Resumo
Este artigo tem como objetivo apresentar reflexões sobre a saúde da população em situação de rua, utilizando o conceito da determinação social do processo saúde-doença como método de análise. O artigo está estruturado em formato ensaístico, sendo organizado em duas seções: a primeira, que apresenta a discussão sobre a saúde dessa população, discorrendo sobre a organização dos serviços de saúde para dar assistência a essas pessoas, seus avanços e entraves. A segunda seção realiza uma análise do processo saúde-doença da população em situação de rua, utilizando o referencial teórico da Saúde Coletiva a partir do conceito da determinação social da saúde. O artigo argumenta que o modelo biomédico tem sido insuficiente para pensar na saúde da população em situação de rua, uma vez que desconsidera a complexidade dessa realidade social. A compreensão do processo saúde-doença como socialmente determinado localiza a saúde como resultando das condições materiais de existência dessa população, as quais são condicionadas pela forma de organização social no modo de produção capitalista. Assim, a determinação social opera como uma importante ferramenta de análise da saúde da população em situação de rua em uma perspectiva de totalidade.
Palavras-chave:
População em situação de rua; Saúde coletiva; Determinação social da saúde
Introdução
Este artigo é resultado de discussões iniciadas em 2019 durante a arguição de um Trabalho de Conclusão de Residência Multiprofissional em Saúde da Família. O debate entre os autores se prolongou pelos anos seguintes e, em novembro de 2021, durante a conclusão das revisões do manuscrito, passamos pelo falecimento de nosso companheiro Marco Aurélio da Ros. Por esse motivo, gostaríamos de iniciar esse artigo com uma homenagem à memória do querido Marcão, médico sanitarista, professor e pesquisador de extrema importância para a Saúde Coletiva brasileira. Um grande militante do Movimento da Reforma Sanitária Brasileira, Marco influenciou diferentes gerações de trabalhadores da saúde, construindo um coletivo de pensamento crítico no campo da saúde, deixando sua marca em nossas vidas. Nesse sentido, temos certeza de que esse artigo é mais um fruto de sua potente capacidade analítica, e de que suas ideias certamente seguirão reverberando em todos nós. Marcão, presente!
Entre crises estruturais e tentativas de reestruturação, o modo de produção capitalista vem impondo, ao longo da história, formas de organização dos diferentes setores produtivos. O desenvolvimento capitalista contemporâneo ganha sua forma mais perversa - o neoliberalismo -, em que sob a premissa da maior liberdade possível, o capital busca destruir quaisquer barreiras sociopolíticas. A retórica neoliberal brada pela redução da intervenção econômica do Estado, mas, em tempos de crise, o capital monopolista recorre também a ele. Na prática, trata-se de um Estado capitalista mínimo para os trabalhadores e máximo para o capital. O ataque do grande capital às instituições democráticas do Estado pode ser percebido na intensa desregulamentação das relações de trabalho, além da devastação dos sistemas de educação e seguridade social (Netto; Braz, 2006NETTO, J. P.; BRAZ, M. Economia política: uma introdução crítica. São Paulo: Cortez, 2006.; Vita, 2000VITA, A. O neoliberalismo moral. In: VITA, A. A justiça igualitária e seus críticos. São Paulo: Editora UNESP, 2000. p. 43-88.)
No Brasil, a especificidade do desenvolvimento capitalista tem colocado à margem do processo produtivo toda uma camada populacional. A formação social brasileira, marcada pela escravidão, concentração de terra e de renda, vem historicamente submetendo um segmento significante da população à uma imensa exclusão social. Enquanto um modo de produção estruturado na exploração da força de trabalho, a centralização da acumulação capitalista produz um excedente populacional que não consegue se incorporar ao processo produtivo, operando como alavanca da própria acumulação capitalista. É nesse contexto que a população em situação de rua (PSR) emerge como questão social, já que como fruto de uma organização desigual da produção e distribuição da riqueza, essas pessoas acabam por não encontrar possibilidade além da vida nas ruas dos centros urbanos (Escorel, 1999ESCOREL, S. Vidas ao léu: trajetórias de exclusão social. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999. DOI: 10.7476/9788575416051
https://doi.org/10.7476/9788575416051... ).
Nesse contexto, a PSR encontra barreiras para garantir a satisfação de suas necessidades materiais mais básicas, como alimentação, sono e higiene pessoal. Essas dificuldades são frequentemente reforçadas pelo próprio Estado, cujas ações higienistas costumam carregar a marca do descarte, no qual o objetivo central é retirar essas pessoas dos espaços urbanos (Varanda e Adorno, 2004VARANDA, W.; ADORNO, R. C. F. Descartáveis urbanos: discutindo a complexidade da população de rua e o desafio para políticas de saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 56-69, 2004. DOI: 10.1590/S0104-12902004000100007
https://doi.org/10.1590/S0104-1290200400... ).
Por outro lado, a Constituição Federal garante a saúde como um direito social e o Sistema Único de Saúde (SUS) tem como um de seus princípios a universalidade do acesso. Todavia, o sistema de saúde é movido por profissionais cujo processo formativo, por vezes, se dá de forma isolada da realidade material dessa população, fato que reflete na falta de preparo para acolher as demandas trazidas pelos sujeitos que ocupam as ruas. A falta de sensibilização diante do contexto social vivenciado pela PSR tem acarretado situações de discriminação dentro dos próprios serviços de saúde (Barata et al., 2015BARATA, R. B. et al. Desigualdade social em saúde na população em situação de rua na cidade de São Paulo. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 24, n. Supl. 1, p. 219-232, 2015. DOI: 10.1590/S0104-12902015S01019
https://doi.org/10.1590/S0104-12902015S0... ; Wijk; Mângia, 2017VAN WIJK, L. B.; MÂNGIA, E. F. O cuidado a Pessoas em Situação de Rua pela Rede de Atenção Psicossocial da Sé. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 41, n. 115, p. 1130-1142, 2017. DOI: 10.1590/0103-1104201711511
https://doi.org/10.1590/0103-11042017115... ). Dessa forma, ao buscar os serviços de saúde, o somatório de discriminações promove uma internalização dos sofrimentos e, como apontam Varanda e Adorno (2004VARANDA, W.; ADORNO, R. C. F. Descartáveis urbanos: discutindo a complexidade da população de rua e o desafio para políticas de saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 56-69, 2004. DOI: 10.1590/S0104-12902004000100007
https://doi.org/10.1590/S0104-1290200400... , p. 67):
A internalização desse processo gera uma certa resignação, que interfere na forma de lidar com as questões de saúde e dificulta a relação com os profissionais dos serviços de saúde. Um grande número de pessoas que vive nas ruas, raramente procura o serviço de saúde, enquanto suporta a presença dos sintomas de doenças, recorrendo à rede ambulatorial em último caso, com a acumulação de vários problemas de saúde.
Esse descompasso evidencia a dificuldade do reconhecimento de que o processo saúde-doença não pode ser explicado por um raciocínio homogeneizante, tendo em vista que as diferentes realidades sociais implicam em formas de adoecimento diversas. No entanto, a matriz de pensamento hegemônica no campo da saúde, conhecida como o modelo biomédico, consolidou-se ao longo do século XX a partir de um modelo de ensino positivista, produzindo uma corrente de pensamento organizada em torno do paradigma da unicausalidade do processo saúde-doença, acarretando práticas de saúde tecnocráticas, em uma perspectiva individualizante e biologicista (Pagliosa; Da Ros, 2008PAGLIOSA, F. L.; DA ROS, M. A. O relatório Flexner: para o bem e para o mal. Revista Brasileira de Educação Médica, Brasília, DF, v. 32, n. 4, p. 492-499, 2008. DOI: 10.1590/S0100-55022008000400012
https://doi.org/10.1590/S0100-5502200800... ; Da Ros, 2000DA ROS, M. A. Estilos de pensamento em saúde pública: um estudo da produção da FSP/USP e ENSP-FIOCRUZ, entre 1948 e 1994, a partir da epistemologia de Ludwik Fleck. 2000. 208 f. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2000.).
Ainda que seja uma força hegemônica, essa forma de pensar a saúde não deixou de ser questionada ao longo dos anos. O estudo de Da Ros (2000DA ROS, M. A. Estilos de pensamento em saúde pública: um estudo da produção da FSP/USP e ENSP-FIOCRUZ, entre 1948 e 1994, a partir da epistemologia de Ludwik Fleck. 2000. 208 f. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2000.) demonstrou que diferentes correntes de pensamento abordaram a saúde em outras perspectivas, propondo deslocamentos e conexões epistemológicas. Neste artigo, partimos da Saúde Coletiva como caminho para pensar a saúde da PSR, mais especificamente a corrente de pensamento que utiliza o conceito da determinação social da saúde. Dessa forma, esse trabalho tem como objetivo discutir a saúde da PSR, fazendo uso da determinação social como método de análise. Para tanto, apresentamos o debate em formato de ensaio, dividido em duas seções: a primeira, que apresenta uma discussão sobre a PSR e sua relação com os serviços de saúde; e a segunda, que propõe uma análise sobre a saúde da PSR a partir do conceito da determinação social do processo saúde-doença.
A população em situação de rua e os serviços de saúde
O debate sobre as questões referentes à PSR tem avançado nos últimos anos, apesar de parecer um fenômeno social recente, a existência de pessoas que fazem das ruas seus locais de vida não é um processo contemporâneo. A compreensão desse movimento de ocupação dos espaços urbanos como um fenômeno histórico exige, antes de tudo, analisá-lo no contexto do modo de produção capitalista.
Em sua discussão sobre a ascensão e o desenvolvimento do capitalismo na Europa do século XV e XVI, Marx (2017MARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2017.) já apontava para uma camada populacional que, diante dos massivos processos de expropriação de terras, passara a viver na itinerância, sem meios de se incorporar à manufatura em ascensão. A velocidade com que eram expulsos de suas terras não acompanhava a possibilidade de incorporação pela manufatura ainda emergente, e como bem escreveu o autor: “Os pais da atual classe trabalhadora foram inicialmente castigados por sua metamorfose, que lhes fora imposta, em vagabundos e paupers” (Marx, 2017MARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 806). O termo “vagabundo” utilizado naquele contexto não se refere à noção pejorativa dos dias atuais, uma vez que, como explica Frangella (2004FRANGELLA, S. M. Corpos urbanos errantes: uma etnografia da corporalidade de moradores de rua em São Paulo. 2004. 361f. Tese (Doutorado em Ciência Sociais) - Departamento de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo, 2004.), o uso se vincula a tradução do francês e inglês de vagabond, cujo sentido é o ato de vagar, de pessoas que vivem na itinerância.
A formação social do Brasil também é marcada pela existência de pessoas que, diante de um modelo de produção assentado na dominação colonial e na escravidão, não encontravam meios de se incorporar ao processo produtivo. Naquele contexto histórico de pouca diversificação produtiva, resultante da produção no latifúndio escravista, uma massa de trabalhadores “livres” se constituiu entre senhores de terras e escravos. Essa camada populacional, acrescida dos milhões de escravos forros, vivia na pobreza e em constante mobilidade, em busca da possibilidade de produzir ao menos para sua própria sobrevivência (Franco, 1997FRANCO, M. S.C. Homens livres na ordem escravocrata. 4. ed. São Paulo: Editora UNESP, 1997).
Dessa forma, faz-se importante compreender que, apesar de em maior evidência na contemporaneidade, a PSR é um produto social do modo de produção capitalista, sendo uma população historicamente marginalizada. A exclusão social desse segmento populacional é evidenciada quando pensamos sobre sua inclusão no campo das políticas públicas no Brasil. O Estado brasileiro optou, ao longo dos anos, por tratar a PSR pela lógica de higiene social, operando por meio do aparato de segurança pública para expulsar essas pessoas de seus locais de permanência. É bastante recente um movimento de reconhecimento da necessidade de garantia dos direitos sociais dessa população, almejando superar as tradicionais ações assistencialistas de cunho higienista e medicalizador, responsáveis por reforçar a sua invisibilidade (Paiva et al., 2016PAIVA, I. K. S. et al. Direito à saúde da população em situação de rua: reflexões sobre a problemática. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 8, p. 2595-2606, 2016. DOI: 1413-81232015218.06892015
https://doi.org/1413-81232015218.0689201... ; Varanda; Adorno, 2004VARANDA, W.; ADORNO, R. C. F. Descartáveis urbanos: discutindo a complexidade da população de rua e o desafio para políticas de saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 56-69, 2004. DOI: 10.1590/S0104-12902004000100007
https://doi.org/10.1590/S0104-1290200400... ).
A Política Nacional para a População em Situação de Rua (PNPSR) foi instituída em 2009, após a organização do Movimento Nacional da PSR, e foi proposta na perspectiva de reconhecer os direitos dessa população , com o objetivo de garantir o acesso às políticas públicas de saúde, assistência social, educação, previdência, moradia, segurança, cultura, lazer, esporte, trabalho e renda (Brasil, 2009BRASIL. Decreto Presidencial nº 7.053, de 23 de dezembro de 2009. Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2009. Disponível em: <Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d7053.htm >. Acesso em: 03 jan 2023.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at... ). No que diz respeito à política de saúde, considerando as especificidades da PSR, a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) de 2011 instituiu os Consultórios na Rua, equipamentos formados por equipes multiprofissionais responsáveis por atuar diretamente com a PSR (Brasil, 2011BRASIL. Portaria nº 2.488 de 21 de Outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde. Disponível em: <Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt2488_21_10_2011.html >. Acesso em: 03 jan 2023.
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis... ).
Ainda que tardia, a instituição de uma política voltada à PSR demonstra um importante avanço na discussão referente à vida dessa população. A criação de equipes de saúde voltadas à PSR marca o reconhecimento da necessidade de se pensar na saúde da PSR. A revisão de Andrade et al. (2022ANDRADE, R. et al. O acesso aos serviços de saúde pela População em Situação de Rua: uma revisão integrativa. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 46, n. 132, p. 227-239, 2022. DOI: 10.1590/0103-1104202213216
https://doi.org/10.1590/0103-11042022132... ) apontou uma escassez de publicações científicas abordando o acesso da PSR aos serviços de saúde e, entre aqueles que trataram da temática, a predominância foi de trabalhos que se referiam à atenção básica e ao Consultório na Rua. Nesse sentido, a definição das equipes de Consultório na Rua (eCR) como parte integrante da PNAB sinalizou para a responsabilização desse nível de atenção na assistência à saúde da PSR. Dessa maneira, as eCR tem papel central na organização de rede de atenção à saúde dessa população, realizando a articulação entre a PSR e os diferentes serviços de saúde (Andrade et al., 2022ANDRADE, R. et al. O acesso aos serviços de saúde pela População em Situação de Rua: uma revisão integrativa. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 46, n. 132, p. 227-239, 2022. DOI: 10.1590/0103-1104202213216
https://doi.org/10.1590/0103-11042022132... ).
Assim, a inclusão da PSR da PNAB representou o reconhecimento de uma necessidade de reorganização da rede de atenção à saúde para atender a essa população em suas especificidades. As eCR certamente têm um papel central na atuação junto da PSR, tendo como potencialidades o uso de tecnologias leves/relacionais, a criação de relações de acolhimento e vínculo, além da articulação intersetorial. Ainda que essas equipes não sejam as únicas responsáveis pala assistência à PSR, percebe-se uma falta de entendimento dos serviços de saúde em relação a atuação dessas equipes, sendo frequentes a criação de barreiras de acesso da PSR nos diferentes serviços sem o acompanhamento de profissionais das eCR (Ferreira; Rozendo; Melo, 2016FERREIRA, C. P. S; ROZENDO, C. A; MELO, G. B. Consultório na Rua em uma capital do Nordeste brasileiro: o olhar de pessoas em situação de vulnerabilidade social. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 32, n. 8, p. 1-10. 2016. DOI: 10.1590/0102-311X00070515
https://doi.org/10.1590/0102-311X0007051... ).
Quando se trata das condições de saúde da PSR, sabe-se que há uma predominância de algumas condições clínicas, podendo-se citar: doenças infectocontagiosas, problemas na pele e nos pés, problemas bucais, adoecimento mental, uso de álcool e outras drogas, entre outros (Aguiar; Iriart, 2012AGUIAR, M. M.; IRIART, J. A. B. Significados e práticas de saúde e doença entre a população em situação de rua em Salvador, Bahia, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Salvador, v. 28, n. 1, p. 115-124, 2012. DOI: 10.1590/S0102-311X2012000100012
https://doi.org/10.1590/S0102-311X201200... ; Brasil, 2012BRASIL. Manual Sobre o Cuidado à Saúde junto a População em Situação de Rua. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2012.). Apesar da importância de conhecer o perfil epidemiológico da PSR, a identificação das condições clínicas mais comuns não é suficiente para garantir a produção de cuidado nos serviços de saúde. Para isso, faz-se necessário conhecer o significado dado por esses sujeitos aos diferentes processos de adoecimento, uma vez que, como identificaram Aguiar e Iriart (2012AGUIAR, M. M.; IRIART, J. A. B. Significados e práticas de saúde e doença entre a população em situação de rua em Salvador, Bahia, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Salvador, v. 28, n. 1, p. 115-124, 2012. DOI: 10.1590/S0102-311X2012000100012
https://doi.org/10.1590/S0102-311X201200... ), as significações do processo saúde-doença nas ruas é atravessado pela luta por garantia de condições materiais de existência. Nas palavras dos autores, a PSR apresenta:
[...] uma concepção de saúde que está associada à capacidade de estar vivo e de resistir ao cotidiano de dificuldades nas ruas. Já a doença foi associada ao estado de debilidade a ponto de não poder trabalhar, a impossibilidade de batalhar e ganhar dinheiro, o impedimento de realizar tarefas simples, ou no caso extremo, o organismo não suportar o sofrimento, enfraquecer e sucumbir (Aguiar e Iriart, 2012AGUIAR, M. M.; IRIART, J. A. B. Significados e práticas de saúde e doença entre a população em situação de rua em Salvador, Bahia, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Salvador, v. 28, n. 1, p. 115-124, 2012. DOI: 10.1590/S0102-311X2012000100012
https://doi.org/10.1590/S0102-311X201200... , p. 120).
Percebe-se que o processo saúde-doença nas ruas se liga à reprodução das condições materiais de existência, escapando à dimensão puramente biológica. Como apontam Paiva et al. (2016PAIVA, I. K. S. et al. Direito à saúde da população em situação de rua: reflexões sobre a problemática. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 8, p. 2595-2606, 2016. DOI: 1413-81232015218.06892015
https://doi.org/1413-81232015218.0689201... ), o modelo biomédico tem produzido uma forma de pensar e de agir insuficiente nos serviços de saúde para lidar com as questões inerentes ao processo saúde-doença da PSR. Ao limitar a compreensão dos processos de adoecimento às dimensões biológica/patológica, o pensamento hegemônico desconsidera as dimensões social e política que atravessam o processo saúde-doença nas ruas, acarretando soluções simplistas, que muitas vezes culpabilizam a PSR por suas condições (Paiva et al., 2016PAIVA, I. K. S. et al. Direito à saúde da população em situação de rua: reflexões sobre a problemática. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 8, p. 2595-2606, 2016. DOI: 1413-81232015218.06892015
https://doi.org/1413-81232015218.0689201... ).
Sendo assim, o modelo biomédico que tenta explicar os processos de adoecimento levando em consideração o modelo unicausal e biologicista entra em choque com a multiplicidade de condições de vida e, ao ignorar o vetor das condições sociais dos diferentes grupos populacionais, deixa de considerar as lutas cotidianas da PSR. É de grande importância que os profissionais de saúde compreendam que a vida nas ruas pressupõe a exposição diária a condições materiais precárias, além de múltiplas violências (físicas, simbólicas e estatais), discriminações, privações (de sono e alimentação) e negações de direitos (moradia, trabalho e saúde) (Barata et al., 2015BARATA, R. B. et al. Desigualdade social em saúde na população em situação de rua na cidade de São Paulo. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 24, n. Supl. 1, p. 219-232, 2015. DOI: 10.1590/S0104-12902015S01019
https://doi.org/10.1590/S0104-12902015S0... ; Escorel, 1999ESCOREL, S. Vidas ao léu: trajetórias de exclusão social. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999. DOI: 10.7476/9788575416051
https://doi.org/10.7476/9788575416051... ).
Para ilustrar um exemplo, podemos pensar em uma condição frequente entre a PSR: os machucados ou as infecções nos pés pelo excesso de caminhada, pelo não uso de sapatos, ou pelo uso de sapatos molhados. Em uma análise simplificada, bastaria tratar a causa dessa condição: usar sapatos adequados, ou até mesmo não seguir no nomadismo. Todavia, é imprescindível conhecer as motivações desse deslocamento constante, as condições concretas de vida desses sujeitos.
O raciocínio linear proposto pelo modelo biomédico ignora as questões sociais que condicionam o processo saúde-doença. Ao deixar de lado os aspectos que dizem respeito às condições materiais e às possibilidades desses sujeitos, os profissionais de saúde deixam passar a chance de produzir um verdadeiro encontro e acabam, muitas vezes, reproduzindo violências, preconceitos e discriminações, situações que são percebidas pela própria PSR ao tentar acessar os serviços de saúde (Barata et al., 2015BARATA, R. B. et al. Desigualdade social em saúde na população em situação de rua na cidade de São Paulo. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 24, n. Supl. 1, p. 219-232, 2015. DOI: 10.1590/S0104-12902015S01019
https://doi.org/10.1590/S0104-12902015S0... ; Hallais; Barros, 2015HALLAIS, J. A. S.; BARROS, N. F. Consultório na Rua: visibilidades, invisibilidades e hipervisibilidade. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 31, n. 7, p. 1497-1504, 2015. DOI: 10.1590/0102-311X00143114
https://doi.org/10.1590/0102-311X0014311... ). A atuação individualizante e protocolar orientada pelo modelo biomédico impede a percepção das especificidades inerentes à vida nas ruas, fazendo com que sejam priorizadas condutas desconectadas das possibilidades reais da PSR, apoiadas em intervenções que restringem a autonomia desses sujeitos (Brito; Silva, 2022BRITO, C.; SILVA, L. N. População em situação de rua: estigmas, preconceitos e estratégias de cuidado em saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 27, n. 1, p. 151-160, 2022. DOI: 10.1590/1413-81232022271.19662021
https://doi.org/10.1590/1413-81232022271... ). Nesse sentido, os autores enfatizam: “Esse processo contínuo pode levar à perda do atributo mais importante de todos os seres: sua condição humana. A pessoa que é constantemente colocada no lugar do indesejado perde o direito à cidadania e à vida” (Brito; Silva, 2022BRITO, C.; SILVA, L. N. População em situação de rua: estigmas, preconceitos e estratégias de cuidado em saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 27, n. 1, p. 151-160, 2022. DOI: 10.1590/1413-81232022271.19662021
https://doi.org/10.1590/1413-81232022271... , p. 156).
Emerge, então, um questionamento: a existência da PNPSR e de um sistema de saúde orientado pelo princípio da universalidade são suficientes para garantir o direito à saúde desses sujeitos? Não há dúvidas de que são pontos essenciais para que isso aconteça, mas nenhuma política é uma garantia por si só, uma vez que são executadas por pessoas, cuja sensibilidade diante das diferenças precisa ser movimentada, ativada, instigada. Na saúde, o pensamento predominante leva os profissionais a reproduzirem uma atuação estéril, desconsiderando as interferências do campo social. No que se refere ao atendimento da PSR, os profissionais acusam desconhecimento das condições reais dessa população, o que leva a atuações paternalistas que desconsideram as realidades desses sujeitos (Brito; Silva, 2022BRITO, C.; SILVA, L. N. População em situação de rua: estigmas, preconceitos e estratégias de cuidado em saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 27, n. 1, p. 151-160, 2022. DOI: 10.1590/1413-81232022271.19662021
https://doi.org/10.1590/1413-81232022271... ).
Nesse sentido, ao relacionar a saúde às condições materiais de existência e às relações sociais que determinam essas condições, a Saúde Coletiva apresenta um enorme potencial de aproximação e construção coletiva com as pessoas que vivem em situação de rua, uma vez que essa população materializa em suas experiências diferentes fatores que reafirmam a urgência na compreensão da saúde pelo prisma da determinação social. Por esse motivo, a seção seguinte se apresenta como movimento no sentido de realizar uma análise da PSR utilizando a determinação social do processo saúde-doença como método interpretativo.
A determinação social da saúde no contexto da PSR
Apesar da evidente hegemonia do modelo biomédico, o campo da saúde no Brasil não se construiu de forma linear. Assim como todo processo histórico, o território da saúde foi palco de disputa de diferentes linhas de pensamento e projetos de sociedade. Destacamos um movimento que emergiu por volta da década de 1970 e se capilarizou pela América Latina: a Medicina Social, cujos ideais no Brasil foram difundidos e de certo modo amplamente reconfigurados pela nascente Saúde Coletiva. Influenciados pela teoria social crítica, os autores dessa corrente de pensamento incorporaram nela categorias da economia política que são de grande importância para pensar a saúde das populações, como o trabalho enquanto eixo central da vida humana, a organização social e a distribuição da produção, assim como o desenvolvimento das forças produtivas em um dado momento histórico. Com isso, expandiu-se uma matriz de pensamento crítico em saúde, que se dedicou a questionar a abordagem puramente biológica do processo saúde-doença (Laurell, 1981LAURELL, A. C. La salud-enfermedad como proceso social. Revista Latinoamericana de Salud, v. 2, n. 1, p. 7-25, 1982.).
Esta corrente de pensamento se difundiu como resposta à dificuldade da medicina clínica em explicar a distribuição desigual dos agravos à saúde nas populações. A compreensão da saúde enquanto um processo social possibilitou uma análise totalizante, uma vez que retira a saúde de uma avaliação biológica, isolada e individualizada, localizando-a no contexto político, social e econômico capitalista. Ao incorporar o materialismo-histórico-dialético como método para refletir sobre a saúde das populações, o pensamento crítico em saúde possibilitou a inclusão de categorias sociais no debate sobre a saúde das populações, tendo como fio condutor a compreensão de que a divisão da sociedade capitalista em classes implica na produção de desigualdades sociais e, consequentemente, em uma distribuição desigual dos agravos em saúde (Breilh, 1979BREILH, J. Los modelos epidemiologicos como recurso del proyecto capitalista. In: BREILH, J. Epidemiologia, Economia, Medicina Y Politica. Ciudad de Mexico: Fontamara, 1979. p. 71-125.; Laurell, 1981LAURELL, A. C. La salud-enfermedad como proceso social. Revista Latinoamericana de Salud, v. 2, n. 1, p. 7-25, 1982.). Nessa perspectiva, o movimento entre saúde e doença passa a ser entendido enquanto um processo determinado pelo modo como as forças produtivas estão organizadas. Como afirma Laurell (1981LAURELL, A. C. La salud-enfermedad como proceso social. Revista Latinoamericana de Salud, v. 2, n. 1, p. 7-25, 1982., p. 10), o processo saúde-doença:
[...] está determinado por el modo como el hombre se apropia de la naturaleza en un momento dado, apropiación que se realiza por medio del proceso de trabajo basado en determinado desarrollo de las fuerzas productivas y las relaciones sociales de producción.
A virada proposta pela Saúde Coletiva consiste em pontuar que a saúde das pessoas não poderia ser explicada unicamente por fatores biológicos e individuais, porque os indivíduos estão inseridos em uma sociedade, em um dado momento histórico, com uma determinada organização social da produção. Sendo assim, o lugar que cada indivíduo ocupa nessa organização impacta na possibilidade (ou impossibilidade) de que possa desenvolver plenamente suas condições materiais de existência, as quais são influenciadas pela relação dialética entre o indivíduo/coletividade e o biológico/social. Nesse sentido, reconhece-se a determinação social da saúde, uma vez que ter saúde não significa uma oposição direta a um estado patológico, mas é resultante da forma de organização da produção e da distribuição dos bens e serviços socialmente produzidos (Laurell, 1981LAURELL, A. C. La salud-enfermedad como proceso social. Revista Latinoamericana de Salud, v. 2, n. 1, p. 7-25, 1982.).
Por assim dizer, o conceito da determinação social provoca um deslocamento no modelo de raciocínio em saúde, pois nos leva a pensar a seu respeito para além da oposição saúde-doença, mas entendendo a complexidade e o dinamismo da vida, com todos os seus atravessamentos sociais, econômicos e políticos. A mudança está exatamente no esforço de analisar esse processo nas populações sob uma perspectiva da totalidade, uma vez que o processo saúde-doença não está desvinculado da forma como as sociedades estão organizadas (Laurell, 1981LAURELL, A. C. La salud-enfermedad como proceso social. Revista Latinoamericana de Salud, v. 2, n. 1, p. 7-25, 1982.).
Nesse sentido, analisar o processo saúde-doença no contexto da PSR exige compreender o lugar que essas pessoas ocupam na organização social. Por isso, a discussão sobre a saúde de uma população marginalizada, como a PSR, precisa estar conectada a um debate sobre o modo de produção capitalista. Como apontamos no início desse trabalho, a existência de pessoas que fazem das ruas seus espaços de vida nos remonta ao período de ascensão e desenvolvimento do capitalismo, tendo em vista que o modo de produção capitalista marca o momento histórico em que houve as expropriações dos meios de produção, que passaram a ser propriedade privada de uma classe social, delimitando a divisão da sociedade em classes: de um lado aqueles que os dominam, de outro uma massa populacional, cuja única propriedade é seu corpo e sua força de trabalho (Marx, 2017MARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2017.).
A compreensão da saúde como socialmente determinada avança ao trazer a questão da organização do processo produtivo para o debate sobre a saúde, haja vista que o modo de produção determina as condições materiais de existência dos diferentes estratos sociais. Nesse sentido, a saúde se liga à possibilidade de produção e reprodução social, que, em uma sociedade estratificada em classes, acontece de forma desigual a depender do lugar que cada pessoa ocupa na organização social. Assim, abordar a PSR demanda compreendê-la enquanto um fenômeno histórico que marca o desenvolvimento das sociedades capitalistas, uma população historicamente submetida a uma posição marginal no processo produtivo. A chave de interpretação da determinação social do processo saúde-doença busca essa análise em uma perspectiva dialética entre as dimensões individual e coletiva (Breilh, 2013BREILH, J. La determinación social de la salud como herramienta de transformación hacia una nueva salud pública (salud colectiva). Revista Facultad Nacional de Salud Pública, Medellín, v. 31, n. Supl 1, p. S13-S27, 2013.).
Com isso, cabe relembrar que na 8ª Conferência Nacional de Saúde, a saúde foi conceituada enquanto um processo atravessado pela política, tendo em vista que ter saúde não se trata unicamente de um fator biológico e individual, mas exige acesso a recursos fundamentais, como alimentação, habitação, trabalho, renda, terra, transporte, educação e, naturalmente, serviços de saúde. O conceito de saúde que guia a construção do SUS está fortemente influenciado pela matriz de pensamento que compreende a saúde como produto das condições materiais de existência das populações, condições essas que são interditadas no contexto da PSR (Brasil, 1986BRASIL. Relatório final da VIII Conferência Nacional de Saúde. Brasília, DF, 1987. Disponível em: <Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/8_conferencia_nacional_saude_relatorio_final.pdf > Acesso em: 03 jan 2023.
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicaco... ).
Quando pensamos sobre a saúde como resultante de diferentes dimensões, avançamos na sua compreensão para além de uma perspectiva individualizante, entendendo que ela resulta da relação dialética entre o indivíduo e a estrutura social. Desse modo, compreende-se que as condições de vida não são explicadas unicamente por escolhas individuais, mas condicionadas pela organização social da produção (Breilh, 2013BREILH, J. La determinación social de la salud como herramienta de transformación hacia una nueva salud pública (salud colectiva). Revista Facultad Nacional de Salud Pública, Medellín, v. 31, n. Supl 1, p. S13-S27, 2013.; Laurell, 1981LAURELL, A. C. La salud-enfermedad como proceso social. Revista Latinoamericana de Salud, v. 2, n. 1, p. 7-25, 1982.).
Ao analisar a PSR a partir da totalidade do modo de produção, apontamos para o caráter sócio-histórico desse fenômeno populacional que ao longo do desenvolvimento capitalista foi sendo impedido de se inserir no processo produtivo. Em seus estudos, Marx (2017MARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2017.) já identificava que a acumulação e centralização capitalista produziam um volume de população trabalhadora adicional e relativamente excedente, que se transformava em alavanca da própria acumulação capitalista. Esse segmento populacional foi nomeado pelo autor como exército industrial de reserva, o qual era responsável por fornecer uma quantidade expressiva de força de trabalho sempre pronta para ser explorada, tendo como consequência o rebaixamento do próprio valor da força de trabalho. Nas palavras de Marx:
A condenação de uma parte da classe trabalhadora à ociosidade forçada em razão do sobretrabalho da outra parte, e vice-versa, torna-se um meio de enriquecimento do capitalista individual, ao mesmo tempo que acelera a produção do exército industrial de reserva num grau correspondente ao progresso da acumulação socia (Marx, 2017MARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 711-712).
A existência de uma camada populacional que não encontra meios de se incorporar ao processo produtivo está intimamente ligada ao desenvolvimento e estruturação das forças produtivas. Nesse sentido, a PSR tem as suas condições de reprodução social condicionadas pela distribuição desigual da produção, e, portanto, são atingidas também de forma desigual pelos processos de adoecimento. Assim sendo, procuramos avançar para além do paradigma biomédico hegemônico, o qual tenta responder às questões de saúde de forma linear, fracionando a realidade e isolando os sujeitos de seu contexto social. Diferente disso, o pensamento crítico em saúde, orientado pela determinação social do processo saúde-doença, opera como ferramenta de análise que compreende a centralidade da dinâmica de acumulação capitalista no modo como as diferentes populações vivem e reproduzem suas vidas (Breilh, 2013BREILH, J. La determinación social de la salud como herramienta de transformación hacia una nueva salud pública (salud colectiva). Revista Facultad Nacional de Salud Pública, Medellín, v. 31, n. Supl 1, p. S13-S27, 2013.).
Considerações finais
A existência de pessoas que fazem das ruas seus locais de vida é um processo histórico que merece atenção, dado que o desenvolvimento capitalista no Brasil tem empurrado cada vez mais pessoas para essa situação. O aumento vertiginoso da quantidade de PSRs nos impele a pensar sobre as condições de saúde dessa população, de forma a organizar e melhor efetivar o acesso dessas pessoas aos serviços de saúde.
Com isso, o debate sobre o processo saúde-doença da PSR precisa ser feito de forma cuidadosa, almejando uma ultrapassagem em relação ao pensamento biomédico hegemônico no campo da saúde, o qual faz uma análise individualizante que desconsidera os aspectos políticos e sociais que atravessam o contexto social da PSR, reproduzindo, por muitas vezes, atitudes de discriminação e culpabilização dos sujeitos. Nesse sentido, o pensamento crítico em saúde propõe uma mudança no método de análise do processo saúde-doença.
Assim, buscamos apresentar uma análise do processo saúde-doença da PSR, por meio do conceito da determinação social da saúde, o qual se inicia na organização social do modo de produção capitalista para analisar a forma como os agravos em saúde se distribuem nos diferentes estratos sociais. Dessa maneira, parte-se da relação dialética entre o individual e o coletivo, o biológico e o social, compreendendo que a saúde da PSR é a resultante das suas condições materiais de existência, as quais são determinadas pela forma de organização social da produção. Nesse contexto, a PSR é historicamente colocada à margem do processo produtivo, encontrando diferentes barreiras na satisfação de suas necessidades, o que reflete em suas condições de saúde.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
07 Ago 2023 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
03 Jan 2023 - Aceito
01 Mar 2023