Resumo
Este artigo tem como objetivo investigar as instituições de acolhimento para pessoas com deficiência no estado de São Paulo, assim como analisar o acolhimento de crianças e adolescentes nestes serviços. Trata-se de pesquisa qualitativa, de caráter descritivo e corte transversal. Na primeira etapa de coleta de dados, o estudo realizou um mapeamento das instituições em diferentes cadastros, de livre acesso, dos serviços públicos e conveniados, ligados à gestão federal, estadual e municipal nas áreas da infância, assistência social e saúde. Na segunda etapa, a coleta de dados ocorreu por meio da leitura de prontuários em uma instituição específica. Como resultado, o estudo indica ausência de tipificação única ou regulamentação específica, assim como a falta de práticas de desinstitucionalização e desarticulação com a rede intersetorial. Os resultados revelam, também, que a internação de crianças e adolescentes é recorrente nessas instituições e retratam características desta prática: ocorrência de transinstitucionalização, internações via determinação judicial e falta ou precariedade de serviços territoriais e de ações intersetoriais. Por fim, é apontada a necessidade de implantação de redes substitutivas e desenvolvimento de ações intersetoriais de atenção para crianças e adolescentes. Além da fundamental relevância de aprofundamento sobre a população institucionalizada.
Palavras-chave:
Saúde Mental; Saúde Pública; Institucionalização; Defesa da Criança e do Adolescente; Criança
Introdução
A concepção de anormalidade na infância começa a estruturar-se ainda no século XIX, na França, a partir da “discussão da noção de retardamento mental, tal como constituída por Esquirol já antes de 1820, sob o nome de idiotia” (Bercherie, 2001BERCHERIE, P. A clínica psiquiátrica da criança: estudo histórico. In: CIRINO, O. Psicanálise e Psiquiatria com crianças: desenvolvimento ou estrutura. Belo Horizonte: Autêntica, 2001., p. 130). A preocupação em torno da descrição, classificação e cura do idiota impulsionou a entrada da psiquiatria no campo da infância. Assim, a criança “anormal” não surge a partir da criança louca, mas da “figura que o alienismo do século XIX, a partir da emergência da embriologia e a respectiva noção de desenvolvimento, ajudou a produzir: o idiota” (Lobo, 2018LOBO, L. F. Pavilhão Bourneville: esboço de uma história da psiquiatria infantil no Brasil. In: LOBO, L. F.; FRANCO, D. A. (Org.). Infâncias em devir: ensaios e pesquisas. Rio de Janeiro: Garamond, 2018. p. 17-28, p. 19).
Cabe destacar que as formulações sobre as causas e a reversibilidade da idiotia introduziram as noções de instinto e de desenvolvimento no campo da psiquiatria da infância (Lobo, 2008LOBO, L. F. Os infames da história: pobres, escravos e deficientes no Brasil. Rio de Janeiro: Lamparina, 2008.) e, além disso, fomentaram o estabelecimento de práticas e instituições de controle e correção dos anormais. A anormalidade, diferentemente da doença, representa um desvio da norma e, portanto, assume o status de periculosidade, devendo ser contida, observada e educada (Foucault, 2006FOUCAULT, M. O poder psiquiátrico. São Paulo: Martins Fontes, 2006.).
No final do século XIX, a idiotia passa a ser considerada uma das categorias da anormalidade e deixa de abarcar todos os desvios da infância (Lobo, 2008LOBO, L. F. Os infames da história: pobres, escravos e deficientes no Brasil. Rio de Janeiro: Lamparina, 2008.). O conceito de anormalidade, forjado a partir da figura do idiota, é disseminado para o campo da infância e, posteriormente, para todo o corpo social. Desta forma, “a psiquiatria torna-se uma instância da sociedade em defesa contra os perigos que minam do seu interior, esses perigos se incorporam na figura do anormal cientificamente identificado” (Nascimento, 2020NASCIMENTO. P.M.S. A voz do outro: classificação, governamento e fabricação da infância anormal escolar nos discursos médico-pedagógicos (1900-1923). 2020. 130 f. Tese - (Doutorado em Educação). Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2020., p. 32).
A assistência destinada às crianças “anormais” era realizada em instituições especializadas, em sua maioria de natureza asilar, e fundamentada pela necessidade de intervenção médico-pedagógica em estabelecimento adequado. Cabe destacar, entretanto, que distinções teóricas entre a loucura e a idiotia não “significaram a internação de ambos em estabelecimentos diferentes - permaneceram juntos para constituírem os chamados “doentes mentais”, objetos definitivos da psiquiatria (Lobo, 2008LOBO, L. F. Os infames da história: pobres, escravos e deficientes no Brasil. Rio de Janeiro: Lamparina, 2008., p. 261). Assim, as crianças “loucas”, “delinquentes”, “débeis” e “idiotas” dividiram, durante décadas, os mesmos espaços de exclusão, como hospitais psiquiátricos, clínicas especializadas e abrigos para pessoas com deficiência. É importante, então, destacar que os campos da saúde mental e deficiência - principalmente a deficiência intelectual - compartilham uma longa história de exclusão social de crianças e adolescentes.
No contexto brasileiro, durante o período colonial, a infância não foi objeto de práticas de cuidado próprias ou de saberes especializados. Nessa época, a assistência aos “necessitados” foi executada pelo campo da caridade, majoritariamente em instituições de acolhimento, sem nenhuma prática ou ação específica de cuidado para as crianças com deficiência ou problemas relacionados à saúde mental.
A transição para o governo republicano é marcada por inúmeras transformações, tanto no contexto político e social quanto nas concepções e valores morais. A elite política estava à frente do projeto de desenvolvimento do país e aliou-se à medicina higienista para o estabelecimento de novas estratégias de governo e controle da população. De acordo com Ribeiro (2006RIBEIRO, P. R. M. História da saúde mental infantil: a criança brasileira da Colônia à República Velha. Psicologia em estudo, Maringá, v. 11, n. 1, p. 29-38, 2006. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pe/v11n1/v11n1a04.pdf >. Acesso em: 16 nov. 2022.
http://www.scielo.br/pdf/pe/v11n1/v11n1a... , p. 30), “a ciência médica se torna poderosa e influente na sociedade, recebendo dela e dos poderes políticos constituídos, “autorização” para descobrir, propor e impor normas de saúde e equilíbrio que beneficiassem essa mesma sociedade.”. Nessa conjuntura, a assistência à infância sofre mudanças significativas, pois a medicina, apoiada em teorias positivistas e evolucionistas, a tinha como período primordial para a intervenção e adequação comportamental. Assim, a assistência às crianças “anormais” ou “irregulares” passa a ser considerada como fundamental para a formação de uma sociedade saudável. Segundo Lobo (2018LOBO, L. F. Pavilhão Bourneville: esboço de uma história da psiquiatria infantil no Brasil. In: LOBO, L. F.; FRANCO, D. A. (Org.). Infâncias em devir: ensaios e pesquisas. Rio de Janeiro: Garamond, 2018. p. 17-28, p. 84), a criança “passou a ser considerada o futuro do país que, por sua vez, precisava de cidadãos de bem; portanto, tornava-se necessário prevenir futuros fardos sociais (...) e condutas desviantes”. Sendo assim, “a psiquiatria infantil emerge de um processo de tutela do social, para o qual convergiram os interesses profiláticos dos psiquiatras e as exigências disciplinares dos aparelhos sociais” (Cervo; Silva, 2014CERVO, M. R.; SILVA, R. A. N. Um olhar sobre a patologização da infância a partir do CAPSI. Revista Subjetividades, Fortaleza, v. 14, n. 3, p. 442-453, 2014. Disponível em: <Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2359-07692014000300008 >. Acesso em: 4 jan. 2023.
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr... , p. 445).
As produções teóricas da psiquiatria francesa sobre a deficiência mental, da psiquiatria norte-americana sobre a delinquência e os ideais eugênicos e higienistas advindos da Europa tiveram grande influência sobre a concepção de anormalidade adotada pelos psiquiatras brasileiros e sobre o modelo de assistência para crianças consideradas anormais; tal modelo foi também marcado pela atuação de instituições asilares de natureza filantrópica. Assim, no início do século XX, propagou-se “a importância da assistência a crianças e adolescentes, principalmente porque elas representavam um futuro diferenciado para a nação brasileira” e, ao mesmo tempo, “engendrou-se um conjunto de medidas, calcadas na lógica higienista e de inspiração normativo-jurídica, que expandiu sobremaneira a oferta de instituições fechadas para o cuidado de crianças e adolescentes, em sua maioria sob a tutela do campo filantrópico” (Brasil, 2005BRASIL. Ministério da Saúde. Caminhos para uma política de saúde mental infanto-juvenil. Brasília, DF, 2005. Disponível em: <Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/05_0887_M.pdf >. Acesso em: 3 jan. 2023.
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicaco... , p. 7).
A história da assistência à infância anormal no Brasil tem, portanto, seu início marcado pela ênfase na institucionalização, pois “a vigilância institucionalizada da infância estabelece uma disciplinarização em que a tutela e a coerção são tomadas como medidas de proteção.” (Cervo; Silva, 2014CERVO, M. R.; SILVA, R. A. N. Um olhar sobre a patologização da infância a partir do CAPSI. Revista Subjetividades, Fortaleza, v. 14, n. 3, p. 442-453, 2014. Disponível em: <Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2359-07692014000300008 >. Acesso em: 4 jan. 2023.
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr... , p. 446). Desta forma, “as crianças e adolescentes enjeitados, órfãos, desvalidos, delinquentes, anormais, defeituosos e alienados tornaram-se alvos de uma intensa institucionalização que se efetivava através dos estabelecimentos asilares a eles destinados” (Lobo, 2018LOBO, L. F. Pavilhão Bourneville: esboço de uma história da psiquiatria infantil no Brasil. In: LOBO, L. F.; FRANCO, D. A. (Org.). Infâncias em devir: ensaios e pesquisas. Rio de Janeiro: Garamond, 2018. p. 17-28, p. 84), como os orfanatos, reformatórios, asilos etc. Assim, a “cultura da institucionalização” se instaurou, no Brasil, no final do século XIX e perdurou até meados da década de 1980 (Rizzini, 2005RIZZINI, I. Abordagem crítica da institucionalização infanto-juvenil no Brasil. In: BRASIL. Caminhos para uma política de saúde mental infanto-juvenil. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2005. p. 29-34.).
Os efeitos da institucionalização em crianças e adolescentes, entretanto, passam a ser objeto de estudos apenas a partir da segunda metade do século XX e apontam “um consenso em torno da ideia de que a institucionalização em si mesma abre um campo favorável para a configuração de várias situações de risco” (Parra; Oliveira; Maturana, 2019PARRA, A. C. O; OLIVEIRA, J. A.; MATURANA, A. P. M. O paradoxo da institucionalização infantil: proteção ou risco?. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 25, n. 1, p. 155-175, 2019. DOI: 10.5752/P.1678-9563.2019v25n1p155-175
https://doi.org/10.5752/P.1678-9563.2019... , p. 157). A longa permanência institucional revelou-se um fator de prejuízo à saúde física e mental e ao processo de socialização (Rizzini, 2005RIZZINI, I. Abordagem crítica da institucionalização infanto-juvenil no Brasil. In: BRASIL. Caminhos para uma política de saúde mental infanto-juvenil. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2005. p. 29-34.), pois o ambiente institucional pode dificultar o desenvolvimento “físico, intelectual, emocional e social de crianças separadas das famílias e colocadas em instituições, devido a uma estimulação ou motivação inadequada, à falta de um envolvimento ou contribuição consistente de cuidadores, à falta de reabilitação, além de outras privações.” (HRW, 2018HRW - HUMAN RIGHTS WATCH. “Eles ficam até morrer”: uma vida de isolamento e negligência em instituições para pessoas com deficiência no Brasil. Nova Iorque; 2018. Disponível em: <https://www.hrw.org/sites/default/files/report_pdf/brazil0518port.pdf>. Acesso em: 31 nov. 2022.
https://www.hrw.org/sites/default/files/... , p. 5). Ademais, a institucionalização demonstrou ter consequências duradouras, além de contribuir para a cronificação e agravo nas condições de saúde pré-existentes, bem como a perda de habilidades.
Pelo exposto, torna-se evidente que a prática da institucionalização de crianças e adolescentes não produziu os efeitos a que se propunha, como o avanço no desenvolvimento, melhora dos sintomas ou controle de comportamentos. De forma contrária, a prática proporcionou rompimento de vínculos afetivos e perda da autonomia, o que resultou num enorme contingente de sujeitos institucionalizados. Assim, apesar das instituições asilares para crianças anormais - como clínicas especializadas, abrigos para pessoas com deficiência e hospitais psiquiátricos - terem sido criadas com o objetivo de oferecer proteção e cuidado, nelas encontramos “relatos de maus tratos, prolongamentos desnecessários de internações e proposta terapêutica inadequada e distorcida” (Oliveira; Valença, 2020OLIVEIRA, G. C.; VALENÇA, A. M. Institucionalização prolongada, transtornos mentais e violência: uma revisão científica sobre o tema. Saúde e Sociedade , São Paulo, v. 29, n. 4, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/kPmtDt9bYLNwFHFK8PhkntH/?lang=pt >. Acesso em: 14 nov. 2022.
https://www.scielo.br/j/sausoc/a/kPmtDt9... , p. 9). Ademais, essas instituições frequentemente enfrentavam situação de superlotação (Lobo, 2008LOBO, L. F. Os infames da história: pobres, escravos e deficientes no Brasil. Rio de Janeiro: Lamparina, 2008.) e promoviam violações de direitos das crianças e adolescentes no ambiente institucional.
A partir da década 1980, especialmente após a redemocratização do país e promulgação da Constituição Federal de 1988, observa-se um reordenamento no campo jurídico e assistencial, que passa determinar a substituição de práticas asilares por políticas sociais de inclusão social e desinstitucionalização em diversas áreas.
No campo da infância, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Brasil, 1990BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 1990.) define direitos específicos desta população e estabelece a doutrina da proteção integral. A lei busca coibir a prática da institucionalização de crianças e adolescentes em instituições asilares e, além disso, estabelece diretrizes para a elaboração de políticas públicas, rompendo com a dispersão da assistência privada e filantrópica executada durante quase todo o século XX. Assim, o “atendimento institucional sofreu mudanças significativas (...) particularmente no período que sucedeu a aprovação do ECA” (Rizzini, 2005RIZZINI, I. Abordagem crítica da institucionalização infanto-juvenil no Brasil. In: BRASIL. Caminhos para uma política de saúde mental infanto-juvenil. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2005. p. 29-34., p. 31).
O ECA estabelece o direito à convivência familiar e comunitária, bem como regulamentar o acolhimento institucional como uma medida protetiva, de natureza provisória e caráter excepcional. Assim, quando determinada, a medida deve garantir a participação comunitária e preservação dos vínculos familiares, além de promover o retorno familiar ou integração em família substituta. Na atualidade, os serviços de acolhimento para crianças e adolescentes estão vinculados ao Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e são classificados como Serviços de Alta Complexidade dentro da Política Nacional de Assistência Social. Dessa forma, independentemente de sua natureza - pública ou privada - os serviços de acolhimento devem ter sua atuação alinhada aos direitos estabelecidos pelo ECA, às diretrizes da Política Nacional de Assistência Social e do Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes a Convivência Familiar e Comunitária (Brasil, 2006BRASIL. Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; Conselho Nacional de Assistência Social. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária. Brasília, DF, 2006.) e, também, às recomendações das Orientações Técnicas sobre os Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes (MDS, 2009bMDS - MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME. Orientações Técnicas: serviços de acolhimento de crianças e adolescentes. 2a ed. Brasília, DF, 2009.) e do documento de Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais (MDS, 2014MDS - MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME. Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais. Brasília, DF, 2014.).
Os serviços de acolhimento devem, então, ter uma ocupação máxima de 20 crianças ou adolescentes e atender a uma demanda heterogênea, não podendo, portanto, prestar atendimento exclusivo a partir de características específicas das crianças e adolescentes, como condições de saúde (caso da deficiência, por exemplo). Assim, conforme indica o documento de Orientações Técnicas 3, “devem ser evitadas especializações e atendimentos exclusivos - tais como adotar faixas etárias muito estreitas, direcionar o atendimento apenas a determinado sexo, atender exclusivamente ou não atender crianças e adolescentes com deficiência ou que vivam com HIV/AIDS” (Brasil, 2009BRASIL. Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Brasília, DF: Presidência da República, 2009., p. 68). Quando necessária, a atenção especializada “deverá ser assegurada por meio da articulação com a rede de serviços”, com a finalidade de garantir à criança e ao adolescente com deficiência ou necessidades específicas de saúde “o acesso a tratamentos, medicamentos, serviços especializados e equipamentos de saúde, bem como o apoio necessário à família” (p. 46).
No campo da deficiência, a ratificação da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Brasil, 2007BRASIL. Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Brasília, DF: Presidência da República, 2009.), o Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Brasil, 2011aBRASIL. Decreto nº 7.612, de 17 de novembro de 2011. Institui o Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência - Plano Viver sem Limite. Brasília, DF: Presidência da República, 2011a.) e o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Brasil, 2015BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Brasília, DF: Presidência da República, 2015.) são marcos legislativos fundamentais para o reconhecimento e garantia de direitos e substituição de práticas asilares por políticas de inclusão social. A moradia digna, por exemplo, é estabelecida como um direito da pessoa com deficiência, podendo realizar-se “no seio da família (...) ou em moradia para a vida independente” (Brasil, 2015BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Brasília, DF: Presidência da República, 2015.).
Com a finalidade de romper a lógica do isolamento e segregação de pessoas com deficiência em instituições asilares, a Política Nacional de Assistência Social instituiu a Residência Inclusiva como serviço de acolhimento institucional destinado à moradia de: “jovens e adultos com deficiência que não dispõem de condições de autossustentabilidade, de retaguarda familiar temporária ou permanente ou que estejam em processo de desligamento de instituições de longa permanência” (Brasil, 2014, p. 454). A Residência Inclusiva é, portanto, um serviço substitutivo das instituições asilares e tem como finalidade “favorecer a construção progressiva da autonomia, da inclusão social e comunitária e do desenvolvimento de capacidades adaptativas para a vida diária (p.45).
No campo da saúde mental, a substituição do modelo asilar pelo modelo psicossocial de atenção é determinada pela Lei n. 10.216/2001, que reorienta o tratamento em saúde mental por serviços substitutivos do hospital psiquiátrico. A Política Nacional de Saúde Mental estabelece a rede de atenção psicossocial (RAPS) (Brasil, 2011bBRASIL. Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2011b.) e preconiza que o cuidado ocorra por meio de ações intersetoriais entre serviços de base territorial e comunitária. Além disso, institui o Serviço Residencial Terapêutico (Brasil, 2000BRASIL. Portaria nº 106, de 11 de fevereiro de 2000. Institui os Serviços Residenciais Terapêuticos em Saúde Mental no âmbito do Sistema Único de Saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2000.) como alternativa de moradia para moradores de hospitais psiquiátricos, tendo como objetivo fornecer apoio aos usuários da saúde mental sem suporte familiar e social suficientes para garantir espaço adequado de moradia.
O século XXI é marcado, portanto, por inúmeros avanços no campo da infância e das políticas públicas em direção ao reconhecimento e garantia dos direitos humanos. A desinstitucionalização, estabelecida como diretriz das políticas nacionais de assistência social e saúde, “tem como ponto de partida a afirmação da cidadania e dignidade dos sujeitos”. (Braga, 2019BRAGA, C. P. A perspectiva da desinstitucionalização: chaves de leitura para compreensão de uma política nacional de saúde mental alinhada à reforma psiquiátrica. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 28, n. 4, p. 198-213, 2019. DOI: 10.1590/S0104-12902019190125.
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201919... , p. 211). Nas últimas duas décadas, portanto, pode-se observar a implantação de núcleos e serviços substitutivos nas redes vinculadas ao SUS e SUAS para atenção nos campos da saúde mental e deficiência. Especificamente, em relação aos serviços de moradia, os dados atuais apontam para a existência de 243 Residências Inclusivas (Brasil, 2022bBRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social. Censo SUAS - Bases e Resultados. Unidade de acolhimento 2021. Brasília, DF, 2022b. Disponível em: <Disponível em: https://aplicacoes.mds.gov.br/snas/vigilancia/index2.php >. Acesso em: 5 jan. 2023.
https://aplicacoes.mds.gov.br/snas/vigil... ) e 813 Residências Terapêuticas (Brasil, 2022aBRASIL. Ministério da Saúde. Dados da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) no Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília, DF, 2022a. Disponível em: <Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/caps/raps/arquivos/dados-da-rede-de-atencao-psicossocial-raps.pdf/ >. Acesso em: 4 jan. 2023.
https://www.gov.br/saude/pt-br/acesso-a-... ) no território nacional.
O processo de desinstitucionalização e substituição do modelo assistencial, entretanto, ocorre de forma gradual. As instituições asilares vão sendo fechadas concomitantemente à implantação da rede substitutiva nos territórios. Neste contexto, a realização de pesquisas de avaliação sobre os serviços e práticas de cuidado realizados no campo da infância são fundamentais para o monitoramento e aprimoramento das políticas públicas. Isto significa que “os processos avaliativos adquirem função política de servir como instrumento de potencialização das práticas substitutivas ao modelo hospitalocêntrico” (Costa; Colugnati; Bonzati, 2015COSTA, P. H. A.; COLUGNATI, F. A. B.; RONZANI, T. M. Avaliação de serviços em saúde mental no Brasil: revisão sistemática da literatura. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 20, n. 10, p. 3243-3253, 2015. DOI: 10.1590/1413-812320152010.14612014
https://doi.org/10.1590/1413-81232015201... , p. 3244), pois permitem “reverter ou minimizar entraves, bem como potencializar a assistência prestada.
No Brasil, verifica-se que a institucionalização de adultos e crianças com deficiência é um fenômeno histórico, porém ainda presente na atualidade (Almeida, 2012ALMEIDA, N. M. C. de. Labirintos e mosaicos: institucionalização da infância com deficiência. 2012. 225 f. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Departamento de Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.; Cubas, 2016CUBAS, J. M. Acesso aos serviços de saúde mental por crianças e adolescentes com deficiência intelectual e/ou transtorno mental em situação de acolhimento. 2016. 211 f. Dissertação (Mestrado em Tecnologia em Saúde) - Escola Politécnica, Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2016.; HRW, 2018HRW - HUMAN RIGHTS WATCH. “Eles ficam até morrer”: uma vida de isolamento e negligência em instituições para pessoas com deficiência no Brasil. Nova Iorque; 2018. Disponível em: <https://www.hrw.org/sites/default/files/report_pdf/brazil0518port.pdf>. Acesso em: 31 nov. 2022.
https://www.hrw.org/sites/default/files/... ; Paula, 2008PAULA, A. R.. Asilamento de pessoas com deficiência: a institucionalização da incapacidade social. São Paulo: Memnon, 2008.; Ricardo, 2011RICARDO, J. de S. O acolhimento institucional de crianças e adolescentes com deficiência em face ao direito à convivência familiar e comunitária: uma análise do contexto do município do Rio de Janeiro. 2011. 112 f. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Centro de Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.; São Paulo, 2017SÃO PAULO. Inquérito Civil 033/17. São Paulo: Promotoria de Justiça da Infância e Juventude da Capital, 2017.). Os dados nacionais de serviços vinculados ao SUAS registram 125 serviços de acolhimento para pessoas com deficiência não tipificados como Residências Inclusivas (Brasil, 2022bBRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social. Censo SUAS - Bases e Resultados. Unidade de acolhimento 2021. Brasília, DF, 2022b. Disponível em: <Disponível em: https://aplicacoes.mds.gov.br/snas/vigilancia/index2.php >. Acesso em: 5 jan. 2023.
https://aplicacoes.mds.gov.br/snas/vigil... ). De acordo com Leite (2011LEITE, A. D. da S. Entre o discurso e a prática: um estudo sobre a garantia do direito à convivência familiar de crianças e adolescentes com deficiência mental e/ou transtorno mental. 2011. 125 f. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Faculdade de Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011., p. 71), “a demanda por abrigar ainda persiste, especialmente quando nos referimos à especificidade de crianças e adolescentes que apresentam deficiência e/ou transtorno mental e que, por isto, possuem necessidades diferenciadas e requerem cuidados e tratamentos especializados”.
Este estudo, então, tem como objetivo conhecer a atuação das instituições de acolhimento para pessoas com deficiência e analisar a prática do acolhimento da população infantojuvenil nestes serviços no estado de São Paulo. O pressuposto da “necessidade de construção de esforços concretos na área da saúde para melhorar a prática dos direitos e o respeito pelas populações socialmente marginalizadas, discriminadas e estigmatizadas” (Malvasi; Dantas; Manzalli, 2022MALVASI, P. A.; DANTAS, H. S.; MANZALLI, S. F. Direitos humanos e saúde: reflexões sobre vida e política no contexto da população carcerária. Saúde e Sociedade , São Paulo, v. 31, n. 2, 2022. DOI: 10.1590/S0104-12902022210720pt.
https://doi.org/10.1590/S0104-1290202221... , p. 3) ancora a pesquisa que, em última análise, pretende revelar os fatores que contribuem para a manutenção da institucionalização, a fim de subsidiar políticas e ações intersetoriais de desinstitucionalização e inclusão social.
Metodologia
A pesquisa adota abordagem mista, caráter descritivo e corte transversal. Os procedimentos metodológicos foram desenvolvidos a fim de mapear e caracterizar as instituições, além de apreender informações sobre o acolhimento de crianças e adolescentes. Cabe salientar que o estudo abarca apenas os serviços de acolhimento não tipificados como Residências Inclusivas ou Residências Terapêuticas.
As instituições pesquisadas, portanto, são de natureza não-estatal e integram o campo das entidades sociais, fundações privadas e associações sem fins lucrativos no Brasil. Em razão disso, as informações sobre estes serviços estão registradas de forma muito fragmentada entre diferentes áreas de atuação, formas de financiamento e de vinculação ao Estado. A diversidade de contratos, certificações e concessões, somada à falta de integração de informações entre os diferentes órgãos públicos, resultam na inexistência de um cadastro único capaz de congregar dados sobre essas instituições e a população por elas atendida. De acordo com Paula (2008PAULA, A. R.. Asilamento de pessoas com deficiência: a institucionalização da incapacidade social. São Paulo: Memnon, 2008., p. 23), “não sabemos sequer o número exato de instituições existentes e, muito menos, informações segundo seus tipos, ou a caracterização quantitativa e qualitativa da clientela atendida, bem como as formas de convênio, subvenções e auxílios existentes.”. Este cenário é corroborado pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, que também comenta sobre “a impossibilidade em precisar onde tais serviços estão situados nas políticas públicas de atendimento vigentes, em decorrência deles não se enquadrarem efetivamente conforme a tipificação dos equipamentos da rede socioassistencial ou da saúde” (São Paulo, 2017SÃO PAULO. Inquérito Civil 033/17. São Paulo: Promotoria de Justiça da Infância e Juventude da Capital, 2017., p. 5). À vista disso, o dimensionamento da totalidade destas instituições depende do empenho intersetorial de atores públicos e privados. A pesquisa investiga, portanto, uma amostra das instituições, determinada por conveniência.
A primeira etapa de coleta de dados consistiu no mapeamento das instituições de acolhimento para pessoas com deficiência localizadas no estado de São Paulo. Para tanto, tendo em vista a dispersão das informações sobre as instituições pesquisadas, o estudo utilizou-se de diferentes cadastros de serviços públicos e conveniados, vinculados à gestão federal, estadual e municipal nas áreas da infância, assistência social e saúde. Desta forma, a base de dados utilizada para o mapeamento das instituições constituiu-se dos seguintes documentos públicos como fonte primária de consulta:
Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES);
Censo SUAS;
Cadastro do Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social na Área de Saúde e da Assistência Social (CEBAS);
Cadastro de entidades sociais conveniadas às Secretarias estaduais e municipais11Município de São Paulo do desenvolvimento social, da saúde e da pessoa com deficiência22Quando disponíveis para acesso público nos sites das Secretarias;
Cadastro de entidades sociais registradas nos Conselhos estaduais e municipais10 do desenvolvimento social, saúde, Direitos da Criança e do Adolescente e da Pessoa com Deficiência33Quando disponíveis para acesso público nos sites dos Conselhos
Inquérito Civil 033/17 (São Paulo, 2017SÃO PAULO. Inquérito Civil 033/17. São Paulo: Promotoria de Justiça da Infância e Juventude da Capital, 2017.)
A maioria dos cadastros utilizados, entretanto, exibe apenas dados gerais de identificação das instituições, não sendo possível reconhecer, em alguns casos, o público-alvo ou tipo de atendimento realizado. Desta forma, o estudo realizou uma segunda etapa de coleta de informações de mapeamento e caracterização. Nessa fase, os dados foram coletados em sites ou visitas institucionais e registrados em formulário com as seguintes categorias: município, público-alvo e finalidade; financiamento e convênio com o setor público; número de acolhidos; número de acolhidos com idade menor de 18 anos; e número de acolhidos com idade maior de 18 anos.
A terceira etapa de coleta de dados ocorreu por meio da leitura de prontuários em uma instituição específica e teve como objetivo apreender informações sobre o perfil psicossocial das crianças e adolescentes, além de seus percursos institucionais até o acolhimento. Para tanto, o formulário de coleta de informações teve como base o instrumento utilizado no Censo de Moradores de hospitais psiquiátricos do estado de São Paulo (Cayres et al., 2015CAYRES, A. Z. de F. et al. (Org.). Caminhos para a desinstitucionalização no Estado de São Paulo: censo psicossocial 2014. São Paulo: FUNDAP, 2015.) e registrou características sociodemográficas (local e data de nascimento, município de moradia, escolaridade, renda familiar, escolaridade dos responsáveis), características clínicas (diagnóstico, síndromes e doenças associadas, data e motivo do acolhimento, medicações em uso) e, também, informações sobre atendimentos realizados em serviços da rede de atenção e cuidado para crianças e adolescentes (serviço encaminhador, atendimentos recebidos, processos judiciais).
As informações coletadas nos formulários de coleta de dados foram sistematizadas e codificadas, formando a base de dados da pesquisa. Em posse do material, houve análise por meio de estudos estatísticos, tanto da geração de estatísticas descritivas das diferentes variáveis, como do uso de técnicas de regressão linear, correlação e análise de fatores para identificar padrões e relações entre as diversas variáveis e categorias.
A pesquisa obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisas da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e da Plataforma Brasil - CAAE: 02769018.1.0000.5421. A coleta das informações foi realizada estritamente por meio de prontuários, não havendo, portanto, contato com a população pesquisada. Além disso, os resultados do estudo foram apresentados de maneira a preservar os dados de identificação das instituições pesquisadas e dos sujeitos em acolhimento, garantindo, assim, o sigilo, a privacidade e a confidencialidade das informações.
Resultados e discussão
A pesquisa identificou 28 instituições de acolhimento para pessoas com deficiência no estado de São Paulo, localizadas em oito municípios, e revela um total de 1851 pessoas em situação de acolhimento institucional nos serviços pesquisados. Esse resultado é relevante, pois, apesar de o estudo ter abarcado apenas uma amostra das instituições, demonstra a existência de um importante contingente de pessoas institucionalizadas nesses serviços no estado de São Paulo. Além disso, o estudo revela que, dentre a população total acolhida, ao menos 193 eram crianças ou adolescentes e 606 tinham sido acolhidos durante o período da infância ou adolescência, corroborando assim resultados de pesquisas anteriores, que indicam a ocorrência do acolhimento e institucionalização destes indivíduos, apesar dos avanços legislativos em relação ao cuidado e atenção em saúde mental e deficiência (Almeida, 2012ALMEIDA, N. M. C. de. Labirintos e mosaicos: institucionalização da infância com deficiência. 2012. 225 f. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Departamento de Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.; Cubas, 2016CUBAS, J. M. Acesso aos serviços de saúde mental por crianças e adolescentes com deficiência intelectual e/ou transtorno mental em situação de acolhimento. 2016. 211 f. Dissertação (Mestrado em Tecnologia em Saúde) - Escola Politécnica, Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2016.; HRW, 2018HRW - HUMAN RIGHTS WATCH. “Eles ficam até morrer”: uma vida de isolamento e negligência em instituições para pessoas com deficiência no Brasil. Nova Iorque; 2018. Disponível em: <https://www.hrw.org/sites/default/files/report_pdf/brazil0518port.pdf>. Acesso em: 31 nov. 2022.
https://www.hrw.org/sites/default/files/... ; Paula, 2008PAULA, A. R.. Asilamento de pessoas com deficiência: a institucionalização da incapacidade social. São Paulo: Memnon, 2008.; Ricardo, 2011RICARDO, J. de S. O acolhimento institucional de crianças e adolescentes com deficiência em face ao direito à convivência familiar e comunitária: uma análise do contexto do município do Rio de Janeiro. 2011. 112 f. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Centro de Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.). Conforme Rizzini e Almeida (2011RIZZINI, I.; ALMEIDA, N.C. A institucionalização de crianças e adolescentes com deficiência: anotações para uma agenda de política pública. Revista Saúde & DH, Rio de Janeiro, ano 7, n. 7, 2011. Disponível em: <Disponível em: https://www.ciespi.org.br/media/files/fcea049a8ec4d511ecbe6e5141d3afd01c/fec73ddc1c4d611ecbe6e5141d3afd01c/2011_A%20institucionalizacao_Rizzini_Almeida.pdf >. Acesso em: 22 nov. 2022.
https://www.ciespi.org.br/media/files/fc... , p. 70), “a naturalização do confinamento (muitas vezes permanente) de crianças e adolescentes com deficiência precisa ser superada. Os dados apontam para a longa permanência institucional, apesar de constituir uma violação dos direitos destas crianças e adolescentes”.
O estudo demonstra, ainda, que ao menos 16 instituições atendiam ao público adulto e infantojuvenil simultaneamente. A institucionalização de adultos, adolescentes e crianças no mesmo espaço institucional remonta ao cenário manicomial e representa uma violação de direitos, já que o acolhimento de crianças e adolescentes deve ocorrer em serviços específicos para esta população.
Além destes resultados, a pesquisa revela três principais características de funcionamento comuns aos serviços pesquisados. A primeira delas é a ausência de tipificação única e regulamentação específica destinadas às instituições de acolhimento para pessoas com deficiência, isto é, o estudo constata que as instituições diferem entre si, em relação aos seus objetivos, previsões legais, formas de financiamento e de convênio público.
No tocante à classificação dos serviços, o estudo observa que as instituições pesquisadas são tipificadas de diferentes formas, tais como:
Hospital especializado44Hospital destinado à prestação de assistência à saúde em uma única especialidade/área.;
Hospital Geral55Hospital destinado à prestação de atendimento nas especialidades básicas, por especialistas e/ou outras especialidades médicas.;
Serviço de acolhimento institucional;
Serviço de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes (SAICA);
Unidade de Apoio à Diagnose e Terapia66Unidades isoladas onde são realizadas atividades que auxiliam a determinação de diagnóstico e/ou complementam o tratamento e a reabilitação do paciente.
Além disso, é possível observar discrepância em relação à natureza jurídica das instituições que variaram entre:
Associação privada;
Organização religiosa;
Empresa Individual de Responsabilidade Limitada;
Fundação Privada e Sociedade Empresária Limitada
Ademais, a pesquisa revela disparidade no que se refere aos bens e recursos disponíveis. As instituições executam, muitas vezes simultaneamente, diferentes formas de financiamento, como: convênio com o setor público; recebimento de doações de verba, insumos ou produtos; utilização de trabalho voluntário; destinação de verba por emenda parlamentar; uso de Benefício de Prestação Continuada dos acolhidos e investimentos do setor privado. Este cenário foi também descrito em estudo anterior, indicando que “o financiamento de instituições provém de várias fontes, incluindo de estados e municípios, grupos religiosos, fundações privadas e indivíduos, inclusive de países estrangeiros” (HRW, 2018HRW - HUMAN RIGHTS WATCH. “Eles ficam até morrer”: uma vida de isolamento e negligência em instituições para pessoas com deficiência no Brasil. Nova Iorque; 2018. Disponível em: <https://www.hrw.org/sites/default/files/report_pdf/brazil0518port.pdf>. Acesso em: 31 nov. 2022.
https://www.hrw.org/sites/default/files/... , p. 16). Cabe destacar que o aparelho judiciário, por meio da determinação de acolhimento em instituições desta natureza, contribui para a pluralidade nas formas de financiamento com o Estado.
Vale acrescentar ainda que a pesquisa retrata desigualdade na capacidade de atendimento, que variou entre 6 e 560 pessoas acolhidas, e assimetria em relação ao quadro de recursos humanos. Desta forma, é possível constatar que não há padronização sobre práticas de cuidado ofertadas durante o acolhimento; cada instituição as desenvolve de acordo com sua tipificação e forma de financiamento. De acordo com Paula (2008PAULA, A. R.. Asilamento de pessoas com deficiência: a institucionalização da incapacidade social. São Paulo: Memnon, 2008., p. 25), “a predominância do caráter religioso-caritativo ou de unidade de saúde e o fato de se tratar ou de se considerar uma entidade pública, filantrópica ou privada é o que determina as reais diferenças”. A heterogeneidade nas formas de estruturação das instituições, portanto, prejudica o estabelecimento de diretrizes de cuidado e, consequentemente, dificulta os processos de desinstitucionalização e inclusão social dos sujeitos acolhidos.
A segunda característica comum às instituições é o funcionamento asilar, verificado no estudo pela falta de participação social e comunitária dos acolhidos e pelo caráter perene das internações. Os levantamentos produzidos nas últimas duas décadas descrevem resultado semelhante e assinalam a ausência de práticas de desinstitucionalização, sendo raros os casos de desinternação e retorno familiar (Almeida, 2012ALMEIDA, N. M. C. de. Labirintos e mosaicos: institucionalização da infância com deficiência. 2012. 225 f. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Departamento de Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.; HRW, 2018HRW - HUMAN RIGHTS WATCH. “Eles ficam até morrer”: uma vida de isolamento e negligência em instituições para pessoas com deficiência no Brasil. Nova Iorque; 2018. Disponível em: <https://www.hrw.org/sites/default/files/report_pdf/brazil0518port.pdf>. Acesso em: 31 nov. 2022.
https://www.hrw.org/sites/default/files/... ; Paula, 2008PAULA, A. R.. Asilamento de pessoas com deficiência: a institucionalização da incapacidade social. São Paulo: Memnon, 2008.; Ricardo, 2011RICARDO, J. de S. O acolhimento institucional de crianças e adolescentes com deficiência em face ao direito à convivência familiar e comunitária: uma análise do contexto do município do Rio de Janeiro. 2011. 112 f. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Centro de Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.; São Paulo, 2017SÃO PAULO. Inquérito Civil 033/17. São Paulo: Promotoria de Justiça da Infância e Juventude da Capital, 2017.). Uma pesquisa realizada em São Paulo, por exemplo, descreve o óbito como principal motivo de desligamento (São Paulo, 2017SÃO PAULO. Inquérito Civil 033/17. São Paulo: Promotoria de Justiça da Infância e Juventude da Capital, 2017.).
A fragilização dos vínculos familiares e a restrição ao espaço institucional, após o acolhimento, também foram verificadas na pesquisa. A partir da análise dos dados coletados nos prontuários sobre a ocorrência de visitas e saídas durante 1 ano (2018), foi possível constatar a proporção de cinco vezes mais visitas do que saídas. Além disso, as saídas apresentam maior intervalo de frequência, pois o número de meses sem visitas, em média, é de 6.7, contra 10.8 meses sem saídas. O total de visitas em três anos consecutivos - 2016, 2017 e 2018 - aponta uma ocorrência relevante: redução de 22% no número de visitas, passando de 12.6 visitas por acolhido em 2016, para 9.8 em 2018. Pode-se observar, portanto, que a internação na instituição pesquisada teve como consequência a restrição do contato familiar ao ambiente institucional e a diminuição de visitas dos familiares por tempo de internação.
Além disso, os resultados desta pesquisa, tal como os estudos de Paula (2008PAULA, A. R.. Asilamento de pessoas com deficiência: a institucionalização da incapacidade social. São Paulo: Memnon, 2008.), Ricardo (2011RICARDO, J. de S. O acolhimento institucional de crianças e adolescentes com deficiência em face ao direito à convivência familiar e comunitária: uma análise do contexto do município do Rio de Janeiro. 2011. 112 f. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Centro de Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.), Almeida (2012ALMEIDA, N. M. C. de. Labirintos e mosaicos: institucionalização da infância com deficiência. 2012. 225 f. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Departamento de Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.), São Paulo (2017SÃO PAULO. Inquérito Civil 033/17. São Paulo: Promotoria de Justiça da Infância e Juventude da Capital, 2017.) e HRW (2018HRW - HUMAN RIGHTS WATCH. “Eles ficam até morrer”: uma vida de isolamento e negligência em instituições para pessoas com deficiência no Brasil. Nova Iorque; 2018. Disponível em: <https://www.hrw.org/sites/default/files/report_pdf/brazil0518port.pdf>. Acesso em: 31 nov. 2022.
https://www.hrw.org/sites/default/files/... ), indicam que as instituições mantêm pouca interlocução com a rede intersetorial. Os registros analisados demonstram que as pessoas acolhidas na instituição não frequentam equipamentos nas áreas da educação, assistência social, lazer ou cultura e que, além disso, as práticas de cuidado na área da saúde e reabilitação (terapia ocupacional, fisioterapia, psiquiatria, psicologia, nutrição, odontologia etc.) são, majoritariamente, realizadas no interior da instituição.
Dito isso, é possível afirmar que o acolhimento nestas instituições, de forma semelhante ao hospital psiquiátrico, proporciona restrição ao espaço institucional, fragilização dos vínculos familiares e comunitários e impedimento do exercício da cidadania. Em razão disso, Almeida (2012ALMEIDA, N. M. C. de. Labirintos e mosaicos: institucionalização da infância com deficiência. 2012. 225 f. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Departamento de Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012., p. 85) classifica a rede asilar para deficiência como “a fusão dos dispositivos do abrigo e do hospital psiquiátrico, verificando-se uma interligação entre as práticas de asilamento oriundas do campo da Assistência Social e da Saúde”.
Por fim, a terceira característica institucional descrita na pesquisa é a definição de público-alvo por diagnóstico. De modo igual aos hospitais psiquiátricos, as instituições estruturam-se em torno do “desvio” dos acolhidos. Em outras palavras, estabelecem critérios diagnósticos para admissão na instituição e, sendo assim, reduzem “o sujeito e sua complexidade em apenas um objeto: uma afirmada doença” (Braga, 2019BRAGA, C. P. A perspectiva da desinstitucionalização: chaves de leitura para compreensão de uma política nacional de saúde mental alinhada à reforma psiquiátrica. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 28, n. 4, p. 198-213, 2019. DOI: 10.1590/S0104-12902019190125.
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201919... , p. 202).
O estudo reconheceu as seguintes definições distintas de público-alvo na amostra pesquisada:
Pessoas com deficiência física e mental;
Portadores do Transtorno do Espectro Autista (TEA);
Pessoas com deficiência física e mental e portadores do TEA;
Pessoas com Paralisia Cerebral (PC);
Pessoas com PC e TEA;
Pessoas com deficiência mental;
Pessoas com necessidades especiais.
É importante sublinhar, entretanto, que o funcionamento asilar das instituições pesquisadas não foi impactado pelo diagnóstico do público-alvo que, em alguns casos, é estabelecido de maneira bastante vaga. Ao contrário de prestar atendimento especializado, as instituições mantêm viva a prática da institucionalização da criança “anormal” e sustentam o modelo asilar de assistência. Assim, a população institucionalizada apresenta demandas híbridas de saúde mental e deficiência e deve, portanto, ser alvo de políticas públicas em ambos os campos.
A separação entre o campo da saúde mental e da deficiência foi fundamental para a “identificação de especialidades na atenção de cada uma dessas populações e na conformação do conhecimento e implantação de serviços de apoio” (Surjus; Campos, 2014SURJUS, L.T.L.S.; CAMPOS, R. T. O. Interface between Intellectual Disability and Mental Health: hermeneutic review. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 48, n. 3, p. 532-540, 2014. DOI: 10.1590/S0034-8910.2014048004711.
https://doi.org/10.1590/S0034-8910.20140... , p. 536) e, da mesma forma, o reconhecimento de zonas de intersecção entre estes campos demonstra ser essencial para o desenvolvimento de políticas públicas que atendam às reais necessidades da população. A deficiência mental e o TEA são pontos de intersecção entre estes dois campos e representam os principais públicos-alvo das instituições pesquisadas. Consequentemente, a promoção de ações de desinstitucionalização nas instituições pesquisadas é tarefa urgente tanto para o campo da deficiência, em especial da deficiência mental, quanto para o campo da saúde mental.
No que concerne à prática do acolhimento de crianças e adolescentes nas instituições pesquisadas, a análise das informações sobre o perfil dessa população evidenciou trajetórias institucionais distintas, percorridas por crianças e adolescentes, junto de suas famílias, até o acolhimento na instituição pesquisada. O reconhecimento das características de cada um destes percursos institucionais é um resultado importante do estudo, pois evidencia o contexto e o modo de operar dos serviços que produziram a necessidade do acolhimento.
A Trajetória 1 é marcada pela determinação judicial como motivo do acolhimento e representa 30% dos casos de crianças e adolescentes acolhidos. Este resultado coincide com pesquisas em hospitais psiquiátricos que também descrevem internações de crianças e adolescentes via ordem judicial. Como motivo, encontramos situações complexas, como a vulnerabilidade social, negligência, falta de acesso ao tratamento, precariedade de suporte familiar e abandono. Dessa maneira, de forma similar às internações psiquiátricas, o acolhimento via ordem judicial surge como uma medida para garantir o cuidado ou acesso ao tratamento em situações complexas que, em realidade, envolvem demandas em diversas áreas, para além da saúde mental e deficiência. Esta constatação indica, portanto, que os pressupostos da proteção e direito à saúde desta população podem servir como pretexto para uma prática de controle social arbitrário. Isto significa, conforme Resende (2008RESENDE, C. C. F. Aspectos legais da internação psiquiátrica de crianças e adolescentes portadores de transtornos mentais. Revista Igualdade, Curitiba, ano XIV, n. XLI, 2008. Disponível em: <Disponível em: http://www.crianca.mppr.mp.br/pagina-452.html >. Acesso em: 28 dez. 2022.
http://www.crianca.mppr.mp.br/pagina-452... , p. 106), que o poder judiciário “ao responder a essa provocação social, age, muitas vezes, em sentido diametralmente oposto à inclusão e ao resgate do projeto de vida, (...) imbuído de um gigantesco engano, no sentido de buscar as formas julgadas mais ‘eficazes’ e ‘instantâneas’ de ‘recuperação’”.
Cabe destacar que a institucionalização, entretanto, não decorre da ação isolada de um campo ou serviço, mas da relação estabelecida entre o sistema de saúde, justiça, educação, assistência social etc. Assim, a superação da institucionalização de crianças e adolescentes em instituições asilares depende, necessariamente, da ampliação do debate e articulação de ações entre as redes assistenciais e o sistema de justiça.
O estudo retrata uma segunda trajetória comum às crianças e adolescentes, caracterizada por múltiplas internações e acolhimentos institucionais. Descreve, também, que 16% dos casos foram encaminhados por hospitais psiquiátricos, 14% por SAICAs e 12% por outras instituições de acolhimento para pessoas com deficiência. A análise sobre o tempo de internação na instituição encaminhadora demonstrou que as internações têm, em média, 31 meses em instituições de acolhimento para pessoas com deficiência e 7 meses em hospitais psiquiátricos. Assim sendo, além de múltiplas internações, as crianças e adolescentes já apresentavam longo período de vivência institucional, anterior ao acolhimento.
O dado de que 14% dos casos haviam sido encaminhados por SAICAs é uma importante constatação do estudo, também descrita em outras pesquisas (Almeida, 2012ALMEIDA, N. M. C. de. Labirintos e mosaicos: institucionalização da infância com deficiência. 2012. 225 f. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Departamento de Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.; Ricardo, 2011RICARDO, J. de S. O acolhimento institucional de crianças e adolescentes com deficiência em face ao direito à convivência familiar e comunitária: uma análise do contexto do município do Rio de Janeiro. 2011. 112 f. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Centro de Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.), pois demonstra que, muitas vezes, a medida protetiva de acolhimento resulta no encaminhamento para instituição asilar e exclusão social perene.
A Trajetória 2 revela, portanto, que uma parcela significativa das crianças e adolescentes foi submetida a reinternações e transferências entre diversas instituições. Este fenômeno, conhecido como transinstitucionalização, pode ser observado nos casos em que “a ‘estática’ da segregação em uma instituição separada e total foi substituída pela ‘dinâmica’ da circulação entre serviços especializados” (Rotelli; de Leonardis; Mauri, 2001ROTELLI, F.; de LEONARDIS, O.; MAURI, D. Desinstitucionalização, uma outra via. In: NICÁCIO, F. (Org.). Desinstitucionalização. 2 ed. São Paulo: Hucitec, 2001., p. 23). Assim, em analogia com a alegoria da Nau dos Insensatos, pode-se dizer que uma parcela de crianças e adolescentes navega entre diversas instituições asilares e o destino desta viagem será sua cronificação e institucionalização. Em outras palavras, o fluxo de encaminhamento e reencaminhamentos entre as instituições, ao contrário de produzir ações e respostas condizentes às necessidades desta população, estabelece um “mecanismo que alimenta os problemas e os torna crônicos“ (Rotelli; de Leonardis; Mauri , 2001ROTELLI, F.; de LEONARDIS, O.; MAURI, D. Desinstitucionalização, uma outra via. In: NICÁCIO, F. (Org.). Desinstitucionalização. 2 ed. São Paulo: Hucitec, 2001., p. 23).
A Trajetória 3 compreende os casos encaminhados por órgãos ou serviços públicos (24%) e por familiares (14%). Os principais motivos para acolhimento nestes casos foi a falta de serviços territoriais, dificuldade de acesso ao tratamento, ausência de atenção domiciliar e dificuldade de inclusão escolar. Essa trajetória retrata situações nas quais a falta ou a precariedade de serviços territoriais e de ações intersetoriais contribuíram para o acolhimento na instituição e expõem lacunas na implantação e implementação da rede substitutiva. Desta forma, o Estado, mesmo sendo autor das políticas públicas, perpetua a prática asilar pela falta de investimento na rede substitutiva e morosidade em seu processo de implementação.
Isto posto, o estudo aponta para consolidação de uma rede intersetorial no campo da infância e adolescência como tarefa primeira para eliminar práticas de exclusão social. A articulação entre serviços de diferentes campos e níveis de complexidade é fundamental para que possamos produzir respostas efetivas para as necessidades das crianças e adolescentes.
Considerações finais
A principal contribuição do estudo é evidenciar a continuidade da institucionalização de crianças e adolescentes em instituições de acolhimento para pessoas com deficiência. Além disso, a pesquisa revela que o acolhimento de crianças e adolescentes nestes serviços decorre de situações complexas, determinadas por fatores relacionados às características dos sujeitos, do contexto familiar e da rede pública de serviços em diversas áreas. O estudo retrata, ainda, a escassez de informações sobre a população infantojuvenil nestas instituições e considera crucial e urgente que esta temática seja tomada como objeto de investigação, pois o dimensionamento da situação atual é fundamental para subsidiar ações de desinstitucionalização e “readequação dos serviços públicos ou dos prestados pelas entidades privadas (organizações sociais), a fim de que se alinhem aos parâmetros normativos para o seu devido funcionamento” (Brasil, 2021BRASIL. O Ministério Público na fiscalização das instituições que prestam serviços de acolhimento de pessoas com deficiência. Brasília, DF: Conselho Nacional do Ministério Público, 2021., p. 43). Assim, a descontinuidade do modelo asilar depende da implantação de serviços substitutivos, do fortalecimento de práticas de atenção às famílias, do desenvolvimento de ações intersetoriais e da realização de pesquisas de avaliação e qualificação do funcionamento da rede de proteção e assistência no campo da infância e adolescência.
O processo de desinstitucionalização não requer apenas o fechamento das instituições asilares, mas torna “necessário desmontar todos os mecanismos que irrompem nas situações de objetificação das pessoas, de internação em instituições psiquiátricas, de institucionalização” (Braga, 2019BRAGA, C. P. A perspectiva da desinstitucionalização: chaves de leitura para compreensão de uma política nacional de saúde mental alinhada à reforma psiquiátrica. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 28, n. 4, p. 198-213, 2019. DOI: 10.1590/S0104-12902019190125.
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201919... , p. 207). Nesse contexto, a institucionalização de crianças e adolescentes indica “um complexo de ações formais e informais que faz vigorar a longa permanência como prática social diante da necessidade de resposta pública às pessoas com deficiência” (Almeida, 2012ALMEIDA, N. M. C. de. Labirintos e mosaicos: institucionalização da infância com deficiência. 2012. 225 f. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Departamento de Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012., p. 153). Isto significa que a rede asilar para a deficiência é um problema que “não será resolvido focalizando apenas a questão do atendimento institucional. Ele está ligado a circunstâncias macroeconômicas e políticas que precisam ser paralelamente enfrentadas para que internatos deixem de constituir uma opção atraente para crianças” (Rizzini, 2005RIZZINI, I. Abordagem crítica da institucionalização infanto-juvenil no Brasil. In: BRASIL. Caminhos para uma política de saúde mental infanto-juvenil. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2005. p. 29-34.. p. 36).
O estudo, portanto, salienta ser fundamental que as instituições de acolhimento para pessoas com deficiência sejam retiradas da obscuridade e consideradas responsabilidade do poder público, sendo incluídas nas discussões e ações nos campos da saúde mental e deficiência. Couto (2008COUTO, M. C.V. As crianças invisíveis dos abrigos brasileiros: o que elas têm a dizer ao campo da saúde mental e ao de outras políticas públicas? In: RIZZINI, I. Do confinamento ao acolhimento. Institucionalização de crianças e adolescentes com deficiência: desafios e caminhos. Rio de Janeiro: CIESPI, 2008., p. 10) ressalta ainda que, no campo da infância e adolescência, superar a institucionalização na rede asilar para deficiência “é um imperativo ético e civilizatório, que não comporta adiamento ou simplificação”.
Por último, vale ressaltar que este artigo teve acesso apenas a uma amostra de instituições e é insuficiente para descrever toda a rede asilar da deficiência. A pesquisa, então, reafirma a importância da realização de um levantamento censitário que abarque a totalidade destas instituições, tal qual se realizou no estado de São Paulo com os moradores de hospitais psiquiátricos. Ademais, outra limitação da pesquisa foi o uso exclusivo de prontuários para coleta de dados de perfil de clientela, pois estes registros contêm informações superficiais sobre as características da população atendida. Recomenda-se, portanto, que futuros estudos utilizem, além dos prontuários, outros instrumentos de coleta de informações, como a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) e entrevistas com funcionários e com sujeitos em acolhimento, a fim de diversificar as fontes de informação e incluir a percepção da população institucionalizada e dos trabalhadores sobre as instituições e as demandas necessárias para a desinstitucionalização.
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- 1Município de São Paulo
- 2Quando disponíveis para acesso público nos sites das Secretarias
- 3Quando disponíveis para acesso público nos sites dos Conselhos
- 4Hospital destinado à prestação de assistência à saúde em uma única especialidade/área.
- 5Hospital destinado à prestação de atendimento nas especialidades básicas, por especialistas e/ou outras especialidades médicas.
- 6Unidades isoladas onde são realizadas atividades que auxiliam a determinação de diagnóstico e/ou complementam o tratamento e a reabilitação do paciente.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
07 Ago 2023 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
07 Abr 2023 - Revisado
02 Fev 2023 - Revisado
07 Abr 2023 - Aceito
12 Abr 2023