No caminho da Estratégia da Saúde da Família: itinerário terapêutico das trabalhadoras rurais durante a pandemia de covid-19

On the way to the Family Health Strategic: therapeutic program for rural workers during the COVID-19 pandemic

Natália Ana de Carvalho Beatriz Santana Caçador Maria José Menezes Brito Sobre os autores

Resumo

Este artigo teve como objetivo descrever o itinerário terapêutico das trabalhadoras rurais durante a pandemia de covid-19. Realizou-se um estudo qualitativo por meio da metodologia da história oral temática. Foram realizadas 15 entrevistas com trabalhadoras rurais pertencentes ao território da Estratégia da Saúde da Família (ESF) de um distrito municipal do interior de Minas Gerais. As narrativas foram submetidas à análise de conteúdo proposta por Bardin. Os resultados apontaram duas categorias: “Um caminho a percorrer: desvelando o contexto e a organização da ESF no território”; e “Entre medo e (des)atenção à saúde: visibilidade para as trajetórias das trabalhadoras rurais durante a pandemia de covid-19”. Na primeira categoria, revelou-se o itinerário terapêutico das trabalhadoras rurais para a busca de cuidados na ESF do território, bem como a organização do serviço de saúde local. A segunda retratou a intensificação da desatenção à saúde para com as trabalhadoras rurais. Conclui-se que, no itinerário terapêutico das trabalhadoras rurais, a utilização da ESF do território se apresentou como rede preferencial, evidenciando a premência de fortalecimento da APS rural. A pandemia de covid-19 acentuou os dilemas para a busca de cuidados de saúde, revelando a urgência de ações de saúde para esse território.

Palavras-chave:
Itinerário Terapêutico; Atenção Primária à Saúde; Saúde da População Rural

Abstract

This study aimed to describe the therapeutic itinerary of rural female workers during the COVID-19 pandemic. It is a qualitative study using oral history methodology. A total of 15 interviews were carried out with rural female workers belonging to the field of the Family Health Strategy (ESF in Portuguese) of a municipal district in the state of Minas Gerais. The narratives were subjected to content analysis following Bardin. The results pointed to two categories: “A way to go: revealing the context and the organization of ESF in the area;” and “Between fear and (lack of) health assistance: visibility for the trajectories of rural female workers during the COVID-19 pandemic.” The first category demonstrated the therapeutic itinerary of rural female workers aiming to access health care in the ESF of their area besides the organization of local health service. The second category illustrated the intensified lack of assistance experienced by rural workers. In conclusion, the use of ESF represented the preferred network in the therapeutic itinerary of rural workers demonstrating the urgent action to strengthen Primary Health Care in rural areas. The COVID-19 pandemic stressed the challenges concerning the search of health assistance showing the urgency of health actions for this territory.

Keywords:
Therapeutic Itinerary; Primary Health Care; Health of Rural Population

Introdução

A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou, em 2020, uma pandemia causada pelo vírus da SARS-CoV-2, denominado covid-19, que tem impactado a saúde mundial, especialmente as populações vulneráveis (Prado et al., 2021PRADO, N. M. B. L. et al. Ações de vigilância à saúde integradas à Atenção Primária à Saúde diante da pandemia da COVID-19: contribuições para o debate. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 26, n. 7, p. 2843-2857, 2021. DOI: 10.1590/1413-81232021267.00582021
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). Esse cenário expõe as desigualdades existentes nos sistemas de saúde no mundo, como a exclusão de grupos populacionais para o acesso à saúde e o investimento insuficiente em saúde pública (Araújo; Oliveira; Freitas, 2020ARAÚJO, J. L.; OLIVEIRA, K. K. D.; FREITAS, R. J. M. In defense of the Unified Health System in the context of SARS-CoV-2 pandemic. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, DF, v. 73, supl. 2, p. e20200247, 2020. DOI: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0247
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). As pesquisas científicas têm avançado nas ações de prevenção e controle da doença, porém ainda se devem buscar respostas para solucionar os dilemas vividos pelos grupos mais vulneráveis, especialmente devido à intensificação das fragilidades dos serviços de saúde (Medina et al., 2020MEDINA, M. G. et al. Atenção primária à saúde em tempos de COVID-19: o que fazer? Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 8, p. 1-5, 2020. DOI: 10.1590/0102-311X00149720
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).

Nesse panorama, o Sistema Único de Saúde (SUS) vem enfrentando uma crise sanitária e se empenhando em assegurar o acesso universal às ações e aos serviços de saúde (Araújo; Oliveira; Freitas, 2020ARAÚJO, J. L.; OLIVEIRA, K. K. D.; FREITAS, R. J. M. In defense of the Unified Health System in the context of SARS-CoV-2 pandemic. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, DF, v. 73, supl. 2, p. e20200247, 2020. DOI: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0247
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). Nesta direção, o SUS é organizado a partir da Atenção Primária à Saúde (APS), sendo implementada por meio da Estratégia Saúde da Família (ESF), que deve realizar a cobertura da saúde e responsabilidade territorial, buscar a orientação comunitária e apoiar socialmente as populações em articulação com organizações e lideranças locais (Giovanella et al., 2021GIOVANELLA, L. et al. Cobertura da Estratégia Saúde da Família no Brasil: o que nos mostram as Pesquisas Nacionais de Saúde 2013 e 2019. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 26, supl. 1, p. 2543-2556, 2021. DOI: 10.1590/1413-81232021266.1.43952020
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). Cabe ressaltar que, a despeito de mais da metade da população brasileira ser atendida pelas equipes da ESF, ainda há desafios em relação ao acesso e à oferta de cuidados de saúde, principalmente para as populações rurais (Oliveira et al., 2020)OLIVEIRA, A. R. et al. Atenção Primária à Saúde no contexto rural: visão de enfermeiros. Revista Gaúcha de Enfermagem, Porto Alegre, v. 41, p. 1-8, 2020. DOI: 10.1590/1983-1447.2020.20190328
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.

No Brasil, para elucidar as iniquidades vivenciadas por essa população, foi criada a Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, da Floresta e das Águas (PNSIPCFA), que destaca a necessidade de compreender as suas práticas culturais, o modo de vida e de cuidar popular (Pessoa; Almeida; Carneiro, 2018PESSOA, V. M.; ALMEIDA, M. G.; CARNEIRO, F. F. Como garantir o direito à saúde para as populações do campo, da floresta e das águas no Brasil? Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 42, n. esp. 1, p. 302-314, 2018. DOI: 10.1590/0103-11042018S120
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). Dentre a sua diversidade, revelam-se aquelas que organizam a vida e o trabalho na agricultura em uma perspectiva familiar, produzindo o alimento para o autoconsumo e abastecimento dos comércios locais (Maciazeki-Gomes et al., 2021)MACIAZEKI-GOMES, R. C. et al. Modos de trabalhar e modos de subjetivar na agricultura familiar no sul do Brasil. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 29, n. 1, p. 1-14, 2021. DOI: 10.1590/1806-9584-2021v29n165762
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. Nesse grupo, encontra-se as trabalhadoras rurais que são mulheres com modos de vida concernentes ao campo, ao cuidado do lar, à família, além disso, o seu processo de trabalho se vincula a sua história, vivendo do que cultivam e produzem na agricultura (Silva et al., 2022SILVA, B. N. et al. Intersections between rural women’s resilience and quality of life: a mixed-methods study. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 30, p.1-13, 2022. DOI: /10.1590/1518-8345.5671.3521
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). Dados da Organização das Nações Unidas para Igualdade de Gênero e Empoderamento das Mulheres (ONU Mulheres) alertam para devida atenção às trabalhadoras rurais, que sofrem as consequências das vulnerabilidades do meio rural, sendo expostas a níveis elevados de pobreza, baixa proteção social, impacto das relações de gênero e barreiras de acesso aos serviços de saúde (UN Women, 2019)UN WOMEN - UNITED NATIONS WOMEN. Progress of the world’s women 2019-2020: families in a changing world. New York, 2019. Disponível em: <Disponível em: https://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2019/06/Progress-of-the-worlds-women-2019-2020-en.pdf >. Acesso em: 31 ago. 2021.
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.

Para subsidiar os processos de organização de serviços de saúde e gestão na construção de práticas mais integradas, pode-se utilizar a ferramenta denominada itinerário terapêutico (Demétrio; Santana; Pereira-Santos, 2019DEMÉTRIO, F.; SANTANA, E. R.; PEREIRA-SANTOS, M. O itinerário terapêutico no Brasil: revisão sistemática e metassíntese a partir das concepções negativa e positiva de saúde. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 43, n. spe 7, p. 204-221, 2019. DOI: 10.1590/0103-11042019S716
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). O itinerário terapêutico refere-se à busca de cuidados em saúde e colabora na descrição dos caminhos percorridos pelos indivíduos, na tentativa de solucionar seus problemas de saúde (Gerhardt, 2006GERHARDT, T. E. Itinerários terapêuticos em situações de pobreza: diversidade e pluralidade. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 22, n. 11, p. 2449-2463, 2006. Disponível em: Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/49523/000558403.pdf?sequence=1&isAllowed=y . Acesso em: 12 jun. 2023.
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). Diante do exposto, evidencia-se a existência de lacunas em relação à produção de conhecimento científico sobre o itinerário terapêutico das trabalhadoras rurais. Desta maneira, adota-se neste estudo o referencial teórico do itinerário terapêutico a fim de ampliar a percepção de como os serviços e as políticas públicas de saúde podem responder às necessidades de saúde de trabalhadoras rurais, principalmente durante a pandemia de covid-19 (Cualhete; Santos-Moura; Castro-Silva, 2022CUALHETE, D. N.; SANTOS-MOURA, G. H.; CASTRO-SILVA, C. R. Os itinerários terapêuticos de populações vulneráveis na Covid-19: uma revisão de escopo. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 26, p.1-18, 2022. DOI: 10.1590/interface.210700
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).

Considerando as particularidades da realidade da trabalhadora rural, como ocorre o itinerário terapêutico das trabalhadoras rurais durante a pandemia de covid-19?

Assim, o objetivo deste estudo é descrever o itinerário terapêutico das trabalhadoras rurais durante a pandemia de covid-19.

Método

Trata-se de um estudo qualitativo, utilizando como método de pesquisa a história oral acadêmica, mediante o gênero narrativo denominado história oral temática. O referido método possibilita a sondagem aprofundada sobre o que é reformulado e contido na particularidade da memória, proporcionando visibilidade social, sobretudo para o cultivo do conhecimento e geração de novas pautas, debates e diagnósticos sociais, valendo-se da compreensão da realidade por meio das experiências (Meihy; Seawright, 2020MEIHY, J. C. S. B.; SEAWRIGHT, L. Memórias e narrativas: história oral aplicada. São Paulo: Contexto, 2020.).

Este estudo foi realizado em um distrito na zona rural de um município do interior de Minas Gerais, a 13 km do centro da cidade. Este distrito apresenta um perímetro urbano compreendido em um círculo de raio igual a dois quilômetros e meio, sendo o centro desse local a igreja principal. Em relação ao serviço de saúde, esse distrito dispõe de uma ESF, distribuída em quatro microáreas, totalizando a população adscrita de 1.682 pessoas, divididas em área urbana e área rural. A área rural é atendida em uma escola desativada na comunidade, que fica a 23 km do distrito. Os atendimentos rurais são realizados uma vez por semana, durante o período da manhã, entretanto foram suspensos durante o período da coleta de dados, devido à pandemia de covid-19.

Em conformidade com o método adotado, para responder à pergunta relacionada ao tema de investigação, é necessário definir as comunidades de destino, colônias e redes (Meihy; Seawright, 2020MEIHY, J. C. S. B.; SEAWRIGHT, L. Memórias e narrativas: história oral aplicada. São Paulo: Contexto, 2020.). A comunidade de destino é, pois, caracterizada pelo vínculo subjetivo existente entre pessoas em torno de motivações comuns; a colônia é formada por elementos que partilham entre si traços delimitadores da identidade das pessoas em uma mesma comunidade de destino. A rede refere-se à subdivisão da colônia, a qual deve ser plural, composta por grupos com olhares diferentes que justificam variados comportamentos (Meihy; Seawright, 2020)MEIHY, J. C. S. B.; SEAWRIGHT, L. Memórias e narrativas: história oral aplicada. São Paulo: Contexto, 2020..

Nessa perspectiva, para fins deste estudo, assumiram-se, como comunidade de destino, a ESF que atende à área rural em um distrito municipal do interior de Minas Gerais, e, como colônia, as mulheres trabalhadoras rurais. No que concerne à estruturação das redes, foram adotados como critérios de inclusão: ser do sexo feminino; ter idade superior a 18 anos; usuária da ESF do distrito municipal; residente da área de abrangência do território da comunidade rural da região; trabalhar ou ter trabalhado diretamente com a agricultura; apresentar comunicação verbal; aceitar o uso do gravador; e permitir que os resultados obtidos no estudo pudessem ser publicados em meios científicos.

Para seleção da amostragem, utilizou-se a técnica bola de neve por meio de informantes-chaves, com o objetivo de localizar as redes estabelecidas nesta investigação (Meihy; Seawright, 2020MEIHY, J. C. S. B.; SEAWRIGHT, L. Memórias e narrativas: história oral aplicada. São Paulo: Contexto, 2020.; Vinuto, 2014VINUTO, J. A amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa: um debate em aberto. Temáticas, Campinas, v. 22, n. 44, p. 203-220, 2014.). Desse modo, elegemos os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) da ESF de estudo, como contato inicial, realizando a seguinte pergunta: Você poderia indicar trabalhadoras rurais que utilizam este serviço de saúde? Justifica-se a escolha pelos ACS da ESF devido ao forte elo destes com a comunidade rural. Logo, de acordo com os critérios determinados para constituição das redes, a primeira trabalhadora rural indicou a segunda participante, e, assim, ocorreu a composição da amostragem sucessivamente (Vinuto, 2014)VINUTO, J. A amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa: um debate em aberto. Temáticas, Campinas, v. 22, n. 44, p. 203-220, 2014.. Além disso, é importante destacar que o estudo aqui proposto não buscou representatividade numérica, mas um aprofundamento da temática (Minayo, 2017MINAYO, M. C. Amostragem e saturação em pesquisa qualitativa: consensos e controvérsias. Revista Pesquisa Qualitativa, São Paulo, v. 5, n. 7 p. 1-12, 2017. Disponível em: <Disponível em: https://editora.sepq.org.br/rpq/article/view/82/59 >. Acesso em: 31 ago. 2021.
https://editora.sepq.org.br/rpq/article/...
).

A coleta dos dados ocorreu entre os meses de abril e maio de 2021, sendo realizadas 15 entrevistas por meio de um roteiro semiestruturado com a seguinte pergunta de corte: Me conte como você busca cuidados de saúde. A elaboração desta pautou-se na necessidade de despertar as memórias das colaboradoras, possibilitando o diálogo conforme a técnica para entrevista na história oral temática (Meihy; Seawright, 2020MEIHY, J. C. S. B.; SEAWRIGHT, L. Memórias e narrativas: história oral aplicada. São Paulo: Contexto, 2020.). As entrevistas foram agendadas e realizadas nos domicílios das colaboradoras de acordo com a sua disponibilidade, sendo conduzidas por uma pesquisadora independente e sem vínculo com o serviço de saúde. Foi solicitada a autorização para uso do gravador e respeitado o local desejado para a realização das entrevistas, garantindo a privacidade dos dados e mantendo as medidas de segurança contra a covid-19. Na sequência, para garantir o anonimato, os nomes das colaboradoras foram relacionados com a letra E seguida de algum número cardinal, sendo definido do seguinte modo: E1 a E15.

Antes de iniciar a entrevista, foi apresentado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para ser assinado conforme a Resolução n. 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Nessa etapa, também foi apresentada a Carta de Cessão explicando que as entrevistas seriam posteriormente devolvidas para que elas pudessem conferir suas narrativas e autorizar, ou não, a divulgação dos relatos. O projeto foi avaliado e aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa com Seres Humanos.

Utilizou-se como método analítico do material a análise de conteúdo, na perspectiva temática, por meio das três etapas: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados, inferência e interpretação.

Na primeira etapa, foi realizada a preparação do material, que, nesta pesquisa, incluiu a transcrição, textualização e transcriação e validação das colaboradoras (Meihy; Seawright, 2020MEIHY, J. C. S. B.; SEAWRIGHT, L. Memórias e narrativas: história oral aplicada. São Paulo: Contexto, 2020.). Seguiram-se as etapas descritas:

  • A transcrição equivale à passagem dos enunciados orais para o código escrito o mais próximo possível de como foram emitidos (Meihy; Seawright, 2020MEIHY, J. C. S. B.; SEAWRIGHT, L. Memórias e narrativas: história oral aplicada. São Paulo: Contexto, 2020.);

  • A textualização é o reordenamento das ideias emitidas pelo entrevistado e define o tom vital de cada entrevista, caracterizado pela escolha de uma frase potente, para dar sentido às narrativas emitidas pelas colaboradoras (Meihy; Seawright, 2020MEIHY, J. C. S. B.; SEAWRIGHT, L. Memórias e narrativas: história oral aplicada. São Paulo: Contexto, 2020.);

  • A transcriação é o documento final referendado à colaboradora, caracterizado pela qualidade textual aperfeiçoada a partir da superação das fases anteriores (Meihy; Seawright, 2020MEIHY, J. C. S. B.; SEAWRIGHT, L. Memórias e narrativas: história oral aplicada. São Paulo: Contexto, 2020.);

  • Por meio da validação, as colaboradoras conferem e aprovam o texto produzido.

Neste estudo, a conferência ocorreu individualmente, nos domicílios de cada trabalhadora rural, sendo todos os textos validados na íntegra. Apenas uma colaboradora solicitou a correção de um dado numérico, e a pesquisadora esclareceu algumas palavras que não ficaram compreensíveis durante a transcrição (Meihy; Seawright, 2020MEIHY, J. C. S. B.; SEAWRIGHT, L. Memórias e narrativas: história oral aplicada. São Paulo: Contexto, 2020.).

Posteriormente, ocorreu a segunda etapa denominada exploração do material, que, segundo Bardin (2016BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2016.), consiste na transformação dos dados em conteúdos temáticos. Desse modo, foi realizada a codificação por meio dos dados do texto, transformados em unidades de registro, levando-se em consideração a magnitude, densidade e frequência apresentadas nas codificações. Logo, seguiu-se para a estruturação da unidade de contexto, por meio dos aspectos que permitiram compreender a significação exata da unidade de registro, produzindo os eixos temáticos (Bardin, 2016)BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2016..

Salienta-se que o material das entrevistas foi transcrito no Microsoft Word, sendo posteriormente inserido no Atlas.ti 9, possibilitando a organização, gestão e visualização dos dados.

Finalmente, a terceira fase abarcou o tratamento e a interpretação dos resultados obtidos, o que permitiu identificar as categorias para discussão, conforme se revelaram importantes para alcançar o objetivo proposto do estudo (Bardin, 2016BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2016.).

Resultados

Participaram 15 mulheres que desenvolviam o trabalho rural, com idade entre 32 e 66 anos. A maioria considerava-se da cor parda (8), seguida de branca (3), preta (2), amarela (1) e indígena (1). Em relação ao grau de escolaridade, 12 dessas mulheres tinham o Ensino Fundamental Incompleto, sendo o restante distribuído em: sem instrução (1), Ensino Fundamental Completo (1) e Ensino Médio Completo (1). No que diz respeito à religião, denominaram-se católicas (14) e evangélica (1). Em relação ao estado civil, apresentaram-se casadas (11), separadas (2), viúva (1) e solteira (1).

As trabalhadoras rurais apresentam em comum uma história de vida conectada ao território, por meio da atividade laboral relacionada à terra e criação de pequenos animais, à produção de alimentos para comércio local, à manutenção da vida por meio do trabalho familiar e ao tempo de residência na deferida comunidade. A respeito das particularidades que podem ser evidenciadas para caracterização das trabalhadoras, atreladas às atividades laborais na agricultura, identificou-se o cultivo do café, feijão, milho, verduras, legumes, frutas, plantas ornamentais, além da extração de mel e a criação de pequenos animais, sendo que os produtos eram comercializados em feiras, ou negociados diretamente com os comerciantes locais. Revela-se que cinco dessas trabalhadoras estavam aposentadas, porém ainda mantinham a atividade em lavouras.

Além disso, 10 trabalhadoras consideraram como os responsáveis pelo domicílio os companheiros, sendo que cinco se denominaram responsáveis pela própria residência e duas dessas mulheres administravam sozinhas seus domicílios. O número de filhos variou de zero a sete, sendo que o quantitativo de moradores em cada domicílio foi de um a seis. O tempo de moradia na comunidade rural foi de, no mínimo, três anos e de, no máximo, 54 anos, sendo que duas das trabalhadoras rurais residem na comunidade desde que nasceram.

Além disso, despontam como perspectiva, programa de transferência de renda, empresa pública e associação sindical que alcançam as mulheres desse território, no qual, entre as 15 trabalhadoras rurais, cinco recebiam o Bolsa Família, quatro eram apoiadas pela Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater) e uma era considerada a representante da comunidade, participando ativamente do sindicato rural vinculado ao município.

A seguir, as narrativas analisadas expressam aspectos do itinerário terapêutico, sintetizadas em duas categorias: “Um caminho a percorrer: desvelando o contexto e organização da ESF no território” e “Entre medo e (des)atenção à saúde: visibilidade para as trajetórias das trabalhadoras rurais durante a pandemia de covid-19”, sendo que nesta última possibilitou-se apresentar os encadeamentos dessa trajetória durante a pandemia de covid-19.

Um caminho a percorrer: desvelando o contexto e a organização da ESF no território

As narrativas das trabalhadoras rurais retrataram, como escolha preferencial para a busca de cuidado à saúde, a ESF do território, sendo que, nesse percurso, diversos entraves foram encontrados. Detectaram a falta de investimento na estrutura física da escola desativada, onde ocorria a assistência à saúde da comunidade rural, como carência de equipamentos de saúde e desprovimento de disposições higiênicas. Exprimiram que os atendimentos ocorriam em estruturas improvisadas da escola e observaram a necessidade da organização do atendimento rural, devido ao longo tempo de espera para receberem a equipe da ESF novamente em seu território:

Na frente da escola, tem mato [...] você entendeu? [...] falta equipamento para ser atendido lá no espaço da comunidade, entendeu? (E5)

É aquele ali na escola, daí eles vêm uma vez por semana e são divididos assim: cada comunidade uma vez na semana e só […] daí sexta é uma, na outra semana é outra, e depois outra, daí leva 15 dias para você está indo lá de novo, para você ir de novo. (E9)

Emergiu das suas narrativas o retrato do funcionamento da ESF no território. Durante seu itinerário terapêutico, depararam-se com a ausência da assistência médica e escassez de visita dos agentes comunitários. Relataram que esse fato está relacionado com o desprovimento de transporte para deslocamento dos profissionais de saúde até a estrutura física de sede de apoio da ESF localizada na escola desativada, assim como a negligência da administração local concernente à assistência à saúde rural:

Teve uma vez, na verdade, aconteceu pela segunda vez, de ir lá para baixo na escola que eles vinham atender e, às vezes, o médico não vinha porque não tinha carro para trazer. (E3)

Não tem condução suficiente para as agentes de saúde vim visitar os produtores rurais e ver o que eles estão precisando, por causa de quê? (E5)

Quando o postinho vinha aqui, era mais perto para medir pressão, tinha um postinho aqui perto, mas não tá vindo porque diz que não tem carro, daí não tem nem consulta. É difícil. (E6)

O postinho ficou jogado, a prefeitura já não liga mais para escola onde elas vêm atender. (E7)

Por residirem em uma região distante da sede principal da ESF, localizada no distrito municipal, as trabalhadoras rurais retrataram barreiras para o acesso à saúde no território, com entraves geográficos relacionados à ampla distância, precariedade das estradas, insuficiência de transporte público e aos gastos com despesas para fazer o percurso. A despeito das dificuldades, as trabalhadoras rurais mobilizaram recursos para alcançar a assistência na sede da ESF, adequando sua rotina aos horários disponíveis de transporte público, custeando veículos públicos e privados; ademais, quando não encontravam alternativas, realizavam o trajeto movendo-se a pé até a unidade. Outras relataram que, quando não conseguiam recursos, preferiam permanecer em suas residências, sem assistência:

Porque elas vinham no postinho aqui debaixo, que era bem perto, mas a ESF, vou falar até alto: É longe pra caramba! (E2)

Desde quando entendo por gente, as estradas são assim, e quando a lotação não vem? E quando vem, vem pelas metades, e muito barro, podia muito bem cascalhar, mas não cascalha, não sabemos quando a lotação vem, só quando ela não passa, só assim. Se precisar de cuidado de saúde, tem que ir a pé ou senão pagar um carro. (E7)

Assim, nós saímos daqui quando o ônibus vem às seis horas da manhã, né? E chega lá na cidade às seis e quarenta, e pega outro ônibus às sete para a ESF. Depois da ESF para cidade de novo, daí você chega meio-dia e pouco. Depois você tem que esperar três horas da tarde para vim embora, você chega em casa quatro horas da tarde. É o dia inteiro. E esse ônibus só tem duas vezes na semana. (E10)

“Hoje não tem médico”, “O carro tá quebrado”, então vamos ficar em casa, vamos tomar uma dipirona e ficar em casa que não tem outro jeito. (E13)

Além desses obstáculos, as trabalhadoras rurais verbalizaram a precariedade para obter medicamentos, o demorado intervalo para consultas e a carência de exames mais complexos na ESF, levando ao acionamento dos serviços de saúde privados:

Para ter o medicamento, teve uma época que estava muito bom, todos medicamentos que procurava tinha, agora está bem precário, tem que ir buscar na farmácia na cidade. (E1)

Então como se diz, a gente vai para o lado do ESF, mas, se a gente vê que está demorando […], a gente vai para outro caminho […] um pouquinho que a gente ganha, a gente segura ele, porque demora, e eu não sou daquela pessoa de ficar ali esperando resultado […] prefiro pagar um médico especialista, eu vou no laboratório dele, no consultório, né? Já faço e já saio, com o resultado. (E9)

Eu chego na agente comunitária e falo assim “Fulana, eu estou precisando de alguns exames para fazer”. Daí ela fala: “ O SUS não vai cobrir para você”, então não está nas mãos delas. (E11)

Para percorrer seu itinerário, as mulheres trabalhadoras mencionaram os custos financeiros e o longo tempo de deslocamento nas estradas, o que interferia em suas rotinas de vida e trabalho. Evidenciaram a importância da sua presença nas plantações, especialmente por não pagarem ajudantes. Desse modo, quando se deslocavam para a cidade, aproveitavam para resolver todas as suas necessidades e só retornavam para a região urbana após um longo período.

Mas nós achamos difícil estar indo para a ESF, entendeu? Porque a ESF está aqui, e a cidade está cá, né? Daí nos saímos daqui até a ESF de charrete [...] gasta uma hora e quinze minutos, e daqui à cidade de carro são quarenta minutos. Mas assim, pensa ter que ir na ESF depois ir para a cidade? E assim a gente nunca sai para fazer só uma coisa, entendeu? Senão nós ficamos perdendo muito tempo e sai para perder tempo, entendeu? Eu tenho que estar aqui, entendeu? Nós não pagamos trabalhador, nós não pagamos nada. Então temos que estar sempre nas plantações [...] E tem muito gasto, de tudo, de tempo, de gasolina de carro, tudo é um gasto. (E8)

Mas eu faço assim, vamos supor, hoje eu tenho que ir lá fazer compra para minha mãe na parte da tarde, se não for descascar o milho, eu vou lá, olho os remédios dos três, tudo que tá faltando, faço toda a compra e só vou no mês que vem. Farmácia, mercado, sacolão, faço tudo de uma vez. (E9)

Assim, ao dar voz às experiências das trabalhadoras rurais, revelam-se desafios na busca por cuidados nesse território. Neste itinerário, deparam-se com dilemas referentes aos arranjos organizacionais e às barreiras para acesso à ESF localizada na sede de apoio na comunidade rural e na sede distrital. Logo, foi possível aprofundar em suas narrativas o modo como ocorria essa busca durante a pandemia de covid-19.

Entre medo e (des)atenção à saúde: visibilidade para as trajetórias das trabalhadoras rurais durante a pandemia de covid-19

As trabalhadoras rurais retrataram o impacto da pandemia de covid-19 em seus itinerários, revelando a angústia que sentiam durante esse contexto, a perturbação com a possibilidade de se contaminarem pelo vírus bem como o medo de transmissão para as pessoas do seu convívio. Emergiu em suas narrativas o desespero, acarretando isolamento em suas próprias casas.

Nós temos o medo do vírus, pelos meus pais e pelos meus filhos, porque minha filha é alérgica. (E7)

Eu senti na verdade, vou falar com você, tem dia que era desespero, ficava “Ô, Meu Deus, será possível que isso vai chegar em nós”, entendeu? (E10)

Tenho medo de morrer por causa disso, daí eu evito demais de sair na rua. Eu tenho medo, muito medo dessa pandemia, então isso mexe muito com a cabeça, acho que isso está mexendo com a cabeça de todo mundo. (E13)

Por meio das suas narrativas, foi possível identificar que o contexto de pandemia de covid-19 interferiu em suas trajetórias, gerando isolamento, evitando a busca de cuidado a saúde na ESF.

Entrou essa pandemia aí, eu não fiz mais consulta não. (E2)

Mas assim para ir buscar saúde? Eu não estou sentindo nada, o que eu vou fazer lá, eu não tenho nada para fazer na ESF, o que eu vou fazer lá? Daí eu evito mesmo. (E11)

Observou-se que essas mulheres não realizaram os cuidados de prevenção na ESF desde o início da pandemia, como controle da pressão arterial, e priorizaram a compra de medicamentos nos serviços de farmácia:

E depois dessa pandemia, eu não medi mais pressão, deve ter um ano e meio, mas eu não fico sem tomar o remédio, sabe? Eu tomo remédio direitinho, mas para medir não. (E6)

Então, quando tem uma febre, a gente vai na farmácia, compra uma dipirona, paracetamol, assim, e trata em casa mesmo, ainda mais com essa pandemia. (E7)

Então vamos tomar dipirona mesmo, porque para ir lá, é ficar no meio de muita gente também, eu tenho muito medo, da gente pegar a doença, a gente fica com medo. (E14)

A pandemia de covid-19 isolou ainda mais as trabalhadoras rurais em seus territórios. Nas narrativas, elas revelaram que não realizaram exames de acompanhamento devido à preocupação de serem contaminadas e transmitirem para suas famílias.

E eu ir lá para voltar contaminada, eu não vou fazer isso, porque eu tenho meu sogro que é idoso aqui, entendeu? Essas coisas, entende? Então, para gente ir lá e trazer a doença para cá? Eu escolhi, ficar aqui sem tratamento. (E8)

Já vai para dois anos que não faço o acompanhamento de um exame que fazia de seis em seis meses. (E10)

As narrativas revelaram que, durante a pandemia de covid-19, o atendimento da ESF foi suspendido na escola desativada da comunidade rural onde era realizada a assistência, gerando, por conseguinte, sentimentos de abandono, dúvida e angústia nas trabalhadoras rurais que careciam de informação de saúde. Essa dificuldade foi intensificada pelo isolamento em suas residências e pela ausência de transporte para deslocamento dos profissionais de saúde até a comunidade rural durante o panorama pandêmico.

Agora ali era uma escola e virou um postinho e agora não é nada, mas diz que é por causa do coronavírus, mas dizem que essa doença não vai passar, então nunca se a gente for olhar, entendeu? Diz que essa doença vai durar um tempão, agora, se é verdade ou é mentira, só Deus sabe, né? (E8)

No caso como estava muito forte a pandemia, nós ficamos sem assistência, não podia ir lá, não tinha carro para elas vim para cá, graças a Deus, nesse meio tempo o pessoal se manteve bem, mas, se o pessoal precisasse de uma orientação, ficava difícil, não tinha como na verdade. (E11)

Quando o atendimento da ESF vinha até aqui na comunidade, era muito bom, daí olhava a pressão, olhava colesterol, olhava diabetes, e agora tem muito tempo que não faço esses exames, não faço desde quando a pandemia começou. (E12)

Dessa maneira, as trabalhadoras rurais com seus próprios modos construíam seus oportunos itinerários e sustentavam em suas narrativas um potencial entendimento sobre as escolhas terapêuticas, o funcionamento e a organização da atenção à saúde rural no período precedente e subsequente à pandemia de covid-19. Nesse percurso, no qual escolhiam a ESF como principal rede preferencial para busca de cuidados à saúde, vivenciavam uma longa distância a ser percorrida para a garantia do direito à saúde.

Discussão

Pensar os territórios rurais constitui importante desafio na atualidade haja vista a necessidade de superar a histórica dicotomia urbano-rural presente no debate. É crucial avançar no entendimento do contexto rural como uma construção social que integra as diferentes transformações do mundo contemporâneo. Desse modo, as questões que versam sobre dimensões como relações de gênero, disputas pela terra, singularidades da agricultura familiar, processos de modernização da agricultura, pobreza rural, processos de subjetivação e pertença, desenvolvimento sustentável, entre tantas outras, evidenciam a complexidade inscrita nos contextos rurais (Silva et al., 2019SILVA, B. I. B. M et al. Produção da Psicologia no Brasil sobre mulheres rurais: revisão sistemática. Arquivos Brasileiros de Psicologia, Rio de Janeiro, v. 71, n. 2, p. 163-178, 2019. Disponível em: <Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672019000200012&lng=pt&nrm=iso >. Acesso em: 21 mar. 2023.
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).

Ser trabalhadora rural no Brasil representa, além de todos os desafios comuns ao cotidiano do campo, uma busca por visibilidade e reconhecimento. As desigualdades de gênero se expressam também no mundo rural, e foi preciso um processo de luta para que sua relação com a terra transcendesse a invisibilidade. Assim, ainda que sua presença seja força expressiva no plantio, na casa, no cultivo, no quintal e na luta pela terra, as trabalhadoras rurais também precisaram empreender esforços para serem reconhecidas como trabalhadoras (Sales, 2007SALES, C. M. V. Mulheres rurais: tecendo novas relações e reconhecendo direitos. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 15, n. 2, p. 437-443, 2007.). É nesse contexto simbólico, subjetivo e desafiador que são construídos os itinerários das trabalhadoras rurais na busca do cuidado em saúde.

As narrativas da primeira categoria expõem esse itinerário, tornando-se essencial refletir sobre o atual modelo assistencial de saúde, cuja implantação ocorreu por meio do Programa Saúde da Família (PSF), a partir de 1994, o qual se desenvolveu para ESF, como mecanismo para expansão da APS no Brasil. Esse modelo foi conduzido pela Política Nacional de Atenção Básica (Pnab), criada em 2006, que avançou ao incorporar as diretrizes sobre as redes de atenção, orientação para os serviços, estruturação de equipes e financiamento do sistema. Após esse período, a Pnab passou por revisões em 2011 e 2017, que ocorreu em diferentes governos. Na edição de 2011, flexibilizou-se a carga horária da categoria médica, com possibilidade de 20 ou 30 horas semanais, para atender à carência desses profissionais na equipe. Já na edição de 2017, ocorreram mudanças significativas relacionadas ao menor investimento na ESF, à redução do número de ACS, descaracterizaram-se funções e redefiniu-se a equipe mínima, desdobrando-se como um atual desafio à promoção da cobertura da saúde da família, principalmente para os territórios vulneráveis (Gomes; Gutiérrez; Soranz, 2020GOMES, C. B. S.; GUTIÉRREZ, A. C.; SORANZ, D. Política Nacional de Atenção Básica de 2017: análise da composição das equipes e cobertura nacional da Saúde da Família. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 4, p. 1327-1338, 2020. DOI: 10.1590/1413-81232020254.31512019
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).

Cabe destacar que, mesmo diante da última alteração em relação à Pnab, a ESF continua sendo uma potência para o avanço da assistência à saúde rural, porém essas mudanças agravam os desafios para eliminar as barreiras de acesso à APS, principalmente nos municípios rurais e remotos brasileiros (Bousquat et al., 2022BOUSQUAT, A. et al. Different remote realities: health and the use of territory in Brazilian rural municipalities. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 56, n. 73, p. 1-11, 2022. DOI: 10.11606/s1518-8787.2022056003914
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). Esse contexto se apresenta no local de vida e trabalho das trabalhadoras rurais, ao elucidarem a emblemática organização da ESF no território, relacionadas a condições da estrutura física para o atendimento na comunidade, à ausência da assistência médica e carência de visita dos ACS.

Aprofundando a discussão para busca de melhorias na organização da APS em municípios rurais, um estudo afirma que é necessária a construção de uma Rede de Atenção à Saúde integrada e abrangente que se adeque às singularidades da população rural e que seja coordenada pela ESF. Para isso, é fundamental robustecer a ESF no território, por meio de equipes de saúde que alcancem as necessidades de saúde no contexto da comunidade rural (Franco; Giovanella; Bousquat, 2023FRANCO, C. M.; GIOVANELLA, L.; BOUSQUAT, A. Atuação dos médicos na Atenção Primária à Saúde em municípios rurais remotos: onde está o território?. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 28, n. 3, p. 821-836, 2023. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-81232023283.12992022
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). Além disso, o ACS é o principal elo entre a comunidade rural e as equipes de saúde, e, aumentar o investimento em maior quantitativo de ACS para atender as demandas das comunidades, bem como o número de transporte para locomoção das equipes móveis, é um caminho para concretização da atenção à saúde rural (Soares et al., 2020SOARES, A. N. et al. Cuidado em saúde às populações rurais: perspectivas e práticas de agentes comunitários de saúde. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 30, n. 3, p.1-19, 2020. DOI: 10.1590/S0103-73312020300332
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). Contudo, é necessário explicitar as contrariedades que retrocedem esse avanço, como fatores estruturais, falta de conhecimento dos gestores sobre as singularidades da população rural e dificuldade do município em cobrir as demandas devido ao baixo financiamento na APS e pelo efeito das diretrizes propostas pela atual Pnab (Garnelo et al., 2018GARNELO, L. et al. Acesso e cobertura da Atenção Primária à Saúde para populações rurais e urbanas na região norte do Brasil. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 42, n. spe 1, p. 81-99, 2018. DOI: 10.1590/0103-11042018S106
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; Gomes; Gutiérrez; Soranz, 2020GOMES, C. B. S.; GUTIÉRREZ, A. C.; SORANZ, D. Política Nacional de Atenção Básica de 2017: análise da composição das equipes e cobertura nacional da Saúde da Família. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 4, p. 1327-1338, 2020. DOI: 10.1590/1413-81232020254.31512019
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).

Outro ponto identificado pelas trabalhadoras rurais está relacionado aos seus modos de vida e à tensão vivenciada para o acesso e utilização dos serviços de saúde oferecidos pela ESF, o que dialoga com um estudo que descreve os desafios vivenciados pela população rural, como a distância à ESF, as más condições das estradas para acesso e a ausência de transporte para a locomoção das equipes de saúde às regiões rurais (Pessoa; Almeida; Carneiro, 2018PESSOA, V. M.; ALMEIDA, M. G.; CARNEIRO, F. F. Como garantir o direito à saúde para as populações do campo, da floresta e das águas no Brasil? Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 42, n. esp. 1, p. 302-314, 2018. DOI: 10.1590/0103-11042018S120
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). Para enfrentamento dessas barreiras, é urgente o envolvimento dos gestores públicos para qualificar o acesso da população rural aos serviços da APS com foco na ESF. Esse aspecto pode ser potencializado pela implementação da PNSIPCFA, possibilitando ações e iniciativas que reconheçam as especificidades da população, como a realização de um planejamento de logística das equipes de saúde da família rural incluindo as distâncias percorridas e o acesso aos outros serviços de saúde da rede assistencial (Pessoa; Almeida; Carneiro, 2018)PESSOA, V. M.; ALMEIDA, M. G.; CARNEIRO, F. F. Como garantir o direito à saúde para as populações do campo, da floresta e das águas no Brasil? Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 42, n. esp. 1, p. 302-314, 2018. DOI: 10.1590/0103-11042018S120
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. Agregam-se a essa discussão estudos internacionais, como a experiência das visitas da atenção primária em comunidades rurais e remotas realizadas na Austrália, que destacou a efetividade da instalação de estratégias de telessaúde para alcançar a população rural, o investimento para o deslocamento de profissionais e equipamentos e a ampliação do horário de atendimento na APS nos territórios rurais (Carey et al., 2018CAREY, T. A. et al. What principles should guide visiting primary health care services in rural and remote communities? Lessons from a systematic review. The Australian Journal of Rural Health, Armidale, v. 26, n. 3, p. 146-156, 2018. DOI: 10.1111/ajr.12425
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).

Outra questão retratada pelas trabalhadoras rurais são as escolhas para alcançar a saúde por meio dos serviços privados, bem como priorizavam a compra de medicamentos na farmácia localizada na região urbana, a fim de se obter maior resolutividade dos seus problemas de saúde. Importante mencionar que, quando não era possível arcar com os custos para o deslocamento até os serviços de saúde, as mulheres trabalhadoras optavam por ficar sem assistência à saúde, permanecendo em suas residências. Nesse sentido, um estudo confirma que os arranjos informais e privados agravam gastos catastróficos em saúde, que se somam aos recursos dispendidos com transporte, principalmente para aqueles que moram no meio rural. Desse modo, para a garantia de cuidado integral pela APS, pode se utilizar como estratégia uma coordenação horizontal no território e a inclusão do usuário, de maneira ativa, na definição de seu plano terapêutico (Galvão et al., 2019GALVÃO, J. R. et al. Percursos e obstáculos na Rede de Atenção à Saúde: trajetórias assistenciais de mulheres em região de saúde do Nordeste brasileiro. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 35, n. 12, p. 1-17, 2019. DOI: 10.1590/0102-31100004119
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). Além disso, percebe-se a importância de ampliar o saber no que tange a práticas de saúde rurais, seus anseios, condições de vida, visando investigar o que a população rural considera importante para ter saúde no território (Lima et al., 2019LIMA, A. R. A. et al. Necessidades de saúde da população rural: como os profissionais de saúde podem contribuir? Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 43, n. 122, p. 755-764, 2019. DOI: 10.1590/0103-1104201912208
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).

Os resultados da segunda categoria revelaram o isolamento das trabalhadoras rurais em suas residências, evitando o atendimento de saúde na ESF, devido à preocupação de serem contaminadas e transmitirem o vírus para suas famílias. Esse achado dialoga com o comportamento das pessoas na pandemia, que foi intensificado pelas estratégias adotadas de bloqueio social por meio da suspensão de eventos públicos, fechamento das fronteiras, restrição de aulas presenciais e proibição do funcionamento de estabelecimentos comerciais não essenciais (Almeida et al., 2020ALMEIDA, W. S. et al. Mudanças nas condições socioeconômicas e de saúde dos brasileiros durante a pandemia de COVID-19. Revista Brasileira de Epidemiologia, São Paulo, v. 23, p. 1-14, 2020. DOI: 10.1590/1980-549720200105
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). O efeito dessas decisões por parte das autoridades sanitárias está em consonância com um estudo que indica a necessidade de investigação dos impactos gerados pelo isolamento social para as populações vulneráveis (Bezerra et al., 2020BEZERRA, A. C. V. et al. Fatores associados ao comportamento da população durante o isolamento social na pandemia de COVID-19. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, Supl. 1, p. 2411-2421, 2020. DOI: 10.1590/1413-81232020256.1.10792020
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).

As narrativas também discorreram sobre o aprofundamento das precariedades apresentadas na atenção rural da ESF, devido à suspensão dos atendimentos rurais no território. Nesse sentido, há esforços internacionais para alertar os governos para a devida atenção às áreas rurais durante a crise de covid-19, principalmente por conta da ampliação das desigualdades já vivenciadas nessa população (Ranscombe, 2020RANSCOMBE, P. Rural areas at risk during COVID-19 pandemic. The Lancet. Infectious Diseases, New York, v. 20, n. 5, p. 545, 2020. DOI: 10.1016/S1473-3099(20)30301-7
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). No Brasil e no mundo ocorreram experiências de reorganização da APS para atendimento à população para áreas remotas na pandemia de covid-19, por meio do suporte tecnológico como os sistemas de telemedicina, teleconsulta e telessaúde, mantendo os serviços de saúde acessíveis para as populações que moram distantes (Furlanetto et al., 2022FURLANETTO, D. L. C. et al. Structure and responsiveness: are Primary Health Care Units prepared to face COVID-19? Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 46, n. 134, p 630-647, 2022. DOI: 10.1590/0103-1104202213403
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). Assim, fica evidente a relevância da APS no SUS em contextos de crises sanitárias, com potencial para aperfeiçoar os meios de operação e inserção de novas práticas sociais de intervenção comunitária a partir da coordenação de cuidados pela ESF (Medina et al., 2020MEDINA, M. G. et al. Atenção primária à saúde em tempos de COVID-19: o que fazer? Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 8, p. 1-5, 2020. DOI: 10.1590/0102-311X00149720
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).

Considerando o potencial deste estudo, é importante abordar as limitações, que incluem a compreensão do itinerário terapêutico das trabalhadoras rurais pertencentes à ESF de um território, o que não traduz toda a diversidade presente nas diversas regiões rurais. Também se considerou como limitação a não escuta dos gestores dos serviços da APS do município. Sugerem-se novos estudos sobre itinerário terapêutico para esta população, a fim de contribuir para a construção do conhecimento cientifico sobre a organização dos serviços de saúde para a população rural.

Considerações finais

O itinerário terapêutico das trabalhadoras rurais permitiu elucidar a ESF como rede preferencial para busca de cuidados à saúde e compreender o funcionamento e a organização desse serviço de saúde no território. Foram observadas as especificidades desse meio rural, que refletiu a distância entre a unidade de saúde e o local de vida das trabalhadoras rurais. Esse fato demanda estratégias para uso da ESF do distrito municipal e da sede de apoio por meio de uma maior oferta de transporte para deslocamento dos profissionais de saúde, investimento em contratação de equipes de saúde e de melhorias para a infraestrutura e acesso aos serviços, a fim de promover a continuidade das ações e o monitoramento da saúde nessa comunidade.

A escolha da ESF pelas trabalhadoras rurais assinalou a importância da valorização da APS a essa população rural, reforçando a atenção dos gestores e profissionais de saúde para a oferta de serviços de qualidade, que possibilite o desenvolvimento da assistência à saúde centrado nas suas particularidades e no alcance de políticas públicas mais equânimes ao grupo.

Conclui-se que a pandemia de covid-19 intensificou os desafios de acesso à saúde na ESF nesse território, retratando a urgência de ações para as populações vulneráveis em tempos de crise, bem como o reconhecimento das singularidades daqueles que vivem em comunidades rurais, sobretudo as mulheres.

É importante observar que, mesmo que a estrutura organizacional e administrativa tenha se configurado para atender ao território, o itinerário terapêutico demonstrou que esse arranjo assistencial não se efetivou na realidade das trabalhadoras rurais. Ademais, assegurar o direito à saúde implica não somente atender ao desenho institucional, mas determina em maiores esforços da gestão para o desenvolvimento da atenção integral à saúde em território rural.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    24 Mar 2023
  • Revisado
    22 Jan 2023
  • Revisado
    24 Mar 2023
  • Aceito
    10 Maio 2023
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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