Redução de danos entre praticantes de musculação que consomem esteroides

Túlio Cândido Ferreira Alexandre Palma Heitor Martins Pasquim Sobre os autores

Resumo

Esta pesquisa analisa os processos críticos para a redução de danos entre consumidores de esteroides, no contexto de academias de ginástica da região Metropolitana de Goiânia, Goiás, e os sujeitos do estudo foram selecionados por meio da técnica de Bola de Neve. Foi realizada análise de conteúdo a partir da transcrição de quinze entrevistas, e a exploração do material produzido levou à construção de quatro categorias a posteriori. Foram observadas ações - como o gerenciamento individual de riscos, a exemplo da autoexperimentação para avaliar a qualidade do produto e da automedicação na forma de terapias pós-ciclo - e, ao mesmo tempo, processos que conferem proteção à saúde, especialmente relativos às redes de apoio e à posição socioeconômica favorável dos participantes deste estudo. Considera-se importante estruturar ações proativas, contínuas e integradas de redução de danos que respondam às necessidades de saúde de quem consome esteroides, assim como implementar estratégias que superem tanto a abordagem de guerra às drogas quanto a abordagem apenas pragmática e individual do gerenciamento de riscos.

Palavras-chave:
Esteroides; Redução de danos; Treinamento de força; Educação em saúde

Introdução

O objeto deste estudo é a redução de danos no uso de esteroides. Os Esteroides Androgênicos Anabólicos - EAA são hormônios naturais ou sintéticos, usualmente derivados da testosterona, sendo que o seu consumo é percebido pela população em geral como associado a grave risco à saúde, especialmente quando utilizado de forma frequente (Bastos et al., 2017BASTOS, F. I. P. M. et al. (Org.). III levantamento nacional sobre o uso de drogas pela população brasileira. Rio de Janeiro: ICICT/Fiocruz, 2017.).

Optou-se, neste estudo, pelo termo consumidor de esteroides, não por “usuário”, para tensionar o que se considera droga na atual sociedade proibicionista e, também, pela literatura da área evidenciar a não identificação deste sujeito como um usuário de drogas, bem como porque o termo em si sugere uma utilização contínua (Ferreira, Cordeiro, Pasquim, 2020FERREIRA, T. C.; CORDEIRO, M. H.; PASQUIM, H. M. Consumo de drogas entre estudantes de educação física: uma revisão narrativa. Pensar a Prática, Goiânia, v. 23, e57957, 2020.), o que não é necessariamente verdade (IHRA, 2020HRI - HARM REDUCTION INTERNATIONAL. The global state of harm reduction 2020. 7. ed. Londres, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://hri.global/flagship-research/the-global-state-of-harm-reduction/the-global-state-of-harm-reduction-2020/ >. Acesso em: 23 fev. 2023.
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).

No Brasil, a redução de danos integra a Política Nacional de Saúde Mental (Portaria nº 1.028, de 1 de julho de 2005) e é uma das possíveis respostas às necessidades de saúde dos consumidores de drogas, dirimindo os prejuízos associados ao uso de substâncias - incluindo o esteroide -, mesmo que a política não o cite diretamente.

Apesar das evidências empíricas e científicas que apontam a necessidade e urgência de políticas e práticas de redução de danos, a perspectiva proibicionista ainda é hegemônica (Godlee, 2017GODLEE, F. Treat addictions with evidence, not ideology. BMJ: British Medical Journal, Londres, v. 357, j1925, 2017.). Entretanto, a criminalização e o encarceramento recorde, gerados por essa proibição, não reduziram o consumo e, tampouco, parecem gerar maior cuidado.

Ressalta-se que, em 2022, o World Drug Report reforçou as preocupações mundiais com o uso não-clínico de medicamentos (UNODC, 2022UNODC - UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME. World Drug Report 2022. Viena, 2022. Disponível em: <Disponível em: https://www.unodc.org/unodc/en/data-and-analysis/world-drug-report-2022.html >. Acesso em: 4 jan. 2023.
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) e, segundo a Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais, os EAA são os medicamentos mais apreendidos e que figuram entre os mais falsificados ou sem origem declarada (Neves, Ferreira, 2022NEVES, D. B. J.; FERREIRA, L. S. Artigo: Medicamentos falsos. APCF - Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais, Brasília, DF, 3 jun. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://apcf.org.br/noticias/artigo-medicamentos-falsos/ >. Acesso em: 29 jul. 2022.
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).

De fato, o uso não-clínico de esteroides e a automedicação para reduzir os efeitos colaterais são generalizados no contexto das academias de musculação (Samuell et al., 2022IFF, S. et al. Recognizing IPED use in clinical practice. Praxis (Bern 1994), Bern, v. 111, n. 6, e333-e337, 2022.). Todavia, os recursos clínicos para o cuidado em saúde, a compreensão das barreiras sociais e particulares para a cessação do uso e as orientações sobre a redução de danos para consumidores de EAA permanecem escassas (Bonnecaze, O‘Connor, Burns, 2021BONNECAZE, A. K.; O’CONNOR, T.; BURNS, C. A. Harm reduction in male patients actively using anabolic androgenic steroids (AAS) and performance-enhancing drugs (PEDs): a review. Journal of General Internal Medicine, Berlim, v. 36, n. 7, p. 2055-2064, 2021.), em especial na literatura brasileira, o que se apresenta como uma importante lacuna para a promoção de prática baseada em evidência.

Esta pesquisa tem como objetivo analisar os processos críticos (Breilh, 2021BREILH, J. Critical epidemiology and the people’s health. Nova York: Oxford University Press, 2021.) para a redução de danos entre consumidores de esteroides em contexto de academias de ginástica da região Metropolitana de Goiânia, Goiás. A finalidade é oferecer subsídios para a formulação de ações e práticas que respondam às necessidades de saúde de praticantes de musculação.

Procedimentos metodológicos

Esta é uma pesquisa em saúde de abordagem qualitativa, de tipo exploratória, que contou com um roteiro de entrevista semiestruturado (Gil, 2022GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. 7. ed. Barueri: Atlas, 2022.). Para apresentação dos resultados da pesquisa foi adotado o guia COREQ (Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research), conforme versão validada para o português falado no Brasil (Souza et al., 2021SOUZA, V. R. S. et al. Tradução e validação para a língua portuguesa e avaliação do guia COREQ. Acta Paulista de Enfermagem, São Paulo, v. 34, eAPE02631, 2021.).

A Redução de Danos Emancipatória - RDE foi tomada como referencial teórico para este estudo. A perspectiva da RDE vem sendo proposta como estratégia atenta às formas de reprodução social dos desgastes multidimensionais, quando relacionados ao consumo da mercadoria droga na sociedade capitalista (Oliveira et al., 2019OLIVEIRA, L. C. et al. Práticas emancipatórias na área de drogas: construção de projetos com trabalhadores da Atenção Primária à Saúde. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 53, e03528, 2019.; Pasquim, Campos, Soares, 2020PASQUIM, H. M.; CAMPOS, C. M. S.; SOARES, C. B. Lazer terapêutico: pesquisa-ação com trabalhadores de serviços de saúde mental, álcool e outras drogas. Movimento: Revista de Educação Física da UFRGS, Porto Alegre, v. 26, e26004, 2020.), orientando a resposta às necessidades de saúde, que incluem práticas solidárias e a coletivização dos consumidores.

O estudo foi composto por quinze indivíduos (10 homens; cinco mulheres), entre 21 e 40 anos, praticantes de musculação, que usaram EAA nos últimos doze meses - período proposto pelo Levantamento Nacional sobre o uso de drogas pela população brasileira (Bastos et al., 2017BASTOS, F. I. P. M. et al. (Org.). III levantamento nacional sobre o uso de drogas pela população brasileira. Rio de Janeiro: ICICT/Fiocruz, 2017.). Os sujeitos foram selecionados a partir da técnica de Bola de Neve, portanto, o corpus amostral do estudo foi constituído por conveniência. Cada participante foi limitado a oferecer duas referências, para dirimir o viés da amostra, conforme praticado em outro estudo com esteroides (Van Hout, Kean, 2015VAN HOUT, M. C.; KEAN, J. An exploratory study of image and performance enhancement drug use in a male British South Asian community. International Journal of Drug Policy, Amsterdã, v. 26, n. 9, p. 860-867, 2015.).

Devido à pandemia do novo coronavírus, as entrevistas aconteceram com auxílio de serviço de comunicação por vídeo, conforme disponibilidade dos participantes, entre os meses de setembro de 2020 e janeiro de 2021. Após a entrevista, cada participante foi identificado com a letra E (entrevistado) e um número sequencial, seguindo a cronologia do aceite.

O autor principal desta investigação foi responsável por conduzir todas as entrevistas, ficando sozinho com o(a) entrevistado(a) no local. As entrevistas tiveram uma duração média de 40 minutos. As sessões foram gravadas com a autorização prévia dos participantes e, posteriormente, transcritas.

Além da experiência pessoal com a substância, o pesquisador proponente é autor de um artigo de revisão sobre o uso de esteroides (Ferreira, Cordeiro, Pasquim, 2020FERREIRA, T. C.; CORDEIRO, M. H.; PASQUIM, H. M. Consumo de drogas entre estudantes de educação física: uma revisão narrativa. Pensar a Prática, Goiânia, v. 23, e57957, 2020.). Entendemos que, neste caso, ser um membro nativo favoreceu esta pesquisa, porque os participantes compartilharam com ele informações críticas sobre um consumo por vezes ilegal ou considerado imoral. Simultaneamente, para reduzir o potencial viés qualitativo, a discussão e a análise crítica foram realizadas conjuntamente entre todos os autores deste estudo, que conta com dois especialistas em saúde coletiva.

O contato inicial com os participantes aconteceu a partir da interação já existente com o pesquisador proponente. Os contatos realizados e as tentativas de contato foram registrados no Caderno de Campo, apenas para organizar o processo de elegibilidade dos potenciais entrevistados. Nove indivíduos não retornaram ou não atenderam ao convite desta pesquisa em pelo menos duas tentativas.

A pesquisa anterior do autor proponente serviu de referência para a sistematização do roteiro de entrevista semiestruturado utilizado nesta, em especial as questões associadas aos processos críticos para a redução de danos entre consumidores de esteroides. A entrevista continha, ainda, questões específicas sobre os EAA em uso, as quais não foram analisadas neste estudo.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa, CAAE 38777920.4.0000.5083 e seguiu todas as orientações éticas para estudos com seres humanos. Após aceite, cada participante assinou um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE.

Quadro 1
Roteiro para as entrevistas.

Resultados

Entende-se, neste estudo, que a produção do corpus amostral é o primeiro resultado produzido pelos procedimentos metodológicos utilizados. De 24 entrevistados em potencial, selecionados no âmbito da Bola de Neve, 15 aceitaram participar da entrevista.

Pode-se verificar (Quadro 2) que, entre os consumidores de EAA, a maioria era homem, de cor/raça não preta - brancos e pardos - e fazia uso recreativo de esteroide (ou seja, não é atleta de fisiculturismo). O grau de escolaridade e a renda dos entrevistados chamam atenção por estarem acima da média da população brasileira.

Quadro 2
Características dos participantes do estudo.

Foi realizada análise de conteúdo das entrevistas com exploração exaustiva do material, tratamento dos dados e interpretação crítica, portanto, com construção de categorias a posteriori, coerente com a abordagem qualitativa em saúde (Minayo, 2013MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 13. ed. São Paulo: Hucitec, 2013.).

A exploração do material produziu quatro categorias, a saber: (1) atenção à própria saúde; (2) rede particular de apoio; (3) estratégias pragmáticas de cuidado; e (4) confiança nos serviços de saúde.

Atenção à própria saúde

Quase todos os entrevistados se consideravam saudáveis. As justificativas para isso foram: ausência de doenças, estilo de vida regrado, atividade física regular, boa alimentação e exames médicos com frequência. Apenas um não se considerava saudável. Segundo ele, o uso excessivo e prolongado de esteroides havia prejudicado o seu rim.

Não muito [saudável] ultimamente, porque depois da competição, veio essa pandemia. Ai, desleixei um pouco. Não estou fazendo dieta, e veio esses problemas aí decorrentes das drogas [esteroides], então não estou tão saudável assim não, mas também não me preocupo com isso não (E1).

Apesar da maioria se sentir saudável, todos os entrevistados souberam relatar algum desgaste em saúde associado ou não ao uso de esteroides, evidenciando uma concepção de saúde não dicotômica, ainda que frequentemente biomédica.

Tô sim saudável. Porque o futebol também sempre fez parte da minha vida, sempre tive uma alimentação boa, nunca tive problema respiratório, de saúde grave, nada do tipo. […] eu sentia dor de cabeça, um pouco de tontura, às vezes eu ficava imprestável, mas era a minha rotina mesmo: trabalho e faculdade (E4).

Graças a Deus, raramente fico doente. Raramente tenho alguma dor de garganta, alguma gripe, alguma coisa assim, então me considero uma pessoa saudável sim […] dependendo da droga que usar, você fica mais nervoso, às vezes um pouco com dificuldade para dormir. Eu cresço (sic) mais cabelo na cara, por exemplo (E11).

Nunca tive problema de saúde, graças a Deus. Na minha gravidez eu passei por vários exames e nunca deu problema nenhum […] voz grossa, insônia, estresse, queda de cabelo, os pelos né [foram os efeitos adversos sentidos com o esteroide] (E12).

Os entrevistados não associaram o uso de esteroides e o consequente melhoramento da imagem com o autocuidado em saúde. Neste caso, E1 afirma que “Eu fiz por estética, não por saúde”.

Rede particular de apoio

Os entrevistados afirmaram que costumam buscar informações sobre saúde e esteroides na internet, com o treinador e com outros usuários. O grupo descreveu-os não como um conjunto isento de informações falsas ou oportunistas, mas como aquele sem julgamento, para o qual o consumidor de esteroides pode se aproximar sem sofrer avaliação moral.

Quase metade dos participantes da pesquisa mantém a utilização de esteroides em segredo da família. Segundo os entrevistados, fazem isso para evitar conflitos e reprovações. Não compreendem que os familiares compõe uma possibilidade real de suporte e de acolhimento, por isso não parecem identificar neste comportamento qualquer risco de dano à sua rede de apoio. “Você vai falar que usa esteroide pro seu pai e pra sua mãe?! Não vai dar certo. Infelizmente, a minha família tem muito a cabeça fechada, então preciso manter em sigilo isso” (E1).

Outrossim, a busca por saúde não foi mediada apenas por reprovações sociais, mas também pessoais. Houve quem verbalizou certo desconforto moral com o próprio uso de esteroides, referindo-se a si mesma como “suja” (E9), quando em uso, ou como alguém que não conta abertamente que é consumidora de EAA para não perder o papel social de exemplo de saúde na família e de quem “dá conselhos” sobre comportamento saudável (E10).

Todos os entrevistados relataram já terem comprado esteroides em laboratórios ilegais, o chamado mercado paralelo ou underground. No momento da entrevista, os participantes que disseram ter trocado a substância underground por produto comprado em farmácias revelaram que, quando fizeram isso, os efeitos colaterais negativos foram menos agressivos. Em outro sentido, os motivos que levam a maioria dos consumidores, segundo eles mesmos, a seguir comprando no mercado paralelo é a ilegalidade para o consumo não-clínico, assim como a facilidade de compra em laboratórios ilegais.

Apesar de ainda realizarem a compra no mercado paralelo, alguns indivíduos afirmaram não confiar nesses produtos. Os outros entrevistados alegam confiar na procedência da droga, por serem indicações de amigos, treinadores e/ou por comprarem sempre no mesmo fornecedor.

Considero minhas fontes confiáveis, não só internet né, porque a internet tem muita coisa falha, mas as pessoas que vivem disso sim […] como atletas, médicos e treinadores (E1).

Os sites que eu olho são sites confiáveis, e vários tem muita experiência de outras pessoas né, muitos exemplos aí bons, sem nenhum dano, então acredito, eu confio né (E15).

Estratégias pragmáticas de cuidado

Alguns entrevistados afirmaram que, ao perceber um ou mais efeitos indesejados, diminuíram conscientemente as dosagens. Segundo o relato deles, quando houve a redução, os efeitos danosos também foram diminuídos.

Outros mencionaram o uso das chamadas terapias pós-ciclo (TPC), medicamentos entre os ciclos de esteroides. Apenas uma minoria disse nunca ter usado nenhum medicamento para dirimir efeitos colaterais. Vale destacar que esse uso é feito sem prescrição médica, segundo os entrevistados.

Eu fiz [uso de remédios para diminuir os efeitos colaterais] logo após o ciclo. Eu fiz a utilização de alguns medicamentos para a famosa TPC, a terapia pós-ciclo, uso do tamoxifeno, uso de clomifeno… também já utilizei. Alguns remédios naturais, tipo ervas também, para ajudar a combater os efeitos colaterais (E4).

[Eu] tomava alguns remédios manipulados, mas não me lembro o nome. Mandava manipular uns três remédios diferentes […] que era para deixar a pele mais limpa, evitar a acne pela oleosidade, tinha um lá, que dizia, que era para deixar a mulher menos virilizada, para amenizar esse efeito, mas não acredito na eficácia, mas nessa época eu seguia todas as orientações (E2).

A autoaplicação foi comum entre os usuários entrevistados. Outros foram auxiliados por amigos ou família, sem instrumentalização técnica. Em geral, os consumidores de esteroides participantes não identificaram na autoaplicação o aumento do risco de lesões.

Os consumidores de esteroide deste estudo nunca compartilharam seringas com outro usuário e nem conhecem alguém que já o fez. No entanto, há entrevistados que já reutilizaram seringas em diferentes aplicações por questões econômicas, além de aqueles que conhecem quem já reutilizou seringas, apesar de saberem que a prática não é recomendada.

A utilização de esteroides em ciclo contínuo e ininterrupto (blast and cruise), prática considerada usual na comunidade de consumidores de esteroides, foi defendida por alguns como uma estratégia segura e eficaz para diminuir riscos e danos. Todavia, houve quem afirmasse o contrário, ou seja, a necessidade dos ciclos para auxiliar no controle de danos, alegando que o corpo necessita de um tempo de descanso dos esteroides para se recuperar. Apenas um indivíduo afirmou que os efeitos colaterais independem do uso em ciclos ou de forma ininterrupta. Para ele, o que importa é a qualidade da droga.

Chama atenção o fato de que poucos usuários conheciam a possibilidade de checagem da substância esteroide. Nesse sentido, no lugar de utilizar a estratégia de drug checking, fazem autoexperimentação para avaliar a qualidade do produto. A confiança neste método não parece abalada apesar do relato de acúmulo de danos.

Se o corpo respondeu é porque é bom [risos], se não cresceu perna é porque é ruim (E2).

Eu só confiei mesmo, mandei para dentro o que me deram né (E9).

Considero [a autoexperimentação confiável], porque toda vez que eu tomei nunca deu problema (E12).

Alguns entrevistados relatam usos de outras substâncias psicoativas durante o consumo de EAA, como álcool, nicotina, cocaína, ecstasy e maconha, especialmente em contexto de festas noturnas. Parte deles associou alguns efeitos sobre a insônia e o estresse como potenciais interrelações entre as substâncias.

Confiança nos serviços de saúde

Todos os entrevistados fizeram alguma avaliação médica nos últimos dois anos, o que sem dúvida é muito significativo, ainda mais porque grande parte do corpus amostral foi composta por homens jovens, grupo pouco aderente aos serviços de saúde. Destaca-se que a maioria advertiu o médico que estava usando esteroides, mas nem sempre recebeu, em seguida, alguma orientação sobre o assunto.

A minoria dos entrevistados relatou não confiar em profissionais da saúde. Segundo eles, porque acreditam que as suas demandas e suas necessidades não seriam acolhidas. Apesar desta menor parte, a maioria dos entrevistados aceitaria buscar aconselhamento e insumos para o uso de esteroides - seringas e agulhas - de forma gratuita em serviços especializados.

Chama atenção a posição de um dos entrevistados, para o qual a política de distribuição de insumos não seria “muito inteligente”, pois isso incentivaria as pessoas a fazer “coisa errada”. Opinião que expõe seu próprio conceito negativo sobre o consumo de esteroide, evidenciando que para além das reprovações sociais externas ao grupo de pares, os próprios consumidores de EAA podem carregar seus próprios julgamentos morais conservadores.

Os entrevistados citaram outras necessidades que poderiam ser acolhidas por serviços de saúde, como a possibilidade de atendimento interprofissional e especializado, a construção de salas para a aplicação de drogas, o acesso a drogas confiáveis e a checagem.

Eu acho que o atendimento integrado né, tanto em questão de psicólogo e também até questão de orientação sobre a aplicação (E5).

Ah… fazendo exame constantemente para saber como é que tá a saúde mesmo, como é que tá o corpo. Ter um diálogo aberto para saber de tudo. Logicamente, seria perfeito (E11).

Para além de ações assistenciais, uma entrevistada citou a necessidade de lutar contra o preconceito da população em relação ao uso de esteroides, além disso, todos responderam que os profissionais dos serviços de saúde poderiam auxiliar com informações amplas e realistas sobre as drogas.

Acho que a contribuição que pode ser feita seria no caso de preconceito contra quem usa (E14).

É… ensinar como aplicar, quais substâncias poderiam ser misturadas ou não, aquosa com oleoso. É… mais isso mesmo, na aplicação, dando um suporte de orientação né. Já que você quer usar, usa isso e isso, faz isso e isso, para não ter tantos danos (E1).

Ter essa orientação assim de cuidado, de higiene né. Essa questão de não compartilhar seringa. A forma correta de aplicar e tal, e essa questão dos exames, de fazer assim uma avaliação, periodicamente, de como está seu organismo, se está agredindo de alguma forma (E2).

Discussão

Tomando a redução de danos emancipatória - RDE como referencial teórico, o consumo de drogas na contemporaneidade responde às necessidades sociais do capitalismo hodierno, sejam elas marcadas por um hedonismo moderno e/ou relacionadas à vivência em uma sociedade que supervaloriza a competição social. Nesse sentido, para além da intenção de adaptação corporal a um padrão de beleza socialmente valorizado, portar um corpo musculoso é um capital corporal de qualidade profissional, como demonstraram diversos estudos (Abrahin, Souza, 2013ABRAHIN, O. S. C.; SOUZA, E. C. Esteroides anabolizantes androgênicos e seus efeitos colaterais: uma revisão crítico-científica. Revista da Educação Física/UEM, Maringá, v. 24, n. 4, p. 669-679, 2013.; Abrahin et al., 2011ABRAHIN, O. S. C. et al. Análise sobre os estudos científicos do uso de esteroides anabolizantes no Brasil: um estudo de revisão. FIEP Bulletin On-line, Bruxelas, v. 81, 2011. Número especial.; Palma, Assis, 2005PALMA, A.; ASSIS, M. Uso de esteróides anabólico-androgênicos e aceleradores metabólicos entre professores de educação física que atuam em academias de ginástica. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Brasília, DF, v. 27, n. 1, p. 75-92, 2005.).

É importante observar, ainda, que a sociabilidade conformadora da motivação para o uso de esteroides e as redes particulares de apoio estão inseridas em uma sociedade que, por sua vez, se torna espaço de valorização de práticas sociais. Neste caso, a hipertrofia da indústria capitalista e da mercadorização da vida determinam o valor social da mercadoria esteroide, ao vendê-la conjuntamente com a prática de musculação e com uma série de produtos e serviços (consultorias, suplementos etc).

Portanto, é importante retomar, desde logo, um pressuposto dos estudos críticos sobre o consumo de esteroides, o qual advoga que o uso não está diretamente relacionado à marginalidade ou ao desvio (Machado, Fraga, 2020MACHADO, E. P.; FRAGA, A. B. Anabolizantes na graduação em educação física: um dilema ético-sanitário entre estudantes que praticam fisiculturismo. Journal of Physical Education, Maringá, v. 31, e3166, 2020.; Silva, Ferreira, 2020SILVA, A. C.; FERREIRA, J. “Homens bombados e embalados”: masculinidades e músicas sobre anabolizantes em uma academia de ginástica. Lecturas Educación Física y Deportes, Buenos Aires, v. 25, n. 267, p. 2-20, 2020.; Sabino, 2017SABINO, C. Building muscles in Rio’s fitness clubs: the ritual use of anabolic steroids. ReVista: Harvard review of Latin America, Cambridge, v. 16, n. 3, p. 43-47, 2017.), pressuposto coerente com a perspectiva da RDE.

Os participantes deste estudo possuem nível de escolaridade maior que a média da população no país (IBGE Educa, 2022IBGE EDUCA. Conheça o Brasil - população: educação. Rio de Janeiro: IBGE, 2022. Disponível em: <Disponível em: https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18317-educacao.html >. Acesso em: 29 jul. 2022.
https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca...
). Além disso, apresentaram uma renda familiar de classe C, portanto maior que a média brasileira em 2021. Essa associação do consumo de esteroide com pessoas de maior renda e escolaridade foi percebida em outros estudos (Oliveira, Cavalcante Neto, 2018OLIVEIRA, L. L.; CAVALCANTE NETO, J. L. Fatores sociodemográficos, perfil dos usuários e motivação para o uso de esteroides anabolizantes entre jovens adultos. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Brasília, DF, v. 40, n. 3, p. 309-317, 2018.) e evidencia que o uso desta substância não está relacionado diretamente à degradação humana, como a perspectiva proibicionista advoga.

Os entrevistados possuem condições sociais protetoras, o que confere a eles uma rede de apoio, seja ela constituída por grupo de pares, por treinadores e/ou por profissionais de saúde. Entretanto, essas redes são costuradas de forma desinstitucionalizada, a partir da experiência singular, e sempre desviando de julgamentos morais que condenam o consumo de esteroides.

Os consumidores de EAA demonstraram conhecer empiricamente parte dos potenciais desgastes relacionados ao uso. De fato, não faltam estudos consistentes que associaram negativamente o consumo de esteroides à saúde. Efetivamente, o uso prolongado de esteroides tem sido correlacionado a alterações neuropsiquiátricas, disfunções emocionais e cognitivas (Bertozzi et al., 2019BERTOZZI, G. et al. Neuropsychiatric and behavioral involvement in AAS abusers: a literature review. Medicina (Kaunas), Kaunas, v. 55, n. 7, p. 396, 2019.; Bjørnebekk et al., 2017BJØRNEBEKK, A. et al. Structural brain imaging of long-term anabolic-androgenic steroid users and nonusing weightlifters. Biol Psychiatry. v. 82, n. 4, p. 294-302, 2017.), assim como à distúrbios cardiovasculares, metabólicos, endócrinos, neurológicos, infecciosos, hepáticos, renais e musculoesqueléticos (Pope et al., 2014POPE JUNIOR, H. G. et al. Adverse health consequences of performance-enhancing drugs: an Endocrine Society Scientific Statement. Endocrine Reviews, Washington, DC, v. 35, n. 3, p. 341-375, 2014.).

Nesta investigação, os consumidores de esteroides não entendem que o uso de EAA faz parte do autocuidado em saúde. Ainda assim, o discurso proibicionista que associa linearmente o uso da substância com uma agressão ao corpo parece incapaz de gerar reflexão, empatia ou melhores cuidados em saúde.

Grande parte dos entrevistados considerou gozar de boa saúde. Buscando mantê-la, o acesso frequente a serviços assistenciais e a realização de exames se apresentaram como necessidades de primeira ordem. Uma parcela dos consumidores consultados relata, também, o uso de esteroides aos profissionais de saúde, consideram o uso de estratégias de gerenciamento de riscos e utilizariam serviços de troca de insumos e aconselhamentos, se esses lhes fossem oferecidos por serviços especializados e sem um objetivo apriorístico de gerar abstinência, como acontece em alguns países na Europa (Smit, Ronde, 2018SMIT, D. L.; RONDE, W. Outpatient clinic for users of anabolic androgenic steroids: an overview. The Netherlands Journal of Medicine, Amsterdã, v. 76, n. 4, p. 167, 2018.). Ou seja, eles não são indiferentes aos potenciais danos relacionados ao consumo de esteroides.

Não há consenso entre os entrevistados sobre quais seriam as práticas menos danosas no uso de esteroides, mesmo que reconheçam que há formas mais problemáticas do que outras. Todavia, existem evidências e estudos científicos que oferecem aconselhamentos práticos, como as contraindicações para: uso desacompanhado de um médico; uso em dosagens extremas (muito acima do suprafisiológico); compra no mercado paralelo; uso conjunto de substâncias psicoativas; uso ininterrupto por vários anos; e substituição de alimentação, de sono e treino adequados por EAA (Câmara, 2018CÂMARA, L. C. Esteroides anabólico androgênicos: conceitos fundamentais. São Paulo: Lura, 2018.).

Como prática considerada socialmente ilegal e imoral, a maior confiança ainda é depositada no empirismo das pessoas que vivem do uso de esteroides, o que coloca em dúvida a capacidade de gerenciamento individual deste risco. Ademais, a confiança de alguns em EAA provindos do mercado paralelo expressa uma aposta arriscada. Afinal, estudos mostram que, neste local, é comum que haja proporções menores do que o anunciado, substâncias de qualidade inferior ou até medicamentos sem nenhum anabolizante (Magnolini et al., 2022MAGNOLINI, R. et al. Fake anabolic androgenic steroids on the black market - a systematic review and meta-analysis on qualitative and quantitative analytical results found within the literature. BMC Public Health, Londres, v. 22, p. 1371, 2022.).

Para além dos cuidados pragmáticos já realizados em âmbito singular e particular, os entrevistados souberam citar necessidades sociais de saúde dos consumidores de esteroides, o que mostra que o grupo atualmente invisibilizado poderia ser convocado a participar ativamente da formulação de ações e políticas especializadas.

Os achados confirmam a necessidade de políticas e de práticas que coloquem em destaque o consumidor de esteroides que cuida da sua saúde, não um desviante desinformado, que precisa de recomendações engessadas - frequentemente exageradas - e que apenas enfatizam os efeitos negativos das substâncias sobre o organismo. De fato, alguns consumidores de EAA conhecem os efeitos adversos do uso e estão dispostos a seguir usando (Haluch, 2020HALUCH, C. E. F. Testosterona (fisiologia, estética e saúde). Curitiba: Dudu Haluch, 2020.). Nesta circunstância, o sistema de saúde deveria apresentar estratégias orientadas pela redução de danos.

Tornou-se nítido que há, para além de uma dimensão de sociabilização coletiva, uma individualização na relação do consumo, por isso, é fundamental compreender quem são os consumidores de esteroides, para que haja formulação de ações de conscientização, de identificação de necessidades de saúde e de redução de danos propriamente dita. A atual política de controle de drogas é inconsistente com os avanços no campo dos direitos humanos e com as evidências científicas (Hart, 2021HART, C. Drogas para adultos. São Paulo: Zahar, 2021.). Neste contexto, as abordagens em saúde pública têm desempenhado um papel ainda muito limitado e a projeção desses achados para a formulação de políticas sociais é fundamental.

Vale destacar como limitação deste estudo que a prática de musculação não encerra uma realidade única. Há academias de musculação com distintos portes, tipos, público, localização e preço, assim como consumidores de EAA com condições de vida e de trabalho que acumulam maiores ou menores desgastes. Entende-se ainda que, apesar deste estudo não diferenciar os grupos sociais que praticam musculação, os atletas de fisiculturismo estão envolvidos com uma rotina e prática corporal bioascética, o que pode influenciar bastante o consumo e o nível de compreensão sobre redução de danos em esteroides. Ainda assim, o estudo tem a potência de dar destaque a um conteúdo pouco observado até hoje, a saber: a redução de danos em esteroides.

Considerações finais

Esta pesquisa analisou os processos críticos para a redução de danos entre consumidores de esteroides que praticam musculação na região Metropolitana de Goiânia, Goiás. Foram produzidas quatro categorias a posteriori: atenção à própria saúde; rede particular de apoio; estratégias pragmáticas de cuidado; e confiança nos serviços de saúde.

Encontraram-se achados sobre o gerenciamento individual de riscos, como a autoexperimentação para avaliar a qualidade do produto, assim como a automedicação na forma de terapias pós-ciclo, e, ao mesmo tempo, processos que conferem proteção à saúde, especialmente as redes de apoio e a posição socioeconômica favorável dos participantes deste estudo.

Nesse sentido, há especificidades que merecem atenção dos formuladores de política e profissionais de saúde, entre essas: o fato de que há redes de apoio constituídas por grupo de pares, familiares, treinadores e/ou profissionais de saúde; consumidores de esteroides reconhecem as próprias necessidades sociais de saúde; e, em geral, confiam nos profissionais de saúde.

Os participantes desta investigação não são indiferentes às estratégias que promovem a saúde, o que vai na contramão de práticas orientadas apenas para a abstinência e que buscam transmitir informações para um sujeito desviante e desinformado. Destaca-se que as estratégias de autocuidado identificadas foram mediadas pela indisponibilidade de políticas públicas de saúde e pelas reprovações sociais. Além disso, os consumidores de EAA carregam seus próprios julgamentos morais conservadores, o que pode dificultar a sua coletivização, a busca pelo direito à saúde e por acesso às estratégias de redução de danos.

Por fim, considera-se importante estruturar ações proativas, contínuas e integradas de redução de danos, que respondam às necessidades de saúde de quem consome esteroides, assim como implementar, a partir do SUS, estratégias que superem tanto a abordagem de guerra às drogas quanto a abordagem apenas pragmática e individual do gerenciamento de riscos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    08 Jan 2023
  • Revisado
    08 Jan 2023
  • Aceito
    02 Fev 2023
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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