Vulnerabilidades em saúde e a importância da integração da produção local de medicamentos estratégicos para o SUS

Denilson Bastos Carlos Gadelha Sobre os autores

Resumo

A existência de uma cadeia de suprimentos local fortalecida é condição essencial para o acesso universal à saúde. Esse artigo permite avançar para uma agenda de políticas públicas para envolver todo o sistema produtivo da saúde, incluindo componentes estratégicos da cadeia produtiva para além dos insumos farmacêuticos ativos (IFA), sem os quais, o acesso universal e a soberania em saúde se tornam inviáveis, vulnerabilizando o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro. Com essa perspectiva, foi realizada uma pesquisa bibliográfica qualitativa, com observação de campo entre informantes-chave da cadeia de suprimentos da produção de medicamentos do principal Laboratório Farmacêutico Oficial do país. O resultado mostrou que, assim como os insumos farmacêuticos ativos, existem outros itens estratégicos para a saúde na cadeia de suprimentos que se configuram em gargalos tecnológicos. Com isso, espera-se ter contribuído para a ampliação do debate sobre as vulnerabilidades em saúde, relacionando a estrutura produtiva e econômica ao acesso universal, contribuindo, em âmbito nacional e internacional, no estabelecimento de um elo teórico entre a economia, a produção local e os direitos sociais.

Palavras-chave:
Política de Ciência e Tecnologia em Saúde; Complexo Econômico-Industrial da Saúde; Assistência Farmacêutica; Produção de Produtos; Cadeia de Suprimentos

Introdução

A dimensão produtiva da globalização aperfeiçoou os métodos de organização do processo produtivo e permitiu avanços tecnológicos importantes, reorganizando as formas de produção e facilitando a interconexão entre as indústrias e suas redes de suprimentos por meio dos fornecedores de matérias-primas e das empresas de logística e transporte, que possibilitam a fabricação de bens e serviços com insumos adquiridos em locais distantes (Leão; Vasconcellos, 2015LEÃO, L. H. C.; VASCONCELLOS, L. C. F. Cadeias produtivas e a vigilância em saúde, trabalho e ambiente. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 24, n. 4, p. 1232-1243, 2015. DOI: 10.1590/S0104-12902015136460
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).

Ao mesmo tempo em que se mostrou como um avanço para os processos de produção, a concentração dos itens estratégicos para as cadeias produtivas globais em poucos países se configurou numa fragilidade para as economias das nações em desenvolvimento, situação que ficou evidenciada pela pandemia do SARS-COV-2 (covid-19). Estudos sobre cadeias de suprimentos (Ballou, 2005BALLOU, R. H. Gerenciamento da Cadeia de Suprimentos/Logística Empresarial. 5. ed. Porto Alegre: Bookman, 2005.; Bowersox; Closs, 2004BOWERSOX, D. J.; CLOSS, D. J. Logística empresarial: o processo de integração da cadeia de suprimento. São Paulo: Atlas, 2004.; Tridapalli; Fernandes; Machado, 2011TRIDAPALLI, J. P.; FERNANDES, E.; MACHADO, W. V. Gestão da cadeia de suprimento do setor público: uma alternativa para controle de gastos correntes no Brasil. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 45, n. 2, p. 401-433, 2011. DOI: 10.1590/S0034-76122011000200006
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), ao longo dos anos, vêm destacando a importância de pensar a integração de toda a cadeia, visando o alcance de melhores resultados e ganhos em competitividade das empresas e das nações. Mas a pandemia mostrou que o fortalecimento das cadeias de suprimentos locais é uma condição estratégica para o desenvolvimento da economia.

A recente crise sanitária mundial resultou num problema de saúde pública global e provocou um debate sobre a reorganização das formas de produção, visando reduzir a dependência externa e pensando na utilização sustentável dos recursos naturais para fortalecer as produções locais e neutralizar os impactos dessa e de futuras pandemias. Esse tema tem sido frequentemente abordado na agenda internacional sobre cadeias globais de produção e meio ambiente, olhando para o futuro dos países num cenário pós-pandemia.

A agenda de organismos internacionais, como Organização Mundial da Saúde (OMS), Organização das Nações Unidas (ONU) e Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), tem debatido sobre a necessidade da desglobalização como uma forma de enfrentar as fragilidades sanitárias e econômicas causadas pela pandemia (De Backer, 2016DE BACKER, K. et al. Reshoring: Myth or Reality? OECD Science, Technology and Industry Policy Papers, OECD Publishing, Paris: n. 27, 2016. DOI: 10.1787/23074957
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; ONU, 2022; WHO, 2021WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. World Local Production Forum: enhancing access to medicines and other health technologies, report of the first WLPF, 21-25 jun. 2021. Geneva: WHO, 2021. Disponível em: <Disponível em: https://apps.who.int/iris/handle/10665/343393 >. Acesso em: 18 maio 2022.
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).

A saúde movimenta ampla e diversificada cadeia de suprimentos e contribui decisivamente com o desenvolvimento econômico, mostrando-se um precioso campo de pesquisa para contribuir com o debate da produção local e o fortalecimento da economia. Utilizando a produção de medicamentos e vacinas, enquanto tecnologias em saúde, pode-se fazer uma relação, do ponto de vista empírico, da cadeia de suprimentos de um Laboratório Farmacêutico Oficial (LFO) com conceitos já consolidados da saúde coletiva e saúde pública, tais como: princípios dos sistemas universais de saúde; atenção primária; financiamento; acesso aos serviços de saúde; cobertura universal; assistência farmacêutica; acesso a medicamentos; economia e saúde; determinantes econômicos e sociais da saúde; tecnologias em saúde; e complexo econômico-industrial da saúde (Bermudez, 2021BERMUDEZ, J. A. Z. O paradigma do acesso a medicamentos: situação e alternativas atuais ante a escassez de medicamentos no mundo. In: LOPES, L. T.; SANTOS, A. O. (Org.). Acesso e Cuidados especializados. Brasília, DF: Conselho Nacional de Secretários de Saúde, 2021. v. 5. p. 240-251.; Bermudez et al., 2018BERMUDEZ, J. A. Z. et al. Assistência Farmacêutica nos 30 anos do SUS na perspectiva da integralidade. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 23, n. 6, p. 1937-1949, 2018. DOI: 10.1590/1413-81232018236.09022018
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; Bigdeli et al., 2013BIGDELI, M. et al. Access to medicines from a health system perspective. Health Policy and Planning, Oxford, v. 28, n. 7, p. 692-704, 2013. DOI: 10.1093/heapol/czs108
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; Gershman; Santos, 2006; Giovanella et al., 2018GIOVANELLA, L. et al. Sistema universal de saúde e cobertura universal: desvendando pressupostos e estratégias. Ciência e Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 23, n. 6, p. 1763-1776, 2018. DOI: 10.1590/1413-81232018236.05562018
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; Monteiro et al., 2016MONTEIRO, C. N. et al. Access to medication in the Public Health System and equity: populational health surveys in São Paulo, Brazil. Revista Brasileira de Epidemiologia, São Paulo, v. 19, n. 1, p. 26-37, 2016. DOI: 10.1590/1980-5497201600010003
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).

A promoção, prevenção e recuperação da saúde, abordadas pela Assistência Farmacêutica (AF), têm o medicamento como elemento central. A importância desse produto pode ser observada em todas as fases da assistência, desde a atenção primária até a alta complexidade, nas quais ele tem função estratégica. As atividades de pesquisa, produção e distribuição movimentam uma cadeia produtiva estratégica para o atendimento das demandas da saúde e o desenvolvimento da economia. A cadeia de suprimento envolvida nessa dinâmica é fundamental para a fabricação de tecnologias que contribuem com a integralidade da assistência à saúde.

A produção de medicamentos e vacinas é uma atividade industrial envolvida na dinâmica produtiva do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS) (Vargas et al., 2012VARGAS, M. et al. Inovação na indústria química e biotecnológica em saúde: em busca de uma agenda virtuosa. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 46, p. 37-40, 2012.), que movimenta o subsistema de base química e biotecnológica e os demais subsistemas por meio da utilização de equipamentos e materiais na fabricação e no consumo pelos hospitais e ambulatórios durante a prestação de serviços. Essa dinâmica envolve ampla cadeia de fornecedores de materiais e produtos de pequena, média e alta complexidade tecnológica, na qual a falta de um item de menor complexidade pode inviabilizar a produção, a transferência de tecnologias e o desenvolvimento de um novo medicamento da mesma forma que um insumo de alta complexidade, situação que demanda igual atenção a toda a cadeia de suprimentos para neutralizar possíveis fragilidades e contribuir com o fortalecimento do sistema de saúde brasileiro.

As fragilidades e vulnerabilidades das indústrias nacionais (Fernandes; Gadelha; Maldonado, 2021FERNANDES, D. R. A.; GADELHA, C. A. G.; MALDONADO, J. M. S. de V. Vulnerabilidades das indústrias nacionais de medicamentos e produtos biotecnológicos no contexto da pandemia de COVID-19. Cad de Saúde Pública, v. 37, n. 4, p. e00254720, 2021.; Hasenclever et al., 2018HASENCLEVER, L. et al. (Org.). Vulnerabilidades do complexo industrial da saúde: reflexos das políticas industrial e tecnológica na produção local e assistência farmacêutica. Rio de Janeiro: E-papers, 2018.) também podem ser observadas no setor farmacêutico, no qual estão inseridos os LFO. Porém, algumas situações que contribuem para esse cenário têm sido pouco abordadas nos estudos sobre a produção de tecnologias em saúde, como é o caso da cadeia de suprimentos que envolve insumos usados na fabricação de fármacos e medicamentos, que não sejam Insumos Farmacêuticos Ativos (IFA). Composta, na sua maioria, por pequenas e médias empresas, essa cadeia tem grande participação no desenvolvimento econômico, sendo diretamente impactada quando algum evento de natureza global provoca a interrupção do fornecimento, prejudicando a produção local.

Os LFO, enquanto produtores públicos de medicamentos, soros, vacinas, kits para diagnósticos e geradores de tecnologias para o Sistema Único de Saúde (SUS) por meio de pesquisa e desenvolvimento (P&D), também auxiliam o Ministério da Saúde (MS) na formulação e implantação de políticas públicas para a saúde e economia. Nesse contexto de pandemia, a importância dos laboratórios oficiais ficou mais evidente diante da necessidade de produção de medicamentos e vacinas para o enfrentamento da doença e de ações que minimizem os impactos econômicos decorrentes da interrupção das atividades em função do isolamento social (Fernandes; Gadelha; Maldonado, 2022FERNANDES, D. R. A.; GADELHA, C. A. G.; MALDONADO, J. M. S. V. O papel dos produtores públicos de medicamentos e ações estratégicas na pandemia da Covid-19. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 46, n. 132, p. 13-29, 2022. DOI: 10.1590/0103-1104202213201
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) para conter a circulação comunitária do vírus.

Quando se discute o desenvolvimento do CEIS (Gadelha; Temporão, 2018GADELHA, C. A. G.; TEMPORÃO, J. G. Desenvolvimento, Inovação e Saúde: a perspectiva teórica e política do Complexo Econômico-Industrial da Saúde. Ciência & Saúde Coletiva, v. 23, n. 6, p. 1891-1902, 2018. DOI: 10.1590/1413-81232018236.06482018
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; Temporão, 2022TEMPORÃO, J. G. Temporão discute a indústria de química fina no país. Saúde Amanhã, Rio de Janeiro, 21 jul. 2014. Disponível em: <Disponível em: https://saudeamanha.fiocruz.br/temporao-discute-a-industria-de-quimicafina-no-pais/#.Yg6UvejMLIU >. Acesso em: 17 fev 2022.
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), pensando em incentivar, promover e melhorar a internacionalização da produção de itens estratégicos e o acesso da população às tecnologias em saúde com o fortalecimento do SUS, é necessário considerar todos os atores do setor industrial, como é o caso da cadeia de suprimentos, também chamada de cadeia de produção, envolvida na dinâmica produtiva da saúde (Leão; Vasconcellos, 2015LEÃO, L. H. C.; VASCONCELLOS, L. C. F. Cadeias produtivas e a vigilância em saúde, trabalho e ambiente. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 24, n. 4, p. 1232-1243, 2015. DOI: 10.1590/S0104-12902015136460
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).

O desabastecimento de itens estratégicos do setor, que ficou comprovado durante a crise sanitária e pelo contexto atual de conflito geopolítico global com a guerra da Rússia com a Ucrânia, evidenciou as fragilidades da base produtiva nacional, potencializadas pela dependência externa, trazendo dificuldades para o SUS na prestação dos serviços essenciais de saúde, reforçando a necessidade de ampliação do debate sobre o fortalecimento das cadeias de produção locais e sobre a desglobalização (Cassiolato; Falcón; Szapiro, 2021CASSIOLATO, J. E.; FALCÓN, M. L.; SZAPIRO, M. Novas tecnologias digitais, financeirização e pandemia Covid-19: transformações na dinâmica global produtiva, no papel do Estado e impactos sobre o CEIS. Caderno de Desenvolvimento, Rio de Janeiro, v. 16, n 28, p. 51-86, 2021.; EP, 2021EP - EUROPEAN PARLIAMENT. DIRECTORATE GENERAL FOR EXTERNAL POLICIES OF THE UNION. Post Covid-19 value chains: options for reshoring production back to Europe in a globalised economy. LU: Publications Office, 2021.; WHO, 2021WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. World Local Production Forum: enhancing access to medicines and other health technologies, report of the first WLPF, 21-25 jun. 2021. Geneva: WHO, 2021. Disponível em: <Disponível em: https://apps.who.int/iris/handle/10665/343393 >. Acesso em: 18 maio 2022.
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).

Estudos sobre os LFO (Magalhães; Antunes; Boechat, 2011MAGALHÃES, J. L.; ANTUNES, A. M. S.; BOECHAT, N. Laboratórios farmacêuticos oficiais e sua relevância para saúde pública do Brasil. Revista Eletrônica de Comunicação, Informação & Inovação em Saúde, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, 2011. DOI: 10.3395/reciis.v5i1.512
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; Oliveira; Labra; Bermudez, 2006OLIVEIRA, E. A. DE; LABRA, M. E.; BERMUDEZ, J. A produção pública de medicamentos no Brasil: uma visão geral. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 22, n. 11, p. 2379-2389, 2006.) têm contribuído para o debate com uma questão importante para o desenvolvimento do CEIS: a produção pública de medicamentos. O foco deste estudo se volta para a cadeia de suprimentos de materiais estratégicos, para além dos IFA, na produção de medicamentos essenciais por um LFO.

Este artigo tem o objetivo analisar essa cadeia para ampliar o debate para além dos produtos finais de uso específico da saúde, trazendo outros elementos da cadeia produtiva de suporte que têm sido pouco abordados na literatura. É uma cadeia de suprimentos composta por empresas e indústrias que, assim como as farmoquímicas e farmacêuticas, são dependentes da importação de insumos para produção e fornecimento de itens usados na produção de medicamentos.

Esse conjunto de características propicia um valioso objeto de estudo para compreender a produção de medicamentos para além do debate sobre as deficiências estruturais da indústria farmoquímica nacional, permitindo avançar para uma agenda de políticas públicas envolvendo o sistema produtivo da saúde como um todo, contribuindo com uma visão ampliada da dependência externa que deixa o SUS vulnerável.

Metodologia

Esta é uma pesquisa bibliográfica qualitativa, que envolveu levantamento da literatura e observação de campo realizada através de aplicação de questionário semiestruturado entre informantes-chave do principal laboratório farmacêutico oficial do país. Informantes-chave são pessoas com determinados conhecimentos adquiridos em função da sua formação profissional, responsabilidade de liderança ou uma experiência específica. Eles participaram da cadeia de suprimentos da fabricação de medicamentos fornecendo insumos, materiais e produtos nos anos de 2020 e 2021, período em que os impactos da pandemia foram mais sentidos pelos setores produtivos.

A classificação de principal laboratório oficial se dá por ser uma instituição de ciência e tecnologia em saúde, com atuação nas áreas de educação, pesquisa, inovação, desenvolvimento tecnológico e produção de medicamentos. O laboratório atua em nove linhas de pesquisas, tem acordos de transferência de tecnologia com a Índia, Estados Unidos e países da Europa e da África, possui capacidade instalada de produção de mais de 2,5 bilhões de unidades de medicamentos por ano, tem cerca de 33 tipos de medicamentos diferentes registrados, e fabrica: antibióticos; anti-inflamatórios; anti-infecciosos; antiulcerosos; analgésicos para doenças endêmicas, como malária e tuberculose; antirretrovirais para tratamento da aids e hepatites virais; além de produzir outros para o sistema cardiovascular e o sistema nervoso central. Esse perfil exige uma cadeia de suprimentos altamente qualificada para atender as necessidades produtivas e demandas do SUS.

Foram convidados 30 participantes da cadeia de suprimentos da produção de medicamentos e das pesquisas e desenvolvimento (P&D) do laboratório estudado. Desses, 18 participaram da pesquisa respondendo a um questionário com perguntas semiestruturadas, elaboradas e aplicadas através do Redcap, que é uma plataforma segura para criar e gerenciar bancos de dados e pesquisas em ambientes online, permitindo uma diversificada estratégia de coleta e análise de dados.

Iniciou-se o estudo com uma abordagem conceitual sobre a base produtiva da saúde, suas fragilidades, os problemas causados pela pandemia e a dependência externa de insumos estratégicos para a produção de tecnologias. Deu-se ênfase na área da saúde e do complexo econômico-industrial, destacando a produção de medicamentos pelos laboratórios oficiais e a importância da fabricação dessa tecnologia para a saúde pública brasileira e para o desenvolvimento econômico.

Foram usadas as bases de dados científicos Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), SciELO (Scientific Electronic Library Online) e LILACS (Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde), com consulta através das palavras-chave: ciência, tecnologia e inovação; política de ciência e tecnologia em saúde; assistência farmacêutica; complexo econômico-industrial da saúde, produção de produtos, acesso a medicamentos, vacinas, indústria farmacêutica, saúde pública, saúde coletiva. Esses núcleos temáticos foram usados por terem relação com o campo produtivo da saúde.

Outras bases de dados não específicas da saúde também foram pesquisadas, visando acessar referências que dialogam com a saúde, mas não são encontradas nas bases de dados específicas da área, tais como: gestão de cadeia de suprimentos; desenvolvimento econômico; logística farmacêutica; sistemas produtivos; globalização. Ao todo, foram encontradas 425 referências entre artigos, livros, capítulos de livros, teses, dissertações, notas técnicas, sites e legislações. Foram selecionadas 28, por conterem temas relacionados com o objetivo do estudo.

A parte empírica do estudo envolveu pesquisa de campo, com a coleta e análise dos dados entre os informantes-chave. Apesar de não serem passíveis de uma análise estatística quantitativa, os dados coletados fornecem elementos para identificar o perfil da cadeia de suprimentos do laboratório oficial estudado, que buscou, através do levantamento de campo, sair apenas da questão dos IFA e das indústrias farmoquímicas, na medida em que a pandemia mostrou que diversos componentes da cadeia produtiva, como frascos, embalagens, máscaras, filtros, materiais descartáveis, entre outros, também são impeditivos do acesso universal e do direito à saúde pela capacidade de interromper a produção de tecnologias caso estejam em falta.

Por fim, foram feitas discussões dos resultados encontrados e, assim, as conclusões. As questões éticas da pesquisa foram previamente submetidas ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), que emitiu o parecer consubstanciado.

Resultados e discussão

A literatura levantada neste estudo mostra que o debate sobre a dependência externa, apesar de ter avançado, tem se dedicado mais à questão dos IFA e dos medicamentos, e das indústrias farmoquímica e farmacêutica, destacando as fragilidades do subsistema de base química e biotecnológica do CEIS.

Apesar de não ser passível de uma análise estatística quantitativa, a pesquisa de campo fornece elementos importantes para percepção das fragilidades existentes na cadeia de fornecimento da produção de medicamentos do principal laboratório farmacêutico público do país. O resultado mostra uma cadeia de suprimentos composta, na maioria, por pequenas e médias empresas, que fornecem itens de média e baixa complexidade para a produção de tecnologias com alto grau de intensidade tecnológica.

A pesquisa de campo contou com uma adesão de 60% de respondentes, que participam da cadeia de suprimentos do laboratório com itens que são utilizados na fabricação de medicamentos, tais como: materiais de embalagem (7); reagentes, solventes e demais insumos para laboratório (5); transporte e distribuição de medicamentos (2); matéria-prima (1); três respondentes não se manifestaram sobre quais itens forneceram. Sobre a forma como atuam na cadeia de suprimentos 11 empresas declaram que são apenas fornecedoras dos materiais e produtos que entregam, três são fabricantes e fornecedoras, duas apenas fabricantes, e duas não responderam.

Dos participantes, oito se declararam como pequenos, seis como médios, três como grandes, e um não se manifestou em relação ao porte/tamanho da empresa. Verifica-se uma cadeia de suprimentos formada, na sua maioria, por pequenas e médias empresas (78%), sendo que as pequenas representam 44,4%, as médias 33,3% e as grandes 16,6%.

Esses dados refletem a realidade do cenário industrial brasileiro, no qual as Micro e Pequenas Empresas (MPE) representam mais de 90% das empresas do país, respondendo por 30% do Produto Interno Bruto (PIB) e por mais de 50% dos postos de trabalho (ABDI/FGV, 2021ABDI/FGV - AGÊNCIA BRASILEIRA DE DESENVOLVIMENTO INDUSTRIAL; FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Maturidade digital das MPES brasileiras. Brasília, DF: 2021. Disponível em: <Disponível em: https://api.abdi.com.br/file-manager/upload/files/Mapa_da_Digitaliza%C3%A7%C3%A3o_das_MPEs_Brasileiras__1___1_.pdf > Acesso em: 11 mar 2022.
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). Assim como nos demais segmentos da economia, a participação das MPE no setor saúde, por meio da cadeia de suprimentos da fabricação de medicamentos, também é significativa, conforme o resultado da pesquisa. Isso demonstra a atenção que deve ser dada a esses fabricantes e fornecedores, que têm participação importante para as políticas públicas na área da saúde e para a assistência farmacêutica do SUS.

Pela perspectiva principal da abordagem do CEIS, de que trata o sistema produtivo da saúde, a análise também permite identificar interconexões entre os diferentes subsistemas, ilustrando o impacto causado na cadeia de distribuição de materiais diferentes daqueles estudados pelo CEIS. A interdependência entre os diversos sistemas e a dinâmica da cadeia produtiva de fármacos e medicamentos reforça o quanto a indústria fornecedora de materiais não finalísticos dialoga com os demais subsistemas do complexo e precisa ser estudada, visto que os debates sobre as fragilidades e os gargalos da base produtiva da saúde (Vargas et al., 2012VARGAS, M. et al. Inovação na indústria química e biotecnológica em saúde: em busca de uma agenda virtuosa. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 46, p. 37-40, 2012. não têm se estendido na mesma intensidade das demais indústrias e empresas, deixando uma lacuna, que este artigo procurou preencher.

A pesquisa de campo entre os fornecedores do principal laboratório oficial do país, mostra que outros atores da cadeia de suprimentos também enfrentam os mesmos problemas que os da base química e biotecnológica, afetando as demais bases. Nesse sentido, amplia-se a ideia do CEIS de vulnerabilidades em saúde, que foca mais na dependência externa dos IFA como o principal motivo das fragilidades (Fernandes; Gadelha; Maldonado, 2021FERNANDES, D. R. A.; GADELHA, C. A. G.; MALDONADO, J. M. S. de V. Vulnerabilidades das indústrias nacionais de medicamentos e produtos biotecnológicos no contexto da pandemia de COVID-19. Cad de Saúde Pública, v. 37, n. 4, p. e00254720, 2021.; Hasenclever et al., 2018HASENCLEVER, L. et al. (Org.). Vulnerabilidades do complexo industrial da saúde: reflexos das políticas industrial e tecnológica na produção local e assistência farmacêutica. Rio de Janeiro: E-papers, 2018.; Vargas et al., 2012VARGAS, M. et al. Inovação na indústria química e biotecnológica em saúde: em busca de uma agenda virtuosa. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 46, p. 37-40, 2012.), provocando uma articulação com a cadeia de fornecedores de cada subsistema, situação que abre uma agenda de futuro para ser melhor explorada em novos estudos aprofundem o diálogo do complexo com suas próprias bases e ampliem seu escopo.

A Tabela 1 mostra, de forma sintetizada, o resultado da pesquisa de campo e o perfil das empresas que fazem parte da cadeia de suprimentos estudada na produção de medicamentos essenciais.

Tabela 1
Síntese da pesquisa de campo: perfil da cadeia de suprimentos pesquisada, 2022

A produção pública de medicamentos essenciais para a assistência farmacêutica é abordada na literatura como uma importante estratégia que contribui para o princípio da integralidade do SUS (Bermudez et al., 2018BERMUDEZ, J. A. Z. et al. Assistência Farmacêutica nos 30 anos do SUS na perspectiva da integralidade. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 23, n. 6, p. 1937-1949, 2018. DOI: 10.1590/1413-81232018236.09022018
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) e para fortalecer a indústria farmacêutica nacional, tendo os laboratórios farmacêuticos oficiais (LFO) como recurso estratégico do Estado para impulsionar a produção pública e regular os preços dos medicamentos no país (Fernandes; Gadelha e Maldonado, 2022FERNANDES, D. R. A.; GADELHA, C. A. G.; MALDONADO, J. M. S. V. O papel dos produtores públicos de medicamentos e ações estratégicas na pandemia da Covid-19. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 46, n. 132, p. 13-29, 2022. DOI: 10.1590/0103-1104202213201
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; Magalhães; Antunes; Boechat, 2011MAGALHÃES, J. L.; ANTUNES, A. M. S.; BOECHAT, N. Laboratórios farmacêuticos oficiais e sua relevância para saúde pública do Brasil. Revista Eletrônica de Comunicação, Informação & Inovação em Saúde, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, 2011. DOI: 10.3395/reciis.v5i1.512
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).

Os LFO precisam aprimorar sua capacidade produtiva para suprir o SUS com os medicamentos essenciais e atender as estratégias da assistência farmacêutica (AF). Essa modernização passa também pela cadeia de suprimentos envolvida na fabricação dos medicamentos que têm importante função nas atividades do LFO. Os estudos que abordam essa cadeia produtiva, e que permitem conhecer os fatores que causam fragilidades, são igualmente importantes para contribuir com as estratégias da AF.

A pandemia do novo coronavírus mostrou que o problema não se restringe aos IFA. O mundo todo ficou desabastecido de materiais diversos para o enfrentamento da doença, deixando os sistemas de saúde à beira do colapso por falta de materiais e outros itens de menor complexidade, situação que chamou a atenção para outros componentes da cadeia de suprimentos que podem interromper as produções locais de medicamentos essenciais e vacinas, comprometendo a assistência à saúde.

Essa discussão, que ocorre ao longo do tempo focando na base biotecnológica, ganhou mais espaço com a necessidade do fortalecimento das cadeias de produção locais em função da pandemia, e avança no que o debate chama de “fazer o caminho de volta”, ou desglobalização (De Backer, 2016DE BACKER, K. et al. Reshoring: Myth or Reality? OECD Science, Technology and Industry Policy Papers, OECD Publishing, Paris: n. 27, 2016. DOI: 10.1787/23074957
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; WHO, 2021WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. World Local Production Forum: enhancing access to medicines and other health technologies, report of the first WLPF, 21-25 jun. 2021. Geneva: WHO, 2021. Disponível em: <Disponível em: https://apps.who.int/iris/handle/10665/343393 >. Acesso em: 18 maio 2022.
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).

Começa, então, a necessidade de ampliação do debate para o tema deste estudo, chamando a atenção para outro fator motivador de fragilidades e vulnerabilidades em saúde: a cadeia de suprimentos de componentes não finalísticos, que são igualmente estratégicos para a saúde e não têm sido considerados na literatura, nas políticas públicas e nas abordagens recentes na proporção necessária, porque também se configuram em gargalos tecnológicos gerados pela dependência externa.

O déficit da balança comercial da saúde mostra que os itens de baixa e média intensidade tecnológica também têm participação na sua formação. A importação desses itens, e de outros, ocorre em função da ausência de políticas públicas e de incentivos governamentais que fortaleçam a expansão da base produtiva na mesma proporção das demandas da saúde, que são crescentes. Apesar da baixa tecnologia envolvida, a falta desses itens configura gargalos tecnológicos para a produção nacional. A fabricação de medicamentos e vacinas, que envolve alto grau de complexidade, também é dependente dos materiais e insumos menos complexos.

O déficit da balança comercial referente aos produtos das indústrias de transformação, nas quais se enquadram as farmacêuticas, mostra a dependência externa dos materiais de menor intensidade tecnológica (Figura 1).

Figura 1
Balança comercial da saúde: evolução do déficit por intensidade tecnológica das indústrias de transformação, 2022

A pesquisa de campo destaca que 72,2% dos respondentes dependem de itens importados para realização das atividades, contra 22,2% que informaram não depender de importações, e um respondente que não se manifestou sobre essa questão. Considerando que apenas um respondente manifestou ser produtor e fornecedor de matéria-prima (IFA), os dados indicam que o debate sobre a necessidade de redução da dependência externa, para fortalecer a indústria farmacêutica e a base produtiva da saúde, não se restringe a esse insumo e precisa ser estendida a toda cadeia de suprimentos da produção de medicamentos e vacinas.

A necessidade de importação de insumos não é exclusiva daqueles de maior intensidade tecnológica. Mais da metade (55,5%) das empresas que participaram da pesquisa de campo fornecem materiais e produtos de média complexidade tecnológica, seguida de 27,7% que fornecem itens de alta complexidade e 16,6% de baixa complexidade. Esses dados reforçam que os estudos sobre a base produtiva da saúde devem dar igual atenção a todos os componentes. Uns pelos altos valores que envolvem alta intensidade tecnológica, outros pela importância estratégica na fabricação das tecnologias, apesar da baixa intensidade tecnológica.

Com o problema das cadeias globais de produção agravado pela pandemia, que causou impactos negativos de grandes proporções nas economias de todos os países, principalmente aqueles em desenvolvimento, os danos para a saúde pública foram enormes, evidenciando a necessidade do debate sobre os perigos da globalização e o fortalecimento da produção local.

A Tabela 2 mostra que a necessidade de fortalecimento da produção local de itens estratégicos para os sistemas de saúde já faz parte da agenda dos organismos internacionais, pensando em melhorar o acesso às tecnologias em saúde, notadamente medicamentos essenciais e vacinas.

Tabela 2
Temas debatidos nas sessões do fórum mundial para a produção local, 2021

A Tabela 3 traz uma relação não exaustiva dos principais itens usados na fabricação de medicamentos essenciais que ganham características de estratégicos pela capacidade de configurar gargalos tecnológicos caso haja desabastecimentos que interrompam o fluxo da cadeia de suprimentos.

Tabela 3
Itens estratégicos da cadeia de suprimentos da produção de medicamentos, 2022

De acordo com a Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades (Abifina, 2021), os IFA representam o início da cadeia produtiva da indústria farmacêutica, mas até o final dessa cadeia existe uma gama de itens que podem interrompê-la se houver falhas no fornecimento e problemas de qualidade, o que causa impactos na fabricação e na disponibilização dos produtos, dificultando o acesso e prejudicando as políticas de saúde pública.

A pandemia mostrou que sistemas produtivos inteiros podem parar se houver interrupção das cadeias de suprimentos, forçando a repensar as formas de organização das cadeias de produção, deixando evidente que a concentração de itens estratégicos para a produção em poucos países é nociva para os sistemas produtivos locais.

A pesquisa de campo traz outros componentes importantes sobre o impacto da pandemia nas atividades da cadeia de suprimentos. Ao serem questionados sobre esse aspecto, apenas um respondente informou não ter sido afetado pela pandemia, apesar de dizer que depende de material importado para realizar suas atividades. Dos demais, 76,5% foram afetados negativamente, tendo como principal motivo a falta de insumos, seguido do afastamento da força de trabalho por contaminação pelo vírus e o aumento dos preços. Ainda, 23,5% das empresas foram impactadas de forma positiva pela pandemia, tendo como motivo o aumento das demandas, que resultou no aumento dos negócios e na geração de empregos.

Das empresas que foram impactadas negativamente, todas dependem de itens importados para realização das atividades, e das que foram impactadas positivamente, todas informaram não ter essa dependência. Esse dado evidencia quão nociva é a dependência externa para a produção interna e para o desenvolvimento das economias locais.

Quando se trata de itens usados na produção de tecnologias em saúde, o problema se torna ainda mais grave, porque atinge as demandas sociais da população. Em sistemas de saúde universais, como o SUS, que têm entre seus princípios a integralidade da atenção à saúde, problemas como a falta de medicamentos e vacinas comprometem o objetivo do sistema, atingindo as camadas mais necessitadas da população.

Um sistema regulatório forte contribui para o fortalecimento da produção local, pois garante a qualidade dos medicamentos com benefícios para a saúde pública. Nessa questão, 72,2% das empresas informaram controlar a qualidade dos materiais e produtos que fornecem através de ações de gestão, e 22,2% não controlam. Um respondente não informou sobre essa questão. Ainda disseram que estendem seus controles aos seus fornecedores, ampliando as ações de qualidade aos demais membros da cadeia.

Esses percentuais não guardam relação com o porte/tamanho da empresa, pois dos 13 respondentes que informaram fazer esse controle, cinco são de pequeno porte, cinco são médios e três são grandes empresas. Esse é um fator positivo da cadeia de fornecedores do laboratório, porque, de acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em sua RDC 31/2019, que rege sobre boas práticas de fabricação (BPF), o sistema da qualidade farmacêutica se estende do estágio do desenvolvimento do produto e vai até as atividades de fabricação, em que estão inseridos os fornecedores, garantindo o correto fornecimento e uso das matérias-primas e materiais de embalagem e a conformidade de cada recebimento, envolvendo toda cadeia de suprimentos (Brasil, 2019BRASIL. Resolução RDC n 301, de 21 de agosto de 2019. Dispõe sobre as Diretrizes Gerais de Boas Práticas de Fabricação de Medicamentos. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2019.).

As oportunidades de melhorias para enfrentar os desafios, de acordo com os respondentes, passam por políticas públicas para reduzir a dependência das importações, as burocracias, a carga tributária, os custos operacionais, o peso da regulamentação e melhorar a infraestrutura nacional. Ações que promovam a inovação, qualifiquem a mão de obra, e incentivem a melhoria contínua de processos e a participação dos especialistas na elaboração de políticas para o setor também foram mencionadas como oportunidades de melhorias para enfrentar os desafios na cadeia de suprimentos nacional e na logística envolvida.

Chama a atenção, de forma preocupante, o fato de apenas uma empresa ter manifestado a necessidade de cuidados com o meio ambiente e uso de fontes renováveis na cadeia produtiva da saúde como mudança para o futuro, na contramão do debate promovido da assembleia ambiental da ONU, sobre o consumo e a produção sustentáveis, pensando num cenário global pós-covid-19 da dimensão ambiental da produção (ONU, 2022).

Considerações finais

A partir dos dados desse estudo, conclui-se que a dependência externa na balança comercial do CEIS não atinge apenas as indústrias farmoquímicas e farmacêuticas na produção de insumos farmacêuticos ativos e medicamentos, e insumos de maior intensidade tecnológica. Apesar da maior atenção aos IFA na literatura, esse problema se estende a toda a cadeia de suprimentos da produção de medicamentos, englobando os demais itens de consumo com menor complexidade tecnológica, fragilizando a base produtiva da saúde.

O contexto pandêmico, que se desdobra para o pós-pandêmico, permitiu evidenciar a importância estratégica da produção local como fator determinante para promover o acesso universal e a soberania em saúde, mediante a mitigação dos gargalos tecnológicos causados pela dependência externa.

A fragilidade da cadeia produtiva local é um fator que impacta na sustentabilidade do SUS, evidenciando ser necessária uma visão mais abrangente de todos os componentes produtivos do Complexo Econômico-Industrial da Saúde que dão sustentação ao SUS, procurando ampliar o escopo da literatura existente, restrita aos insumos farmacêuticos ativos, medicamentos e vacinas, não considerando outros itens críticos sem os quais a produção local não se viabiliza.

Com isso, espera-se ter contribuído para a ampliação do debate atual sobre as vulnerabilidades em saúde, relacionando a estrutura produtiva e econômica ao acesso universal, e estabelecendo um elo teórico entre a economia, a produção local e os direitos sociais (ELAC, 2021; WHO, 2021WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. World Local Production Forum: enhancing access to medicines and other health technologies, report of the first WLPF, 21-25 jun. 2021. Geneva: WHO, 2021. Disponível em: <Disponível em: https://apps.who.int/iris/handle/10665/343393 >. Acesso em: 18 maio 2022.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    23 Maio 2023
  • Revisado
    23 Maio 2023
  • Aceito
    03 Jul 2023
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br