Morte e vida no debate sobre aborto: uma análise a partir da audiência pública sobre a ADPF 44211Artigo submetido para publicação no dossiê “Crises contemporâneas: políticas sociais, desigualdades e saúde”, do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública (FSP/USP), e financiado pela bolsa de doutorado da CAPES (88882.333568/2019-01).

Larissa Nadine Rybka Cristiane da Silva Cabral Sobre os autores

Resumo

Partindo da premissa de que as pautas sobre direitos reprodutivos constituem uma gama de disputas políticas no campo da sexualidade e da reprodução, este artigo examina o debate travado na audiência pública sobre a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, ocorrida em agosto de 2018. A ação propõe a descriminalização do aborto induzido pela própria gestante ou com seu consentimento, até a 12ª. semana de gestação. Na audiência convocada pelo Supremo Tribunal Federal, 50 exposições de amici curiae foram realizadas, catalisando os atuais argumentos acionados no debate público sobre aborto no Brasil. O conteúdo da audiência pública (personagens, lugares, imagens, áudios, textos e vídeo) é tomado como material empírico desta pesquisa. Considerando a centralidade do argumento de defesa da vida/combate à morte, tanto nas exposições favoráveis quanto naquelas contrárias à ADPF, examinamos os distintos enquadramentos utilizados pelos atores políticos em cena, ao debater a problemática do aborto em termos de um embate entre morte e vida. Mais do que uma polissemia dos termos, trata-se de um embate que explicita hierarquias em relação à reprodução e à vida das mulheres.

Palavras-chave:
Descriminalização do Aborto; ADPF 442; Justiça Reprodutiva; Direitos Sexuais e Reprodutivos; Feminismo Interseccional

Introdução

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, que propõe a descriminalização do aborto até a 12ª. semana de gestação, foi ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade no dia 6 de março de 2017, em um contexto de plena ascensão do neoconservadorismo no Brasil (Vaggione; Machado; Biroli, 2020VAGGIONE, J. M.; MACHADO, M. das D. C.; BIROLI, F. Matrizes do neoconservadorismo religioso na América Latina. In: BIROLI, F.; VAGGIONE, J. M.; MACHADO, M. das D. C. Gênero, neoconservadorismo e democracia: disputas e retrocessos na América Latina. São Paulo: Boitempo, 2020. p. 13-40.). Até o momento atual, o principal desdobramento desta ação foi a audiência pública convocada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), realizada em agosto de 2018, às vésperas da eleição que levou uma coalizão de forças políticas ultraconservadoras a ocupar as mais altas instâncias de poder do país. Nesse sentido, a apresentação da ADPF 442 constitui um movimento ousado, ao pautar em tal contexto o debate sobre aborto na arena pública, formulando-o em termos de justiça social e direitos humanos das mulheres (destacando-se os direitos à vida, à saúde, à autodeterminação, à dignidade e à igualdade de gênero).

A audiência pública sobre a ADPF 442 pode ser considerada um campo de batalha onde se atualizaram as estratégias adotadas pelos principais atores políticos que historicamente incidem sobre a problemática do aborto no Brasil. Ao longo de dois dias, as 50 entidades selecionadas pelo STF (amici curiae - “amigos da corte”) defenderam sua posição favorável (33) ou contrária (17) à matéria em pauta. Além de condensar os dados e argumentos acumulados desde a década de 1970 (quando, sob a pressão dos movimentos de mulheres/feministas, a “questão do aborto” passou a ser tratada como um problema público), as exposições anunciaram as novas configurações e a própria centralidade que as disputas em torno do aborto assumiriam nos anos seguintes, sob o governo de Jair Bolsonaro (2019-2022).

O material empírico desta pesquisa é composto pelos vídeos que contêm o registro completo da audiência pública (somando aproximadamente 20 horas) e pelo documento com a transcrição das exposições, ambos disponibilizados pelo STF. O acompanhamento presencial da audiência também gerou o registro, em diário de campo, de observações acerca dos personagens e do ambiente austero e tenso, bem como de reflexões e análises produzidas na interação com outras pesquisadoras e ativistas (favoráveis e contrárias) ali presentes.

A pesquisa comporta uma dimensão etnográfica que proporciona um olhar privilegiado à análise documental (Lowenkron; Ferreira, 2014LOWENKRON, L.; FERREIRA, L. Anthropological perspectives on documents. Ethnographic dialogues on the trail of police papers. Vibrant: Virtual Brazilian Anthropology, Brasília, DF, v. 11, n. 2, p. 76-112, 2014. DOI: 10.1590/S1809-43412014000200003
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). A articulação dessas duas estratégias metodológicas se mostrou fundamental para a abordagem do contexto no qual a audiência pública se desenrolou, para o mapeamento dos atores em cena (suas trajetórias acadêmicas e/ou políticas, seus espaços sociais de pertencimento, as conexões que mantêm com instituições e movimentos nacionais e internacionais) e para o delineamento dos quatro campos de saberes e práticas a partir dos quais a/os expositora/es elaboraram seus argumentos. Esses campos são aqueles que, nas últimas décadas, vêm configurando o debate público sobre aborto no Brasil: as ciências biológicas/da saúde, o direito, as religiões e as chamadas “organizações da sociedade civil” (movimentos, associações, ONGs). A confrontação entre as questões da pesquisa, o referencial teórico e os núcleos semânticos identificados na análise de conteúdo do corpus empírico permitiu a construção das categorias de análise que abrangem as principais ideias, crenças e valores mobilizados nas exposições.

Neste processo analítico-interpretativo, destacamos a frequência e a polissemia dos termos “vida”, “morte” e seus derivados. Dentro da lógica argumentativa inerente a cada discurso, a posição adotada em relação à descriminalização do aborto se sustenta na defesa da vida e no combate à morte. Mas é necessário questionar quais são as demandas específicas inscritas nessa bandeira de “dupla face” (a luta pela vida e contra a morte), conforme os atores políticos que as reivindicam. Em outras palavras, quais vidas são declaradas dignas de proteção? A morte de quem se deseja evitar? Quais são as implicações concretas de cada uma das posições em disputa? Parece-nos inescapável examinar as distintas reivindicações subjacentes a tais palavras de ordem, assim como seus efeitos materiais e simbólicos.

Este estudo se insere num conjunto mais amplo de investigações que buscam refletir sobre o campo da saúde e dos direitos reprodutivos enquanto inapelavelmente imbricados com as políticas de Estado e as questões de gênero, sexualidade, raça e classe social. Nesta seara, o conceito de governança reprodutiva é bastante fecundo, por constituir uma lente teórica que permite explicitar

os mecanismos pelos quais diferentes configurações históricas de atores - como o Estado, instituições religiosas e financeiras internacionais, ONGs e movimentos sociais - usam controles legislativos, incentivos econômicos, injunções morais, coerção direta e incitamentos éticos para produzir, monitorar e controlar comportamentos reprodutivos e práticas populacionais. (Morgan; Roberts, 2012MORGAN, L.; ROBERTS, E. Reproductive governance in Latin America. Anthropology & Medicine, London, v. 19, n. 2, p. 241-254, 2012., p. 241, tradução nossa)

As controvérsias sobre a descriminalização do aborto explicitam sobremaneira as disputas, controles, incidências e formas de gestão da vida (e da morte) que o conceito de governança reprodutiva procura deslindar. Nesse sentido, o cenário, o enredo e os atores em torno da ADPF constituem um objeto “bom para pensar” sobre os distintos projetos de sociedade em disputa no Brasil contemporâneo, sob a bandeira da “defesa da vida”.

Morte e vida das mulheres: o drama da morte materna no Brasil

Quando se fala em vida e morte no campo favorável à ADPF, trata-se das mulheres, das suas possibilidades de vida e da sua morte precoce por causas relacionadas à gravidez, ao aborto, ao parto e ao puerpério. As discussões em torno da morbimortalidade materna ocupam um grande espaço nas exposições das entidades que defendem a descriminalização do aborto. É importante destacar que mais de 90% das mortes maternas no Brasil são evitáveis (Brasil, 2018BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde; Secretaria de Atenção à Saúde. Interrupção voluntária de gestação e impacto na saúde da mulher. Memorial apresentado ao STF, na qualidade de amicus curiae da ADPF 442. Brasília, DF, 2018.), sendo as complicações relacionados ao aborto inseguro uma de suas principais causas.

O cenário brasileiro se caracteriza por uma queda significativa na razão de mortalidade materna (RMM) ao longo da década de 1990, com uma redução de aproximadamente 43% nesse período (de 140 para 80 por 100 mil nascidos vivos) (Amorim, 2014AMORIM, M. Assistência obstétrica baseada em evidências científicas e a prevenção da morte materna. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2014.). O principal fator determinante dessa queda foi a ampliação do acesso a serviços de saúde (decorrente da implantação do SUS), destacando-se a contracepção e a assistência pré-natal, ao parto e ao puerpério. No caso do aborto, que ocupava o terceiro lugar entre as causas de morte materna (MM) nos anos 1990, a ampla difusão do uso do Misoprostol também teve um papel crucial na redução da mortalidade (Brasil, 2009BRASIL. Ministério da Saúde. Aborto e saúde pública no Brasil: 20 anos. Brasília, DF, 2009.).

A partir da década de 2000, há uma desaceleração na queda da RMM, mas a tendência de redução se mantém até 2012, quando atingimos aproximadamente 60 óbitos por 100 mil nascidos vivos (NV) (Amorim, 2014AMORIM, M. Assistência obstétrica baseada em evidências científicas e a prevenção da morte materna. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2014.). Durante os anos 2010, a RMM ficou praticamente estagnada em torno dessa taxa, um patamar ainda muito distante do índice considerado aceitável pela Organização Mundial de Saúde (abaixo de 20 óbitos por 100 mil NV).

A emergência da pandemia de covid-19, sob um governo que não apenas foi omisso quanto às medidas sanitárias e sociais necessárias para proteger a população, mas também contribuiu deliberadamente para a disseminação do vírus, teve efeitos desastrosos sobre a mortalidade materna no Brasil. Em 2021, atingimos a triste marca de 107 óbitos por 100 mil NV (Brasil, 2022aBRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Painel de monitoramento da mortalidade materna. Brasília, DF, 2022a. Disponível em: <Disponível em: http://svs.aids.gov.br/dantps/centrais-de-conteudos/paineis-de-monitoramento/mortalidade/materna/ >. Acesso em: 16 jun. 2022.
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). Até o final de outubro de 2022, 2543 gestantes e puérperas haviam morrido em decorrência de complicações da Síndrome Respiratória Aguda Grave, causada, na maioria dos casos, pelo coronavírus (OOBR SRAG, 2022OOBR SRAG - OBSERVATÓRIO OBSTÉTRICO BRASILEIRO SRAG. Análises do SIVEP-Gripe: gestantes e puérperas: 27/outubro/2022. Disponível em: <Disponível em: https://observatorioobstetrico.shinyapps.io/covid_gesta_puerp_br/ >. Acesso em: 16 jun. 2022.
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).

Por ser um indicador extremamente sensível às condições de vida e de saúde da população, bem como à qualidade da assistência obstétrica, a RMM reflete de modo brutal as desigualdades sociais. Destacaremos aqui as diferenças na RMM segundo região e raça/cor, tomando como referência o ano de 2019, por se tratar de um cenário mais próximo àquele vigente no momento de realização da audiência pública sobre a ADPF 442. Em 2019, o número de mortes maternas por 100 mil NV variou de 38,3 na região Sul até 82,5 na região Norte; no que se refere às desigualdades raciais, 66% das mulheres que morreram por causas maternas eram negras (54% pardas e 12% pretas), 30% eram brancas e 2% eram indígenas (Brasil, 2021BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Mortalidade materna no Brasil, 2009-2019. Boletim Epidemiológico, Brasília, DF, v. 52, n. 29, p. 13-24, 2021. Disponível em: <Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/media/pdf/2021/agosto/9/boletim_epidemiologico_svs_29.pdf >. Acesso em: 16 jun. 2022.
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).

É importante mencionar também os casos classificados como near miss, ou seja, aqueles nos quais as mulheres quase morreram por complicações muito graves relacionadas ao ciclo gravídico-puerperal. Especificamente em relação ao aborto, estima-se que, no Brasil, para cada morte materna, ocorram entre 25 e 30 casos de near miss, que evoluem com complicações como hemorragia, infecção, choque séptico, intoxicação, perfuração de vísceras e traumatismos genitais, e que geralmente deixam sequelas, como dor pélvica crônica e infertilidade (Amorim apud Brasil, 2019BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Interrupção voluntária da gravidez: ADPF 442. Relatora Ministra Rosa Weber. Brasília, DF, 2019. Disponível em: <Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audienciasPublicas/anexo/TranscrioInterrupovoluntriadagravidez.pdf >. Acesso em: 10 jul. 2022.
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; Brasil, 2018BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde; Secretaria de Atenção à Saúde. Interrupção voluntária de gestação e impacto na saúde da mulher. Memorial apresentado ao STF, na qualidade de amicus curiae da ADPF 442. Brasília, DF, 2018.). Todos os anos, cerca de 5 mil mulheres são hospitalizadas com quadros de muita gravidade, decorrentes de procedimentos inseguros de interrupção da gestação (Brasil, 2018BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde; Secretaria de Atenção à Saúde. Interrupção voluntária de gestação e impacto na saúde da mulher. Memorial apresentado ao STF, na qualidade de amicus curiae da ADPF 442. Brasília, DF, 2018.).

No contexto geral de subnotificação de mortes maternas, aquelas decorrentes de complicações do aborto são as mais sujeitas à subnotificação. Daí a diferença gritante entre os dados “brutos” registrados no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e os dados corrigidos após a investigação dos óbitos que poderiam ocultar o aborto como causa. O trabalho de revisão dos dados referentes a 2016, cujos resultados foram apresentados na audiência pelas porta-vozes do Ministério da Saúde, levou à identificação de 203 mortes maternas por aborto22O número corrigido de óbitos por aborto é 3,6 vezes maior do que aquele registrado no Painel de Monitoramento da Mortalidade Materna do DATASUS (56)., sendo os riscos “mais elevados para mulheres negras, com escolaridade até o nível fundamental e solteiras” (Brasil, 2018BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde; Secretaria de Atenção à Saúde. Interrupção voluntária de gestação e impacto na saúde da mulher. Memorial apresentado ao STF, na qualidade de amicus curiae da ADPF 442. Brasília, DF, 2018., p. 8). Esses 203 óbitos correspondem a 11% das 1.841 mortes maternas ocorridas em 2016.

As razões para a extrema subnotificação das mortes por aborto foram discutidas na audiência pública por Tania Lago, médica, demógrafa, integrante do Ministério da Saúde durante o governo de Fernando Henrique Cardoso e representante do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). Os motivos apresentados pela expositora vão desde a comunicação deficiente entre os profissionais de saúde e as mulheres que buscam assistência devido a complicações de um aborto inseguro (uma conversa prejudicada pelo clima de medo, tensão e desconfiança), passando pelo preenchimento incorreto das declarações de óbito (seja por falta ou por omissão de informações), até as dificuldades na investigação da causa do óbito. É comum que as mulheres mortas por complicações de um aborto não tenham contado a ninguém sobre a gravidez. O medo da condenação pelo ato (inclusive penal, mas também no âmbito da família, do trabalho, das relações comunitárias) cria um ciclo fatal de “demora” para buscar socorro quando as complicações se manifestam, demora e/ou má qualidade na assistência, internação com quadro clínico grave (quando a mulher chega a receber esse tipo de atendimento) e evolução para óbito. Esse ciclo fatal está presente no “caso por trás dos números” apresentado à Suprema Corte pelas representantes do Ministério da Saúde:

Essa mulher, de 26 anos, residente no Espírito Santo, foi encontrada em casa com febre, trêmula, por uma prima. Ninguém sabia que ela estava grávida [...]. Ela chega na maternidade com quadro clínico de aborto infectado. [...]. Ela evolui para um quadro complicado, entra em cuidados intensivos, e só nesse momento ela confessa que havia passado por uma clínica clandestina de aborto. Ela vai a óbito 10 dias após a internação. [...] Nós temos várias histórias, e elas são todas similares. (Souza apud Brasil, 2019BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Interrupção voluntária da gravidez: ADPF 442. Relatora Ministra Rosa Weber. Brasília, DF, 2019. Disponível em: <Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audienciasPublicas/anexo/TranscrioInterrupovoluntriadagravidez.pdf >. Acesso em: 10 jul. 2022.
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, p. 27)

As mortes por aborto “se escondem” tanto sob outras causas de morte materna (principalmente hemorragia e infecção) quanto na categoria mais ampla de mortalidade de mulheres em idade fértil (MIF), de 10 a 49 anos. Em 2019, o incremento no número de mortes maternas depois da investigação dos óbitos de MIF foi de 32,7%, saltando de 1.188 para 1.576 (Brasil, 2021BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Mortalidade materna no Brasil, 2009-2019. Boletim Epidemiológico, Brasília, DF, v. 52, n. 29, p. 13-24, 2021. Disponível em: <Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/media/pdf/2021/agosto/9/boletim_epidemiologico_svs_29.pdf >. Acesso em: 16 jun. 2022.
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). Além da identificação de centenas de mortes maternas inicialmente não declaradas como tais, a vigilância dos óbitos de MIF produz um fator de correção que deve ser aplicado ao número de mortes maternas obtido após a investigação, para que se chegue a uma estimativa mais fidedigna. Em 2019, com a aplicação do fator de correção (1,05), o Ministério da Saúde estima que ocorreram 1.655 óbitos maternos em nosso país (Brasil, 2021BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Mortalidade materna no Brasil, 2009-2019. Boletim Epidemiológico, Brasília, DF, v. 52, n. 29, p. 13-24, 2021. Disponível em: <Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/media/pdf/2021/agosto/9/boletim_epidemiologico_svs_29.pdf >. Acesso em: 16 jun. 2022.
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).

Apesar de esse método ter melhorado a captação de mortes maternas não declaradas no SIM, um número desconhecido, mas certamente elevado, de óbitos por aborto continua oculto. Em sua exposição no STF, Tania Lago chamou atenção para o fato de que, em 2016, as “causas mal definidas ou indeterminadas” ocuparam a quinta posição entre as causas de óbito de MIF, correspondendo a aproximadamente 3.500 mortes; dentre estas, 550 ocorreram na ausência total de assistência médica. A partir de sua experiência de 40 anos investigando óbitos maternos, Tania Lago afirma: “Eu tenho certeza de que estas causas escondem muitos abortos provocados. [...] Mesmo quando a gente não consegue encontrar alguém que diga ‘ela provocou aborto’, você exclui inúmeras outras causas, e quase não sobram razões” (Lago apud Brasil, 2019BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Interrupção voluntária da gravidez: ADPF 442. Relatora Ministra Rosa Weber. Brasília, DF, 2019. Disponível em: <Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audienciasPublicas/anexo/TranscrioInterrupovoluntriadagravidez.pdf >. Acesso em: 10 jul. 2022.
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, p. 201).

Um outro tema abordado na audiência pública sobre a ADPF 442 foi a morte obstétrica indireta33Morte materna obstétrica indireta é aquela resultante de doenças que existiam antes da gestação, ou que se desenvolveram durante esse período, não provocadas por causas obstétricas diretas, mas agravadas pelos efeitos fisiológicos da gravidez., um problema frequentemente negligenciado nas discussões sobre a descriminalização do aborto, apesar do seu enorme impacto na mortalidade materna. Sabe-se que a grande maioria dessas mortes seria evitável se a gestação fosse interrompida oportunamente. Mas o estatuto de crime imputado ao aborto tem como um de seus efeitos o bloqueio dos direitos à informação e à interrupção de uma gravidez de risco:

Pouquíssimos médicos dirão à mulher nesta condição: “Olha, você tem uma gravidez que, se evoluir, terá... 20, 30% de chances de evoluir pra morte, e nós não podemos saber se você está neste grupo ou no que vai sobreviver. Você quer seguir com a gravidez, ou não?”. Essa conversa não existe, e meus colegas obstetras devem saber disso. (Lago apud Brasil, 2019BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Interrupção voluntária da gravidez: ADPF 442. Relatora Ministra Rosa Weber. Brasília, DF, 2019. Disponível em: <Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audienciasPublicas/anexo/TranscrioInterrupovoluntriadagravidez.pdf >. Acesso em: 10 jul. 2022.
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, p. 203)

A norma atualmente vigente que criminaliza a indução do aborto e prevê as exceções à sua aplicação foi inscrita no nosso Código Penal em 1940. Desde então, houve um acúmulo considerável de conhecimentos clínicos e de recursos diagnósticos e terapêuticos, e construímos, no Brasil, um sistema público de saúde pautado nos princípios da universalidade, da equidade e da integralidade. Hoje em dia, as técnicas de interrupção da gravidez são bastante seguras, e dispomos de uma rede pública de serviços de saúde em todos os níveis de complexidade assistencial. Nesse contexto, chega a ser atroz não oferecer às mulheres a possibilidade de interromper uma gravidez que coloca em risco a sua saúde e, por vezes, a sua própria vida. No Brasil, mais de 30% dos óbitos maternos resultam de causas indiretas, ou seja, estamos falando de centenas de mulheres a quem, a cada ano, é negado o direito de optar por um procedimento que teria preservado suas vidas.

A dificuldade de acesso ao aborto seguro e gratuito também é patente nas situações de gravidez resultante de estupro, que compõem 94% dos casos atendidos nos serviços de aborto legal (Madeiro; Diniz, 2016MADEIRO, A. P.; DINIZ, D. Serviços de aborto legal no Brasil - um estudo nacional. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 563-572, 2016. DOI: 10.1590/1413-81232015212.10352015
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). Nos últimos anos, houve um recrudescimento do ataque ao direito ao aborto no Brasil, especialmente em caso de estupro. Durante o Governo Bolsonaro, esse ataque foi coordenado a partir das três esferas do poder estatal (Executivo, Legislativo e Judiciário), através de projetos de lei, portarias44A Portaria nº 2.282, de 27 de agosto de 2020, determinava: a notificação compulsória à autoridade policial, por parte dos profissionais ou responsáveis pelo estabelecimento de saúde, dos casos (confirmados ou suspeitos) de estupro, sendo também obrigatória a preservação de “possíveis evidências materiais do crime de estupro”; a assinatura de um Termo de Consentimento contendo informações distorcidas sobre os riscos da interrupção da gravidez; e a oferta da “possibilidade de visualização do feto ou embrião [pela gestante,] por meio de ultrassonografia”, antes da realização do aborto nas situações previstas em lei (Brasil, 2020, p. 359). Diante da forte reação de partidos de esquerda e movimentos feministas, que se mobilizaram em nível nacional e internacional, o Ministério da Saúde publicou uma nova portaria em 24 de setembro de 2020, na véspera do julgamento, pelo STF, do pedido de suspensão da portaria. O novo texto eliminou a última determinação citada, mas manteve os outros dois pontos contestados. Até a conclusão deste artigo, o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 409/2020, apresentado por 13 deputadas federais para sustar a portaria, aguardava o parecer da relatora na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher (Chris Tonietto - PL/RJ)., manuais “técnicos”, e da intervenção direta em casos específicos, visando impedir a interrupção da gravidez. O nível de crueldade que tais intervenções podem atingir é bem exemplificado pela via crucis percorrida por duas meninas de 10 anos e por suas famílias, no Espírito Santo (em 2020) e em Santa Catarina (em 2022), para conseguir realizar um aborto em situações que se enquadravam nas duas hipóteses previstas no Código Penal desde 1940.

O primeiro desses casos envolveu a intervenção do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, cujos representantes (enviados pela então Ministra Damares Alves) interferiram na conduta dos órgãos municipais; propuseram a transferência da criança para um hospital onde ela seria acompanhada até o final da gravidez e realizaria o parto; intimidaram e agrediram verbalmente familiares da menina; tentaram retardar/impedir sua alta do hospital de Vitória (que havia se recusado a realizar o procedimento), para que ela perdesse o voo para Recife, onde fica o serviço que se dispôs a interromper a gravidez (Vila-Nova, 2020VILA-NOVA, C. O papel de Damares. Folha de S. Paulo, São Paulo, 19 set. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/09/o-papel-de-damares.shtml >. Acesso em: 23 jun. 2022.
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). Houve, ainda, manifestações antiaborto às portas do hospital que, por fim, realizou o procedimento, e a denúncia de seu diretor ao CRM-PE, além do vazamento dos dados pessoais da criança e do endereço da família nas redes sociais.

No caso de Santa Catarina, a tentativa de negar o direito ao aborto a outra menina de dez anos foi protagonizada pelo Poder Judiciário. A juíza Joana Ribeiro Zimmer determinou o abrigamento da criança por mais de 40 dias - ato que pode ser enquadrado como cárcere (Guimarães; Lara; Dias, 2022GUIMARÃES, P.; LARA, B. de; DIAS, T. Vídeo: em audiência, juíza de SC induz menina de 11 anos grávida após estupro a desistir de aborto. Portal Catarinas, Florianópolis, 20 jun. 2022. Disponível em: <Disponível em: https://catarinas.info/video-em-audiencia-juiza-de-sc-induz-menina-de-11-anos-gravida-apos-estupro-a-desistir-de-aborto/ >. Acesso em: 23 jun. 2022.
https://catarinas.info/video-em-audienci...
). O vídeo de uma audiência conduzida pela mesma juíza, o qual acabou vazando nas redes sociais, revela uma verdadeira sessão de tortura psicológica da menina e de sua mãe. A gravidez só foi interrompida na 29ª. semana, por recomendação do Ministério Público Federal.

Esses dois episódios chocantes demonstram o grau de articulação e a capacidade de incidência política das forças neoconservadoras no Brasil contemporâneo, bem como a blindagem jurídica de que dispõem, uma vez que nenhum dos atores citados foi punido pelas graves violações de direitos humanos perpetradas. Os eventos mencionados também revelam a intensificação das ações de rechaço aos direitos de mulheres e meninas, oriundas justamente de representantes do Estado brasileiro.

Mulheres versus embriões/fetos - uma falsa dicotomia

Definitivamente, não faltam dados consistentes sobre a magnitude da mortalidade materna no Brasil e sobre a contribuição do estatuto de ilegalidade do aborto para a produção desse cenário, que é tão mais trágico por ser notoriamente evitável. Ainda assim, os atores contrários à descriminalização do aborto insistem em minimizar, desqualificar, omitir e/ou distorcer tais dados. Na audiência pública em análise, essa tática esteve presente em dez das 17 exposições contrárias à ADPF 442. Os expositores se referiram aos dados sobre aborto e MM como “mentira”, “chute”, “inflação”, “exagero”, “um ato de fé”, e os adjetivaram como “falaciosos”, “inconsistentes”, “tendenciosos”, “questionáveis” e “maquiados” (Brasil, 2019BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Interrupção voluntária da gravidez: ADPF 442. Relatora Ministra Rosa Weber. Brasília, DF, 2019. Disponível em: <Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audienciasPublicas/anexo/TranscrioInterrupovoluntriadagravidez.pdf >. Acesso em: 10 jul. 2022.
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audien...
). Ao menos dois expositores apelaram para sua experiência pessoal em contraposição a estudos científicos robustos, como a Pesquisa Nacional de Aborto e os estudos sobre mortalidade materna supracitados:

Eu, com 41 anos, já trabalhei nas maiores maternidades do Rio de Janeiro e só vi uma morte por aborto. (Parente apud Brasil, 2019BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Interrupção voluntária da gravidez: ADPF 442. Relatora Ministra Rosa Weber. Brasília, DF, 2019. Disponível em: <Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audienciasPublicas/anexo/TranscrioInterrupovoluntriadagravidez.pdf >. Acesso em: 10 jul. 2022.
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audien...
, p. 80)

Eu entendi que, com todo o respeito, tanto quanto as religiões - cristãs, judaicas, muçulmanas -, o feminismo também é um ato de fé. [...] Por exemplo, a crença na pesquisa que foi feita em 2010 e em 2016 é um ato de fé. Se afirma, como se fosse uma verdade absoluta, que, de cada cinco mulheres, uma abortou. Eu tenho 45 anos de idade e conheci uma mulher que haja abortado. (Silva, J. apud Brasil, 2019BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Interrupção voluntária da gravidez: ADPF 442. Relatora Ministra Rosa Weber. Brasília, DF, 2019. Disponível em: <Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audienciasPublicas/anexo/TranscrioInterrupovoluntriadagravidez.pdf >. Acesso em: 10 jul. 2022.
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audien...
, p. 576)

Segundo o médico ginecologista e obstetra Raphael Câmara Parente, entre as causas de mortalidade materna observadas na cidade do Rio de Janeiro, “aborto é pouco!” (Parente apud Brasil, 2019BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Interrupção voluntária da gravidez: ADPF 442. Relatora Ministra Rosa Weber. Brasília, DF, 2019. Disponível em: <Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audienciasPublicas/anexo/TranscrioInterrupovoluntriadagravidez.pdf >. Acesso em: 10 jul. 2022.
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audien...
, p. 73). Considerando-se o perfil das mulheres que sofrem complicações graves por aborto no Brasil, não é difícil identificar quais vidas significam “pouco” na perspectiva deste médico que, em junho de 2020, foi nomeado Secretário de Atenção Primária à Saúde do Governo Bolsonaro55Parente é protagonista em vários episódios lamentáveis envolvendo a pasta ministerial e os direitos reprodutivos; é dele a afirmação de que “violência obstétrica não existe”. Sob seu comando, foi publicado, em junho de 2022, o documento “Atenção técnica para prevenção, avaliação e conduta nos casos de abortamento”, que dissemina desinformação e amplia as barreiras para realização do aborto nos casos previstos em lei, sem qualquer sustentação jurídica ou na medicina baseada em evidências (Brasil, 2022b)..

Diante do desprezo pela vida das mulheres que efetivamente pagam o preço da adoção de uma política penal para tratar a “questão do aborto”, Fernanda Lopes (representante da ONG Criola) lança uma sequência de perguntas incômodas, que rompem o verniz de neutralidade do Estado Democrático de Direito:

Seria ousado dizer que a possibilidade dos abortos seguros por mulheres brancas ou economicamente favorecidas garante que o próprio aborto não seja devidamente colocado em discussão? Será que a população que sofre com procedimentos ilegais efetivamente não importa para o poder público? [...] Será que nós, mulheres negras, somos consideradas menos legítimas em nossa humanidade e, por consequência, menos aptas a exercer os nossos direitos? [...] Seremos nós, mulheres negras, eleitas para carregar o fardo de uma gravidez não intencional, ou para sermos estigmatizadas, criminalizadas, punidas com as nossas próprias vidas, se não o fizermos? (Lopes apud Brasil, 2019BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Interrupção voluntária da gravidez: ADPF 442. Relatora Ministra Rosa Weber. Brasília, DF, 2019. Disponível em: <Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audienciasPublicas/anexo/TranscrioInterrupovoluntriadagravidez.pdf >. Acesso em: 10 jul. 2022.
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audien...
, p. 238-241)

Embora a maioria das exposições favoráveis à ADPF 442 mencionem as desigualdades raciais reproduzidas e amplificadas pela criminalização do aborto, as duas únicas falas que colocam o racismo no centro do debate - em suas intersecções com as dimensões de gênero, classe social, território de vida etc. - são a de Fernanda Lopes e a de Lívia Drumond Casseres. A partir do campo do Direito, esta última expositora (representante da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro) denuncia o racismo entranhado no sistema penal brasileiro.

Os dispositivos que criminalizam o aborto não apenas incidem sobre a raça, como algo que lhe é externo, mas integram um conjunto de fenômenos ligados à estrutura social brasileira, em que raça e sistema penal se constituem mutuamente, e determinam as vidas dignas de se proteger e aquelas que se pode deixar morrer. Se os movimentos feministas mundialmente discutem a questão do aborto em termos de direitos sexuais e reprodutivos, autonomia privada e direito ao próprio corpo, para as mulheres negras brasileiras esse sempre foi um debate de vida e morte. (Casseres apud Brasil, 2019BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Interrupção voluntária da gravidez: ADPF 442. Relatora Ministra Rosa Weber. Brasília, DF, 2019. Disponível em: <Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audienciasPublicas/anexo/TranscrioInterrupovoluntriadagravidez.pdf >. Acesso em: 10 jul. 2022.
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audien...
, p. 554-555)

No entanto, é em nome da “vida” que se defende que a indução do aborto continue sendo tratada como crime. Esse discurso tem como foco um embrião/feto completamente desconectado do corpo que o gesta - uma manobra absurda, que exige alguns subterfúgios para poder se apresentar como plausível. Um estratagema largamente utilizado nas campanhas antiaborto é a representação de embriões e fetos em proporções e formas de bebês com semanas ou até meses de vida, portando características étnico-raciais brancas e “flutuando” num espaço vazio, indefinido. Ao eclipsar o corpo gestante e seu entorno social, tais imagens alimentam a ideia de uma suposta autonomia e universalidade do embrião/feto. A obstinação em “descolar” o ser em gestação do corpo da mulher que o abriga e nutre pode assumir formas bastante inusitadas:

Se for uma menina, ela já tem útero. Então, às pessoas que dizem “eu tenho direito ao meu próprio útero”, eu falo: “Você, sim, e a sua filha tem direito ao dela!”. (Garcia apud Brasil, 2019BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Interrupção voluntária da gravidez: ADPF 442. Relatora Ministra Rosa Weber. Brasília, DF, 2019. Disponível em: <Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audienciasPublicas/anexo/TranscrioInterrupovoluntriadagravidez.pdf >. Acesso em: 10 jul. 2022.
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audien...
, p. 149-150)

O feto, no útero da mãe, ele não é parte da mulher. Ele não é unha que cresceu, não é fio de cabelo, ele tem direitos constitucionais já no útero da mãe. (Malta apud Brasil, 2019BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Interrupção voluntária da gravidez: ADPF 442. Relatora Ministra Rosa Weber. Brasília, DF, 2019. Disponível em: <Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audienciasPublicas/anexo/TranscrioInterrupovoluntriadagravidez.pdf >. Acesso em: 10 jul. 2022.
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audien...
, p. 478)66A representação do embrião/feto enquanto indivíduo autônomo também é fundamental para a sua construção como sujeito de direitos, tema que não nos será possível abordar neste artigo.

Variações da fórmula “o embrião/feto não faz parte (do corpo) da mulher” podem ser encontradas em outras quatro comunicações. Três expositora/es contrária/os à ADPF 442 utilizaram imagens de embriões ou fetos, através da projeção de vídeos e fotografias, e da exibição de uma réplica emborrachada de um feto humano na 12ª. semana de gestação. Tais imagens são apresentadas como um argumento definitivo, irrefutável, da “inviolabilidade da vida humana desde a concepção”, posição defendida ad nauseam ao longo da audiência pública.

O artifício de personificação do embrião/feto foi performado, por exemplo, por José Paulo Veloso Silva, representante do Estado de Sergipe (onde ocupa o cargo de Procurador-Geral). O primeiro slide de sua apresentação mostrava a fotografia de um feto de 12 semanas, acompanhada da frase (em letras garrafais) “Mamãe, já estou aqui!!”. Em fonte menor, o slide trazia a sequência de interrogações: “Liberdade? Autonomia? Estatização do útero? Imposição de risco? Igualdade plena? Estado laico?”. Depois de afirmar que “essa criança [...] tem que estar na discussão” (enquanto “protagonista”), o expositor passou a descrever detalhadamente o feto nesta idade gestacional: seu tamanho, sua face, seus órgãos internos, seu sistema nervoso (Silva, J. apud Brasil, 2019BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Interrupção voluntária da gravidez: ADPF 442. Relatora Ministra Rosa Weber. Brasília, DF, 2019. Disponível em: <Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audienciasPublicas/anexo/TranscrioInterrupovoluntriadagravidez.pdf >. Acesso em: 10 jul. 2022.
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audien...
, p. 565). Durante toda a exposição, Veloso Silva se referiu ao feto como “criança”. Esse deslizamento ficou mais evidente no momento em que ele projetou um vídeo com imagens captadas por um aparelho ultrassonográfico, e assim o narrou:

Essa é a imagem real da minha prima mais nova. Ela se chama Luíza. Agora, já saiu do útero materno. Ela mexe as pernas, ela mexe os braços - ela tem 12 semanas! -, ela tem coração. E, daqui a pouco, o coração será ouvido. Sinceramente, Senhora Ministra, será possível acreditar que algum juiz no planeta tem o direito de autorizar a morte desse ser?! [...] Esse ser é vivo, [...] ele pertence à espécie humana! Então, é uma vergonha alguém dizer que defende direitos humanos e considerar isso uma coisa, um bicho, um objeto que pode ser achado no lixo! (Silva, J. apud Brasil, 2019BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Interrupção voluntária da gravidez: ADPF 442. Relatora Ministra Rosa Weber. Brasília, DF, 2019. Disponível em: <Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audienciasPublicas/anexo/TranscrioInterrupovoluntriadagravidez.pdf >. Acesso em: 10 jul. 2022.
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audien...
, p. 568)

A evidente existência de uma linha de continuidade no desenvolvimento humano, desde a fase embrionária até a vida adulta, não admite, por uma questão de lógica, saltos temporais como este que Veloso Silva se permitiu. Identificar Luíza (uma criança, adolescente ou adulta jovem) ao feto de 12 semanas que ela já foi um dia significa passar por cima dos vínculos afetivos e de todas as experiências que constituem, afinal, sua trajetória de vida. Estamos claramente diante de um sofisma, um recurso retórico com vistas a produzir a ilusão da verdade de que a interrupção voluntária da gravidez até a 12ª. semana seria equivalente ao assassinato de uma criança.

A expressão mais radical da estratégia de deslizamento entre os estatutos de embrião/feto e de criança/pessoa pode ser observada na exposição de Rosemeire Santiago, representante, fundadora e diretora do Centro de Reestruturação para a Vida (CERVI)77O CERVI foi fundado em 2000, na cidade de São Paulo, como representante da rede Pregnancy Resource Center no Brasil. Criada no início da década de 1970 pelo “movimento pró-vida” dos EUA e do Canadá, essa rede está vinculada a organizações cristãs, como a CareNet e a Life International. O CERVI funciona como uma “casa de acolhimento” para mulheres que se deparam com uma gravidez imprevista, “valorizando a opção pela vida” (Santiago apud Brasil, 2019, p. 246).. A exposição teve início com uma encenação na qual um jovem negro, vestido de terno e gravata, levantou-se do lugar que ocupava no plenário e caminhou em direção à tribuna, enquanto tocava no violino um trecho da obra “As Quatro Estações”, de Antonio Vivaldi. Ele foi bruscamente interrompido por Rosemeire, que iniciou, então, a sua fala. Já no final da exposição, depois de exibir um vídeo produzido pelo CERVI, contendo um depoimento desse jovem, Rosemeire, abraçada a ele, disse:

[A] vida desse menino poderia ter sido interrompida. A mãe dele passou por uma gravidez inesperada, [ele] sofreu um perigo iminente de ter a vida interrompida, porque o pai não queria, e ela foi acompanhada. Eu imagino se a vida do Calebe tivesse sido interrompida, como eu o interrompi aqui. Hoje, a mãe dele é nossa voluntária, ele também. Então, pra mim, ele é um exemplo vivo - vivo! - [de] que a possibilidade da vida gera esperança. (Santiago apud Brasil, 2019BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Interrupção voluntária da gravidez: ADPF 442. Relatora Ministra Rosa Weber. Brasília, DF, 2019. Disponível em: <Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audienciasPublicas/anexo/TranscrioInterrupovoluntriadagravidez.pdf >. Acesso em: 10 jul. 2022.
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audien...
, p. 252-253)

Rosemeire Santiago persiste na narrativa da “salvação” de crianças e jovens através de iniciativas que visam impedir que as mulheres abortem: “Uma vez, uma pequenininha de quatro anos chegou pra mim e falou: ‘Tia Rose, eu já te agradeci?’. E eu falei: ‘Por quê?’. ‘Porque foi por causa de vocês que a minha mãe não me matou na barriga dela.’” (Santiago apud Brasil, 2019BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Interrupção voluntária da gravidez: ADPF 442. Relatora Ministra Rosa Weber. Brasília, DF, 2019. Disponível em: <Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audienciasPublicas/anexo/TranscrioInterrupovoluntriadagravidez.pdf >. Acesso em: 10 jul. 2022.
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audien...
, p. 252).

A confusão deliberada entre as condições de zigoto, embrião, feto, bebê e criança/pessoa foi classificada por Maria José Rosado Nunes (representante da ONG Católicas pelo Direito de Decidir) como um ato de “evidente má-fé” (Nunes apud Brasil, 2019BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Interrupção voluntária da gravidez: ADPF 442. Relatora Ministra Rosa Weber. Brasília, DF, 2019. Disponível em: <Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audienciasPublicas/anexo/TranscrioInterrupovoluntriadagravidez.pdf >. Acesso em: 10 jul. 2022.
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audien...
, p. 404). Efetivamente, a manobra de personificação do embrião/feto serve para qualificar a interrupção voluntária da gravidez como assassinato. No entanto, se a prática do aborto fosse equiparável ao infanticídio - do ponto de vista afetivo, moral e jurídico -, certamente não observaríamos o extremo contraste entre o número elevado de abortos induzidos no Brasil (estimado em até um milhão por ano) e a raríssima ocorrência de assassinato de crianças (de qualquer idade) pelas suas mães.

Para além de má-fé, é uma crueldade atribuir às mulheres brasileiras que abortam a pecha de assassinas, quando são estas mesmas mulheres as principais ou as únicas responsáveis pelo conjunto do trabalho de reprodução da vida, aí incluído todo o trabalho de proteção e cuidado das crianças que nascem e vivem em nosso país. Em grande medida, esse enorme volume de trabalho necessário à manutenção da vida é realizado sob condições precárias, seja pela desvalorização (em termos financeiros e de garantia de direitos, quando realizado de forma remunerada), seja pelo desamparo social e pela exposição a diversas formas de violência, no cotidiano do lar e nos territórios de vida da maioria das mulheres do Brasil.

Em defesa da vida

Na maior parte das vezes, quando utilizam os termos “vida”, “morte” e seus derivados, a/os expositora/es contrária/os à ADPF 442 estão se referindo ao embrião/feto, portador de uma pretensa universalidade. É como se o ser humano em desenvolvimento fosse destituído de marcadores sociais da diferença, como raça e classe. Essa leitura só é possível mediante uma completa abstração das condições desiguais experimentadas desde a vida intrauterina, em contextos de injustiça social como o vigente no Brasil.

A falácia de um ponto de partida comum a todos os seres humanos, garantido simplesmente pelo “direito a nascer”, não se sustenta na realidade concreta. O desenvolvimento intrauterino é profundamente afetado pelas circunstâncias de vida da gestante, como a (in)segurança alimentar, as condições de trabalho, moradia e saúde, a presença de doenças causadas ou agravadas pela gestação, a exposição ao estresse, a violências e acidentes. Tais circunstâncias incidem de forma desigual nas trajetórias de vida das mulheres, segundo as intersecções entre raça, classe, idade, local de moradia, entre outros fatores que as posicionam na hierarquia social e determinam a distribuição de benefícios e desvantagens.

A defesa coerente e consistente da vida humana implica o engajamento em processos de mudança de toda a organização social, de modo que possamos garantir o acesso universal a alimentos saudáveis, a moradias adequadas, ao saneamento básico, ao transporte público de qualidade, ao trabalho digno, ao lazer, à cultura, à educação, à segurança e à saúde. E é nessa direção que se expressa a defesa da vida (inclusive das crianças) no campo favorável à ADPF 442, sendo a descriminalização do aborto compreendida como uma peça dentro do cenário muito mais amplo e complexo das lutas por justiça social.

A defesa de políticas sociais de caráter universal e integral ocupa um lugar central na argumentação favorável à ADPF 442. Afinal, a experiência histórica internacional demonstra que a descriminalização do aborto tem resultados tão mais positivos quanto mais for acompanhada de um processo de ampliação de direitos sociais. Na audiência pública em análise, a/os expositora/es favoráveis à matéria em pauta enfatizaram sobretudo as políticas de saúde sexual e reprodutiva, que devem abranger: educação sexual integral; prevenção, diagnóstico e tratamento de doenças e de infecções sexualmente transmissíveis; informação sobre os diversos métodos contraceptivos e o planejamento reprodutivo, além de acesso aos mesmos; e o acolhimento e cuidado “de todas as possibilidades de uma decisão reprodutiva” (Dias apud Brasil, 2019BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Interrupção voluntária da gravidez: ADPF 442. Relatora Ministra Rosa Weber. Brasília, DF, 2019. Disponível em: <Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audienciasPublicas/anexo/TranscrioInterrupovoluntriadagravidez.pdf >. Acesso em: 10 jul. 2022.
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audien...
, p. 109), inclusive a interrupção da gravidez. Neste ponto, é importante retomar o conceito de justiça reprodutiva (forjado pelo movimento feminista negro na década de 1990, nos Estados Unidos) para argumentar que a luta pela proteção social à maternidade não está dissociada da luta pela descriminalização do aborto. Tão importante quanto decidir se e quando ter filhos é poder criá-los “com o necessário suporte social, em ambientes seguros e comunidades saudáveis, e sem medo da violência de indivíduos ou do governo” (Ross, 2006ROSS, L. Understanding reproductive justice. Atlanta: SisterSong Women of Color Reproductive Justice Collective, 2006., p. 3, tradução nossa).

A descriminalização do aborto, quando inserida em uma política pública integral de saúde sexual e reprodutiva, e acompanhada da promoção de outros direitos sociais, tem como efeito a redução das próprias taxas de indução do aborto. Diferentes expositora/es apresentaram um grande volume de dados que apontam esses resultados em países que descriminalizaram o aborto, com destaque para as experiências do Uruguai, Colômbia, Reino Unido, França, Romênia, Portugal e África do Sul. O declínio nas taxas de aborto induzido após a descriminalização da prática se deve, em grande medida, aos programas de atenção pós-aborto, que incluem orientação e disponibilização de métodos contraceptivos; afinal, cerca de 40% dos abortos induzidos são recorrentes (ou “de repetição”, conforme o jargão médico) (AmorimAMORIM, M. Assistência obstétrica baseada em evidências científicas e a prevenção da morte materna. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2014. apud Brasil, 2019BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Interrupção voluntária da gravidez: ADPF 442. Relatora Ministra Rosa Weber. Brasília, DF, 2019. Disponível em: <Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audienciasPublicas/anexo/TranscrioInterrupovoluntriadagravidez.pdf >. Acesso em: 10 jul. 2022.
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audien...
). Além disso, quando o aborto é legal e acessível, “mulheres que eram invisíveis, porque tinham que permanecer invisíveis, começam a chegar ao serviço de saúde; e do seu acolhimento podem resultar diversos efeitos benéficos, incluindo a proteção social das gestações desejadas” (Amorim apud Brasil, 2019BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Interrupção voluntária da gravidez: ADPF 442. Relatora Ministra Rosa Weber. Brasília, DF, 2019. Disponível em: <Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audienciasPublicas/anexo/TranscrioInterrupovoluntriadagravidez.pdf >. Acesso em: 10 jul. 2022.
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audien...
, p. 65).

No campo contrário à ADPF 442, a defesa de alguma forma de assistência à mulher e à criança também perpassa a argumentação, mas de forma tímida, superficial e fragmentada, não se desdobrando na avaliação e proposição de ações programáticas específicas. Termos como “prevenção”, “assistência” e “políticas públicas” são repetidamente utilizados de forma vazia, sem menção a qualquer objeto que lhes confira materialidade, ou são preenchidos de conteúdos tão vagos como “priorizar políticas públicas de salvaguarda à gestante e ao ser humano em gestação” (Silva, R. apud Brasil, 2019BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Interrupção voluntária da gravidez: ADPF 442. Relatora Ministra Rosa Weber. Brasília, DF, 2019. Disponível em: <Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audienciasPublicas/anexo/TranscrioInterrupovoluntriadagravidez.pdf >. Acesso em: 10 jul. 2022.
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audien...
, p. 259). O compromisso dos atores neoconservadores com o neoliberalismo impede sua adesão a políticas sociais universais, integrais e equânimes, capazes de promover efetivamente o “direito universal à vida” (para usar os seus próprios termos). Em seus discursos, há um reforço à função protetora da esfera privada, representada pela família (cisheteronormativa, monogâmica, procriativa) e por comunidades religiosas, em detrimento de processos coletivos de luta pela garantia plena de direitos e por justiça social.

A acusação recorrente de que a/os defensora/es da ADPF 442 estariam destituindo a vida pré-natal de valor e proteção constitui uma flagrante distorção de suas posições e argumentos, e faz parte da estratégia de desqualificação moral adotada pelos atores neoconservadores. As entidades favoráveis à descriminalização do aborto defendem a proteção da vida humana “em todas as suas fases, mas de modo diferenciado e adequado ao momento do ciclo vital” (Barboza apud Brasil, 2019BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Interrupção voluntária da gravidez: ADPF 442. Relatora Ministra Rosa Weber. Brasília, DF, 2019. Disponível em: <Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audienciasPublicas/anexo/TranscrioInterrupovoluntriadagravidez.pdf >. Acesso em: 10 jul. 2022.
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audien...
, p. 276). Tal entendimento está de acordo com a concepção ético-legal da proteção gradual do direito à vida, amplamente difundida na jurisprudência internacional de direitos humanos, e já incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro, em normas sobre reprodução assistida, sobre pesquisas com células-tronco e sobre o próprio aborto, ao qual o Código Penal não imputa a mesma pena que ao crime de homicídio (Telles apud Brasil, 2019BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Interrupção voluntária da gravidez: ADPF 442. Relatora Ministra Rosa Weber. Brasília, DF, 2019. Disponível em: <Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audienciasPublicas/anexo/TranscrioInterrupovoluntriadagravidez.pdf >. Acesso em: 10 jul. 2022.
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audien...
).

Descriminalizar o aborto significa tão somente excluir esta prática do âmbito de incidência do Direito Penal, sem prejuízo de outras formas de proteção da vida intrauterina. A experiência internacional já demonstrou que melhor se protege embriões e fetos com medidas de apoio às gestantes do que através da ameaça de punição (a qual, no Brasil, pode chegar ao extremo do encarceramento). A manutenção de uma norma penal notoriamente ineficaz no cumprimento de seu fim declarado não se explica por mera hipocrisia ou “moralismo”. Lívia Drumond Casseres é precisa ao afirmar que a defesa do estatuto de crime do aborto tem muito mais a ver com a conservação de uma ordem social que não pode prescindir do controle da sexualidade e da capacidade reprodutiva das mulheres (sobretudo, de determinadas mulheres) do que com a proteção à vida dos chamados “nascituros”:

Muito ao contrário de um projeto real de proteção da vida, estamos diante, aqui, da defesa de uma norma penal que não é capaz de atender a sua função declarada, mas cumpre, de maneira muito eficiente, uma decisiva função retórica de manutenção de uma sociedade estruturada no racismo e no patriarcalismo. (Casseres apud Brasil, 2019BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Interrupção voluntária da gravidez: ADPF 442. Relatora Ministra Rosa Weber. Brasília, DF, 2019. Disponível em: <Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audienciasPublicas/anexo/TranscrioInterrupovoluntriadagravidez.pdf >. Acesso em: 10 jul. 2022.
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audien...
, p. 553)

Para a maior parte da população brasileira, e especialmente para o povo negro e os povos tradicionais, a luta pela vida sempre foi algo cotidiano, concreto. A sobrevivência a um processo histórico espoliador e violento vem sendo viabilizada, ao longo de séculos, pela criação de diversas estratégias de resistência, nos planos material e simbólico/cultural, de modo indissociável. Quando se trata de defender a vida, as mulheres historicamente desempenham um papel crucial - na constituição de redes de proteção e cuidado, na preservação de nossas tradições culturais e na linha de frente das batalhas contra as políticas de morte, “sempre costura[ndo] a vida com fios de ferro” (Evaristo, 2016EVARISTO, C. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas: Fundação Biblioteca Nacional, 2016., p. 109).

Considerações finais

A usurpação da bandeira da “defesa da vida” por atores neoconservadores engajados na campanha antiaborto serve para encobrir e/ou justificar a violação sistemática dos direitos de meninas, adolescentes e mulheres em curso no Brasil. Desmascarar essa estratégia e a concepção abstrata e idealista de vida que lhe subjaz é uma das tarefas urgentes dos movimentos comprometidos com uma defesa da vida calcada na materialidade das condições de sua reprodução, em cada contexto histórico-social singular. Nesse sentido, a justiça reprodutiva, enquanto práxis política que articula a saúde e os direitos reprodutivos a uma defesa radical da justiça social e do conjunto dos direitos humanos, tem sido uma baliza fundamental para conduzir as nossas lutas nesse cenário desafiador.

Referências

  • AMORIM, M. Assistência obstétrica baseada em evidências científicas e a prevenção da morte materna. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2014.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Aborto e saúde pública no Brasil: 20 anos. Brasília, DF, 2009.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde; Secretaria de Atenção à Saúde. Interrupção voluntária de gestação e impacto na saúde da mulher. Memorial apresentado ao STF, na qualidade de amicus curiae da ADPF 442. Brasília, DF, 2018.
  • BRASIL. Portaria nº 2.282, de 27 de agosto de 2020. Dispõe sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2020.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Mortalidade materna no Brasil, 2009-2019. Boletim Epidemiológico, Brasília, DF, v. 52, n. 29, p. 13-24, 2021. Disponível em: <Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/media/pdf/2021/agosto/9/boletim_epidemiologico_svs_29.pdf >. Acesso em: 16 jun. 2022.
    » https://www.gov.br/saude/pt-br/media/pdf/2021/agosto/9/boletim_epidemiologico_svs_29.pdf
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Painel de monitoramento da mortalidade materna. Brasília, DF, 2022a. Disponível em: <Disponível em: http://svs.aids.gov.br/dantps/centrais-de-conteudos/paineis-de-monitoramento/mortalidade/materna/ >. Acesso em: 16 jun. 2022.
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  • BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Departamento de Saúde Materno-Infantil. Atenção técnica para prevenção, avaliação e conduta nos casos de abortamento. 2. ed. Brasília, DF, 2022b.
  • BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Interrupção voluntária da gravidez: ADPF 442. Relatora Ministra Rosa Weber. Brasília, DF, 2019. Disponível em: <Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audienciasPublicas/anexo/TranscrioInterrupovoluntriadagravidez.pdf >. Acesso em: 10 jul. 2022.
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    » https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/09/o-papel-de-damares.shtml

  • 1
    Artigo submetido para publicação no dossiê “Crises contemporâneas: políticas sociais, desigualdades e saúde”, do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública (FSP/USP), e financiado pela bolsa de doutorado da CAPES (88882.333568/2019-01).
  • 2
    O número corrigido de óbitos por aborto é 3,6 vezes maior do que aquele registrado no Painel de Monitoramento da Mortalidade Materna do DATASUS (56).
  • 3
    Morte materna obstétrica indireta é aquela resultante de doenças que existiam antes da gestação, ou que se desenvolveram durante esse período, não provocadas por causas obstétricas diretas, mas agravadas pelos efeitos fisiológicos da gravidez.
  • 4
    A Portaria nº 2.282, de 27 de agosto de 2020BRASIL. Portaria nº 2.282, de 27 de agosto de 2020. Dispõe sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2020., determinava: a notificação compulsória à autoridade policial, por parte dos profissionais ou responsáveis pelo estabelecimento de saúde, dos casos (confirmados ou suspeitos) de estupro, sendo também obrigatória a preservação de “possíveis evidências materiais do crime de estupro”; a assinatura de um Termo de Consentimento contendo informações distorcidas sobre os riscos da interrupção da gravidez; e a oferta da “possibilidade de visualização do feto ou embrião [pela gestante,] por meio de ultrassonografia”, antes da realização do aborto nas situações previstas em lei (Brasil, 2020, p. 359). Diante da forte reação de partidos de esquerda e movimentos feministas, que se mobilizaram em nível nacional e internacional, o Ministério da Saúde publicou uma nova portaria em 24 de setembro de 2020, na véspera do julgamento, pelo STF, do pedido de suspensão da portaria. O novo texto eliminou a última determinação citada, mas manteve os outros dois pontos contestados. Até a conclusão deste artigo, o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 409/2020, apresentado por 13 deputadas federais para sustar a portaria, aguardava o parecer da relatora na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher (Chris Tonietto - PL/RJ).
  • 5
    Parente é protagonista em vários episódios lamentáveis envolvendo a pasta ministerial e os direitos reprodutivos; é dele a afirmação de que “violência obstétrica não existe”. Sob seu comando, foi publicado, em junho de 2022, o documento “Atenção técnica para prevenção, avaliação e conduta nos casos de abortamento”, que dissemina desinformação e amplia as barreiras para realização do aborto nos casos previstos em lei, sem qualquer sustentação jurídica ou na medicina baseada em evidências (Brasil, 2022bBRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Departamento de Saúde Materno-Infantil. Atenção técnica para prevenção, avaliação e conduta nos casos de abortamento. 2. ed. Brasília, DF, 2022b.).
  • 6
    A representação do embrião/feto enquanto indivíduo autônomo também é fundamental para a sua construção como sujeito de direitos, tema que não nos será possível abordar neste artigo.
  • 7
    O CERVI foi fundado em 2000, na cidade de São Paulo, como representante da rede Pregnancy Resource Center no Brasil. Criada no início da década de 1970 pelo “movimento pró-vida” dos EUA e do Canadá, essa rede está vinculada a organizações cristãs, como a CareNet e a Life International. O CERVI funciona como uma “casa de acolhimento” para mulheres que se deparam com uma gravidez imprevista, “valorizando a opção pela vida” (Santiago apud Brasil, 2019BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Interrupção voluntária da gravidez: ADPF 442. Relatora Ministra Rosa Weber. Brasília, DF, 2019. Disponível em: <Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audienciasPublicas/anexo/TranscrioInterrupovoluntriadagravidez.pdf >. Acesso em: 10 jul. 2022.
    http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audien...
    , p. 246).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    16 Jul 2022
  • Revisado
    23 Set 2022
  • Aceito
    14 Out 2022
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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