Resumo
Este artigo propõe conhecer alguns fatores no processo de hormonização de pessoas transmasculinas a partir da ideia de agenciamentos e de cuidado. Inicialmente, resgatam-se produções que tratam sobre como as diferenciações do corpo e de gênero, elevadas a categorias de natural e biológico, legitimam e reconhecem a cisgeneridade como norma. Em seguida, analisam-se as portarias do Processo Transexualizador referentes ao processo de hormonização voltado a pessoas transmasculinas no Sistema Único de Saúde (SUS). Finalmente, traz-se a experiência do trabalho etnográfico acompanhando duas pessoas transmasculinas na cidade de São Paulo entre os meses de março de 2019 e novembro de 2020, além de discursos do uso de hormônios/testosterona por homens cisgênero na internet. Observa-se a busca destas pessoas pelo acesso à hormonização por meio do Processo Transexualizador do SUS e os agenciamentos colocados em ato na produção de seus corpos, tendo seu acesso facilitado ou dificultado pelas normatividades de gênero e a cisnormatividade.
Palavras-chave:
Hormonização; Agenciamentos; Processo Transexualizador; Transmasculinidade; Saúde Pública
Introdução
Segundo as diretrizes fundamentadas na Constituição Federal e na Lei nº 8.080/1990, prevê-se para o Sistema Único de Saúde (SUS) universalidade, igualdade, equidade, integralidade, intersetorialidade, direito à informação, autonomia das pessoas, resolutividade e base epidemiológica (Carvalho, G., 2013CARVALHO, G. A saúde pública no Brasil. Estudos Avançados, São Paulo, v. 27, n. 78, p. 7-26, 2013.). No entanto, trabalhos recentes (Paulino; Rasera; Teixeira, 2019PAULINO, D. B.; RASERA, E. F.; TEIXEIRA, F. do B. Discursos sobre o cuidado em saúde de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais (LGBT) entre médicas(os) da Estratégia Saúde da Família. Interface, Botucatu, v. 23, e180279, 2019. DOI: 10.1590/Interface.180279
https://doi.org/10.1590/Interface.180279... ; Pelúcio, 2009PELÚCIO, L. Abjeção e desejo: uma etnografia travesti sobre o modelo preventivo de aids. São Paulo: Annablume, 2009.; Santos, 2020SANTOS, M. C. B. Aos trancos e barrancos: uma análise do processo de implementação e capilarização do processo transexualizador no Brasil. 2020. 483 f. Tese (Doutorado) - Faculdade de Serviço Social, Centro de Ciências Sociais, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020.; Souza, M. et al., 2015SOUZA, M. H. T. de et al. Violência e sofrimento social no itinerário de travestis de Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 31, n. 4, p. 767-776, 2015. DOI: 10.1590/0102-311X00077514
https://doi.org/10.1590/0102-311X0007751... ) já demonstraram que algumas destas diretrizes, na prática, não se estendem às pessoas trans e travestis, dificultando o acesso destas ao sistema público de saúde, o que impacta diretamente os processos de cuidado e o próprio processo de construção de vida e humanidade dessas pessoas.
Este artigo deriva de uma dissertação de mestrado (Santos, 2022SANTOS, M. O. F. Criar um mundo pra si: agenciamentos de cuidado de pessoas trans, travestis e não-bináries para uma vida possível. 2022. 251 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2022.), que teve como objetivo pensar os agenciamentos de cuidado produzidos por pessoas trans, travestis e pessoas não-bináries11Não-binárie é uma das possibilidades de performatividade de gênero onde a pessoa não se sente contemplada total ou parcialmente na binariedade masculino/feminino. A não-binariedade está inserida sob o guarda-chuva da transgeneridade, uma vez que também não se reconhece no gênero que lhe foi atribuído desde seu nascimento. Em alguns trabalhos também pode aparecer como não-binário (Carvalho, M., 2018), porém escolho pela palavra com a letra “e” que é como muitas dessas pessoas se apresentam, pensando na não generificação das palavras. para tornar suas existências possíveis e criar formas de sobreviver, viver e existir diante dos contextos de abjeção impostas pela sociedade. A pesquisa foi realizada na cidade de São Paulo, através de um trabalho etnográfico, acompanhando seis pessoas trans, travestis e não-bináries que tinham entre 21 e 51 anos de idade, entre março de 2019 e novembro de 2020. Nessa trajetória, as possibilidades de produção do corpo se tornaram um dos temas centrais da pesquisa, sendo que algumas emergiram devido à busca de intervenções oferecidas pelo SUS, a partir do chamado Processo Transexualizador, e que chegavam até Michel Santos, autor da dissertação, pelo lugar em que se encontrava como profissional da psicologia em espaços de acolhimento de pessoas LGBTQIAP+.22LGBTQIAP+: sigla para lésbicas, gays, bissexuais, travestis e pessoas trans, queer, pessoas intersexo, assexuais, pansexuais e outras orientações sexuais e identidades de gênero que não estão contempladas nas demais letras.
Diante das dificuldades de acesso aos serviços institucionalizados de saúde e às intervenções oferecidas, essas pessoas produzem agenciamentos para seguir adiante na busca, na construção intensamente performativa e múltipla do corpo (Butler, 2003BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.; Preciado, 2018PRECIADO, P. B. Testo junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. São Paulo: n-1 edições, 2018.; Vergueiro, 2015VERGUEIRO, V. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. 2015. 244 f. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015.). Neste texto, ficaremos limitados aos agenciamentos compartilhados de duas pessoas transmasculinas - Ju e Alex -, acompanhadas durante o trajeto da pesquisa na busca por uma dessas tecnologias, a hormonização, de forma a entender o processo de agenciamento para a produção de corpo de pessoas transmasculinas na cidade de São Paulo (SP), em relação às tecnologias corporais e de gênero no SUS.
Transições teóricas
Como primeiro giro, é importante situar algumas escolhas teóricas que se apresentam como linhas guia deste artigo e do trabalho realizado. A utilização da noção de agenciamento aqui é uma proposta analítica, mantida também na dissertação de mestrado, inspirada principalmente pelo trabalho de Fátima Tavares (2017TAVARES, F. Rediscutindo conceitos na antropologia da saúde: notas sobre os agenciamentos terapêuticos. Mana, Rio de Janeiro, v. 23, n. 1, p. 201-228, 2017. DOI: 10.1590/1678-49442017v23n1p201
https://doi.org/10.1590/1678-49442017v23... ) a partir de seu trabalho etnográfico, que coloca em debate propostas teóricas mais comuns na antropologia da saúde e na saúde pública a respeito de experiência e de itinerário terapêutico. Este deslocamento feito pela autora permitiu, entre tantas outras dobras, problematizar a dimensão temporal e o instante pontual considerados no modelo de pensamento de itinerário (diretamente influenciado pelo pensamento hegemônico biomédico), apreendidos num modelo científico que busca uma lógica explicativa e com o objetivo de levantar significados (Tavares, 2017TAVARES, F. Rediscutindo conceitos na antropologia da saúde: notas sobre os agenciamentos terapêuticos. Mana, Rio de Janeiro, v. 23, n. 1, p. 201-228, 2017. DOI: 10.1590/1678-49442017v23n1p201
https://doi.org/10.1590/1678-49442017v23... ).
Na concepção da pesquisa realizada, o conceito de itinerário terapêutico foi uma das primeiras escolhas para conhecer parte da busca de pessoas trans e travestis pelo Processo Transexualizador, pela hormonização e por outras tecnologias disponibilizadas em serviços institucionalizados de saúde. No entanto, na realização do trabalho de campo etnográfico, em conversas semanais realizadas em diversos espaços e contextos, a ideia dos itinerários pareceu não ser suficiente para abarcar movimentos e transições que estas pessoas apresentavam, de forma que foi necessária uma mudança que possibilitasse reflexões em outras direções.
A proposta de Tavares se aproxima das ideias de agenciamento elaboradas por Deleuze e Guattari (2004DELEUZE, G.; GUATTARI, F. El Anti Edipo: capitalismo y esquizofrenia. Barcelona: Paidós Ibérica, 2004.), segundo quem um agenciamento consistiria em uma associação definida pelo “cofuncionamento” de suas partes heterogêneas. Em outras palavras, trata-se de uma multiplicidade que estabelece relações entre distintas naturezas. Nesta perspectiva, uma realidade abstrata se atualizaria no âmbito material, ao passo que a dimensão concreta se produz na conexão com o abstrato. Estas duas dimensões do agenciamento coexistem e tornam possível a produção de conexões, registros e realidade. Os momentos etnográficos durante o trabalho de campo convergiam, para que esta abordagem ganhasse sentido na forma de interpretar o que pessoas transmasculinas que encontrei apresentavam sobre suas buscas por intervenções físicas e corporais, mas que não se apresentavam em nenhum momento descoladas do desejo de produzir um outro corpo, com tudo que este possibilitaria: outras relações afetivo-sexuais, outras formas de transitar pela cidade, outras formas de se apresentar nos espaços virtuais.
No entanto, ao passo que Tavares (2017TAVARES, F. Rediscutindo conceitos na antropologia da saúde: notas sobre os agenciamentos terapêuticos. Mana, Rio de Janeiro, v. 23, n. 1, p. 201-228, 2017. DOI: 10.1590/1678-49442017v23n1p201
https://doi.org/10.1590/1678-49442017v23... ) utiliza o predicado “terapêutico”, busco o termo “cuidado” para pensar estes processos, uma vez que o primeiro se tornou quase sinônimo de terapia, ou seja, associado a processos de cura e tratamento prestados por cuidados médicos, ganhando outros aspectos quando nos referimos a pessoas em dissidências de gênero e/ou sexualidade, uma vez que foram consideradas até recentemente características patológicas e passíveis de algum tipo de “reversão” (Eddine, 2018EDDINE, E. A. C. A psicologia, a educação e as homossexualidades: o normal e o patológico nas produções discursivas das revistas Boletim de Psicologia, Revista Brasileira de Psicanálise e Cadernos de Pesquisa nas décadas de 1970 e 1980. 2018. 254 f. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.; Silva, 2007SILVA, A. N. do N. Homossexualidade e discriminação: o preconceito sexual internalizado. 2007. 390 f. Tese (Doutorado em Psicologia Clínica) - Departamento de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.). Sendo assim, o conceito de cuidado também seria um facilitador para esse alargamento epistemológico e analítico, inspirado pelas obras de Annemarie Mol (2008MOL, A. The logic of care: health and the problem of patient choice. Abingdon: Routledge, 2008.), Maria Puig de La Bellacasa (2012BELLACASA, M. P. de la. ‘Nothing comes without its world’: thinking with care. The Sociological Review, Hoboken, v. 60, n. 2, p. 197-216, 2012. DOI: 10.1111/j.1467-954X.2012.02070.x
https://doi.org/10.1111/j.1467-954X.2012... ), Nathália Reis (2020REIS, N. D. “O quilombo são as mulheres”: cosmopolíticas dos cuidados em comunidades quilombolas de Santa Catarina. Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, Recife, v. 7, n. 1, 21, 2020.) e José Miguel Olivar (2019OLIVAR, J. M. N. Gênero, cuidado e a reconfiguração da fronteira… fronteiras, fronteiras! Revista de Antropologia da UFScar, São Carlos, v. 11, n. 1, p. 552-576, 2019. DOI: 10.52426/rau.v11i1.300
https://doi.org/10.52426/rau.v11i1.300... ), ao pensar processos de cuidado que não se limitam a espaços institucionalizados de saúde, práticas profissionalizadas e saberes hegemônicos acadêmico-científicos.
A filósofa holandesa Annemarie Mol (2008MOL, A. The logic of care: health and the problem of patient choice. Abingdon: Routledge, 2008.), a partir de sua etnografia em um espaço hospitalar, propõe que o cuidado (care) inspire o pensar em ação no cotidiano. O cuidado se dá no fazer e não existiria enquanto uma forma a priori, acompanhando os modos de existência daquelas(es) que estão envolvidos. Nesta perspectiva, o relacional é ontológico, localizado numa rede sociotécnica interdependente na qual objetos, lugares, seres humanos e não humanos, meio ambiente e hormônios encontram-se em cruzos, produzindo e produzindo-se, permitindo que formas de vida se tornem possíveis. Nestas relações e interações, quem demanda cuidado participa ativamente, produzindo um processo aberto e infinito, que será negociado e renegociado, dependendo dos efeitos produzidos.
Maria Puig de la Bellacasa (2012BELLACASA, M. P. de la. ‘Nothing comes without its world’: thinking with care. The Sociological Review, Hoboken, v. 60, n. 2, p. 197-216, 2012. DOI: 10.1111/j.1467-954X.2012.02070.x
https://doi.org/10.1111/j.1467-954X.2012... ) propõe um olhar do cuidado a partir de uma ética-metodológica que se importa e que cuida, reconhecendo o outro como um mundo, com suas diferenças, potências, contradições e possibilidades. Sendo relacional o cuidado, seria também ontologicamente coletivo, não sendo possível pensá-lo de forma solo, único e individual, permitindo considerar a coexistência de diferentes mundos em que coisas se relacionam sem necessariamente se somarem ou seguirem uma ordem unívoca e linear. As lentes múltiplas aqui apresentadas possibilitariam pensar os protocolos e orientações médicas e institucionais, bem como os conteúdos de pessoas transmasculinas nas redes sociais e no Youtube, como narrativas em disputa, que produzem formas de pensar o corpo, mas que não se sobrepõem, nem se anulam.
A partir destas convergências teóricas, pensando agenciamentos e cuidados relacionados ao corpo e suas possibilidades, esses corpos em relações são atravessados pelas normatividades de gênero que veremos a seguir.
Do biológico ao generificado
Desde o início dos anos 1930, a antropologia identifica o corpo como instrumento e construção social, sendo a forma como cada pessoa vive sua realidade corporal e concebe o corpo que habita contribuinte da noção de pessoa, própria à coletividade da qual faz parte (Sarti, 2010SARTI, C. Corpo e Doença no trânsito de saberes. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 25, n. 74, p. 77-90, 2010. DOI: 10.1590/S0102-69092010000300005
https://doi.org/10.1590/S0102-6909201000... ). Neste artigo, compreende-se assim o corpo, nesta concepção em que este se constitui como realidade humana pelo significado a ele atribuído pela coletividade, distanciando-se da ideia de uma existência corporal prévia, natural ou biológica, que anteceda a intervenção cultural (Sarti, 2010SARTI, C. Corpo e Doença no trânsito de saberes. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 25, n. 74, p. 77-90, 2010. DOI: 10.1590/S0102-69092010000300005
https://doi.org/10.1590/S0102-6909201000... ).
Neste espaço, seria impossível rastrear a enorme e heteróclita produção das ciências sociais e humanas que possibilitam compreender o corpo, não apenas humano, como efeito e agenciamento33A ideia de agenciamento que utilizo aqui como uma possibilidade investigativa para entender as formas concretas de produção de mundo, tanto material quanto imaterial, soma aos clássicos trabalhos sobre itinerários, práticas, trajetórias e experiências terapêuticas a ideia de que práticas e saberes se produzem nas frestas das relações de poder (Maluf, 2013; Tavares, 2017; Santos, 2022). de relações sociais e biossociais (Sarti, 2010SARTI, C. Corpo e Doença no trânsito de saberes. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 25, n. 74, p. 77-90, 2010. DOI: 10.1590/S0102-69092010000300005
https://doi.org/10.1590/S0102-6909201000... ). Portanto, nesse universo de produção, para a pesquisa que guia este artigo, toma-se como referência o trabalho de autoras e autores como Teresa de Lauretis (1987LAURETIS, T. de. Technologies of gender: essays on theory, film, and fiction. Bloomington: Indiana University Press, 1987.), Viviane Vergueiro (2015VERGUEIRO, V. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. 2015. 244 f. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015.) e Paul Preciado (2018PRECIADO, P. B. Testo junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. São Paulo: n-1 edições, 2018.).
Viviane Vergueiro (2015VERGUEIRO, V. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. 2015. 244 f. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015.) aponta como a categorização dos corpos na perspectiva biomédica estaria alocada em categorias binárias - pênis/masculino/homem e vulva/feminino/mulher - e seria muito mais uma norma para reconhecer e legitimar corpos que seguem apenas o padrão de uma cisgeneridade heterossexual.
Judith Butler (2003BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003., p. 43) aponta como “o gênero não somente designa as pessoas”, mas também “constitui uma episteme conceitual mediante a qual o gênero binário é universalizado”. A cisgeneridade, assim, deixa de ser apenas uma das possibilidades de existência e se torna uma CISnorma (Vergueiro, 2015VERGUEIRO, V. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. 2015. 244 f. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015.), ou seja, uma norma compulsória. A normatização dos corpos a partir de uma visão binária de corpo e gênero, cisnormativa, não reconheceria outras possibilidades de existência, como corpos na transgeneridade e na travestilidade.
Teresa de Lauretis (1987LAURETIS, T. de. Technologies of gender: essays on theory, film, and fiction. Bloomington: Indiana University Press, 1987.), inspirada nas teorias foucaultianas da sexualidade concebidas como “tecnologias do sexo”, chamou por analogia “tecnologias de gênero” o conjunto de tecnologias sociossemióticas destinadas à produção e reprodução do gênero em sua qualidade de construção. Indo um pouco além de Foucault (1988FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1988.), na medida em que este não contemplou a categoria gênero, em Tecnologias de gênero, Lauretis (1987)LAURETIS, T. de. Technologies of gender: essays on theory, film, and fiction. Bloomington: Indiana University Press, 1987. fornece uma noção de gênero entendida como relacional, ou seja, que não existe por si só. Apresenta-o como uma relação que atravessa tudo, como produto/processo semiótico e, consequentemente, não como uma manifestação natural e espontânea ligada ao sexo: “gênero como representação e como autorrepresentação, produto de diferentes tecnologias sociais, como o cinema, de discursos, epistemologias, práticas críticas institucionalizadas, bem como das práticas da vida cotidiana” (Lauretis, 1987LAURETIS, T. de. Technologies of gender: essays on theory, film, and fiction. Bloomington: Indiana University Press, 1987., p. 208).
Partindo destes conceitos, é possível compreender como a normalização de comportamentos e identidades que se apresentam nas relações sociais e nas regulações institucionais produz diferenças engendradas, ou seja, especificidades que são naturalizadas como diferenças de gênero, ao passo que algumas tecnologias produzirão representações sociais em relação ao gênero, como roupas, banheiro, novelas, profissões, literatura, religião, brinquedos etc. Viviane Vergueiro (2015VERGUEIRO, V. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. 2015. 244 f. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015.) alerta que, para pensar formações corporais e de identidades de gênero, é importante analisar também a normatividade cisgênera ou a cisnormatividade, que está emaranhada nesses dispositivos.
Vergueiro (2015VERGUEIRO, V. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. 2015. 244 f. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015., p. 45) aponta que a normatividade da cisgeneridade é “produzida através da naturalização da pré-discursividade, da binariedade e da permanência para os corpos e identidades de gênero”, colocando-a como definidora das possibilidades legítimas de gênero e atravessada pela ideia de que esses corpos, se “normais”, encontrar-se-ão nesses gêneros definidos a partir de duas - e somente duas - alternativas: macho/homem e fêmea/mulher.
Isso significa que todas as diversidades corporais e variabilidades de gênero para além da cisgeneridade são constrangidas, por colonialidades de saber, a interpretações médico-científicas supostamente objetivas sobre os corpos, colocando travestilidades e transgeneridades, por exemplo, em uma ausência de reconhecimento.
Paul Preciado (2018PRECIADO, P. B. Testo junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. São Paulo: n-1 edições, 2018.) colabora com a discussão trazendo uma análise das intervenções que os corpos recebem/escolhem para ter seu gênero ou suas sexualidades reconhecidas. Segundo o autor, a invenção da categoria gênero é resultado de um discurso biotecnológico que surgiu nos anos 1940, nos Estados Unidos, com a adesão da “pílula”, de forma que o sexo deixou de estar vinculado ao sexo heterossexual com objetivo de procriação; porém, tal discurso também possibilitou intervenções hormonais, o que permitiu modificações no corpo e produção intencional de subjetividade. Num sistema que o autor chamou de farmacopornográfico, recebemos intervenções visuais, hormonais, medicamentosas e protéticas que (dis)formam nossos corpos e garantem (ou retiram) o reconhecimento.
O regime farmacopornográfico, segundo Paul Preciado (2018PRECIADO, P. B. Testo junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. São Paulo: n-1 edições, 2018.), alimenta-se de dois pilares autossustentados, que funcionam mais em congruência do que em oposição: a farmacologia (tanto legal, quanto ilegal) e a pornografia. Nesse contexto, o corpo farmacopornográfico não seria dócil nem pré-discursivo, com limites no envoltório de sua pele, mas um tecnocorpo, uma entidade, entrecortada por pixels, hormônios, fibras óticas e nanômetros. A partir dessas reflexões, também se pensam os processos de “produção farmacopornográfica de ficções somáticas de feminilidade e masculinidade” (Preciado, 2018PRECIADO, P. B. Testo junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. São Paulo: n-1 edições, 2018., p. 129) através de estrogênio, progesterona e testosterona. O gênero não seria (apenas) algo produzido no exterior (comportamento social, aparência, estilo, vestimenta), mas também um processo biológico (Camargo, W.; Rial, 2010CAMARGO, W. X; RIAL, C. S. de M. Hormônios e micropolíticas de gênero na era farmacopornográfica. Cadernos Pagu, Campinas, n. 34, p. 363-371, 2010. DOI: 10.1590/S0104-83332010000100014
https://doi.org/10.1590/S0104-8333201000... ).
Preciado (2018PRECIADO, P. B. Testo junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. São Paulo: n-1 edições, 2018.) também propõe, a partir do conceito de regime farmacopornográfico, da apropriação e utilização de biotecnologias, como os hormônios sintéticos, para piratear (hackear), burlar e embaralhar as fronteiras de gênero instituídas. Importantes trabalhos etnográficos (Benedetti, 2005BENEDETTI, M. R. Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.; Pelúcio, 2009PELÚCIO, L. Abjeção e desejo: uma etnografia travesti sobre o modelo preventivo de aids. São Paulo: Annablume, 2009.) registram travestis e mulheres trans na apropriação e utilização por conta própria dessas medicações à base de hormônios, “de forma a se construir uma imagem e uma identidade ‘femininas’” (Benedetti, 2005BENEDETTI, M. R. Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro: Garamond, 2005., p. 51).
As propostas de Preciado inspiram a pensar também a partir de uma perspectiva sociotécnica, que sublinha as diversas relações entre humanos e não-humanos configuradas em redes terapêuticas (Akrich, 1996AKRICH, M. Le médicament comme objet technique. Revue internationale de Psychopathologie, Paris, n. 21, p. 135-158, 1996.). De acordo com Akrich (1996)AKRICH, M. Le médicament comme objet technique. Revue internationale de Psychopathologie, Paris, n. 21, p. 135-158, 1996., busca-se evitar a concepção de medicamento - e aqui aproximo a testosterona de um medicamento pela forma como é disponibilizada na sociedade - como uma simples “construção cultural” que atribui significados a um objeto dado. Essa teoria pode causar um problema: a suposição de uma estabilidade ontológica desse elemento, balanceada apenas pela impressão de diferentes representações a eles exteriores. O hormônio sintético não poderia ser definido a priori, constituindo antes um conjunto heterogêneo e complexo de relações, a partir do qual se cruzam distintas noções de saúde, corpo e cuidado.
É possível compreender, em aproximação ao trabalho de Eduardo Vargas (2008VARGAS, E. V. Fármacos e outros objetos sócio-técnicos: notas para uma genealogia das drogas. In: CAIUBY, B. et al. (Org.). Drogas e cultura: novas perspectivas. Salvador: Edufba, 2008. p. 41-64.) a respeito da genealogia das “drogas” - resguardando as proporções e limitações, uma vez que substâncias consideradas “ilícitas” circularão em outros espaços e contextos -, que a testosterona aqui apresentada permaneça indeterminada até que se reporte aos agenciamentos que a constituem enquanto tal. O agenciamento permitiria, assim, que se entendesse a testosterona - e, por conseguinte, seu uso e seus efeitos - enquanto objeto sociotécnico que constitui um efeito contingente mais de suas articulações heterogêneas do que de suas propriedades intrínsecas ou representações sociais exteriores, se tomadas isoladamente ou numa busca genealógica.
Hormonização na saúde institucional
A hormonização não é um processo adotado por todas as pessoas trans e travestis; inclusive, alguns trabalhos indicam que seu uso está ligado a contextos de grandes centros urbanos, seja por conta da facilidade de acesso a essas tecnologias, mas também por pessoas que não moram nessas regiões não terem esse processo como central em seu (auto)reconhecimento (Paiva, 2020PAIVA, P. C. A. da S. “As travas de jardim são unidas”: etnografia da performance identitária das travestis em contextos rurais e interioranos do sertão potiguar. 2020. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2020.). A utilização deste medicamento, para ter seus corpos lidos como mais femininos ou masculinos, mas também para a suavização de traços e características, nem sempre tem como objetivo uma aproximação de uma imagem binária cisgênero. No entanto, este processo aparece em diversas narrativas apresentadas em pesquisas com pessoas trans e travestis (Benedetti, 2005BENEDETTI, M. R. Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.; Pelúcio, 2009PELÚCIO, L. Abjeção e desejo: uma etnografia travesti sobre o modelo preventivo de aids. São Paulo: Annablume, 2009.), assim como foi um dos processos centrais levantados por Alex e Ju, durante a pesquisa.
Márcia Brasil Santos (2020SANTOS, M. C. B. Aos trancos e barrancos: uma análise do processo de implementação e capilarização do processo transexualizador no Brasil. 2020. 483 f. Tese (Doutorado) - Faculdade de Serviço Social, Centro de Ciências Sociais, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020.) mostra que a hormonização é uma das tecnologias oficializadas a partir da Portaria nº 1.707/2008, passando a permitir procedimentos para alterações corporais relacionados à “adequação de gênero” e incorporando-os na tabela de procedimentos do SUS. Os atendimentos assegurados por esta portaria e pela Portaria nº 457, também de 2008, foram as bases para o Processo Transexualizador no SUS, política nacional que autoriza atendimento de pessoas “transexuais” (o termo utilizado na época) em espaços da saúde, ainda que numa perspectiva patologizante.44Neste período, a política nacional partia dos manuais de diagnósticos DSM-IV e CID-10, considerando que estas pessoas seriam diagnosticadas com “transexualismo” e as intervenções médicas disponibilizadas serviriam para diminuir o sofrimento destas pessoas (Bento; Pelúcio, 2012). Tal política limita-se a alguns procedimentos cirúrgicos genitais, dirigidos exclusivamente àquelas que eram diagnosticadas como mulheres transexuais. Embora houvesse nesses instrumentos o reconhecimento das necessidades de acompanhamento para hormonização e de cirurgias mamárias, a normatização do Ministério da Saúde não previa a oferta de hormônios e de próteses mamárias nas unidades de saúde referenciadas ou em quaisquer outras. Além disso, tais portarias não previam o atendimento às demandas de homens trans e das travestis.
Somente cinco anos depois, a partir da publicação da Portaria nº 2.803/2013BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.803, de 19 de novembro de 2013. Redefine e amplia o Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União; 19 nov 2013., que Redefine e amplia o Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde, travestis e homens trans puderam ter acesso aos serviços credenciados para iniciarem o acompanhamento no Processo Transexualizador, sempre mediante laudo psiquiátrico (para a exclusão de transtornos psiquiátricos graves, que seriam impeditivos para o processo), avaliação psicológica (realizada por um(a) psiquiatra e psicólogo(a)) e avaliações de profissionais das áreas de ginecologia ou urologia, endocrinologia e cirurgia plástica, além dos prazos exigidos para que se iniciasse qualquer intervenção cirúrgica e hormonal.
Além disso, o acesso à hormonização por homens trans, travestis e mulheres trans acontecia somente mediante a aceitação concomitante de intervenções cirúrgicas. Uma pessoa que não verbalizasse o interesse em realizar a cirurgia de transgenitalização (no caso de mulheres trans e travestis) ou mamoplastia masculinizadora55Adiciono aqui o predicado “masculinizadora” uma vez que o procedimento denominado mamoplastia foi desenvolvido no contexto oncológico para mulheres cisgênero, com a retirada total ou parcial do seio afetado pelo câncer. O procedimento em pessoas transmasculinas consiste na remoção da glândula mamária e, geralmente, na diminuição do mamilo, onde a equipe cirúrgica busca uma aproximação da imagem do que se considera um peitoral masculino. (no caso de homens trans) não teria acesso aos hormônios.
O Processo Transexualizador foi um avanço para oferecer espaços que acolhessem pessoas trans e travestis e suas demandas em saúde, bem como o reconhecimento prático da existência e importância das tecnologias produtoras de corpo, gênero e sexualidade (apesar de estar na gramática da “patologia” e da “correção”). Nos primeiros momentos, contudo, não se pensava em outra lógica que não a da transição mecânica de um lugar de gênero para o outro. Assim, corpos não-bináries e corpos de trans e travestis que não se encaixassem nos moldes da binariedade cisnormativa ficaram completamente à margem.
O foco da assistência no aspecto cirúrgico, instituído pelo Ministério da Saúde nas primeiras portarias do Processo Transexualizador, não apresentava uma perspectiva de saúde e, muito menos, de cuidado. Pelo contrário, tratava-se estritamente de um olhar patologizante, de doença, onde a intervenção cirúrgica - realizada somente por profissionais da medicina - não apenas resolvia o adoecimento diagnosticado, mas restituía cirurgicamente um lugar à natureza (no caso à natureza cirúrgica do gênero corrigido). Essa perspectiva, claro, contraria as propostas de saúde numa visão mais ampliada e integrativa, tais como são promovidas pela saúde pública.
Estas decisões tecnopolíticas tiveram como efeito o entravamento de toda e qualquer outra questão de cuidado apresentada por pessoas trans e travestis. Na prática, como é mostrado por Pelúcio (2009PELÚCIO, L. Abjeção e desejo: uma etnografia travesti sobre o modelo preventivo de aids. São Paulo: Annablume, 2009.), Martha de Souza et al. (2015SOUZA, M. H. T. de et al. Violência e sofrimento social no itinerário de travestis de Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 31, n. 4, p. 767-776, 2015. DOI: 10.1590/0102-311X00077514
https://doi.org/10.1590/0102-311X0007751... ) e Santos (2022SANTOS, M. O. F. Criar um mundo pra si: agenciamentos de cuidado de pessoas trans, travestis e não-bináries para uma vida possível. 2022. 251 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2022.), entre outros, é negado a elas o direito de terem suas necessidades de assistência integral de saúde, seja no nível da atenção primária, seja para questões de maior complexidade, como a hormonização acompanhada, o implante de próteses de silicone nos seios, a mamoplastia masculinizadora etc.
Na Resolução nº 2.265, publicada em setembro de 2019, o Conselho Federal de Medicina (CFM) autorizou que pessoas trans e travestis fizessem acompanhamento ambulatorial “psicoterapêutico” e hormonização pelo SUS, seguindo o Projeto Terapêutico Singular (PTS).66O PTS é formado por um conjunto de propostas de condutas terapêuticas articuladas, direcionadas a uma pessoa, família ou coletividade. Tem como objetivo traçar uma estratégia de intervenção para o usuário, contando com os recursos da equipe, do território, da família e do próprio sujeito e envolve uma pactuação entre esses mesmos atores (Hori; Nascimento, 2014). Tal medida não exigia mais laudo psiquiátrico para o início da hormonização, além de indicar 28 Unidades Básicas de Saúde no município de São Paulo aptas para o acompanhamento ambulatorial de pessoas trans e travestis. No entanto, até fevereiro de 2021, somente oito destes serviços ofereciam o atendimento, sob a justificativa de que não havia profissionais capacitados (Reis, V., 2021REIS, V. Prefeitura de SP diz que oferece hormonização para transexuais em 28 UBSs, mas ao menos 8 unidades não fazem o atendimento. G1, São Paulo, 9 fev. 2021. Disponível em: <Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/02/09/prefeitura-de-sp-diz-que-oferece-hormonizacao-para-transexuais-em-28-ubss-mas-8-unidades-nao-fazem-o-atendimento.ghtml >. Acesso em: 5 jun. 2022.
https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/notici... ). Até o momento, apenas oito hospitais no país - Hospital das Clínicas (HC) da Universidade Federal de Pernambuco, em Recife (PE); HC da Universidade Federal de Goiás, em Goiânia (GO); HC da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre (RS); HC da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, no Rio de Janeiro (RJ); HC da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), em São Paulo; Hospital Universitário (HU) Cassiano Antonio Moraes, em Vitória (ES); Hospital Jean Bitar, em Belém (PA); HU da Universidade Federal de Juiz de Fora, em Juiz de Fora (MG) - estão autorizados a realizar procedimentos cirúrgicos pelo Processo Transexualizador.
As ampliações das portarias por parte do Ministério da Saúde não são acompanhadas de articulação nos âmbitos estaduais e municipais, e este distanciamento se torna uma das dificuldades da efetiva capilaridade das propostas do Processo Transexualizador nas práticas dos profissionais dos serviços institucionalizados da saúde (Santos, 2020SANTOS, M. C. B. Aos trancos e barrancos: uma análise do processo de implementação e capilarização do processo transexualizador no Brasil. 2020. 483 f. Tese (Doutorado) - Faculdade de Serviço Social, Centro de Ciências Sociais, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020.). O isolamento do processo em relação aos serviços institucionalizados de saúde contribui para o pouco envolvimento das gestões regionais em relação à formação/qualificação de profissionais da saúde para prestarem assistência a pessoas trans e travestis. Como consequência, é comum que médicas(os), mesmo da endocrinologia, apontem que possuem dúvidas ou desconhecem os protocolos de hormonização para travestis e pessoas trans; que não sabem os efeitos da hormonização; ou que se sentem inseguras(os) e não contam com o suporte dos hospitais, entre outras manifestações, que comumente se localizam entre a transfobia e a ausência de qualificação para o manejo da assistência, levando a inseguranças (Santos, 2020SANTOS, M. C. B. Aos trancos e barrancos: uma análise do processo de implementação e capilarização do processo transexualizador no Brasil. 2020. 483 f. Tese (Doutorado) - Faculdade de Serviço Social, Centro de Ciências Sociais, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020.).
Estes múltiplos e complexos fatores nos permitem pensar sobre os muros e barreiras resultantes de disputas nas diversas esferas da saúde pública, de forma que as necessidades específicas de pessoas trans e travestis acabam não entrando no debate das decisões políticas devido a epistemologias e estruturas pensadas por pessoas cisgênero e para corpos cisgênero. A partir do que foi apresentado aqui, é possível pensar que os muros que circundam o acesso aos serviços institucionalizados de saúde, ao cuidado e às tecnologias em favor da vida e do bem-estar de determinados corpos podem ter suas bases nas legislações e determinações que estruturam o sistema de saúde público.
Buscando frestas em e para além dos muros
Durante o período de campo a partir do ano de 2019, duas pessoas transmasculinas se tornaram importantes companheiros de pesquisa a partir de duas organizações que oferecem acolhimento àqueles que se identificam como parte da comunidade LGBTQIAP+.77Instituto Pró-Diversidade, localizado na região da zona leste da capital, e Centro de Referência e Defesa da Diversidade (CRD), na região central de São Paulo. São eles Ju, que se identifica como branco, com 27 anos, morador da zona leste da capital, e Alex, negro, com 21 anos, morador da zona norte de São Paulo. O interesse de ambos era o acesso às tecnologias oferecidas pelo Processo Transexualizador, principalmente a hormonização. Nesta época, a portaria em vigência do CFM exigia laudos psiquiátrico e psicológico para o início do procedimento em serviços de saúde institucionalizados, o que levou Alex e Ju até os espaços de acolhimento em busca de outras formas para acessarem o processo.
Apesar de Ju e Alex não terem iniciado o processo de hormonização e outras intervenções - cirúrgicas, por exemplo -, não significa que ainda não estivessem em seus “processos de transição”. Outras tecnologias de gênero já estavam sendo operadas para que a leitura e o reconhecimento de seus corpos se aproximassem de imagens de masculinidade, ou, pelo menos, que se distanciassem de estereótipos de feminilidade. O uso de cabelos curtos, tênis maiores que o tamanho do pé, roupas grandes e largas, uso de binder88Binder é uma faixa ou um colete de tecido elástico que tem como objetivo comprimir os seios, diminuindo o volume do peitoral e deixando o tórax com o molde mais retilíneo. Esse dispositivo é tido como um importante recurso para a construção da autoidentidade masculina (Ribeiro, 2018).e faixa no peitoral, modulação consciente da voz para deixá-la mais grave, negociações em suas relações no uso de pronomes masculinos e adoção de nomes diferentes dos que lhes foram assignados no nascimento são algumas das tecnologias que Alex e Ju já performavam muito antes de iniciar o acompanhamento com qualquer profissional da área da saúde. Logo, é importante ressaltar que este processo de produção de um corpo em que se cabe - como Alex trouxe durante a pesquisa -, muitas vezes chamado de transição de gênero, não tem início na adoção de tecnologias oferecidas pelos serviços institucionalizados de saúde.
Alex, por exemplo, contou em um de nossos encontros que sempre quis iniciar hormonização e realizar a mamoplastia, no entanto, não gostaria de adquirir “características totalmente masculinas” que o fizessem parecer um homem cis. Ele conta que se sente bem com uma certa “androginia” e que, por isso, não gostaria de ter características como músculos definidos, mas tem muito desejo em retirar os “intrusos”.99Termo utilizado por algumas pessoas transmasculinas e pessoas não-bináries para se referir aos seios (Santos, 2022).
Os muros levantados por alguns serviços e profissionais de saúde foram trazidos por Alex e Ju durante a trajetória da pesquisa em diversos momentos. A primeira médica endocrinologista que atendeu Ju, ao saber que o acompanhamento seria para o processo de hormonização, recusou-se a seguir adiante com as consultas, informando que ela não tinha especialização que permitisse acompanhá-lo e que a melhor indicação seria um profissional especializado no atendimento de pessoas trans e travestis.
Já com Alex, o rompimento da relação médico-paciente se deu após a experiência em consulta ao utilizar o termo “não-binário”:
Comentei com ela [a médica] que queria realizar a “terapia hormonal”, mas que não queria fazer como meus amigos, sem acompanhamento médico. Queria fazer tudo certinho. Ela me disse que eu teria que fazer terapia e vários exames para saber se meus níveis hormonais estavam normais. Mas quando eu disse que era um homem trans não-binário, ela disse que isso não existia. Disse que por eu ser muito novo, eu ainda não sabia direito sobre “estas coisas”. Não voltei mais lá. (Santos, 2022SANTOS, M. O. F. Criar um mundo pra si: agenciamentos de cuidado de pessoas trans, travestis e não-bináries para uma vida possível. 2022. 251 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2022., p. 167)
Érica de Souza (2020)SOUZA, E. R. de. Corpos transmasculinos, hormônios e técnicas: reflexões sobre materialidades possíveis. Cadernos Pagu , Campinas, n. 59, e205910, 2020. DOI: 10.1590/18094449202000590010
https://doi.org/10.1590/1809444920200059... , ao entrevistar profissionais de saúde do ambulatório trans da Universidade Federal de Uberlândia, identificou que estas não tinham informações e formações sobre a hormonização para pessoas trans e travestis. Na época, a Portaria nº 2.803/2013BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.803, de 19 de novembro de 2013. Redefine e amplia o Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União; 19 nov 2013., do Processo Transexualizador, continha uma menção à “hormonioterapia” ou “terapia medicamentosa hormonal”, mas sem qualquer prescrição específica e sem definição de que tipo de hormônio deveria ser utilizado, suas doses e intervalos. A autora também reforça que a ausência de indicação de hormônios a serem utilizados torna-se um elemento complicador para se reivindicar o oferecimento de tais medicamentos na rede pública de saúde.
Krüger et al. (2019KRÜGER, A. et al. Características do uso de hormônios por travestis e mulheres transexuais do Distrito Federal brasileiro. Revista Brasileira de Epidemiologia, São Paulo, v. 22, supl. 1, e190004, 2019. DOI: 10.1590/1980-549720190004.supl.1
https://doi.org/10.1590/1980-54972019000... ) apontam também que a escassez de serviços e de profissionais médicos que dominem as especificidades das questões trans e travestis e que consigam prescrever com segurança os medicamentos para essas pessoas são fatores que fazem com que muitas realizem o processo de hormonização por conta própria. O uso de hormônios sem acompanhamento médico é considerado uma prática de risco, mas o que fazer quando profissionais da medicina não possuem dados e formações suficientes para prescrever e acompanhar o processo de hormonização? Ou quando, pelo contrário, sua formação técnica, moral e social lhes indica o não reconhecimento da pessoa que está na sua frente e, portanto, agem no sentido da exclusão e da vulnerabilização?
A utilização de medicamentos sem acompanhamento profissional, ou a automedicação, é um tema ainda pouco abordado em relação à hormonização de pessoas trans e travestis. Porém, a automedicação relacionada a outros medicamentos é lida pela antropologia dos medicamentos como um importante recurso de cuidado. Trabalhos etnográficos nas relações com medicamentos, principalmente em contextos de povos originários, têm mostrado que não há uma medicina essencial independente da história de interação entre diferentes grupos sociais. Os profissionais da saúde, intensamente contaminados por noções de racionalidade e eficácia biomédica, constantemente ignoram que o comportamento cotidiano do outro na busca por atenção à saúde é orientado pelos conhecimentos e normas culturais locais, experiência individual, juntamente com conflitos de poder que atravessam o acesso ao serviço institucionalizado e na distribuição de medicamentos, além das influências políticas e econômicas mais amplas (Diehl, 2016DIEHL, E. E. Estudos sobre medicamentos em uma perspectiva interdisciplinar. In: LANGDON, E. J.; GRISOTTI, M. (Org.). Políticas públicas: reflexões antropológicas. Florianópolis: UFSC, 2016. p. 83-104.). Aproxima-se destas experiências aquela encontrada por pessoas trans e travestis trazidas até aqui, uma vez que os saberes relacionados ao uso de hormônios não são considerados nas relações dentro dos espaços institucionalizados de saúde.
Flávia Freitas (2016FREITAS, F. R. N. de N. Saúde da população LGBT: da formação médica à atuação profissional. 2016. 66 f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Saúde) - Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2016. Disponível em:<Disponível em:http://repositorio.ufpi.br/xmlui/handle/123456789/754 > Acesso em: 25 out. 2022.
http://repositorio.ufpi.br/xmlui/handle/... ) realizou um trabalho que buscou avaliar as competências na formação profissional médica para atendimento à população LGBT em uma capital no Nordeste. Entre as narrativas dos médicos entrevistados, foi recorrente a afirmação de que não se havia abordado nenhum tema relacionado à saúde LGBT durante suas formações - exceto quando se falava em infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) ou condições psiquiátricas de saúde. Da mesma forma, a autora não identificou no currículo das especializações médicas analisadas nenhuma abordagem específica à saúde de pessoas LGBT, o que aponta para uma lacuna na formação dos profissionais médicos em relação às especificidades desta população. O estudo de Rufino, Madeiro e Girão (2013RUFINO, A. C., MADEIRO, A. P., GIRÃO, M. J. B. C. O ensino da sexualidade nos cursos médicos: a percepção de estudantes do Piauí. Rev. Bras. Educ. Med. [online]. 2013, vol.37, n.02, pp.178-185. DOI: 10.1590/S0100-55022013000200004.
https://doi.org/10.1590/S0100-5502201300... ), realizado com estudantes de medicina do estado do Piauí, traz resultados similares: gênero e sexualidade são abordados sob uma visão organicista e reducionista, trazendo pouca abordagem de aspectos sociais, o que torna o ensino em medicina limitado no que tange ao atendimento de diretrizes que direcionam a assistência para pessoas em variabilidade de gênero ou dissidências sexuais (Rufino; Madeiro; Girão, 2013RUFINO, A. C., MADEIRO, A. P., GIRÃO, M. J. B. C. O ensino da sexualidade nos cursos médicos: a percepção de estudantes do Piauí. Rev. Bras. Educ. Med. [online]. 2013, vol.37, n.02, pp.178-185. DOI: 10.1590/S0100-55022013000200004.
https://doi.org/10.1590/S0100-5502201300... ).
Diante das dificuldades no acesso aos serviços institucionalizados de saúde e os poucos lugares onde o processo de transição é abordado na saúde pública, foi nas plataformas virtuais, como Instagram, Twitter e Youtube, que Ju e Alex relataram buscar informações. Diversos textos, imagens e vídeos de pessoas trans e travestis sobre experiências próprias nos processos da transição estão disponíveis nessas plataformas. Ju descreveu como encontrou um gigantesco universo sobre pessoas trans no Youtube e explica que, se no mundo “real” eram poucos os lugares onde poderia conversar e conhecer mais sobre o tema, na internet o debate era amplo e diverso, e muitos já além de apenas definições sobre experiências trans.
Hoje em dia, tem tudo no Youtube. Sigo alguns meninos trans no Youtube que explicam direitinho como foi o processo de transição deles. Foi bom pra mim, porque percebi que não seria algo rápido e nem simples. Não tem nenhum lugar onde a gente possa saber dessas coisas, só na internet, e isso já ajuda muito. Foi lá que eu descobri que eu era trans e não-binário. (Santos, 2022SANTOS, M. O. F. Criar um mundo pra si: agenciamentos de cuidado de pessoas trans, travestis e não-bináries para uma vida possível. 2022. 251 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2022., p. 86)
Pesquisas realizadas com travestis e mulheres trans apontam que o início da hormonização se dá através da relação com conhecidas mais velhas ou mais experientes. Os conselhos e orientações destas pessoas são guias cruciais no processo com hormônios, e acontecem geralmente no contexto da rua e de prostituição (Benedetti, 2005BENEDETTI, M. R. Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.; Galindo; Rodrigues; Moura, 2012GALINDO, D.; RODRIGUES, R. V.; MOURA, M. M. Uma dose queer: performances tecnofarmacológicas no uso informal de hormônios entre travestis. In: SOUZA, L. L. de; GALINDO, D.; BERTOLINE, V. (Org.). Gênero, corpo e @tivismos. Cuiabá: EdUFMT, 2012. p. 171-196.; Pelúcio, 2009PELÚCIO, L. Abjeção e desejo: uma etnografia travesti sobre o modelo preventivo de aids. São Paulo: Annablume, 2009.). Com a experiência das mais velhas, elas aprendem, inicialmente, qual hormônio apresenta o melhor efeito de acordo com o que esperam obter de modificação, quais as melhores doses, quais os riscos e como evitá-los. Com Alex e Ju, a troca de informações com quem é mais experiente também acontece, porém em outros espaços. Alex conta que, em conversas com outros homens trans através de redes sociais e do Youtube, pôde conhecer um pouco de suas experiências, como a diminuição dos seios de alguns deles após o início da hormonização, o que contribuiu para a escolha de Alex de não realizar nenhuma cirurgia inicialmente, e, caso seus seios “que já eram pequenos” diminuíssem mais, ele não precisaria realizar a mastectomia.
Foi nessas plataformas que se compartilharam informações e saberes de como certo tipo de hormônio/testosterona era utilizado, a quantidade de doses e intervalos de aplicação, efeitos colaterais e o registro periódico do aparecimento de mudanças corporais, como pelos no rosto e no restante do corpo.
As motivações para a utilização dos hormônios não eram os mesmos para Ju e Alex.
Uma coisa que eu quero é deixar minha voz mais grossa e ter pêlos na cara. Se conseguir a testosterona, acho que já consigo essas mudanças. Não quero também parecer um homem totalmente. Não é isso que eu quero. (Santos, 2022SANTOS, M. O. F. Criar um mundo pra si: agenciamentos de cuidado de pessoas trans, travestis e não-bináries para uma vida possível. 2022. 251 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2022., p. 101)
Enquanto Alex buscava tornar sua voz mais grossa, era o peitoral que Ju queria mudar. O uso de faixa para tornar os seios menos perceptíveis sob a roupa era um agenciamento que poderia ser abandonado, segundo ele, caso conseguisse iniciar a hormonização. A diminuição de seus seios era uma mudança importante, pois, em visitas à praia ou em espaços com piscina, a utilização de trajes na parte superior para cobrir os seios produzia-lhe sofrimento e constrangimento.
Ju e eu acordamos em buscar juntos vídeos no Youtube sobre experiências de pessoas transmasculinas com a mamoplastia, principalmente aqueles que moravam em São Paulo. Alguns destes produtores de conteúdo se referiam nos vídeos ao Centro de Referência e Treinamento (CRT) em IST/aids, localizado no bairro Santa Cruz, e ao ambulatório no HC de São Paulo. O Youtube emerge como um espaço onde os usuários descobrem modos de saber-fazer em relação à saúde, ao cuidado e ao corpo, a partir dos vídeos e da interação com pessoas que já iniciaram o processo. Além disso, e de forma muito importante, a materialidade do corpo da(o) youtuber também se apresenta como uma experimentação visual do futuro do processo que Ju e Alex ainda não haviam iniciado. A troca entre os youtubers trans e Ju funciona como uma circulação de saberes e constitui uma relação de cuidado, uma vez que o compartilhamento de histórias e experiências possibilita novas formas de existir e de construir corpos; uma capacidade de produzir mundos que se compõem e se transformam.
Ju e Alex também apontaram para a troca de mensagens com pessoas transmasculinas de vários lugares do país para uma partilha sobre a própria história e o andamento dos processos de transição, mas também de mensagens de apoio e de suporte em relação às dificuldades enfrentadas em diversos âmbitos, não apenas relacionados às questões do corpo e de saúde (Santos, 2022SANTOS, M. O. F. Criar um mundo pra si: agenciamentos de cuidado de pessoas trans, travestis e não-bináries para uma vida possível. 2022. 251 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2022.).
Outros autores (Almeida, 2012ALMEIDA, G. ‘Homens trans’: novos matizes na aquarela das masculinidades? Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 20, n. 2, p. 513-523, 2012. DOI: 10.1590/S0104-026X2012000200012
https://doi.org/10.1590/S0104-026X201200... ; Amorim, 2016AMORIM, A. de S. Homens (in)visíveis: experiência de transhomens brasileiros nas mídias virtuais. 2016. 249 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2016.) também trouxeram a importância da Internet para o registro das experiências e cotidianos de pessoas transmasculinas, bem como para organização e articulação público-política. A aquisição de informações sobre a hormonização através das redes sociais também se tornou fundamental para transitar de forma mais eficaz pelas burocracias, no âmbito dos serviços de saúde. Ju e Alex aprenderam com alguns vídeos do Youtube quais falas e termos utilizar ou evitar nas consultas médicas, que seriam determinantes para conseguir a receita para o início da hormonização. A performatividade do corpo/gênero, tecnologia amplificada através das redes sociais digitais, foi testada e colocada em ato vez ou outra no âmbito médico, a fim de se conseguir reconhecimento e acesso aos dispositivos desejados.
As pessoas transmasculinas youtubers que Ju e Alex assistiam e indicavam eram todas magras, e uma parte considerável buscava na musculação formas de “queimar gordura”, “diminuir curvas” e “ganhar músculos”. Alex seguiu estratégias semelhantes e iniciou a musculação para diminuir o peitoral e o quadril. Tal escolha, segundo Alex, faria diferença quando este fizesse a mamoplastia masculinizadora, ou seja, mudanças foram colocadas em ato numa articulação com uma tecnologia a partir da circulação de discursos para além dos serviços institucionalizados de saúde. O consumo de materiais no Youtube, produzidos por pessoas transmasculinas; as trocas nas redes sociais; e a utilização da musculação, roupas e outros dispositivos que modifiquem o corpo, como o hormônio/testosterona, podem ser compreendidos como parte dos agenciamentos de cuidado, protagonizados por pessoas transmasculinas de forma mais satisfatória.
Um estudo realizado em Belo Horizonte (MG) com travestis e mulheres trans que realizam trabalho sexual mostrou que aproximadamente 98,2% delas relataram ter obtido conhecimento sobre a hormonização com colegas, enquanto apenas 1,8% relatam ter obtido informações em serviço público de saúde (Alecrim, 2014ALECRIM, D. J. D. Perfil das travestis que realizam trabalho sexual em Belo Horizonte e utilizaram hormônios para a transformação do corpo: um estudo transversal. 2014. 82 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Farmácia) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2014.). Um levantamento feito pelo portal Mosaico, em 2021, com 189 criadoras(es) de conteúdo para internet trans e travestis, mostrou que 47,6% estavam entre os 18 e 24 anos, 33,9% viviam na cidade de São Paulo, 41,27% eram pessoas transmasculinas e 48,7% se autodeclararam brancos(as) (Pesquisa…, 2022PESQUISA sobre influencers trans. Mosaico, [s. l.], 23 jan. 2022. Disponível em: <Disponível em: https://sigamosaico.com/2022/01/23/pesquisa-sobre-influencers-trans/ >. Acesso em: 28 out. 2022.
https://sigamosaico.com/2022/01/23/pesqu... ).
Ao mesmo tempo em que dificuldades são impostas no acesso a serviços institucionalizados de saúde e à hormonização, há profissionais da área da saúde engajadas(os) e realizando esforços para atender a essas demandas de pessoas trans e travestis, mesmo sem prescrições específicas, orientações claras ou estudos amplos de seus conselhos reguladores. Márcia Santos (2020SANTOS, M. C. B. Aos trancos e barrancos: uma análise do processo de implementação e capilarização do processo transexualizador no Brasil. 2020. 483 f. Tese (Doutorado) - Faculdade de Serviço Social, Centro de Ciências Sociais, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020.) mostra como a médica Dorina Quaglia, por exemplo, realizou atendimentos de pessoas trans e travestis no ambulatório do HC da FMUSP no final da década de 1970 e na década de 1980, receitando e acompanhando a hormonização dessas pessoas, num período em que a prática era, inclusive, considerada ilegal e antiética (Santos, 2020SANTOS, M. C. B. Aos trancos e barrancos: uma análise do processo de implementação e capilarização do processo transexualizador no Brasil. 2020. 483 f. Tese (Doutorado) - Faculdade de Serviço Social, Centro de Ciências Sociais, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020.). Outro caso foi com João W. Nery (2010NERY, J. W. Viagem solitária: memórias de um transexual trinta anos depois. Rio de Janeiro: Leya, 2019.), que realizou intervenções cirúrgicas e iniciou a hormonização ainda na década de 1970, a partir de redes de relações com Roberto Farina e outras(os) médicas(os), em uma época em que a transmasculinidade não estava nos debates da saúde pública.
Considerações finais
As relações construídas no trabalho etnográfico possibilitaram conhecer alguns agenciamentos de cuidado de Ju e Alex, que apresentam um universo de intercâmbio de saberes, informações e histórias de si que atravessam e reorganizam o desejo lançado para a produção de um outro ser. As relações nestes cruzamentos digitais criam suas próprias dinâmicas, por meio das quais efeitos adversos e modificações visíveis e não visíveis devido à hormonização são compartilhadas, no sentido de um apoio partilhado e uma produção de rede de cuidado.
As perspectivas de agenciamento, a partir da experiência de pesquisa trazida aqui, emergem como mais uma possibilidade analítica sobre produção do corpo, especialmente de pessoas que foram historicamente colocadas em categorias patologizadas pelas áreas da saúde. Esta perspectiva pode contribuir também para pensar essa produção de si que não passa necessariamente apenas por escolhas individuais, considerando redes múltiplas implicadas nos caminhos escolhidos por cada uma dessas pessoas, e como a busca por algumas tecnologias não se volta somente para modificações físicas, mas para um corpo/mundo que está em relação, online e offline, e que possibilita pensar tais modificações não como rígidas, tampouco como previsíveis ou finitas.
As múltiplas formas de existir de pessoas transmasculinas ainda é um tema pouco conhecido pela saúde pública, e os esforços híbridos entre antropologia e saúde pública podem apontar direções para conhecer os saberes produzidos, acumulados e que circulam com essas pessoas em espaços não institucionalizados de saúde, como a internet, para que seja construída uma forma mais ampla e igualitária de acesso à saúde e ao cuidado. As experiências de pessoas transmasculinas também ajudam a pensar sobre como a automedicação pode ser revista a partir de um olhar de agenciamento e de cuidado, com autonomias locais que podem contribuir para a ampliação dos saberes da saúde pública, e não como uma ausência de saberes ou de informações.
A formação de profissionais da saúde, especialmente na medicina, também se torna um ponto de reflexão, considerando que a lacuna sobre as variabilidades de gênero e as dissidências sexuais se torna mais um fator nos obstáculos de acesso daqueles que desejam realizar o processo de hormonização sob acompanhamento profissional em serviços de saúde institucionalizado.
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- 1Não-binárie é uma das possibilidades de performatividade de gênero onde a pessoa não se sente contemplada total ou parcialmente na binariedade masculino/feminino. A não-binariedade está inserida sob o guarda-chuva da transgeneridade, uma vez que também não se reconhece no gênero que lhe foi atribuído desde seu nascimento. Em alguns trabalhos também pode aparecer como não-binário (Carvalho, M., 2018CARVALHO, M. “Travesti”, “mulher transexual”, “homem trans” e “não binário”: interseccionalidades de classe e geração na produção de identidades políticas. Cadernos Pagu , Campinas, n. 52, e185211, 2018. DOI: 10.1590/1809444920100520011
https://doi.org/10.1590/1809444920100520... ), porém escolho pela palavra com a letra “e” que é como muitas dessas pessoas se apresentam, pensando na não generificação das palavras. - 2LGBTQIAP+: sigla para lésbicas, gays, bissexuais, travestis e pessoas trans, queer, pessoas intersexo, assexuais, pansexuais e outras orientações sexuais e identidades de gênero que não estão contempladas nas demais letras.
- 3A ideia de agenciamento que utilizo aqui como uma possibilidade investigativa para entender as formas concretas de produção de mundo, tanto material quanto imaterial, soma aos clássicos trabalhos sobre itinerários, práticas, trajetórias e experiências terapêuticas a ideia de que práticas e saberes se produzem nas frestas das relações de poder (Maluf, 2013MALUF, S. W. Por uma antropologia do sujeito: da Pessoa aos modos de subjetivação. Campos, Curitiba, v. 14, n. 1/2, p. 131-158, 2013. DOI: 10.5380/campos. v14i1/2.42463
https://doi.org/10.5380/campos. v14i1/2.... ; Tavares, 2017TAVARES, F. Rediscutindo conceitos na antropologia da saúde: notas sobre os agenciamentos terapêuticos. Mana, Rio de Janeiro, v. 23, n. 1, p. 201-228, 2017. DOI: 10.1590/1678-49442017v23n1p201
https://doi.org/10.1590/1678-49442017v23... ; Santos, 2022SANTOS, M. O. F. Criar um mundo pra si: agenciamentos de cuidado de pessoas trans, travestis e não-bináries para uma vida possível. 2022. 251 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2022.). - 4Neste período, a política nacional partia dos manuais de diagnósticos DSM-IV e CID-10, considerando que estas pessoas seriam diagnosticadas com “transexualismo” e as intervenções médicas disponibilizadas serviriam para diminuir o sofrimento destas pessoas (Bento; Pelúcio, 2012BENTO, B.; PELÚCIO, L. Despatologização do gênero: a politização das identidades abjetas. Revista Estudos Feministas , Florianópolis, v. 20, n. 2, p. 569-581, 2012. DOI: 10.1590/S0104-026X2012000200017
https://doi.org/10.1590/S0104-026X201200... ). - 5Adiciono aqui o predicado “masculinizadora” uma vez que o procedimento denominado mamoplastia foi desenvolvido no contexto oncológico para mulheres cisgênero, com a retirada total ou parcial do seio afetado pelo câncer. O procedimento em pessoas transmasculinas consiste na remoção da glândula mamária e, geralmente, na diminuição do mamilo, onde a equipe cirúrgica busca uma aproximação da imagem do que se considera um peitoral masculino.
- 6O PTS é formado por um conjunto de propostas de condutas terapêuticas articuladas, direcionadas a uma pessoa, família ou coletividade. Tem como objetivo traçar uma estratégia de intervenção para o usuário, contando com os recursos da equipe, do território, da família e do próprio sujeito e envolve uma pactuação entre esses mesmos atores (Hori; Nascimento, 2014HORI, A. A.; NASCIMENTO, A. de F. O Projeto Terapêutico Singular e as práticas de saúde mental nos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf) em Guarulhos (SP), Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 19, n. 8, p. 3561-3571, 2014. DOI: 10.1590/1413-81232014198.11412013
https://doi.org/10.1590/1413-81232014198... ). - 7Instituto Pró-Diversidade, localizado na região da zona leste da capital, e Centro de Referência e Defesa da Diversidade (CRD), na região central de São Paulo.
- 8Binder é uma faixa ou um colete de tecido elástico que tem como objetivo comprimir os seios, diminuindo o volume do peitoral e deixando o tórax com o molde mais retilíneo. Esse dispositivo é tido como um importante recurso para a construção da autoidentidade masculina (Ribeiro, 2018RIBEIRO, A. F. Experiências transmasculinas: o limiar entre corpo, gênero e desejo na constituição de um sentido de si. 2018. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018.).
- 9Termo utilizado por algumas pessoas transmasculinas e pessoas não-bináries para se referir aos seios (Santos, 2022SANTOS, M. O. F. Criar um mundo pra si: agenciamentos de cuidado de pessoas trans, travestis e não-bináries para uma vida possível. 2022. 251 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2022.).
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
28 Jul 2023 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
03 Nov 2022 - Revisado
03 Nov 2022 - Aceito
13 Dez 2022