Resumo
A teoria do risco ou da responsabilidade objetiva dispensa a comprovação da culpa ou do dolo e tem como requisitos a ocorrência do dano e o nexo causal. Embora a constituição disponha a responsabilidade por acidente de trabalho como subjetiva, se tem observado na doutrina e no judiciário a adoção da responsabilidade objetiva em alguns casos de acidentes e doenças ocupacionais. Este estudo tem por objetivo analisar decisões do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região - São Paulo para conhecer em que situações a corte tem utilizado a responsabilidade objetiva. A pesquisa quanti-qualitativa, de caráter exploratório e descritivo, foi desenvolvida com base em análise documental e revisão bibliográfica. A pesquisa documental foi realizada em acórdãos que continham o descritor “acidente de trabalho”, disponíveis na base de dados do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, julgados no período entre 11/11/2015 e 10/11/2017. Os resultados indicaram que, do total de 559 casos julgados, em 275 a decisão foi de procedência, sendo 15% por responsabilidade objetiva. Considerando apenas os casos procedentes, a responsabilidade objetiva apareceu em 30,5% deles. Esse percentual revela que já é expressiva nessa corte a tomada de decisão com base na noção de responsabilidade objetiva, e que tal adoção tem potencial para afetar práticas de prevenção de acidentes.
Palavras-chave:
Responsabilidade Civil; Indenização aos Trabalhadores; Jurisprudência; Saúde do Trabalhador
Introdução
O art. 7º, inciso XXVIII, da Constituição Federal (Brasil, 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 5 out. 1988. Disponível em: <Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm >. Acesso em: 29 jun. 2021.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/con... ) assegura a responsabilidade civil por acidente de trabalho, devendo o empregador arcar com indenização cabível. A regra neste campo é da responsabilidade subjetiva, em que o dever de indenizar necessita da prova de três requisitos: dano, nexo causal e culpa da empresa. Portanto, há necessidade de provar a culpa, aí compreendendo o dolo (atividade intencional) ou a culpa em sentido estrito (negligência, imprudência ou imperícia), para que surja o dever de indenizar.
De acordo com a legislação, cabe ao acidentado o ônus da prova do acidente e da responsabilidade subjetiva. Inexistindo a prova, a decisão judicial é de improcedência do pedido apresentado. Esse resultado parece estimular empregadores a pensar que “vale a pena” não investir em prevenção, afinal, o ajuizamento de ações reparatórias não significa, necessariamente, a obrigação de pagar indenizações.
A defesa dessa abordagem é historicamente apoiada em práticas tradicionais de análises de acidentes de trabalho que atribuem culpa às próprias vítimas. Nas últimas décadas, contudo, crescem críticas às políticas e práticas tradicionais de segurança e ao papel de instituições envolvidas na formação de profissionais de segurança. A ênfase na persistência em explicações causais de acidentes, baseadas na dicotomia atos e condições inseguras, é justificada como estratégia para facilitar a defesa jurídica da empresa. Neste contexto, acidentes são descritos como fenômenos simples, uni ou paucicausais, geralmente atribuídos a comportamentos faltosos dos operadores envolvidos, que teriam feito algo indevido ou deixado de fazer o que deveriam. Os supostos erros humanos eram, então, assumidos como causa dos acidentes, que não precisariam ser explorados em busca do esclarecimento de suas origens (Binder; Almeida, 1997BINDER, M. C. P.; ALMEIDA, I. M. Estudo de caso de dois acidentes do trabalho investigados com o método de árvore de causas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 13, n. 4, p. 749-60, 1997. DOI: 10.1590/S0102-311X1997000400017
https://doi.org/10.1590/S0102-311X199700... ).
Porém, estudiosos destacam a importância de investigações que não se atenham às primeiras histórias contadas depois do acidente e adotem busca ativa de segundas histórias, explorando mais informações sobre o acontecido (Woods; Cook, 2002WOODS D.; COOK, R. Nine Steps to Move Forward from Error. Cognition Technology & Work, New York, v. 4, n. 2, p. 137-144, 2002. ). Na esteira dessas críticas, cresce também a difusão de novos conceitos e técnicas de análises de acidentes. No Brasil, ganhou difusão uma proposta desenvolvida no início dos anos 70 na França que, inspirada na ideia de análise de mudanças, ficou conhecida como modelo INRS (Institute National de Recherche et Sécurité), método árvore de causas - ADC (Binder; Almeida, 1997BINDER, M. C. P.; ALMEIDA, I. M. Estudo de caso de dois acidentes do trabalho investigados com o método de árvore de causas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 13, n. 4, p. 749-60, 1997. DOI: 10.1590/S0102-311X1997000400017
https://doi.org/10.1590/S0102-311X199700... ) ou árvore de variações.
Mais recentemente, mantendo o pilar da análise de mudanças e incorporando análise de barreiras, análise ergonômica da atividade e apoio em outros conceitos já usados em investigações de acidentes, ganha difusão o Modelo de Análise e Prevenção de Acidentes - MAPA (Almeida et al., 2014ALMEIDA, I. M. et al. Modelo de Análise e Prevenção de Acidentes - MAPA: ferramenta para a vigilância em Saúde do trabalhador. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 19, n. 12, p. 4679-4688, 2014. ). Esses novos instrumentos exploram acidentes como fenômenos com história, originados em redes de múltiplos aspectos proximais e distais em interações. Decisões e escolhas estratégicas, incubadas na história do sistema, podem atuar nas origens de falhas ativas que disparam acidentes, ensejando consequências imediatas e tardias. Acidentes passam a ser pensados em perspectiva organizacional e sociotécnica, com três dimensões representadas no modelo da gravata-borboleta: antecedentes (lado esquerdo da gravata), evento indesejado (o nó da gravata) e as consequências do acidente (lado direito da gravata), conforme apresentado em Almeida et al. (2014)ALMEIDA, I. M. et al. Modelo de Análise e Prevenção de Acidentes - MAPA: ferramenta para a vigilância em Saúde do trabalhador. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 19, n. 12, p. 4679-4688, 2014. .
Na avaliação da árvore de causas do acidente, é preciso que se examine em que situação e em quais circunstâncias ocorreu o evento, assim como se o trabalhador agiu consciente ou inconscientemente, se estava usando equipamentos de proteção adequados, bem como se os recebeu e se estavam dentro do tempo de vida útil. Melo (2012MELO, R. S. Ações acidentárias na justiça do trabalho: teoria e prática. 2. ed. São Paulo: LTr, 2012.) exemplifica, ainda, que é importante conhecer qual o ritmo do trabalho, as exigências de produção por parte da empresa, se o trabalhador tinha capacitação técnica para a atividade e, se não a tinha, se recebeu autorização superior para tanto, bem como se estava trabalhando sob algum tipo de pressão psicológica ou econômica.
Esses conceitos estão em oposição com as explicações comportamentalistas tradicionais adotadas no modelo ato inseguro/condição insegura, que enxerga comportamentos no trabalho como escolhas racionais, livres e conscientes de trabalhadores que atuariam em contextos em que poderiam facilmente escolher comportamentos seguros (Woods et al., 2010WOODS, D. et al. Behind human error. Farnham: Ashgate, 2010.; Amalberti, 2016AMALBERTI, R. Gestão da segurança: teorias e práticas sobre as decisões e soluções de compromisso necessárias. Presidente Prudente: Gráfica CS, 2016.). A atribuição de culpa às vítimas de acidentes é prática com raízes históricas já apontadas na saúde coletiva, seja como fator de inibição de prevenção, seja como estimulador da impunidade (Binder; Almeida, 1997BINDER, M. C. P.; ALMEIDA, I. M. Estudo de caso de dois acidentes do trabalho investigados com o método de árvore de causas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 13, n. 4, p. 749-60, 1997. DOI: 10.1590/S0102-311X1997000400017
https://doi.org/10.1590/S0102-311X199700... ).
O fato de que uma das excludentes do nexo causal seja justamente a comprovação de culpa exclusiva da vítima é explorado, em suas possíveis relações, com a de fator que alimenta disputa de explicações sobre origens de acidentes nas equipes profissionais envolvidas em análises desses eventos. Se o acidente é explicado como associado a ato inseguro, a erro humano ou a comportamento faltoso da vítima, o produto de sua análise pode ser usado na defesa jurídica da empresa.
Contudo, no mundo da produção do conhecimento sobre o tema da análise de acidentes, acumulam-se conceitos e práticas que tornam cada dia mais difícil aceitar explicações que atribuam o acidente à culpa exclusiva da vítima e pavimentem decisões de tribunais baseadas na adoção da responsabilidade subjetiva. Trata-se de movimento que associa produção de autores de diferentes campos do conhecimento e que introduz, no terreno das análises, uma série de conceitos e mesmo de novas técnicas de investigação. Numa rápida passagem, podem ser citados: desastres feitos pelo homem, acidentes incubados, acidente organizacional, falhas ativas e condições latentes; acidente como fenômeno sociotécnico, acidente normal ou sistêmico, armadilhas cognitivas, controle psíquico da ação, ação situada, margens de manobra, estratégias e modos operatórios, compromisso cognitivo ou soluções de compromisso necessárias, processos de tomada de decisões, entre outros (Binder; Almeida, 1997BINDER, M. C. P.; ALMEIDA, I. M. Estudo de caso de dois acidentes do trabalho investigados com o método de árvore de causas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 13, n. 4, p. 749-60, 1997. DOI: 10.1590/S0102-311X1997000400017
https://doi.org/10.1590/S0102-311X199700... ; Woods; Dekker; Cook; Sarter, 2010WOODS, D. et al. Behind human error. Farnham: Ashgate, 2010.; Amalberti, 2016AMALBERTI, R. Gestão da segurança: teorias e práticas sobre as decisões e soluções de compromisso necessárias. Presidente Prudente: Gráfica CS, 2016.).
Entre os estudiosos do tema acidentes do trabalho, é crescente a recepção encontrada pelas abordagens sistêmicas desses eventos no Brasil, ensejando caminhos de sua utilização em tentativas de responsabilização de empregadores. É possível que esse movimento também tenha contribuído para o crescimento observado nas últimas décadas no país, na adoção da responsabilidade civil objetiva em ações envolvendo acidentes do trabalho (Bertotti, 2014BERTOTTI, M. A responsabilidade civil objetiva no âmbito trabalhista. R. Fórum Trabalhista, Belo Horizonte, v. 3, n. 11, p. 109-124, 2014.; Diniz, 2018DINIZ, M. H. Curso de direito civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2018.; Salim, 2005SALIM, A. P. N. A teoria do risco criado e a responsabilidade objetiva do empregador em acidentes de trabalho. Revista do Tribunal do Trabalho da 3ª Região, v. 41, n. 71, p. 97-110, 2005.).
Estudo mostrou que, embora questões sobre a Saúde e Segurança do Trabalho não tenham encontrado abordagem adequada na jurisprudência trabalhista brasileira - pois a tutela preventiva de acidentes e doenças é timidamente utilizada pelos legitimados legais -, no tribunal superior, os resultados indicam sua uniformização, no sentido de usar a teoria do risco (responsabilidade objetiva) em segmentos ou funções com risco acentuado e aplicar a teoria da culpa (responsabilidade subjetiva) nos demais casos, mas com a culpa presumida do empregador (Cavalcante, 2016CAVALCANTE, S. R. O papel da Justiça do Trabalho na prevenção e reparação dos acidentes e doenças ocupacionais. 2016. 255 f. Tese (Doutorado em Saúde Ambiental) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2016.).
A passagem da responsabilidade subjetiva para responsabilidade objetiva transcorre em simultaneidade com esse movimento de surgimento e difusão de novos conceitos e práticas adotadas em investigações de acidentes de trabalho e desastres. Tal passagem não tem sido fácil e nem rápida.
Nenhuma indenização, por maior que seja o seu valor, é capaz de reparar um dano físico ou psicológico a um ser humano. Para a vítima, ela é sempre pequena. Para quem paga, é sempre grande. Desta forma, a melhor solução é prevenir os riscos ambientais e evitar os acidentes de trabalho (Melo, 2012MELO, R. S. Ações acidentárias na justiça do trabalho: teoria e prática. 2. ed. São Paulo: LTr, 2012., p. 285).
Este estudo assume o pressuposto de que o processo de passagem da responsabilidade subjetiva para objetiva já está em curso, e assume particularidades e especificidades com repercussões tanto na esfera jurídica como na da saúde coletiva/saúde do trabalhador, em especial no que se refere à prevenção de acidentes do trabalho. Explora aspectos de acórdãos adotados em Tribunal Regional do estado mais desenvolvido do país, decidindo ações reparatórias por acidentes de trabalho com base no entendimento da responsabilidade objetiva. Qual a importância assumida por essas decisões nas práticas do Tribunal? Quais os principais argumentos adotados em decisões apoiadas nesse entendimento? Quais os tipos de acidentes em que esse entendimento está sendo adotado? Eles se restringem às atividades já apontadas como portadoras de perigos e riscos ou já são usadas em outros tipos de situações? Até que ponto as decisões se mostram mais apoiadas em conceitos essencialmente jurídicos, como o princípio da equidade (quem tem os benefícios da atividade assume o seu ônus), ou já emergem em diálogos com o movimento de mudanças conceituais sobre o fenômeno acidente acima destacado?
Métodos
A pesquisa quanti-qualitativa, de caráter exploratório e descritivo, foi desenvolvida com base em análise temática documental (Bardin, 1977BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.) e revisão bibliográfica. A pesquisa documental foi realizada em acórdãos que continham o descritor “acidente de trabalho”, disponíveis na base de dados do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (TRT15), julgados no período entre 11/11/2015 e 10/11/2017. O objetivo do levantamento foi identificar as ações nas quais foi adotada a responsabilidade objetiva, para posterior análise em profundidade. O tribunal escolhido tem sede na cidade de Campinas e é o 2º maior tribunal da Justiça do Trabalho no país, ficando atrás em número de processos e magistrados apenas para o outro regional existente no mesmo estado de São Paulo, com sede na capital (TRT15, 2021TRT15. Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região. 2021. Disponível em: Disponível em: https://trt15.jus.br/institucional/estrutura-do-tribunal/quem-somos . Acesso em: 12 set. 2021.
https://trt15.jus.br/institucional/estru... ).
O trabalho iniciou com busca prévia de decisões judiciais em banco de dados de domínio público, com acesso irrestrito à toda população, das decisões judiciais proferidas pelo TRT15. No sítio web do tribunal, foi selecionada a opção “Jurisprudência” e depois a opção “Decisões”; em seguida, no campo “Trecho exato”, foi buscada a expressão “acidente de trabalho”; no campo “Órgão julgador PJe”, foi selecionada a opção “1ª Câmara”; e no campo “Data de publicação”, datas de 11/11/2015 a 10/11/2017”. O mesmo procedimento foi seguido para as demais Câmaras. A pesquisa e o armazenamento das listas de decisões foram efetuados na data de 27/12/2018.
Os dados obtidos foram organizados em planilha Excel, da qual foram retiradas ações não relacionadas aos objetivos do estudo (doenças ocupacionais e outras ações não reparatórias), chegando ao “n” de 559 decisões. O presente estudo se refere aos casos em que a decisão do tribunal foi apoiada na responsabilidade objetiva pelas razões já previamente comentadas. A estratégia abordada foi a explanatória sequencial, em que se coletam e analisam dados quantitativos e, com base nos resultados, passa a ser utilizada abordagem qualitativa para aprofundar a compreensão sobre o objeto em estudo (Holloway; Wheeler, 2010HOLLOWAY, I.; WHEELER, S. Qualitative research in nursing and healthcare. 3. ed. Oxford: Wiley-Blackwell, 2010.).
Configuração da responsabilidade objetiva
No campo do direito, a teoria da responsabilidade objetiva nasceu do direito francês, principalmente entre os doutrinadores Raymond Saleilles e Louis Josserand. Saleilles interpretou a palavra “faute” do art. 1.382 do Código Civil francês, entendendo que substitui a ideia de culpa pela de causalidade (Silva, 2008SILVA, J. A. R. O. Acidente do trabalho: responsabilidade objetiva do empregador. São Paulo: LTr , 2008.). Josserand analisou a praticabilidade da responsabilidade civil e da reparação à vítima, entendendo que a efetividade da reparação desta ou de seus herdeiros reside em retirar desses o ônus de provar o dano, a culpa e o nexo de causalidade. Também aponta que a multiplicidade dos acidentes gera anonimatos, revolta e mal-estar moral (Pereira, 2002PEREIRA, C. M. S. Responsabilidade civil. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense , 2002.).
A responsabilidade objetiva é uma teoria social que considera o homem como parte de uma coletividade, que precisa ter reparados os danos que alguém lhe causar. Por outro lado, para que não ocorra o enriquecimento ilícito da vítima, é importante que, mesmo se admitida a responsabilidade objetiva, se possa obter a exclusão no dever de reparar/indenizar quando o réu provar que cumpriu todos os cuidados atribuídos pela lei ou pelo contrato e não tendo, assim, contribuído para o evento (Melo, 2012MELO, R. S. Ações acidentárias na justiça do trabalho: teoria e prática. 2. ed. São Paulo: LTr, 2012.).
Para a configuração da responsabilidade objetiva pelo risco criado basta a ocorrência de dois requisitos: dano (lesão corporal ou perturbação funcional que leve à morte ou à incapacidade laborativa do trabalhador) e nexo causal (relação entre o evento danoso e a atividade laboral). Não são, portanto, necessários três requisitos, como ocorre na responsabilidade subjetiva, pois não se analisa a conduta culposa do empregador. Ou seja, o empregador responde independentemente de culpa, caso a sua atividade laboral seja considerada de risco. Se o empregador submete seu empregado a um perigo ou a um risco, próprios de sua atividade laboral, responde pela indenização, mesmo sem agir com culpa (Oliveira, 2019OLIVEIRA, S. G. Indenizações por acidente do trabalho ou doença ocupacional - De acordo com a reforma trabalhista Lei n. 13.467/2017. 11. ed. São Paulo: LTr , 2019.).
De acordo com Brandão, o conceito de atividade de risco é propositalmente aberto, a fim de que o legislador e a jurisprudência possam amoldá-lo às mudanças nas relações de trabalho provocadas principalmente pelos avanços tecnológicos, em prol da dignidade da pessoa humana, do valor social do trabalho, da proteção ao meio ambiente do trabalho, da redução dos riscos do trabalho e do direito à plena reparação dos danos ocasionados à pessoa do empregado (2010BRANDÃO, C. A responsabilidade objetiva por danos decorrentes de acidentes de trabalho na jurisprudência dos tribunais: cinco anos depois. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, Porto Alegre, v. 76, n. 1, p. 78-98, 2010.). Armond acrescenta que a caracterização da atividade de risco depende de uma manifestação judicial expressa (2011ARMOND, G. H. S. A responsabilidade objetiva do empregador no acidente do trabalho. 2011. 111 f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.).
A novidade associada à aplicação da responsabilidade objetiva é a defesa de que a demonstração da responsabilidade civil não mais se assente nos elementos culpa, dano e no vínculo de causalidade entre eles (Bertotti, 2014BERTOTTI, M. A responsabilidade civil objetiva no âmbito trabalhista. R. Fórum Trabalhista, Belo Horizonte, v. 3, n. 11, p. 109-124, 2014.; Salim, 2005SALIM, A. P. N. A teoria do risco criado e a responsabilidade objetiva do empregador em acidentes de trabalho. Revista do Tribunal do Trabalho da 3ª Região, v. 41, n. 71, p. 97-110, 2005.; Pereira, 2002PEREIRA, C. M. S. Responsabilidade civil. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense , 2002.; Oliveira, 2019OLIVEIRA, S. G. Indenizações por acidente do trabalho ou doença ocupacional - De acordo com a reforma trabalhista Lei n. 13.467/2017. 11. ed. São Paulo: LTr , 2019.). De acordo com muitos autores, a ideia de responsabilidade baseada na culpa deixava sem solução grande número de casos criados na sociedade moderna, cuja abordagem exigia a abordagem dos problemas da responsabilidade do ponto de vista da reparação de perdas (Salim, 2005SALIM, A. P. N. A teoria do risco criado e a responsabilidade objetiva do empregador em acidentes de trabalho. Revista do Tribunal do Trabalho da 3ª Região, v. 41, n. 71, p. 97-110, 2005.).
A responsabilidade objetiva é fundada no princípio da equidade: cabe àquele que lucra com uma situação responder pelos riscos ou desvantagens dela resultantes (Diniz, 2018DINIZ, M. H. Curso de direito civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2018.; Oliveira, 2019OLIVEIRA, S. G. Indenizações por acidente do trabalho ou doença ocupacional - De acordo com a reforma trabalhista Lei n. 13.467/2017. 11. ed. São Paulo: LTr , 2019.). O fundamento da responsabilidade passa a ser visto na atividade exercida pelo agente, pelo perigo que pode causar dano à vida, à saúde ou a outros bens. A teoria do risco criado é vista como a que melhor se adapta a essa situação (Salim, 2005SALIM, A. P. N. A teoria do risco criado e a responsabilidade objetiva do empregador em acidentes de trabalho. Revista do Tribunal do Trabalho da 3ª Região, v. 41, n. 71, p. 97-110, 2005.). Antes de ser aplicada às ações decorrentes de acidentes de trabalho, a responsabilidade objetiva já tinha previsão legal no direito brasileiro, principalmente no ambiental e no do consumidor (Cavalieri Filho, 2019CAVALIERI FILHO, S. Programa de responsabilidade civil. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2019.; Rossi, 2009ROSSI, F. Do acidente do trabalho ao dano ambiental individual: inaplicabilidade da responsabilidade objetiva. Revista Jurídica UNIJUS, Uberaba, v. 12, p. 121-132, 2009.; Franco, 2017FRANCO, D. M. Responsabilidade legal pelo dano ambiental: a aplicação das excludentes de responsabilidade. 2. ed. São Paulo: Blucher, 2017.; Leite e Ayala, 2020LEITE, J. R. M.; AYALA, P.A. Dano ambiental. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.; Khouri, 2013KHOURI, P. R. R. A. Direito do consumidor: contratos, responsabilidade civil e defesa do consumidor em juízo. 6. ed. São Paulo: Atlas , 2013.).
Podem-se citar, entre outras, as seguintes previsões legais:
Art. 37, § 6º, da Constituição Federal - responsabilidade das pessoas jurídicas de direito público e das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos pelos danos provocados por seus agentes;
Art. 225, § 3º, da Constituição Federal - responsabilidade por danos ao meio ambiente;
Art. 14, § 1º, da Lei de Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/81) - responsabilidade do causador de dano ambiental;
Art. 12 do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90) - responsabilidade do fornecedor pelos danos causados ao consumidor de produto ou serviço (Melo, 2012MELO, R. S. Ações acidentárias na justiça do trabalho: teoria e prática. 2. ed. São Paulo: LTr, 2012.).
Com o advento do Código Civil de 2002, a responsabilidade objetiva foi devidamente inserida na legislação, no parágrafo único do artigo 927 (Brasil, 2002BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Institui o Código Civil. Brasília, DF: Presidência da República , 11 jan. 2002. Disponível em: <Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm >. Acesso em: 29 jun. 2021.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei... ).
Resultados e discussão
Das 559 decisões identificadas no período de estudo, 275 (49,14%) foram consideradas procedentes ou parcialmente procedentes. Dessas, 191 (34,16%) foram decididas em consonância com a noção de responsabilidade subjetiva e 84 (15,03%) com a de responsabilidade objetiva.
Distribuição de decisões judiciais segundo resultado e fundamentação. TRT de estudo. Campinas, SP. 11/11/2015 a 10/11/2017. N = 559.
Os números indicam que, no Tribunal em questão, o processo de passagem das decisões por responsabilidade subjetiva para outras apoiadas na responsabilidade objetiva não se desenvolve de forma rápida e fácil, conforme já apontado por Cavalieri Filho (2019CAVALIERI FILHO, S. Programa de responsabilidade civil. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2019.), e que a maioria das decisões persiste apoiada na responsabilidade subjetiva.
Apesar do seu uso, inclusive, em diferentes TRTs do país e no Tribunal Superior do Trabalho, em suas petições iniciais os advogados raramente comentavam a possibilidade dessa estratégia decisória. Em todos os casos em que foi adotada, a responsabilidade objetiva teve origem em escolha soberana do julgador. Trata-se de escolhas que podem sinalizar que esteja em curso um processo de mudança na atitude de julgadores em relação ao fenômeno da morte no trabalho no Brasil. Em especial ao silêncio, à indiferença e, no pior dos cenários, à atribuição de culpa às vítimas já associadas a essas ocorrências. Tal movimento nos parece em sintonia com aspectos já apontados por Leplat (1997), em discussão sobre análise de eventos e responsabilidade em sistemas complexos, e por Rovelli (2008ROVELLI, M. Lavorare uccide. Milano: BUR - Biblioteca Universale Rizzoli, 2008.), ao discutir mortes no trabalho na Itália, defendendo acesso de vítimas e/ou familiares a direitos de reparação. Para Rovelli, isso seria parte do caminho para a superação do silêncio e da indiferença que circundam as mortes no trabalho.
Chama a atenção o fato de que na quase totalidade dos casos em que foi adotada a responsabilidade objetiva (84 casos) a decisão foi de procedência parcial (contidos nos 270 casos) para o pedido do reclamante. Isso se explica, principalmente, pelo fato de o julgador concordar com o pedido de indenização, mas não com os valores sugeridos na inicial pelo advogado. Na situação pré-reforma trabalhista, a inexistência de parâmetros-guia para arbitragem desses valores e a não obrigatoriedade de liquidação de pedidos contribuíam para maior frequência desse tipo de decisão (Silva, 2017SILVA, H. B. M. Comentários à reforma trabalhista . São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.; Cassar, 2017CASSAR, V.B. Comentários à reforma trabalhista. São Paulo: Método, 2017.).
A abordagem qualitativa foi adotada para destacar características reveladas em decisões apoiadas na noção de responsabilidade objetiva.
Como era de se esperar, os julgadores destacam o grau de periculosidade a que ficou exposto o acidentado no ambiente laboral, como no caso a seguir:
Caso 1 - Processo 00101**-**.2016.5.15.****
“E de outra forma não poderia ser diante do flagrante risco inerente às atividades hodiernas do trabalhador para proporcionar o desenvolvimento da atividade desenvolvida pelo empregador. O obreiro se acidentou em razão de falha de equipamento utilizado durante a consecução do seu contrato de trabalho. Trata-se de uma motosserra circular. Não há como se afastar da reclamada a responsabilização objetiva, pois, ainda que atividade preponderante da empregadora não desafie riscos à higidez física de seus colaboradores, é inegável que o desvirtuamento das funções obreira com a imposição de que o trabalhador se ativasse na utilização de equipamento que gera risco, findou por atrair a aplicabilidade do art. 927, parágrafo único do CC/02.”
A atividade de operação de máquina descrita como de risco evidente pode ser vista como exemplo de exposição de risco:
Caso 2 - Processo 00102**-**.2015.5.15.****
“No caso vertente, a atividade desempenhada pela reclamante a serviço da reclamada, que envolve obviamente a operação de máquinas cortantes, como a que a vitimou, encerra risco diferenciado para lesões produzidas pelas ferramentas. Forçoso, portanto, reconhecer a atividade de risco desempenhada pela reclamada, e sua consequente responsabilidade objetiva pela indenização.”
As decisões valorizam o perigo e o risco presentes em atividades já demonstradas em estudos epidemiológicos e em decisões do Tribunal Superior do Trabalho como sendo de alto risco de acidentalidade, notadamente as realizadas por: motoristas de caminhão, vigilante bancário/uso de motocicleta no exercício profissional e vigilante/escolta armada em transporte de valores. Uma lista já relativamente extensa organizada por Oliveira (2019OLIVEIRA, S. G. Indenizações por acidente do trabalho ou doença ocupacional - De acordo com a reforma trabalhista Lei n. 13.467/2017. 11. ed. São Paulo: LTr , 2019.) é destacada abaixo e pode ser vista como alerta aos julgadores, que deveriam considerar a aplicação da responsabilidade objetiva em casos de acidentes envolvendo:
Motorista de caminhão e seus ajudantes;
Cortador de cana-de-açúcar;
Transportador de valores em carro-forte;
Coletor de lixo;
Motociclista profissional;
Estivador;
Trabalhador em mina de subsolo;
Trabalhador com veículos automotores da empresa;
Vigilante;
Transportador de cargas visadas a assaltos;
Cobrador de ônibus;
Operador de máquina de laminação na siderurgia;
Torneiro mecânico;
Carteiro;
Trabalhadores em transporte por veículo fornecido pelo empregador (Oliveira, 2019OLIVEIRA, S. G. Indenizações por acidente do trabalho ou doença ocupacional - De acordo com a reforma trabalhista Lei n. 13.467/2017. 11. ed. São Paulo: LTr , 2019.).
Destaca-se que o dinamismo da sociedade e das relações de trabalho, em ambientes caracterizados pelos avanços tecnológicos, tornam obsoleto amanhã o que hoje é novidade. Assim, é impossível ao legislador regulamentar todas as normas caracterizadas pelo conteúdo preciso e definido (Brandão, 2010BRANDÃO, C. A responsabilidade objetiva por danos decorrentes de acidentes de trabalho na jurisprudência dos tribunais: cinco anos depois. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, Porto Alegre, v. 76, n. 1, p. 78-98, 2010.). A consequência é que a jurisprudência deve se amoldar a essas mudanças, ampliando a responsabilidade objetiva a outras atividades.
Neste estudo, uma das questões exploradas foi a de até que ponto acórdãos do tribunal em estudo adotavam a tese da responsabilidade objetiva também em casos de acidentes acontecidos em atividades distintas das acima citadas. Essa possibilidade foi evidenciada em dois casos.
Inicialmente, na atividade de inspetor de aeronaves:
Caso 3 - Processo 00125**-**.2014.5.15.****
“O reclamante alegou em sua petição inicial que no dia 12-09-2013 sofreu grave acidente de trabalho, nas dependências da primeira reclamada, quando um de seus funcionários descumpriu as normas de segurança, girando o motor de uma aeronave denominada Ultraleve TRAIKE, em local inapropriado, não sinalizado e sem o devido isolamento da aeronave por correntes de proteção de alerta. Afirmou o reclamante que estava dentro do hangar 14 e precisava inspecionar aeronaves da segunda reclamada que estava no hangar 13, mas que o TRAIKE estava com a roda do nariz encostado na coluna do hangar impedindo a passagem, obrigando que a circulação de um hangar para o outro se desse por trás da aeronave... num ato de reflexo, levantou o braço esquerdo que colidiu com a hélice, o que ocasionou a amputação imediata do seu membro...A dinâmica do acidente somada a experiência profissional do autor provam que a atividade exercida pela reclamada era de risco e que não havia proteção suficientemente capaz de evitar acidentes como aquele que acometeu o reclamante.”
Em outro caso, na atividade de produção de pisos:
Caso 4 - Processo 00100**-**.2014.5.15.****
“De outro vértice, a existência do acidente do trabalho é incontroversa, sendo que a atividade exercida junto à produção de pisos impõe ao trabalhador um risco à incolumidade física acima do normal, aplicando-se o parágrafo único do art. 927 do Código Civil. Logo, o acidente em questão e as queimaduras não deixam dúvidas da existência de dano extrapatrimonial, de modo que, observando-se a extensão do dano e a responsabilidade objetiva.”
Os casos destacados mostram tratar-se, de modo geral, de situações em que as estratégias e modos operatórios efetivamente adotados pelos trabalhadores implicam em situações de exposições que a simples inspeção visual permite reconhecer como modo operatório perigoso. Assim, a lista de atividades parece servir mais a propósitos exemplificativos, podendo, como no caso acima, ser ampliada quando a análise evidencia situação de risco iminente.
Merece registro o fato de que, no tribunal em questão, os casos julgados e decididos em consonância com a ideia de responsabilidade subjetiva não se referiam a acidentes ocorridos em atividades incluídas na lista que deveria ser considerada na aplicação da responsabilidade objetiva. Esse achado reforça a ideia de que a lista de atividades em que o julgador deve usar a noção de responsabilidade objetiva, em ações reparatórias por acidentes de trabalho, também seja usada como estímulo à adoção de políticas e práticas de prevenção, de modo a evitar futuras condenações judiciais.
O remanejamento do trabalhador para funções distintas, fazendo com que fosse exposto a riscos diferentes daqueles de seu trabalho de vínculo, também foi considerado nestas decisões. Trata-se de aspecto importante, uma vez que a análise considera o trabalho como aquilo que realmente é desenvolvido pelo empregado no sistema em questão (Brito, 2020BRITO, J. C. Trabalho real. In: DICIONÁRIO de educação profissional em saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2020. Disponível em: <Disponível em: http://www.sites.epsjv.fiocruz.br/dicionario/verbetes/trarea.html#:~:text=Fundamentalmente%2C%20a%20defasagem%20sempre%20existente,final%20da%20d%C3%A9cada%20de%201960 >. Acesso em: 29 jun. 2021.
http://www.sites.epsjv.fiocruz.br/dicion... ), e não o chamado “trabalho prescrito”.
Merece destaque a relativa sintonia entre interesses indenizatórios reclamados pelo acidentado com os de promoção da saúde e da prevenção de acidentes considerados na decisão judicial, que valoriza informações sobre histórico da empresa em termos de gestão de saúde e segurança. Ao assim fazer, o Tribunal vai além da defesa da prevenção indireta, supostamente estimulada ao estabelecer indenizações a serem pagas pela empresa. Trata-se de caminho importante, cuja existência merece ser explorada em estudos subsequentes. Afinal, qual o alcance da prevenção de acidentes associado à adoção de ações indenizatórias de acidentes de trabalho no país?
Em suas decisões, o Tribunal também valoriza o princípio da equidade. Em outras palavras, aqueles que se beneficiam das atividades devem assumir os ônus decorrentes de eventos danosos relacionados ao seu exercício:
Caso 5 - Processo 00110**-**.2016.5.15.****
“Assim, quem exerce profissionalmente uma atividade econômica, organizada para a produção ou distribuição de bens e serviços, deve arcar com todos os ônus resultantes de qualquer evento danoso inerente ao processo produtivo ou distributivo, inclusive os danos causados por empregados e prepostos, eis que quem se beneficia com uma atividade lícita e que seja potencialmente perigosa (para outra pessoas ou para o meio ambiente), deve arcar com eventuais consequências danosas (parágrafo único do art. 927 do CC/02).
O mesmo acórdão agrega crítica à noção de culpa exclusiva da vítima, tão frequente nas decisões apoiadas na noção de responsabilidade subjetiva. Nesse ponto, a decisão se mostra em consonância com o debate registrado na literatura de acidentes de trabalho, em particular com estudos de autores que discutem concepções de acidentes e já divulgam conhecimentos afins à ideia de acidente como fenômeno sócio-técnico, psico-organizacional, com origens em rede de múltiplos fatores em interação (Binder; Almeida, 1997BINDER, M. C. P.; ALMEIDA, I. M. Estudo de caso de dois acidentes do trabalho investigados com o método de árvore de causas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 13, n. 4, p. 749-60, 1997. DOI: 10.1590/S0102-311X1997000400017
https://doi.org/10.1590/S0102-311X199700... ; Woods; Cook, 2002WOODS D.; COOK, R. Nine Steps to Move Forward from Error. Cognition Technology & Work, New York, v. 4, n. 2, p. 137-144, 2002. ; Woods; Dekker; Cook; Sarter, 2010; Amalberti, 2016AMALBERTI, R. Gestão da segurança: teorias e práticas sobre as decisões e soluções de compromisso necessárias. Presidente Prudente: Gráfica CS, 2016.). A técnica de árvore de causas, desenvolvida no início dos anos 70 na França e relativamente bem difundida no Brasil (Binder; Almeida, 1997BINDER, M. C. P.; ALMEIDA, I. M. Estudo de caso de dois acidentes do trabalho investigados com o método de árvore de causas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 13, n. 4, p. 749-60, 1997. DOI: 10.1590/S0102-311X1997000400017
https://doi.org/10.1590/S0102-311X199700... ) é citada nominalmente:
Esclareça-se, ainda, que não há falar em culpa exclusiva da vítima, visto que o acidente de trabalho sempre tem que ser analisado com base em todos os atos que antecederam o infortúnio, de acordo com a teoria da árvore das causas, não se podendo atribuir a culpa do evento ao empregado, maior interessado na sua vida e na sua segurança. A única exceção é a comprovação de conduta dolosa do empregado para cometer o acidente. Nesse caso fala-se de dolo direto, o qual deve ser cabalmente comprovado pelo empregador. Nesse sentido: ACIDENTE DO TRABALHO. FATO GERADOR. TEORIA DA “ÁRVORE DE CAUSAS “. A caracterização do acidente do trabalho, por envolver múltiplos fatores, não pode ser feita à luz da dicotomia condições inseguras e atos inseguros. Envolve uma complexa análise dos fatores que, direta ou indiretamente, de forma próxima ou remota, contribuíram para a sua ocorrência, o que se faz à luz da teoria da árvore de causas.
A adoção da responsabilidade objetiva no tribunal estudado, em consonância com o entendimento do Tribunal Superior do Trabalho, revela a mudança de posição dessa corte, no sentido de se desapegar da doutrina clássica, focada na responsabilidade subjetiva, que pode levar a improcedências devido ao ônus da prova. Contudo, este não vinha sendo o entendimento uniforme entre as cortes trabalhistas do país. Mesmo no Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região não se observava uniformidade de entendimento entre as 11 Câmaras.
Neste sentido, temos que:
Diante das características do direito brasileiro, o legislador pode saber que o texto normativo não é capaz de determinar completamente a tomada de decisões jurisdicionais. Já vimos que um texto normativo fechado não garante a segurança jurídica como obtenção de respostas únicas: isso também vale para o Brasil. Além disso, a padronização da jurisprudência é feita pelo resultado e não pela fundamentação. Não há no Brasil um sistema de precedentes organizados e, além disso, casos e doutrina são usados para fundamentar ad hoc determinadas posições jurídicas (Rodrigues, 2013, p. 229).
Tudo indica que o suporte dado pelo Tribunal Superior do Trabalho tem se refletido nos resultados obtidos e nesta mudança de posição do TRT-15.
É fato que há grande caminho a ser percorrido. A teoria do risco deveria ser aplicada em toda ação indenizatória decorrente de acidente do trabalho, posto que a saúde do trabalhador, enquanto direito humano, merece tal proteção legal, além da responsabilidade trabalhista ter natureza contratual, semelhante à que ocorre no direito do consumidor (Silva, 2008SILVA, J. A. R. O. Acidente do trabalho: responsabilidade objetiva do empregador. São Paulo: LTr , 2008.).
Reflexo dos avanços nesta linha de entendimento, em março de 2020, o Supremo Tribunal Federal fixou a tese de repercussão geral determinando ser constitucional a responsabilização objetiva em caso de acidente de trabalho ocorrido em atividade de trabalho com risco habitual (tema 932). A partir de então, esse entendimento passou a ser utilizado em todos os casos que tratam da matéria. Abaixo, o texto da tese:
O artigo 927, parágrafo único, do Código Civil é compatível com artigo 7º, inciso XXVIII da Constituição Federal, sendo constitucional a responsabilização objetiva do empregador por danos decorrentes de acidentes de trabalho nos casos especificados em lei ou quando a atividade normalmente desenvolvida por sua natureza apresentar exposição habitual a risco especial, com potencialidade lesiva e implicar ao trabalhador ônus maior do que aos demais membros da coletividade (STF, 2020STF - SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Tema 932: possibilidade de responsabilização objetiva do empregador por danos decorrentes de trabalho. 2020. Disponível em: Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4608798&numeroProcesso=828040&classeProcesso=RE&numeroTema=932 . Acesso em: 18 mai. 2023.
https://portal.stf.jus.br/jurisprudencia... ).
Na mesma perspectiva protetiva, a Organização Internacional do Trabalho, em sua 110ª sessão, em junho de 2022 (ILO, 2022ILO - INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION. A safe and healthy working environment is a fundamental principle and right at work. Geneva, 2022. Disponível em: <Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_dialogue/---lab_admin/documents/publication/wcms_850673.pdf >. Acesso em: 17 mai. 2023.
https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public... ), reconheceu a segurança e a saúde no trabalho como direitos fundamentais, sendo possível, pois, esperar novos avanços no acolhimento das demandas de trabalhadores relacionadas a situações de violações desse direito nos ambientes de trabalho.
Considerações finais
O acolhimento da responsabilidade objetiva em 30,5% dos casos procedentes e parcialmente procedentes, de ações indenizatórias por acidentes de trabalho exploradas nesse estudo, é visto com otimismo por aplicadores do direito e profissionais do campo da saúde do trabalhador. Esse achado já indicava, nas avaliações iniciais dos resultados desta pesquisa, que estava em curso um processo de aumento lento, mas progressivo, do número de julgadores que assim decidem, movimento que culminou na fixação da tese de repercussão geral no STF. Aparentemente, trata-se de avanço apoiado não só na percepção crítica de limites da responsabilidade subjetiva para decisões em casos que envolvem atividades de trabalho com alta prevalência de exposição a perigos e riscos, como também no aumento de adesões de julgadores a decisões em concordância com o princípio da equidade, cujo uso vem sendo crescente em áreas como as do direito do consumidor e do meio ambiente.
O otimismo em questão encontra ressonância em achado deste estudo. Afinal, em dois casos houve decisão de aplicação da responsabilidade objetiva em acidentes ocorridos em situações de trabalho que não constavam na conhecida lista, cuja aplicação deveria ser considerada.
A opção pela responsabilidade objetiva também se dá em meio ao crescimento, na literatura especializada, do uso de conceitos e técnicas que concebem o acidente como fenômeno organizacional e sistêmico, e forte antagonismo às abordagens que explicavam o acidente de modo centrado no comportamento das vítimas. Um caminho que denuncia como reducionista e anacrônica a base teórica adotadas na ideia de “culpa exclusiva da vítima” largamente utilizada como excludente da responsabilidade objetiva.
Os achados sugerem haver aparente convergência de dois movimentos em favor de possível incentivo a políticas e práticas de prevenção de acidentes. De um lado, um movimento no mundo jurídico em favor da ampliação do uso da noção de responsabilidade objetiva e, de outro, o surgimento e a difusão na literatura de acidentes de forte crítica às abordagens que explicam o fenômeno de modo centrado em características do indivíduo, consonante com a sua substituição por abordagens psicoorganizacionais e/ou sistêmicas. A convergência em questão parece ainda embrionária, ou seja, ainda é pequeno o diálogo entre esses dois movimentos.
Como vai progredir esse processo? A resposta a essa questão vai depender de como essas disputas serão resolvidas. Se prevalecer a influência do que se observa no direito do consumidor e do meio ambiente, se crescer o diálogo entre direito do trabalho e conceitos adotados em teorias sistêmicas e organizacionais de acidentes, a tendência é o aumento da adoção da responsabilidade objetiva em sentenças e acórdãos no Poder Judiciário. Por sua vez, o contrário pode acontecer, em caso de recrudescimento das explicações de acidentes como fenômenos individuais.
Este estudo procurou investigar esse tema, mas tem entre suas limitações ter explorado decisões adotadas em apenas um dos tribunais do país e com acesso apenas ao texto dos acórdãos e sentenças. Novos estudos que explorem múltiplos tribunais, consigam acesso a mais informações dos processos e abordem impactos das mudanças (“reformas” trabalhista e previdenciária, bem como a tese de repercussão geral) ocorridas na legislação e jurisprudência do país precisam ser realizados.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
15 Jan 2024 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
22 Maio 2023 - Revisado
22 Maio 2023 - Aceito
03 Jul 2023