos/barragens/declaracao-de-condicao-de-estabilidade-dce/resumo-campanha-entrega-dce-setembro-2019/ >. Acesso em: 28 maio 2021.
https://www.gov.br/anm/pt-br/assuntos/ba... ; 2020aBRASIL. Ministério das Minas e Energia. Resumo Campanha Entrega DCE Março 2020. Brasília: Ministério das Minas e Energia, 2020a. Disponível em: <Disponível em: https://www.gov.br/anm/pt-br/assuntos/barragens/declaracao-de-condicao-de-estabilidade-dce/resumo-campanha-entrega-dce-marco-2020/view >. Acesso em: 28 maio 2021.
https://www.gov.br/anm/pt-br/assuntos/ba... ; 2020bBRASIL. Ministério das Minas e Energia. Resumo Campanha Entrega DCE Setembro 2020. Brasília, DF: Ministério das Minas e Energia, 2020b. Disponível em: <Disponível em: https://www.gov.br/anm/pt-br/assuntos/barragens/declaracao-de-condicao-de-estabilidade-dce/resumo-campanha-entrega-dce-setembro-2020 >. Acesso em: 27 dez. 2022.
https://www.gov.br/anm/pt-br/assuntos/ba... ). Com a estabilidade da B VI (Córrego do Feijão) atestada em setembro de 2020 e de Taquaras, Capim Branco e Menezes II em março de 2021, a Vale passou a ter 29 barragens interditadas em MG (Brasil, 2020bBRASIL. Ministério das Minas e Energia. Resumo Campanha Entrega DCE Setembro 2020. Brasília, DF: Ministério das Minas e Energia, 2020b. Disponível em: <Disponível em: https://www.gov.br/anm/pt-br/assuntos/barragens/declaracao-de-condicao-de-estabilidade-dce/resumo-campanha-entrega-dce-setembro-2020 >. Acesso em: 27 dez. 2022.
https://www.gov.br/anm/pt-br/assuntos/ba... ; 2021aBRASIL. Ministério das Minas e Energia. Resumo Campanha Entrega DCE Março 2021. Brasília: Ministério das Minas e Energia, 2021a. Disponível em: <Disponível em: https://www.gov.br/anm/pt-br/assuntos/barragens/declaracao-de-condicao-de-estabilidade-dce/resumo-campanha-entrega-dce-mar2021.pdf >. Acesso em: 27 dez. 2022.
https://www.gov.br/anm/pt-br/assuntos/ba... ).
Os problemas ocorreram com barragens alteadas a montante (11) - as mais inseguras -, como também com aquelas alteadas a jusante (6), alteadas por linha de centro (2) ou apenas com dique único (13). Mesmo estruturas novas, como a Norte/Laranjeiras (2016), Borrachudo II (2016) e Capitão do Mato (2017) não conseguiram ter estabilidade garantida, o que pode remeter a problemas construtivos.
A falta de estabilidade em barragens é principalmente decorrente de problemas com a posição da linha freática. Cruz (1996CRUZ, P.T. 100 Barragens brasileiras: casos históricos, materiais de construção, projeto. São Paulo: Oficina de Textos, 1996.) aponta que “a arte de projetar barragens parece ser a arte de controlar o fluxo de água através do corpo e da fundação da barragem, evitando, assim, quaisquer chances do solo ser carreado pela água”. Quanto mais alta a posição da linha freática dentro do material armazenado ou dentro dos próprios diques, menos segura a barragem, sendo esse um dos fatores que contribuíram para o rompimento da B1.
A mudança na gestão das barragens
A partir das interdições de suas barragens, a Vale iniciou a implantação de estações microssísmicas, de radares interferométricos, do monitoramento através de radares orbitais, da execução de ensaios de eletrorresistividade e da realização de pequenas obras - como direcionamento do fluxo de água para fora dos reservatórios -, além do início de novas campanhas geotécnicas com o objetivo de conhecer melhor suas estruturas, tudo aquilo que a boa engenharia recomenda.11VALE. Pedido de suspensão de interdição da barragem Maravilhas II à Superintendência Regional do Trabalho em Minas Gerais. Belo Horizonte, 2019. 22VALE. Pedido de suspensão de interdição de barragens interditadas na Mina de Fábrica à Superintendência Regional do Trabalho em Minas Gerais. Belo Horizonte, 2019.
Adicionalmente, entrou em funcionamento o Centro de Monitoramento Geotécnico (CMG) em Nova Lima/MG, onde profissionais permanecem 24 horas por dia diante de monitores e são alertados se alguma alteração significativa ocorrer nos parâmetros pré-estabelecidos de segurança (Vale, 2019bVALE. Vale conclui a descaracterização da primeira das nove barragens a montante anunciadas no início do ano. Rio de Janeiro, RJ, 2019b. Disponível em: Disponível em: http://saladeimprensa.vale.com/Paginas/Releases.aspx?r=Vale_conclui_a_descaracterizacao_da_primeira_das_nove_barragens_a_montante_anunciadas_no_inicio_do_ano&s=Mineracao&rID=2511&sID=6 . Acesso em: 26 fev. 2021.
http://saladeimprensa.vale.com/Paginas/R... ).
Em razão da determinação da ANM (Brasil, 2019aBRASIL. Ministério das Minas e Energia. Resolução nº 4, de 15 de fevereiro de 2019. Diário Oficial da União . Seção 1, Brasília, DF, Ano 157, n. 34, p. 58, 18 fev. 2019a.) para a descaracterização das barragens alteadas a montante, a Vale colocou em prática um plano para desmontar 30 barragens, sendo provisionado em 2019 um valor de US$ 2,625 bi (Vale, 2020VALE. Formulário 20 F. Relatório anual para o exercício encerrado em 31 de dezembro de 2019. Rio de Janeiro, 2020a. Disponível em: <Disponível em: https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/53207d1c-63b4-48f1-96b7-19869fae19fe/d097db59-c956-4aa4-9d64-6b55d82fb0a4?origin=1 >. Acesso em: 6 mar. 2023.
https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/... ; 2021bVALE. Formulário 20 F. Relatório anual para o exercício encerrado em 31 de dezembro de 2020. Rio de Janeiro, 2021b. Disponível em: <Disponível em: https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/53207d1c-63b4-48f1-96b7-19869fae19fe/6425a6c6-6caf-41c2-ab60-f848dda39fb7?origin=1 >. Acesso em: 6 mar. 2023.
https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/... ; 2022bVALE. Formulário 20 F. Relatório anual para o exercício encerrado em 31 de dezembro de 2021. Rio de Janeiro, 2022b. Disponível em: <Disponível em: https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/53207d1c-63b4-48f1-96b7-19869fae19fe/102c9ca4-dea3-7079-6576-38d6a6d8917b?origin=1 >. Acesso em: 6 mar. 2023.
https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/... ) para tal. O valor gasto com descaracterização, em 2021 (US$ 338 mi), foi cinco vezes maior que o previsto pela Vale para gestão de barragens em 2019.
Investigação das causas do rompimento da B1
A investigação da ruptura da B1 mostrou que houve interrupção de funcionamento e leituras não usuais de instrumentos, bem como a falta de atendimento de recomendações vindas de relatórios de inspeção de segurança, falhas na manutenção da drenagem, emissão de DCE - apesar do FS de estabilidade ser inferior ao estabelecido em normas internacionais e/ou sugerido por consultores -, inserção de dados no Sistema de Informação de Gestão de Barragens de Mineração (SIGBM) da ANM não condizentes com a realidade, assim como a susceptibilidade dos rejeitos à liquefação (Ministério da Economia, 2019MINISTÉRIO DA ECONOMIA. Superintendência Regional do Trabalho em Minas Gerais. Relatório de Análise de Acidente: rompimento da barragem de Rejeitos I, em Brumadinho - MG. Belo Horizonte, 2019. Disponível em: <Disponível em: https://sinait.org.br/docs/305346580-relatorio_bi_-_a_corpo_assinado.pdf >. Acesso em: 26 fev. 2021.
https://sinait.org.br/docs/305346580-rel... ). Entretanto, a avaliação da Vale sobre a suposta segurança da barragem não foi alterada.
A Vale demorou a implementar medidas que pudessem auxiliar na retirada de água da B1. Medidas saneadoras, como a construção de bermas de reforço, poços verticais etc., foram apontadas ainda em 2017, mas não adotadas (Ministério da Economia, 2019MINISTÉRIO DA ECONOMIA. Superintendência Regional do Trabalho em Minas Gerais. Relatório de Análise de Acidente: rompimento da barragem de Rejeitos I, em Brumadinho - MG. Belo Horizonte, 2019. Disponível em: <Disponível em: https://sinait.org.br/docs/305346580-relatorio_bi_-_a_corpo_assinado.pdf >. Acesso em: 26 fev. 2021.
https://sinait.org.br/docs/305346580-rel... ). Importante destacar que a investigação não conseguiu esclarecer as razões pelas quais essas recomendações não foram implementadas. A empresa decidiu começar a executar drenos horizontais profundos (DHP) em fevereiro de 2018. Em 11 de junho, quando foi feita a perfuração do 15º DHP, ocorreu uma fratura hidráulica no maciço inicial e a suspensão da abertura (Ministério da Economia, 2019MINISTÉRIO DA ECONOMIA. Superintendência Regional do Trabalho em Minas Gerais. Relatório de Análise de Acidente: rompimento da barragem de Rejeitos I, em Brumadinho - MG. Belo Horizonte, 2019. Disponível em: <Disponível em: https://sinait.org.br/docs/305346580-relatorio_bi_-_a_corpo_assinado.pdf >. Acesso em: 26 fev. 2021.
https://sinait.org.br/docs/305346580-rel... ). Nenhuma outra medida efetiva foi tomada pela empresa na tentativa do rebaixamento da linha freática da B1 até o rompimento. A figura 1 aponta a linha do tempo da B1 com os eventos críticos, isto é, ocorrências que resultam em transformações duráveis radicais da estrutura.
Discussões sobre o caso
A Figura 2 aponta que o valor planejado para a gestão de barragens era de US$ 68 mi em 2019 e o valor para descaracterização de barragens somou US$ 338 mi em 2021 (Vale, 2016VALE. Formulário 20 F. Relatório anual para o exercício encerrado em 31 de dezembro de 2015. Rio de Janeiro, 2016. Disponível em: <Disponível em: https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/53207d1c-63b4-48f1-96b7-19869fae19fe/ad6bc0d7-89b8-4eb8-b6f6-4d71f5158b76?origin=1 >. Acesso em: 6 mar. 2023.
https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/... ; 2017aVALE. Formulário 20 F. Relatório anual para o exercício encerrado em 31 de dezembro de 2016. Rio de Janeiro, 2017a. Disponível em: <Disponível em: https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/53207d1c-63b4-48f1-96b7-19869fae19fe/36671c36-0a4c-4e65-81b4-1ac4c149bdae?origin=1 >. Acesso em: 6 mar. 2023.
https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/... ; 2018aVALE. Formulário 20 F. Relatório anual para o exercício encerrado em 31 de dezembro de 2017. Rio de Janeiro, 2018a. Disponível em: <Disponível em: https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/53207d1c-63b4-48f1-96b7-19869fae19fe/c82de250-86e5-4d60-8d96-669b6732a105?origin=1 >. Acesso em: 6 mar. 2023.
https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/... ; 2019aVALE. Formulário 20 F. Relatório anual para o exercício encerrado em 31 de dezembro de 2018. Rio de Janeiro, 2019a. Disponível em: <Disponível em: https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/53207d1c-63b4-48f1-96b7-19869fae19fe/0b52c197-9c7e-4c67-b3f4-c60d658cf0de?origin=1 >. Acesso em: 6 mar. 2023.
https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/... ; 2019dVALE. Vale informa que o investimento em gestão de barragens cresce 180% entre 2015 e 2019. Rio de Janeiro, RJ, 2019d. Disponível em: Disponível em: http://saladeimprensa.vale.com/Paginas/Releases.aspx?r=Investimento_em_gestao_de_barragens_cresce_180_entre_2015_e_2019&s=Mineracao&rID=2299&sID=6 . Acesso em: 7 mar. 2021.
http://saladeimprensa.vale.com/Paginas/R... ; 2020VALE. Formulário 20 F. Relatório anual para o exercício encerrado em 31 de dezembro de 2019. Rio de Janeiro, 2020a. Disponível em: <Disponível em: https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/53207d1c-63b4-48f1-96b7-19869fae19fe/d097db59-c956-4aa4-9d64-6b55d82fb0a4?origin=1 >. Acesso em: 6 mar. 2023.
https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/... ; 2021bVALE. Formulário 20 F. Relatório anual para o exercício encerrado em 31 de dezembro de 2020. Rio de Janeiro, 2021b. Disponível em: <Disponível em: https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/53207d1c-63b4-48f1-96b7-19869fae19fe/6425a6c6-6caf-41c2-ab60-f848dda39fb7?origin=1 >. Acesso em: 6 mar. 2023.
https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/... ; 2022bVALE. Formulário 20 F. Relatório anual para o exercício encerrado em 31 de dezembro de 2021. Rio de Janeiro, 2022b. Disponível em: <Disponível em: https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/53207d1c-63b4-48f1-96b7-19869fae19fe/102c9ca4-dea3-7079-6576-38d6a6d8917b?origin=1 >. Acesso em: 6 mar. 2023.
https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/... ). A Figura 2 também evidencia a queda na distribuição de dividendos e da remuneração da DE entre 2015 e 2016, bem como entre 2018 e 2019, o que se relaciona com o término do megaciclo das commodities e com a queda do valor da tonelada de minério de ferro (Wanderley, 2017WANDERLEY L. J. de M. Do boom ao pós-boom das commodities: o comportamento do setor mineral no Brasil. Versos - Textos para discussão PoEMAS, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, 2017.). Entre 2017 e 2018, a distribuição de dividendos cresceu novamente, foi interrompida com o rompimento da B1, mas voltou a subir fortemente em 2020. Já a remuneração da DE veio crescendo após 2016 e não parou mais.
Investimento na gestão e descaracterização de barragens, remuneração da diretoria executiva e pagamento de dividendos aos acionistas da Vale (2015-2021)
O investimento na gestão de barragens teve um crescimento modesto entre 2015 e 2019 (Figura 2), demonstrando que a Vale ainda não tinha reconhecido o problema. Isso pode ser corroborado pela fala do Diretor Executivo de Ferrosos, Sr. Gerd Peter Poppinga, durante um evento para investidores em Londres, em 2015:
Como Luciano [Diretor Financeiro] disse, em nossos 73 anos de história, nós nunca tivemos um rompimento de barragem. Existem muitas coisas que podemos fazer. Você pode atualizar seus sistemas de monitoramento, por laser ou por radar, instalar mais piezômetros e assim por diante. Isto é o que estamos fazendo, e somente começando. Até o momento nós não temos nenhum sinal. Nós não temos nada. Nós estamos bem com nossa governança e com o governo, e nós estamos bem com a integridade das barragens (Saes; Muradian, 2021SAES, B.; MURADIAN, R. What misguides environmental risk perceptions in corporations? Explaining the failure of Vale to prevent the two largest mining disasters in Brazil. Resources Policy, Amsterdam, v. 72, 2021. DOI: 10.1016/j.resourpol.2021.102022
https://doi.org/10.1016/j.resourpol.2021... ).
Já em 2016, quando apresentava os resultados da Vale do segundo trimestre, declarou Poppinga:
[…] não importa o que acontecerá em termos especificamente de montante, o método de construção de barragens de rejeitos no Brasil em termos de legislação ou restrições, nós podemos dizer que a Vale, nós não temos aquelas barragens. Nós não temos, nós praticamente não temos barragem de montante em operação […] (Saes; Muradian, 2021SAES, B.; MURADIAN, R. What misguides environmental risk perceptions in corporations? Explaining the failure of Vale to prevent the two largest mining disasters in Brazil. Resources Policy, Amsterdam, v. 72, 2021. DOI: 10.1016/j.resourpol.2021.102022
https://doi.org/10.1016/j.resourpol.2021... ).
O diretor desvalorizou o risco de suas barragens, declarando para investidores que a empresa “praticamente” não tinha barragens alteadas a montante. Mas foi exatamente a B1, alteada a montante, que se rompeu, evento seguido pela interdição de outras desse tipo a partir de 2019.
Marshall (2015MARSHALL J. Behind the image of south-south solidarity at Brazil’s Vale. In: BOND, P; GARCIA A. (org.). BRICS: An anti-capitalism critique. Chicago: Haymarket Books, 2015. p. 162-185., p. 172), por meio de survey aplicado a trabalhadores da Vale em diferentes países, sintetizou algumas táticas empregadas pela empresa: “A Vale impõe de forma irrealista altas metas de produção; trabalhar na Vale significa trabalhar em condições perigosas, por que ela coloca a produção acima de tudo […]”.
A pesquisa de Marshall (2015MARSHALL J. Behind the image of south-south solidarity at Brazil’s Vale. In: BOND, P; GARCIA A. (org.). BRICS: An anti-capitalism critique. Chicago: Haymarket Books, 2015. p. 162-185.) pode ilustrar o modo como a empresa gerenciou suas minas e barragens. À semelhança do que ocorre no mercado financeiro, os resultados são obtidos através de mecanismos de gestão considerados violentos, que exercem pressão para o alcance de metas, interferem e enfraquecem o poder de agir dos coletivos profissionais, introduzem cortes abusivos em áreas estratégicas, como segurança e manutenção, além de terceirizar serviços essenciais, trazendo como consequência prejuízos à segurança e à saúde física e mental dos trabalhadores (Takahashi et al., 2015TAKAHASHI M.A. et al. Gestão violenta e patologia organizacional: reflexões para uma intervenção articulada entre academia, serviços e movimento sindical. Revista Ciências do Trabalho, São Paulo, n. 4, p. 27-47, 2015.).
A maneira pela qual a DE da Vale era remunerada pode ter contribuído para uma gestão arriscada das instalações. Essa remuneração era composta por uma parte fixa (honorário mensal), uma parte variável em curto prazo (bônus anual) e duas partes em longo prazo - o Programa de Ações Virtuais (PAV) e o Matching (Vale, 2019aVALE. Formulário 20 F. Relatório anual para o exercício encerrado em 31 de dezembro de 2018. Rio de Janeiro, 2019a. Disponível em: <Disponível em: https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/53207d1c-63b4-48f1-96b7-19869fae19fe/0b52c197-9c7e-4c67-b3f4-c60d658cf0de?origin=1 >. Acesso em: 6 mar. 2023.
https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/... ; 2021aVALE. Formulário de referência 2021. Rio de Janeiro, 2021a. Disponível em: <Disponível em: https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/53207d1c-63b4-48f1-96b7-19869fae19fe/95362b5d-56b4-1317-3eab-3cf2a928a9ad?origin=1 >. Acesso em: 13 out. 2022.
https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/... ; 2022aVALE. Formulário de referência, versão 3, 2022. Rio de Janeiro, 2022a. Disponível em: <Disponível em: https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/53207d1c-63b4-48f1-96b7-19869fae19fe/95362b5d-56b4-1317-3eab-3cf2a928a9ad?origin=2 >. Acesso em: 27 abr. 2022.
https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/... ).
Até 2018, 60% do painel de metas do bônus anual estava associado a métricas econômico-financeiras que traduziam o desempenho operacional e estavam alinhadas ao pagamento de dividendos. O PAV alinha o foco dos executivos à visão dos acionistas e tem como métrica de desempenho o Total Shareholder Return (TSR). O TSR mede o retorno que um investimento proporciona ao investidor/acionista, além de considerar a oscilação do preço da ação e a distribuição de dividendos, com base no período. O Matching baseia-se no valor de mercado da companhia e no preço da ação. Funciona como um diferimento do bônus anual, convertendo em ações parte do pagamento do bônus anual pago a cada diretor, sendo obrigatório para a DE e voluntário para diretores que são empregados (Vale, 2019aVALE. Formulário 20 F. Relatório anual para o exercício encerrado em 31 de dezembro de 2018. Rio de Janeiro, 2019a. Disponível em: <Disponível em: https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/53207d1c-63b4-48f1-96b7-19869fae19fe/0b52c197-9c7e-4c67-b3f4-c60d658cf0de?origin=1 >. Acesso em: 6 mar. 2023.
https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/... ; 2021aVALE. Formulário de referência 2021. Rio de Janeiro, 2021a. Disponível em: <Disponível em: https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/53207d1c-63b4-48f1-96b7-19869fae19fe/95362b5d-56b4-1317-3eab-3cf2a928a9ad?origin=1 >. Acesso em: 13 out. 2022.
https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/... ; 2022aVALE. Formulário de referência, versão 3, 2022. Rio de Janeiro, 2022a. Disponível em: <Disponível em: https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/53207d1c-63b4-48f1-96b7-19869fae19fe/95362b5d-56b4-1317-3eab-3cf2a928a9ad?origin=2 >. Acesso em: 27 abr. 2022.
https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/... ).
O pagamento de bônus para a alta e média administração já foi estudado em empresas mineradoras (Armstrong; Petter; Petter, 2019ARMSTRONG M.; PETTER R.; PETTER, C. Why have so many tailings dams failed in recent years? Resources Policy, Amsterdam, v. 63, n. 1, 101412, 2019. DOI: 10.1016/j.resourpol.2019.101412
https://doi.org/10.1016/j.resourpol.2019... ). Os autores argumentam que o pagamento de bônus vinculado a respostas do sistema financeiro pode incentivar as pessoas a tomarem decisões que trazem ganhos a curto prazo, mas com risco de problemas a longo prazo. Ao alinhar os interesses da alta administração com os dos acionistas, incentivam a empresa a se concentrar na maximização do retorno financeiro, mesmo que isso signifique correr maior risco de consequências desastrosas.
Contradições históricas e barragens
Neste estudo, analisamos dois SA: “Inspeção e Monitoramento” e “Alta Administração”, ambos possuindo um objeto parcialmente compartilhado, a barragem B1 (figura 3).
No SA “Inspeção e Monitoramento”, os sujeitos eram responsáveis por inspecionar e monitorar a B1, coletar informações de campo, fornecer dados e acompanhar os responsáveis pela auditoria externa, inserir dados no SIGBM e atender à fiscalização da ANM. À “Alta Administração”, composta pelo diretor-presidente e por diretores executivos, cabia propor aquisição e venda de empresas; realizar ações para otimizar processos; melhorar a qualidade e a produtividade; além de supervisionar as companhias do grupo no Brasil e no exterior.
Em 2017, após a mudança do presidente da Vale, as regras foram alteradas. Acionistas voltaram a ser bem remunerados como em 2012 e a DE teve salto nos valores recebidos. Contudo, o investimento na segurança de barragens não acompanhou esse crescimento, fato que parece ter contribuído para o rompimento da B1.
A investigação do desastre apontou que a B1 parou de receber rejeitos em julho de 2016 e, apesar de continuar armazenando resíduos lançados desde 1976, teve seu valor de uso diminuído. Pensando estritamente nesse fator, a Vale não teria motivos para investir em obras que deixassem a B1 mais segura. Raciocínio igual pode ser utilizado para outras barragens da empresa que já não recebiam mais rejeitos. Alteada a montante, a B1 possuía um valor de construção (valor de troca) baixo em relação às barragens alteadas a jusante ou em linha de centro. Em suma, a construção da B1 teve um custo baixo, mas era perigosa. Essa situação pode ser interpretada como contradição primária do objeto, identificada como “1” na figura 3.
Como contradições secundárias (tensões entre os elementos de um SA), podemos observar dentro do SA “Inspeção e Monitoramento”:
Contradição 2 - entre os instrumentos (equipamentos de monitoramento insuficientes e/ou danificados) e o objeto compartilhado: não era possível ter uma barragem segura com equipamentos de monitoramento insuficientes e/ou danificados.
Contradição 3 - entre os instrumentos (relatórios de auditoria externa) e as regras (normas internacionais e brasileiras): relatórios da auditoria externa apontaram FS para condição não drenada da B1 menores que o exigido em normas internacionais, algo apontado por consultores, já que a norma NBR 13028/2017 e as normas da ANM não contemplavam o FS mínimo a ser obtido para tal situação.
Contradição 4 - entre regra (manual de operação) e objeto compartilhado: não era possível ter uma barragem segura sem cumprir as regras do manual de operação, como a largura mínima da praia de rejeitos.
Contradição 5 - entre a divisão do trabalho (lançamento de dados no SIGBM) e regras (norma da ANM): lançamento de dados no SIGBM em não conformidade com a norma da ANM.
Hipotetizamos outras duas contradições secundárias entre elementos do SA “Alta Administração” e o objeto parcialmente compartilhado:
Contradição 6 - entre instrumento DCE e objeto: a “Alta Administração” entendia que a simples emissão da DCE trazia segurança à B1, o que não se comprovou nos achados da investigação.
Contradição 7 - regra (aumento de dividendos para acionistas) e o objeto: “Alta Administração” privilegiou o mercado financeiro em detrimento da segurança da B1.
A terceirização da DCE moveu a regulação para a consultoria privada que adotava padrões de regulação legais e também não modelados por leis. A terceira apenas recomenda medidas preventivas. Acontece que a TÜV SÜD, empresa que emitiu a DCE da B1 em 2018, também atuava como consultora da Vale em vários outros projetos que podia perder caso a barragem não recebesse documento atestando sua segurança. A exemplo do que aconteceu com a British Petroleum, que vivenciou três grandes desastres entre 2005 e 2010, a Vale aparentemente perdeu sua capacidade de decisões equilibradas sobre problemas multidimensionais - como a segurança. Como agravante, os gestores acreditavam que a inexistência de ruptura de barragens no passado significasse segurança futura, num contexto de ideologia de desregulamentação e enfraquecimento da autoridade do Estado (Le Coze, 2017LE COZE, J. C. Globalization and high-risk systems. Policy and practise and health and safety, London, v. 15, p. 57-81, 2017. DOI: 10.1080/14773996.2017.1316090
https://doi.org/10.1080/14773996.2017.13... ).
Somente após o acidente de Brumadinho é que foi identificado que o problema era crônico. A barragem B1 não era um caso isolado, já que inúmeras outras estruturas estavam frágeis e foram interditadas por órgãos públicos. Isso nos leva a apontar que os investimentos na gestão de barragens estavam aquém do que deveria ter sido.
Considerações finais
Procuramos demonstrar, neste artigo, as contradições verificadas em e entre sistemas de atividade da Vale. A empresa distribuiu dividendos vultosos aos seus acionistas, remunerou como nunca seus diretores, reduziu os custos em relação às receitas e diminuiu brutalmente a dívida interna, mas os investimentos foram insuficientes na gestão das barragens, culminando no desastre da B1 em 2019 e na interdição de 29 barragens em 2021.
A metáfora da boneca russa (Le Coze, 2017LE COZE, J. C. Globalization and high-risk systems. Policy and practise and health and safety, London, v. 15, p. 57-81, 2017. DOI: 10.1080/14773996.2017.1316090
https://doi.org/10.1080/14773996.2017.13... ), adotada para explicar camadas de interpretação, aplica-se a este caso. A boneca menor é a dimensão da tecnologia e da engenharia, que assegura estabilidade às estruturas de contenção. A ela se sobrepõe a camada de aspectos humanos e organizacionais e uma terceira de transformações e estratégias da empresa. A camada mais externa refere-se às mudanças adotadas pela empresa em face da globalização e grandes transformações econômicas e políticas, buscando assegurar adaptações permanentes e considerando todos os atores envolvidos no sistema empresa e nos demais sistemas que possam ser afetados em caso de desastres. É fundamental identificar e reduzir vulnerabilidades e os seus respectivos processos - que são também seus criadores.
A ruptura da B1 ensejou ampla mobilização de cientistas e profissionais de segurança que, de forma fragmentada, estudaram diferentes aspectos da história do evento. Apontamos para um caminho metodológico do diálogo interdisciplinar, que ajude a esclarecer como as decisões gerenciais estratégicas, especialmente aquelas da gestão financeira, podem influenciar a gestão de produção, de manutenção e de segurança das barragens.
A análise que conduzimos pode ser considerada exploratória, mas nos permite apontar a necessidade de mudanças nos processos de tomada de decisão nas instâncias de gestão estratégica e intermediária da organização envolvida. Somamo-nos a vários autores ao argumentar que a pressão do mercado financeiro e a forma de remuneração dos diretores contribuem para tomada de decisões que trazem resultados financeiros a curto prazo, mas com resultados trágicos a longo prazo.
Referências
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» https://doi.org/10.1016/j.resourpol.2019.101412 - MINISTÉRIO DA ECONOMIA. Superintendência Regional do Trabalho em Minas Gerais. Relatório de Análise de Acidente: rompimento da barragem de Rejeitos I, em Brumadinho - MG. Belo Horizonte, 2019. Disponível em: <Disponível em: https://sinait.org.br/docs/305346580-relatorio_bi_-_a_corpo_assinado.pdf >. Acesso em: 26 fev. 2021.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
07 Ago 2023 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
04 Jan 2023 - Revisado
04 Jan 2023 - Aceito
02 Mar 2023