Resumo
Pesquisas qualitativas, especificamente etnográficas, trazem desafios para o sistema de revisão ética vigente no Brasil. Nesses estudos, é da relação imbricada com a prática que se constrói a teoria. Ademais, não se trata de pesquisas feitas em, e sim com pessoas e/ou grupos sociais, construídas por meio de uma relação intersubjetiva e também afetiva. Para refletir sobre ética, poder, subjetividades e afetividades, parto do estudo de um caso, a pesquisa que desenvolvo há mais de uma década sobre a loucura em conflito com a lei. A obtenção do consentimento livre e esclarecido, a manutenção (ou não) do anonimato, a preservação da imagem das/dos participantes, a realização de pagamento pela participação na pesquisa, a devolução dos resultados e a avaliação de riscos e benefícios são algumas das reflexões que perpassam este estudo. Fazer etnografia significa implicar-se em outra realidade, afetar e ser afetado por outrem. Reconhecer essa reflexividade consiste em expandir o que se entende por ética e (re)politizar seu uso. Trata-se de evocar um sentido amplo de ética em pesquisa, que abarca uma outra sensibilidade científica e também política.
Palavras-chave:
Pesquisas Qualitativas; Ética; Subjetividades; Afetividades
Abstract
Qualitative research, specifically ethnographic research, brings challenges to the current ethical review system in Brazil. In these studies, theory is constructed from the intertwined relationship with practice. Moreover, it is not research carried out in, but with people and/or social groups, built from an intersubjective and also affective relationship. To reflect on ethics, power, subjectivities, and affectivities, I start out from a case study, the research that I have been developing for more than a decade on madness in conflict with the law. Obtaining informed consent, maintaining (or not) anonymity, preserving the image of the participants, paying for participation in the research, returning the results, and evaluating risks and benefits are some of the reflections that permeate this study. Doing an ethnography means getting involved in another reality, affecting and being affected by others. Recognizing this reflexivity means expanding what is understood by ethics and (re)politicizing its use. It is about evoking a broad sense of ethics in research, which encompasses a different scientific and also political sensibility.
Keywords:
Qualitative Research; Ethics; Subjectivities; Affectivities
Pesquisas qualitativas e seus desafios para o Sistema CEP/Conep
Pesquisas qualitativas são aquelas provenientes das ciências humanas e sociais que incluem técnicas qualitativas, seja de coleta de dados, como observação ordinária, observação participante, entrevistas abertas e/ou fechadas, grupo focal e (auto)etnografia; seja de análise de dados, como teoria fundamentada, hermenêutica de profundidade, perspectivas feministas e análise de conteúdo (Diniz; Guerriero, 2008DINIZ, D.; GUERRIERO, I. Ética na pesquisa social: desafios ao modelo biomédico. In: DINIZ, D. et al. (Org.). Ética em pesquisa: temas globais . Brasília, DF: LetrasLivres: Editora UnB , 2008. p. 289-322.).
Essas pesquisas trazem desafios para o sistema de revisão ética vigente no Brasil, o sistema formado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e pelos Comitês de Ética em Pesquisa (CEP), por pelo menos dois motivos. O primeiro deles diz respeito à própria produção do conhecimento e, diferentemente das pesquisas quantitativas, à impossibilidade de se enunciar de antemão hipóteses, número da amostra, critérios de inclusão e exclusão, entre outros itens exigidos pela Plataforma Brasil, sistema oficial de lançamento e monitoramento de projetos de pesquisas realizadas no país. Nas pesquisas qualitativas, é da relação imbricada com a prática que se constrói a teoria (Diniz; Guerriero, 2008DINIZ, D.; GUERRIERO, I. Ética na pesquisa social: desafios ao modelo biomédico. In: DINIZ, D. et al. (Org.). Ética em pesquisa: temas globais . Brasília, DF: LetrasLivres: Editora UnB , 2008. p. 289-322.).
Ou seja, se há hipóteses pré-formuladas, elas necessariamente serão modificadas; se há perguntas, delas advirão algumas respostas, mas elas certamente originarão novas perguntas. O número e a inclusão de participantes dependerão justamente da vivência em campo. Especificamente quanto à etnografia, foco deste texto, Mariza Peirano (2008PEIRANO, M. Etnografia, ou a teoria vivida. Ponto Urbe, São Paulo, v. 2, 2008. DOI: 10.4000/pontourbe.1890.
https://doi.org/10.4000/pontourbe.1890.... ) chega a afirmar que não se trata nem mesmo de metodologia, mas da própria teoria vivida.
O segundo motivo concerne ao estatuto epistemológico das pesquisas qualitativas e às subjetividades que emergem delas (Diniz; Guerriero, 2008DINIZ, D.; GUERRIERO, I. Ética na pesquisa social: desafios ao modelo biomédico. In: DINIZ, D. et al. (Org.). Ética em pesquisa: temas globais . Brasília, DF: LetrasLivres: Editora UnB , 2008. p. 289-322.). Não se trata de pesquisas feitas em pessoas, com intervenções nos corpos delas e nas quais se mantém uma relação entre sujeito e objeto de estudo. Trata-se de pesquisas com pessoas e/ou grupos sociais, construídas por meio de trocas entre sujeitos (Oliveira, 2004OLIVEIRA, L. R. C. Pesquisas em versus pesquisas com seres humanos. In: VÍCTORA, C. et al. (Org.). Antropologia e ética. o debate atual no Brasil. Niterói: EdUFF, 2004. p. 33-44.). É por meio dessa relação intersubjetiva e também afetiva que as pesquisas qualitativas são realizadas.
No Brasil, o Sistema CEP/Conep e sua resolução basilar, a Resolução nº 466/2012, que regulamenta as pesquisas feitas no país, têm como referência o modelo biomédico e o conjunto de pesquisas quantitativas. Consistem exatamente em pesquisas que partem de teorias prévias e realizam intervenções em pessoas - tidas como objetos do conhecimento - para comprovar essas teorias e avançar.
As ciências humanas e sociais, embora tenham se engajado em discussões que apresentassem um contraponto a esse modelo, sobretudo a partir dos anos 2000 (Diniz; Guerriero, 2008DINIZ, D.; GUERRIERO, I. Ética na pesquisa social: desafios ao modelo biomédico. In: DINIZ, D. et al. (Org.). Ética em pesquisa: temas globais . Brasília, DF: LetrasLivres: Editora UnB , 2008. p. 289-322.), foram pouco ouvidas em suas especificidades, e um olhar mais sensível para as pesquisas qualitativas ainda parece ser ignorado pelo atual sistema de revisão ética. Mesmo após a aprovação da Resolução nº 510/2016, que regulamenta as pesquisas nessas áreas e apresenta um esforço para atender a essas reivindicações, conforme será demonstrado a seguir, inadequações persistiram, como a falta de ferramentas para operacionalizar uma avaliação diferenciada de riscos das pesquisas na área biomédica e daquelas nas ciências humanas e sociais; a manutenção do vínculo do Sistema CEP/Conep com o Ministério da Saúde, quando havia uma requisição para que esse vínculo passasse para o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação; e a participação ainda desigual de representantes das ciências humanas e sociais nos CEP e na própria Conep.
Diante desses impasses, entre cientistas sociais, há aquelas/es que assumem uma recusa reflexiva contrária às orientações metadisciplinares do Sistema CEP/Conep e não submetem seus projetos de pesquisas a ele, e há as/os que buscam transformar esse sistema em um engajamento crítico ao participar de CEP e tentar adaptar as orientações existentes às especificidades das ciências humanas e sociais (Schuch; Víctora, 2015SCHUCH, P.; VICTORA, C. Pesquisas envolvendo seres humanos: reflexões a partir da Antropologia Social. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 3, p. 779-796, 2015.). É com o intuito de sensibilizar o sistema em vigor que estudos que se aprofundam em questões éticas, para além das biomédicas, procedentes das pesquisas qualitativas despontam nesse segundo posicionamento.
Esse é o pressuposto deste texto. Parto, portanto, de um campo discursivo, do estudo de um caso, que se trata da pesquisa que desenvolvo há mais de uma década sobre a medida de segurança no Distrito Federal, para refletir sobre ética, subjetividades e afetividades.
Poder, subjetividades e ética em pesquisa
Para refletir sobre ética nas pesquisas qualitativas, poder, subjetividades e afetividades emergentes do encontro com a loucura em conflito com a lei, recorro antes a dois casos paradigmáticos citados por Diniz e Guerriero (2008DINIZ, D.; GUERRIERO, I. Ética na pesquisa social: desafios ao modelo biomédico. In: DINIZ, D. et al. (Org.). Ética em pesquisa: temas globais . Brasília, DF: LetrasLivres: Editora UnB , 2008. p. 289-322.). O primeiro é a pesquisa de William Foote Whyte, um sociólogo estadunidense.
Na década de 1930, ele pesquisou o cotidiano de jovens que faziam parte de gangues de rua no subúrbio de Boston, nos Estados Unidos. Essa pesquisa resultou no livro Sociedade de esquina, publicado em 1943.
Em edições posteriores da obra, Whyte revelou infrações de conduta em campo e confessou ter influenciado os eventos no momento da pesquisa: assim como os rapazes da esquina, ele votou mais de uma vez no candidato de seu grupo. A confissão de ter burlado as eleições gerou muita polêmica porque, por mais que nos aproximemos de nossas/os interlocutoras/es22Há uma discussão teórica na Antropologia sobre o uso de barra, e não de parênteses, na diferenciação de gênero de palavras para evitar criar hierarquia entre as formas masculina e feminina das palavras e manter uma linguagem inclusiva. Os parênteses seriam discriminatórios. Dessa forma, esse padrão foi seguido ao longo do texto. para entender a realidade a partir de suas perspectivas, não nos tornamos efetivamente uma/um delas/es. Não devemos, portanto, como pesquisadoras/es, atuar a ponto de modificar a realidade que estamos a pesquisar.
Whyte se defendeu sob a justificativa de que sua atitude havia sido um ato não planejado, uma tentativa ingênua de corresponder às expectativas de confiança que seus interlocutores haviam depositado nele. Afinal, votar inúmeras vezes em um mesmo candidato era uma prática compartilhada entre os rapazes da esquina.
Não obstante, como bem 1questionam Diniz e Guerriero (2008DINIZ, D.; GUERRIERO, I. Ética na pesquisa social: desafios ao modelo biomédico. In: DINIZ, D. et al. (Org.). Ética em pesquisa: temas globais . Brasília, DF: LetrasLivres: Editora UnB , 2008. p. 289-322.), como estabelecer limites sem romper com as relações de solidariedade entre pesquisadoras/es e interlocutoras/es? Essas autoras ressaltam que a riqueza da etnografia encontra-se justamente na negociação permanente da ambiguidade da aproximação e do posterior distanciamento que fazemos das pessoas e/ou grupos sociais que pesquisamos.
O segundo caso citado por Diniz e Guerriero (2008DINIZ, D.; GUERRIERO, I. Ética na pesquisa social: desafios ao modelo biomédico. In: DINIZ, D. et al. (Org.). Ética em pesquisa: temas globais . Brasília, DF: LetrasLivres: Editora UnB , 2008. p. 289-322.) é a pesquisa de Charles Bosk, também um sociólogo estadunidense. Ele foi convidado por profissionais da saúde para pesquisar o trabalho de aconselhamento genético em uma unidade pediátrica de terapia intensiva nos Estados Unidos. Sua pesquisa resultou no livro All God’s mistakes: genetic counseling in a pediatric hospital, publicado em 1992.
Antes da divulgação dessa obra, Bosk compartilhou com seus interlocutores o que havia observado. Esse é um caso que mostra que parte dos riscos das pesquisas qualitativas não decorre da coleta, mas sim da apresentação dos dados.
Ao devolver os resultados de sua pesquisa a seus interlocutores, Bosk enfrentou uma reação negativa diante de suas observações e anotações. Ele não havia satisfeito expectativas de cumplicidade sobre o que seria publicizado. Esperava-se que ele divulgasse os êxitos do ofício exercido pela equipe. Não foi o que ocorreu. Ao contrário, como um bom etnógrafo, ele explicitou os não-ditos e vislumbrou as entrelinhas das relações observadas. E foi exatamente a minuciosidade de sua descrição etnográfica que gerou desconforto e mesmo animosidade entre seus interlocutores.
Depois do impasse gerado, Bosk aceitou retirar detalhes que permitissem identificar o hospital e seus interlocutores e corrigiu erros na descrição de doenças e diagnósticos. Contudo, assumiu como dele a interpretação dos resultados. Foi feito, portanto, um acordo sobre a apresentação de certas informações, mas a decisão final sobre o que seria divulgado coube ao pesquisador.
Assim como na pesquisa de Whyte, o estudo de Bosk nos incita a refletir sobre os limites éticos de nossa atuação. É certo que as subjetividades das/dos pesquisadoras/es e de suas/seus interlocutoras/es conformam as pesquisas qualitativas: é do jogo simbólico resultante desse encontro que se constroem pesquisas nas Ciências Humanas e Sociais. Não obstante, há e, em caso afirmativo, como se estabelece um confim para essa troca?
Um terceiro caso, que não é citado na obra de Diniz e Guerriero (2008DINIZ, D.; GUERRIERO, I. Ética na pesquisa social: desafios ao modelo biomédico. In: DINIZ, D. et al. (Org.). Ética em pesquisa: temas globais . Brasília, DF: LetrasLivres: Editora UnB , 2008. p. 289-322.), mas que enriquece a reflexão ora apresentada, é um projeto de extensão conduzido por Soraya Fleischer (2015FLEISCHER, S. Autoria, subjetividade e poder: devolução de dados em um centro de saúde na Guariroba (Ceilândia/DF). Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 20, n. 9, p. 2649-2658, 2015.), uma antropóloga brasileira. Como Bosk, ela também foi convidada por profissionais da saúde para observar a rotina em um centro de saúde no Distrito Federal, no Brasil. No caso, o objetivo era entender o motivo do adoecimento laboral, especificamente mental, frequente entre essas profissionais.
Ainda como Bosk, Fleischer compartilhou seus dados com suas interlocutoras antes de divulgá-los. As entrevistas transcritas geraram igualmente incômodo: as profissionais da saúde questionaram erros de português em seus relatos e não reconheceram e/ou solicitaram a retirada de trechos a elas associados. Ademais, acusaram Fleischer e sua equipe de reforçarem o estigma que sofriam no ambiente de trabalho, justamente o motivo do adoecimento laboral que estava sendo investigado.
A preocupação antropológica com a fidedignidade não contempla necessariamente um cuidado ético. Ao contrário, a fidelidade aos dados no referido projeto foi considerada geradora de mais adoecimento e mesmo violência naquele contexto (Fleischer, 2015FLEISCHER, S. Autoria, subjetividade e poder: devolução de dados em um centro de saúde na Guariroba (Ceilândia/DF). Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 20, n. 9, p. 2649-2658, 2015.).
Diferentemente de Bosk, que, como apresentado, assumiu como dele a interpretação dos resultados em sua pesquisa, Fleischer entendeu que os dados deviam ser negociados: modificou os relatos, com correções de erros de português e retirada de trechos considerados inadequados. Compartilhou com as participantes de seu projeto o direito à interpretação dos dados. Houve, portanto, uma construção coletiva da interpretação (Fleischer, 2015FLEISCHER, S. Autoria, subjetividade e poder: devolução de dados em um centro de saúde na Guariroba (Ceilândia/DF). Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 20, n. 9, p. 2649-2658, 2015.).
Ora, se no fazer etnográfico, mesmo que haja consentimento, busca-se exatamente desvelar os segredos da vida social, como se pode admitir que nossas/os interlocutoras/es prevejam todas as consequências dessa anuência? Pesquisadoras/es andam, portanto, em uma corda bamba ao procurar, por um lado, garantir uma riqueza de detalhes que lhes permitam se aproximar ao máximo da realidade analisada e, por outro, exercer uma vigilância constante sobre os limites de sua ousadia (Fonseca, 2008FONSECA, C. O anonimato e o texto antropológico: dilemas éticos e políticos da etnografia “em casa”. Teoria e Cultura, Juiz de Fora, v. 2, n. 1 e 2, p. 39-53, 2008.).
Esses três casos nos fornecem uma profícua reflexão sobre poder e subjetividades e trazem pistas sobre os desafios éticos que podemos encontrar nas pesquisas qualitativas, mais especificamente aqueles sobre os quais tenho me debruçado no encontro com a loucura em conflito com a lei.
Afetividades emergentes do encontro com a loucura em conflito com a lei
As relações de poder existentes no contexto de projetos de pesquisa e extensão que envolvem pessoas com algum sofrimento mental e que cometeram um delito são claras. Essas pessoas são consideradas inimputáveis ou semi-imputáveis pela Justiça. Ou seja, não têm plena autonomia perante a lei e, especificamente no meio acadêmico, diante de pesquisadoras/es.
Loucas e criminosas, a elas é aplicada uma medida de segurança, que é uma sanção penal que as encaminha a estabelecimentos de custódia e tratamento psiquiátrico (ECTP), vulgarmente conhecidos como manicômios judiciários. Trata-se de espaços de clausura, hospitais-prisões, nos quais, embora devessem ser tratadas, o destino traçado por elas é o mesmo: a morte, simbólica e/ou física.
Desde 2013, realizo projetos de pesquisa e extensão com esse grupo de pessoas, internas/os da Ala de Tratamento Psiquiátrico (ATP) localizada na Penitenciária Feminina do Distrito Federal (PFDF) (Quinaglia Silva; Cruz; Trajano, 2013QUINAGLIA SILVA, É.; CRUZ, M. O.; TRAJANO, R. P. D. Saúde mental, direito e psicologia no Judiciário: interlocuções na Seção Psicossocial da Vara de Execuções Penais do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário, [s. l.], v. 2, p. 445-450, 2013.; Quinaglia Silva; Brandi, 2014QUINAGLIA SILVA, É.; BRANDI, C. Q. A. C. S. “Essa medida de segurança é infinita ou tem prazo de vencimento?” - interlocuções e desafios entre o Direito e a Psicologia no contexto judiciário. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 19, p. 3947-3954, 2014.; Quinaglia Silva; Santos; Lopes, 2016QUINAGLIA SILVA, É.; SANTOS, J. E.; LOPES, M. J. (Re)inserção social: perspectiva do interno da Ala de Tratamento Psiquiátrico do Distrito Federal. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, Brasília, DF, v. 8, p. 116-126, 2016.; Quinaglia Silva; Calegari, 2018QUINAGLIA SILVA, É.; CALEGARI, M. Crime e loucura: estudo sobre a medida de segurança no Distrito Federal. Revista Anthropológicas, Recife, v. 29, p. 154-187, 2018.; Levy; Quinaglia Silva; Braga da Rocha, 2023LEVY, B. F.; QUINAGLIA SILVA, É.; BRAGA DA ROCHA, W. Narrativas em disputa sobre a loucura: da (re)produção discursiva sobre a periculosidade aos agenciamentos das internas em manicômios judiciários no Pará e no Distrito Federal. Antropolítica: Revista Contemporânea de Antropologia, Niterói, v. 55, n. 1, 2023.). Esses projetos ilustram vários dos questionamentos aqui apresentados.
Foi o encontro com Lídia (Quinaglia Silva, 2018aQUINAGLIA SILVA, É. Absolvição imprópria [filme etnográfico]. 2018a. Disponível em: Disponível em: https://vimeo.com/328866211 . Acesso em: 8 dez. 2023.
https://vimeo.com/328866211... , 2018bQUINAGLIA SILVA, É. A política pública de saúde mental e a construção do indivíduo “perigoso” no âmbito da medida de segurança no Distrito Federal. In: CASTRO, R.; ENGEL, C.; MARTINS, R. (Org.). Antropologias, saúde e contextos de crise. Brasília, DF: Sobrescrita, 2018b. v. 1. p. 74-85.) que propiciou essa década de afetividades trocadas. Lídia personifica os maus-tratos de um Estado negligente no fornecimento de serviços de atenção psicossocial antes e após o cometimento de um crime por pessoas com sofrimento mental. Como as/os demais internas/os da ATP, ela tem um histórico de violências sofridas nos âmbitos público e privado desde a infância. Em surto, em um momento de muito sofrimento, cometeu um delito que foi incapaz de compreender. Confinada pela Justiça na ATP, continuou a sofrer agressões sob a égide do Estado e, por ser considerada “perigosa”, permanece nesse espaço de exclusão e silenciamento.
Além do encontro com Lídia, outras trocas foram estabelecidas com internas/os da ATP por meio de uma etnografia com essas pessoas. O intuito era compreender essa realidade, ressignificar a loucura em conflito com a lei e revisitar a política de atenção psicossocial voltada para essa população.
O projeto dessa pesquisa foi avaliado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Ciências Humanas (CEP/IH) da Universidade de Brasília (CAAE: 16027013.5.0000.5540; 40056214.3.0000.5540). Uma das exigências dos CEP para minimizar as relações de poder e garantir a integridade de pesquisas, sobretudo daquelas que envolvem pessoas e/ou grupos sociais em situações de vulnerabilidade, é justamente a obtenção de um consentimento (livre e esclarecido) das/dos participantes. Trata-se de uma anuência apresentada após o esclarecimento dos objetivos, métodos, eventuais riscos e benefícios das pesquisas. Segundo a Resolução nº 466/2012, essa aquiescência deve ser obtida, via de regra, antes de se começar uma pesquisa (Brasil, 2012BRASIL. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2012. Disponível em: <Disponível em: https://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf > Acesso em: 11 dez. 2023
https://conselho.saude.gov.br/resolucoes... ).
No caso em tela, além de elucidar a natureza da pesquisa no início dela, um termo foi apresentado ao final. Buscou-se, assim, respeitar uma eventual desistência na participação após o conhecimento efetivo da pesquisa e o compartilhamento de narrativas, histórias e vivências. Essa foi uma das negociações em campo que almejava, mais do que estabelecer uma espécie de contrato, criar e reforçar relações de confiança com minhas/meus interlocutoras/es.
A esse respeito, pode-se afirmar que um dos avanços da Resolução nº 510/2016 foi reconhecer que o consentimento se trata de um processo que envolve diálogo e questionamento entre pesquisadoras/es e participantes, e permitir que a obtenção dele possa ser realizada em qualquer fase de execução da pesquisa (Brasil, 2016BRASIL. Resolução nº 510, de 7 de abril de 2016. O Plenário do Conselho Nacional de Saúde em sua Quinquagésima Nona Reunião Extraordinária, realizada nos dias 06 e 07 de abril de 2016, no uso de suas competências regimentais e atribuições conferidas pela Lei n o 8.080, de 19 de setembro de 1990, pela Lei n o 8.142, de 28 de dezembro de 1990, pelo Decreto n o 5.839, de 11 de julho de 2006. Brasília, DF: Ministério da Saúde , 2016.).
Em meu estudo, esse processo se estendeu a um compromisso de não estigmatizá-las/los. Esse cuidado ético era ainda mais necessário porque, além de estarem em uma situação de vulnerabilidade - são pessoas com transtornos mentais presas em decorrência do cometimento de um delito -, algumas delas foram expostas em um filme etnográfico, intitulado Absolvição imprópria (Quinaglia Silva, 2018aQUINAGLIA SILVA, É. Absolvição imprópria [filme etnográfico]. 2018a. Disponível em: Disponível em: https://vimeo.com/328866211 . Acesso em: 8 dez. 2023.
https://vimeo.com/328866211... ).
Ainda conforme a resolução nacional, as/os pesquisadoras/es devem garantir que a identidade das/dos participantes seja protegida e que suas informações pessoais sejam tratadas com sigilo. Isso envolve a utilização de pseudônimos (Brasil, 2012BRASIL. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2012. Disponível em: <Disponível em: https://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf > Acesso em: 11 dez. 2023
https://conselho.saude.gov.br/resolucoes... ). No entanto, um filme, por trazer as imagens das pessoas com que dialogamos, rompe com a possibilidade de proteção da identidade (Diniz, 2007DINIZ, D. Ética e pesquisa social em saúde. In: GUILHEM, D.; DINIZ, D.; ZICKER, F. (Ed.). Pelas lentes do cinema: bioética e ética em pesquisa. Brasília, DF: LetrasLivres: Editora UnB , 2007. p. 135-158.). A decisão ética de romper o anonimato das/dos interlocutoras/es deste estudo foi tomada em conjunto com elas/eles, tendo respaldo da resolução voltada para a pesquisa social citada, que reconhece essa especificidade das ciências humanas e sociais e preconiza ser direito da/do participante decidir se sua identidade será divulgada (Brasil, 2016BRASIL. Resolução nº 510, de 7 de abril de 2016. O Plenário do Conselho Nacional de Saúde em sua Quinquagésima Nona Reunião Extraordinária, realizada nos dias 06 e 07 de abril de 2016, no uso de suas competências regimentais e atribuições conferidas pela Lei n o 8.080, de 19 de setembro de 1990, pela Lei n o 8.142, de 28 de dezembro de 1990, pelo Decreto n o 5.839, de 11 de julho de 2006. Brasília, DF: Ministério da Saúde , 2016.).33O dilema a respeito do uso (ou não) do anonimato na etnografia suscita uma discussão metodológica e ética, que pode ser aprofundada na reflexão realizada por Claudia Fonseca (2008).
De qualquer modo, era preciso garantir que essas pessoas seriam protegidas e suas imagens seriam preservadas. Nesse sentido, um outro modo de dirimir danos foi contar com a mediação da equipe de saúde que atuava na ATP. Essa estratégia de triangulação para a obtenção do consentimento livre e esclarecido (Diniz, 2007DINIZ, D. Ética e pesquisa social em saúde. In: GUILHEM, D.; DINIZ, D.; ZICKER, F. (Ed.). Pelas lentes do cinema: bioética e ética em pesquisa. Brasília, DF: LetrasLivres: Editora UnB , 2007. p. 135-158.) visava a garantir a participação apenas daquelas/es internas/os que estivessem em condições físicas e, sobretudo, mentais de conceder relatos para compor o referido filme. Afinal, tratava-se de um grupo de profissionais com quem já tinham um contato prévio e se sentiam seguras/os para informar se aceitavam ou recusavam, sem qualquer prejuízo, a participação na pesquisa.
Ainda assim, em uma ocasião, e embora o consentimento tivesse sido dado, a entrevista de uma das internas foi retirada da pesquisa porque ela apresentou um discurso desconexo e ininteligível.44A busca por um discurso da racionalidade pode, por outro lado, revelar uma falta de abertura a um dizer que opera fora da normatividade enunciativa (Antunes, 2022). Em minha pesquisa, busquei desvelar formas de vida que emergem em um espaço de mortificação, jamais o silenciamento em nome de uma suposta proteção. Publicizar a imagem dela por meio da entrevista concedida significaria aviltá-la, exatamente o oposto do objetivo da pesquisa, que era justamente resgatar a humanidade usurpada dessa população.
Outro ponto relevante da referida pesquisa diz respeito à impossibilidade de apresentar ao CEP/IH critérios de inclusão e, por conseguinte, de exclusão quando da submissão do projeto ao sistema. Como mencionado, sobretudo em etnografias, esses itens não podem ser previamente definidos porque a riqueza desse método ou dessa teoria vivida (Peirano, 2008PEIRANO, M. Etnografia, ou a teoria vivida. Ponto Urbe, São Paulo, v. 2, 2008. DOI: 10.4000/pontourbe.1890.
https://doi.org/10.4000/pontourbe.1890.... ) é justamente a (re)construção da teoria por meio e a partir das interações com nossas/os interlocutoras/es durante o próprio trabalho de campo. Segundo Mariza Peirano (2008)PEIRANO, M. Etnografia, ou a teoria vivida. Ponto Urbe, São Paulo, v. 2, 2008. DOI: 10.4000/pontourbe.1890.
https://doi.org/10.4000/pontourbe.1890.... , é o sentido de surpresa que a realidade que nos circunda pode suscitar que marca o início de uma etnografia.
Em minha pesquisa, inicialmente, apenas pessoas consideradas loucas e criminosas seriam incluídas. No decorrer do trabalho, a própria diretora da PFDF solicitou apresentar sua perspectiva sobre a ATP. O relato foi obviamente colhido, e o CEP/IH foi sensível o suficiente para permitir que o desenho inicial da pesquisa fosse alterado, com a inclusão de novas/os participantes. No diálogo com o CEP/IH, o projeto passou a incluir tanto profissionais da área do direito quanto da saúde.
Ainda, um outro acontecimento que merece reflexão ocorreu após a finalização dessa pesquisa. Via de regra, a multicitada Resolução nº 466/2012 proíbe o pagamento pela participação em pesquisas, ressalvadas as pesquisas clínicas de Fase I ou de bioequivalência. O ressarcimento de eventuais despesas geradas pela pesquisa, como transporte e alimentação, e a indenização para a reparação a danos fortuitos também são permitidos (Brasil, 2012BRASIL. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2012. Disponível em: <Disponível em: https://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf > Acesso em: 11 dez. 2023
https://conselho.saude.gov.br/resolucoes... ).
Contudo, em uma conversa com meu colega que filmou as entrevistas, a diretora da PFDF solicitou que cordas de violão fossem doadas para consertar os instrumentos usados nas aulas de música das/dos internas/os. A esse respeito, Leonardo de Castro (2008CASTRO, L. Pagamento a participantes de pesquisa. In: DINIZ, D. et al. (Org.). Ética em pesquisa: temas globais. Brasília, DF: LetrasLivres: Editora UnB, 2008.) traz uma importante reflexão sobre o pagamento a participantes de pesquisas. Questiona se o altruísmo deveria ser a única motivação para a contribuição com o avanço científico e aponta para a possibilidade de se realizar, por exemplo, a entrega de presentes não-monetários como agradecimento ao final de uma pesquisa.
Uma doação nesse formato, como aquela das cordas de violão, poderia ser confundida com um pagamento, sobretudo se as/os participantes descobrissem antes do término da pesquisa que poderiam receber algo como agradecimento pela participação nela? No caso, a diretora da PFDF só solicitou as cordas de violão quando a pesquisa já havia sido finalizada, o que evitou uma indução indevida à participação no início dela. De qualquer modo, a reflexão permanece: se formos incitados a oferecer presentes e mesmo dinheiro como condição para a entrada em campo, interromperemos as relações estabelecidas com nossas/os interlocutoras/es? Esse pedido deve significar a impossibilidade da realização de uma pesquisa?
Ademais, cabe uma outra discussão sobre a finalização de pesquisas e a restituição de seus dados. Além de artigos, capítulos de livros e/ou livros, antropólogas/os têm se dedicado a produções audiovisuais. Como mencionado, um filme etnográfico foi produzido sobre a realidade pesquisada na ATP.
Esse filme foi compartilhado com minhas/meus interlocutoras/es e propiciou uma interação com elas/eles que persistiu para além da pesquisa. A devolução dos resultados de nossas pesquisas é uma questão ética importante, amiúde negligenciada e pouco contemplada pelas nossas resoluções.
Aliás, nós, pesquisadoras/es, também temos retorno nas trocas estabelecidas. Ao exibir o filme para juízes que participaram da pesquisa e/ou autorizaram a sua realização, recebi duas respostas antagônicas. Como na pesquisa de Bosk, por um lado, uma das juízas da Vara de Execuções Penais do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (VEP/TJDFT) reprovou os dados apresentados. Enviou-me por mensagem de e-mail uma decisão de retirada de trechos do filme. Em consulta a um advogado, fui orientada a acatar a referida determinação, sob o risco de sofrer alguma penalidade.
Diferentemente da pesquisa citada e daquela de Fleischer, não houve qualquer possibilidade de negociação dos resultados de minha pesquisa que seriam publicizados. Neste caso, surge uma nova reflexão: a censura também deve ser tomada como dado. Ora, a realidade pesquisada é por si só escondida: as vivências das pessoas que cumprem uma medida de segurança são esquecidas e suas vozes, silenciadas. Quando uma autoridade que representa o Estado reforça essa lacuna, preenche-se de sentido como é a aplicação dessa sanção penal: torna-se clara a mortificação imposta a seres que são considerados abjetos. Até mesmo falar sobre eles e mostrar suas histórias é proibido.
Por outro lado, tive a honra de receber um pedido de orientação de um outro juiz da VEP/TJDFT. Questionou-me como especialistas sugerem avaliar a possibilidade de desinternação de pessoas com sofrimento mental em conflito com a lei. Se a noção de periculosidade, presente no Código Penal, é considerada obsoleta porque lança um juízo para o futuro e mantém essas pessoas confinadas ad aeternum, é a presunção de sociabilidade que deve ser avaliada para uma desvinculação da Justiça e a possibilidade de resgate de cidadania dessa população (Barros-Brisset, 2010BARROS-BRISSET, F. O. Rede é um monte de buracos, amarrados com barbante. Revista Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento Humano, Santo André, v. 20, n. 1, p. 83-89, 2010.). Poder compartilhar referências, dados da literatura e de outras pesquisas com esse juiz e quiçá modificar a avaliação feita por autoridades como ele para a tomada de decisão de extinção da medida de segurança de modo a considerar possibilidades de reinserção social dessa população foi uma das maiores recompensas que eu poderia receber como pesquisadora.
Por concordar com essa perspectiva, desenvolvi, como um desdobramento do projeto dessa pesquisa, um projeto de extensão que foi contemplado pelo Programa de Extensão Educação, Trabalho e Integração Social em acordo firmado entre a Universidade de Brasília e o Ministério Público do Trabalho. O objetivo era promover a atenção à saúde mental das pessoas com transtornos mentais que tiveram um conflito com a lei por meio de oficinas de pintura, bordado, entre outras dinâmicas.
Naquele momento, houve intervenção na realidade porque foi fornecida uma capacitação para internas/os por meio da oferta das referidas oficinas. Essa ação de extensão trouxe um novo questionamento: ela tangencia a pesquisa de Whyte? Capacitar internas/os pode ser considerado um benefício compartilhado, uma troca pela participação anterior na pesquisa e concessão de disponibilidade e tempo para a realização dela. Pode ao mesmo tempo ser considerado um incentivo coercitivo? Ainda, deve haver algum limite na colaboração que estabelecemos com nossas/os interlocutoras/es? Quando, afinal, acaba uma pesquisa e/ou extensão?
A verdade é que a restituição dos dados das pesquisas qualitativas é um processo que não tem um momento definitivo para ocorrer (Ferreira, 2015FERREIRA, J. Restituição dos dados na pesquisa etnográfica em saúde: questões para o debate a partir de experiências de pesquisas no Brasil e França. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 20, n. 9, p. 2641-2648, 2015.). A devolução dos resultados nem sempre acontece ao final de um estudo. A interação com nossas/os interlocutoras/es ocorre no início, durante e mesmo após uma suposta finalização da pesquisa ou da extensão, como no exemplo fornecido. As afetividades persistem para além da etnografia. Trata-se de um encontro profissional e também pessoal. Segundo Jaqueline Ferreira (2015)FERREIRA, J. Restituição dos dados na pesquisa etnográfica em saúde: questões para o debate a partir de experiências de pesquisas no Brasil e França. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 20, n. 9, p. 2641-2648, 2015., fazer ciência é também imbuir-se de responsabilidade social.
Lidar com a loucura em conflito com a lei propiciou, outrossim, a minha entrada em grupos de luta antimanicomial, como o Grupo de Trabalho concernente ao Direito das Pessoas com Sofrimento Psíquico Encarceradas, e o Grupo de Trabalho concernente à criação de uma Equipe de Avaliação e Acompanhamento das Medidas Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno Mental em Conflito com a Lei (EAP) no Distrito Federal, ambos a convite do Conselho Regional de Psicologia do Distrito Federal, e a Rede DF Sem Tortura.55Disponível em: https://dfsemtortura.org. Acesso em: 8 dez. 2023. Finalmente, mantenho contato com os familiares das pessoas que conheci durante os projetos de pesquisa e extensão, mais particularmente a mãe da Lídia, Maria Lenir, que já convidei para participar de eventos sobre a temática na Universidade de Brasília.
É por meio dessas alianças afetivas contínuas que almejo mostrar uma outra compreensão da loucura em conflito com a lei. Se fosse possível sintetizar o principal propósito de meus projetos de pesquisa e extensão, ele seria o seguinte: vislumbrar um outro mundo no qual a loucura fosse descortinada sob o prisma do direito à saúde, especificamente mental, e da participação social e, ainda, no qual o destino das pessoas consideradas loucas e criminosas, particularmente daquelas com quem convivi, não convergisse unicamente para a morte, mas sim para a (re)criação de sentidos, vida e esperança.
Cartografias em confluências: a construção de alianças afetivas de diferentes mundos
Ailton Krenak (2022KRENAK, A. Futuro ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.) sugere o desafio de imaginarmos cartografias, camadas de mundo, nas quais as narrativas sejam plurais e se afetem. Essa possibilidade de diferentes mundos se afetarem em zonas de confluências significa se permitir sentir a vida em outros seres e se implicar com eles.
Ao realizar uma pesquisa qualitativa, estamos necessariamente estabelecendo trocas e modificando realidades ao mesmo tempo que também nos modificamos. Mais especialmente, etnografar é conhecer e experimentar diferentes mundos e, ao vislumbrá-los a partir da perspectiva de nossas/os interlocutoras/es, enxergar nossa humanidade (e por que não nossa loucura?) no “outro” e o “outro” dentro de nós mesmas/os (Damatta, 1987DAMATTA, R. Relativizando: uma introdução à Antropologia Social. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.). Nesse sentido, fazer etnografia significa implicar-se em outra realidade, afetar e ser afetado por outrem.
Reconhecer essa reflexividade da pesquisa antropológica ou qualitativa, em geral, consiste em atentar para questões éticas usualmente ignoradas pelo modelo biomédico que rege o Sistema CEP/Conep. Conforme procurei demonstrar nos exemplos citados e na minha própria experiência por meio das afetividades emergentes do encontro com a loucura em conflito com a lei, a ética não deve se reduzir a procedimentos. Há negociações constantes em campo com nossas/os interlocutoras/es. É preciso, portanto, expandir o que se entende por ética e (re)politizar seu uso.
Esse sistema acaba por criar um sentido de ética que ele próprio avalia (Schuch; Víctora, 2015SCHUCH, P.; VICTORA, C. Pesquisas envolvendo seres humanos: reflexões a partir da Antropologia Social. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 3, p. 779-796, 2015.). Há, entretanto, outros modos de produzir conhecimento. Nas pesquisas qualitativas, o compromisso das/dos pesquisadoras/es ultrapassa uma conformação técnica de seu trabalho e contempla o sentido social do estudo e a responsabilidade delas/deles como cidadãs/os (Minayo; Guerriero, 2014MINAYO, M. C. S.; GUERRIERO, I. Reflexividade como éthos da pesquisa qualitativa. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 19, n. 4, p. 1103-1112, 2014.).
Atentar para as subjetividades e afetividades dessas pesquisas é um desafio para o sistema de regulamentação da ética em pesquisa existente no país. Significa reconhecer as especificidades epistemológica e metodológica das ciências humanas e sociais e evocar um sentido amplo de ética em pesquisa, que abarca uma outra sensibilidade científica e também política.
Referências
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- BARROS-BRISSET, F. O. Rede é um monte de buracos, amarrados com barbante. Revista Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento Humano, Santo André, v. 20, n. 1, p. 83-89, 2010.
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- SCHUCH, P.; VICTORA, C. Pesquisas envolvendo seres humanos: reflexões a partir da Antropologia Social. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 3, p. 779-796, 2015.
- 2Há uma discussão teórica na Antropologia sobre o uso de barra, e não de parênteses, na diferenciação de gênero de palavras para evitar criar hierarquia entre as formas masculina e feminina das palavras e manter uma linguagem inclusiva. Os parênteses seriam discriminatórios. Dessa forma, esse padrão foi seguido ao longo do texto.
- 3O dilema a respeito do uso (ou não) do anonimato na etnografia suscita uma discussão metodológica e ética, que pode ser aprofundada na reflexão realizada por Claudia Fonseca (2008)FONSECA, C. O anonimato e o texto antropológico: dilemas éticos e políticos da etnografia “em casa”. Teoria e Cultura, Juiz de Fora, v. 2, n. 1 e 2, p. 39-53, 2008..
- 4A busca por um discurso da racionalidade pode, por outro lado, revelar uma falta de abertura a um dizer que opera fora da normatividade enunciativa (Antunes, 2022ANTUNES, S. V. S. Perigosos e inimputáveis: a medida de segurança em múltiplas dimensões. 2022. 248 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2022.). Em minha pesquisa, busquei desvelar formas de vida que emergem em um espaço de mortificação, jamais o silenciamento em nome de uma suposta proteção.
- 5Disponível em: https://dfsemtortura.org. Acesso em: 8 dez. 2023.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
15 Jan 2024 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
31 Out 2023 - Aceito
01 Nov 2023