Mobilidade urbana e determinação social da saúde, uma reflexão

Silmara Vieira da Silva Rafael Dall'Alba Maria Célia Delduque Sobre os autores

Resumo

Compreender as relações entre mobilidade urbana e o processo saúde-doença requer perceber que a mobilidade urbana está diretamente relacionada ao tipo de cidade e sociedade onde ela ocorre. Assim, as diferentes condições de mobilidade nas cidades, um fenômeno subjacente à qualidade física e social do espaço urbano, pode implicar em iniquidades em saúde, em especial em países do capitalismo periférico. No Brasil, o modelo de mobilidade associado à precariedade da infraestrutura para pedestres e ciclistas, às longas distâncias a serem percorrida, ao tempo de viagem e à insuficiência e falta de qualidade dos sistemas coletivos de transporte, potencializa os efeitos deletérios sobre a saúde humana. Isso nos permite inferir sobre a mobilidade urbana como uma determinação social da saúde. Este ensaio busca lançar reflexões acerca da mobilidade urbana para além de um utilitarismo positivista a partir de um devir de justiça social alicerçado pela Promoção da Saúde e tendo como estratégia principal o fortalecimento das intersetorialidades.

Palavras-chave:
Cidades Saudáveis; Saúde Coletiva; Promoção da Saúde; Colaboração Intersetorial

Introdução

Compreender as relações entre mobilidade urbana e o processo saúde-doença requer compreender a mobilidade como um processo indissociável da vida humana em sociedade. Desde as sociedades coletoras até as complexas sociedades pós-industriais, precisamos nos mover, seja para cumprir necessidades básicas como alimento e abrigo ou para cumprir necessidades mais elaboradas, como as que integram a vida cotidiana no mundo contemporâneo (trabalho, estudo, cuidados, segurança, cultura, entretenimento etc.).

A revolução industrial e o advento da urbanização impuseram novos modos de vida em sociedade e novas formas e necessidades de circulação de pessoas e bens dentro das cidades. Bicicletas, bondes, trens, ônibus, carros, caminhões e motos foram incrementando os modos de deslocamentos e, concomitante, a infraestrutura urbana teve que se expandir e se sofisticar. Não apenas os modos de transporte (ativos ou motorizado) passaram a compor o sistema de mobilidade, também as vias públicas (ruas, calçadas, ciclovias, viadutos, passarelas etc.), as normas e sinalização de trânsito, a sinalização orientativa de percursos, a acessibilidade e os dispositivos de segurança viária passaram a integrar esse complexo funcional nas cidades, que é a mobilidade urbana.

As cidades na sociedade capitalista e, por consequência, os seus sistemas de mobilidade, estão focadas na produção e reprodução do capital, convertendo em mercadoria as diferentes dimensões da vida: morar, trabalhar, estudar, se alimentar e se deslocar. Assim, a partir da revolução industrial e até o complexo mundo contemporâneo, um modelo hegemônico de cidade e de mobilidade foi sendo forjado nessa lógica mercantil, que concentra nas áreas de maior renda per capita a boa infraestrutura, a melhor oferta de transporte, a diversidade de atividades econômicas e de serviços e os melhores padrões habitacionais. Contrastando com essas áreas priorizadas pelo capital imobiliário, em especial em países do capitalismo periférico, como o Brasil, foram se consolidando bairros, vilas e comunidades mais pobres, muitas vezes periféricas, com infraestrutura, moradias e condições sanitárias precárias e pouca oferta e qualidade de transporte. Há, ainda, um urbano intermediário do ponto de vista da infraestrutura, das moradias e dos serviços, que integra o tecido urbano e, por vezes, conecta ou separa geográfica e fisicamente essas diferentes realidades socioespaciais.

Harvey (2012HARVEY, D. O direito à cidade. Lutas Sociais, São Paulo, n. 29, p. 73-89, 19 dez. 2012. DOI: 10.23925/ls.v0i29.18497
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) define a urbanização como um fenômeno de classe, no qual a decisão sobre o excedente extraído de determinados lugares e de determinadas pessoas está nas mãos de poucos. Os investimentos públicos e privados que qualificam o espaço urbano seguem subordinados aos interesses do mercado imobiliário (Maricato; Colosso; Comarú, 2018MARICATO, E.; COLOSSO, P.; COMARÚ, F. A. Um projeto para as cidades brasileiras e o lugar da saúde pública. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 42, n. esp. 3, p. 199-211, 2018. DOI: 10.1590/0103-11042018S315
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), concentrando bens e serviços em áreas estratégicas para especulação e reforçando a lógica da cidade produzida como mercadoria e constituída espacialmente de forma dispersa e desigual.

Nesse modelo hegemônico, os investimentos em infraestrutura estão voltados prioritariamente ao transporte motorizado, individual e movido a combustível fóssil. Embora menos de 30% dos deslocamentos na cidade sejam feitos por automóvel, mais de 80% da área pública é destinada a eles (Ipea, 2016). Enquanto isso, pedestres e ciclistas (36%), bem como passageiros de transportes coletivos (36%), disputam menos de 20% da área pública destinada à circulação que é, em regra, a que menos investimentos recebe.

As diferentes condições de mobilidade, fenômeno subjacente às características físicas, geográficas e sociais do espaço urbano, podem representar maior ou menor riscos de adoecimento e morte, a depender de onde as pessoas moram (centro, periferia, áreas infraestruturadas e com ofertas de emprego e serviços, áreas urbanisticamente precárias), por onde e em que horários elas circulam e de que forma se locomovem (a pé, de bicicleta, moto, carro, ônibus, metrô etc.). Quanto maior, mais disperso e desigual o território urbano, mais desafios são impostos à população para os seus deslocamentos cotidianos, especialmente à população de baixa renda, que reside em regiões periféricas. No Brasil, um terço da população nas grandes cidades vive em áreas periféricas (IBGE, 2017)IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Classificação e caracterização dos espaços rurais e urbanos do Brasil: uma primeira aproximação. Rio de Janeiro, 2017.. Em regra, as populações trabalhadoras, além de se deslocarem por longas distâncias para acessar as centralidades de empregos e serviços - em média 16 km (Alelo, 2016), dependerem predominantemente de sistemas públicos de transporte insuficientes na oferta, precários na qualidade e, geralmente, restritos ao movimento cotidiano pendular casa-trabalho, trabalho-casa (Araújo et al., 2011ARAÚJO, M. R. M. et al. Transporte público coletivo: discutindo acessibilidade, mobilidade e qualidade de vida. Psicologia & Sociedade, Recife, v. 23, n. 3, p. 574-582, 2011. DOI: 10.1590/S0102-71822011000300015
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).

Com as grandes distâncias de deslocamento, trabalhadoras(es) são obrigadas(os) a investir mais horas de seus dias no trânsito (média 2 h por dia) (Alelo, 2016), expondo-se mais a riscos de acidentes, à poluição sonora/atmosférica e sofrendo mais os impactos físicos e psicológicos dessa jornada ampliada e, muitas vezes, em condições de stress. O Sistema Único de Saúde (SUS), pela sua característica de universalidade, recebe esse impacto no atendimento de urgências/emergências e nos aspectos crônicos, porém, apresentando lacunas no que tange à própria informação dessas condições e no papel dos serviços de saúde na prevenção e promoção da saúde (Por vias seguras, 2023)POR VIAS SEGURAS. O impacto das ocorrências de trânsito no sistema de saúde - Mobilidade Ativa. São Paulo, [2018] Disponível em: <Disponível em: https://mobilidadeativa.org.br/o-impacto-das-ocorrencias-de-transito-no-sistema-de-saude/ >. Acesso em: 20 mar. 2023.
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Embora se identifique um aumento das publicações na temática, ainda predominam estudos que se restringem à perspectiva de determinantes sociais, e não de determinação social, ou seja, predominam estudos que vincularam a mobilidade urbana às influências ambientais na saúde e que analisam as questões comportamentais individuais como fatores de risco per si, dissociando-as dos processos históricos e materiais que constituem as condições sociais, econômicas e culturais dos indivíduos e das sociedades. De forma antagônica ao que se trata neste artigo, esses estudos focam na relação direta, por exemplo, das causas de acidentes a fatores humanos, atribuindo-as ao estado emocional, habilidade dos motoristas e pedestres tanto de forma positiva como negativa (Ameratunga; Hijar; Norton, 2006AMERATUNGA, S.; HIJAR, M.; NORTON, R. Road-traffic injuries: confronting disparities to address a global-health problem. The Lancet, London, v. 367, n. 9521, p. 1533-1540, 2006.; Vecino-Ortiz et al., 2022VECINO-ORTIZ, A. I. et al. Saving lives through road safety risk factor interventions: global and national estimates. The Lancet, London, v. 400, n. 10347, p. 237-250, 2022.). Há, ainda, literatura que se restringe a apontar uma relação entre os sentimentos de raiva, estresse, ansiedade e agressividade, com certos acidentes e comportamentos de risco executados no trânsito (Bartholomeu, 2017BARTHOLOMEU, D. B. Traços de personalidade e comportamentos de risco no trânsito: um estudo correlacional. Psicologia Argumento, Curitiba, v. 26, n. 54, p. 193, 2017.), abstraindo-se das condições materiais históricas nas quais as relações sociais e, por consequência, os comportamentos dos indivíduos na sociedade são forjados.

Diferentemente desse foco analítico, que tende a eclipsar as causas (em geral complexas, estruturais e multifatoriais) com sintomas intermediários atribuindo a esses o status de causa, nosso estudo busca compreender as complexas estruturas que determinam e são dialeticamente determinadas pela vida social e suas relações com a saúde, incluindo a mental.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que 93% das mortes no trânsito ocorrem em países de baixa e média renda, embora estes concentrem aproximadamente 60% dos veículos do mundo. Apesar de homens correrem maior risco de morrer por acidentes de trânsito do que mulheres, os grupos mais vulneráveis nos quais estão interseccionados, inclusive, as dimensões de gênero, sexo, raça, idade e deficiência, são os mais afetados por condições restritiva e inseguras de mobilidade (OMS, 2018)OMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Global status report on road safety 2018. Genebra: 2018. Disponível em: < Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/9789241565684 >. Acesso em: 31 ago. 2022.
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Percebe-se, assim, que varáveis relacionadas à mobilidade urbana, especialmente modo e tempo de deslocamento, têm diferentes imbricações com o processo saúde-doença das populações urbanas e que nessas imbricações subjaz não somente, mas de forma matricial, a dimensão de classe. Este cenário provoca-nos um conjunto de questões, se observado pela lente da iniquidade em saúde. A primeira seria delimitar o modelo teórico epistemológico da mobilidade urbana. A segunda refere-se a ser, ou não, a mobilidade urbana uma determinação social da saúde. Uma terceira poderia buscar respostas à importância da intersetorialidade nesse enfrentamento, considerando que se trata aqui de duas áreas diferentes: saúde e mobilidade.

Questões ainda sobre ações ou estratégias capazes de reduzir as iniquidades em saúde decorrentes da mobilidade; possibilidade de uma trade-off passando a mobilidade urbana a compor estratégias de saúde coletiva e tantas outras podem ser despertadas ao observarmos o fenômeno da mobilidade urbana e suas implicações sobre o processo saúde-doença das populações. Neste artigo, entretanto, partindo de um panorama geral sobre a mobilidade urbana no Brasil, traremos algumas reflexões sobre as três primeiras questões suscitadas. Trabalharemos elementos da teoria crítica e derivaremos para interdisciplinaridade em formato de ensaio teórico conceitual e factual.

Panorama geral sobre a mobilidade no Brasil

Dados de 2018 do Sistema de Informações de Mobilidade Urbana da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP, 2020)ANTP - ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRANSPORTES PÚBLICOS. Sistema de Informações da Mobilidade Urbana da Associação Nacional de Transportes Público - Simob/ANTP: relatório geral 2018. São Paulo, 2020. mostram que, nos 533 municípios brasileiros com população acima de 60 mil habitantes (ano de 2014), foram realizados 223 milhões de deslocamentos dentro da cidade por dia. Pessoas de diferentes classes sociais, sexo, gênero, raça e idade deslocam-se cotidianamente em busca do acesso aos seus direitos básicos, utilizando um sistema de mobilidade urbana caracterizado por privilegiar os veículos motorizados individuais e não os deslocamentos ativos (pedestres e ciclistas) e os modos coletivos (ônibus, metrôs, trens). Esse modelo de mobilidade associado à precariedade da infraestrutura para pedestres e ciclistas, às longas distâncias a serem percorrida, ao tempo de viagem e à insuficiência e falta de qualidade dos sistemas coletivos de transporte potencializa os efeitos deletérios sobre a saúde humana, aumentando as ocorrências de lesões, doenças, violências e mortalidade.

Em 2019, 31.945 pessoas perderam a vida por lesões de trânsito (Brasil, 2021)BRASIL. Plano de Ações Estratégicas para o Enfrentamento das Doenças Crônicas e Agravos não Transmissíveis no Brasil, 2021-2030. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2021.. Se considerarmos os 533 municípios brasileiros com população acima de 60 mil habitantes, constantes no relatório de 2018 da Associação Nacional de Transportes Público (ANTP, 2018)ANTP - ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRANSPORTES PÚBLICOS. Sistema de Informações da Mobilidade Urbana da Associação Nacional de Transportes Público - Simob/ANTP: relatório geral 2018. São Paulo, 2020., foram 21.887 mortes representando um custo de 115,1 bilhões de reais/ano. Entre março de 2020 e julho de 2021, o SUS registrou um total de 308 mil internações por acidentes de trânsito, sendo que em 2020, os gastos com internações relacionadas ao trânsito foram de R$ 171 milhões.

Em 2016, o número de óbitos por doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) devido à poluição do ar (MP2,5 e O3) foi de 25.435. Estima-se que a poluição do ar tenha sido responsável, nesse mesmo ano, “por aproximadamente 58% de mortes prematuras por doenças cerebrovasculares e doenças isquêmica do coração; 18% por doença pulmonar obstrutiva crônica e infecção respiratória aguda baixa; e 6% por câncer de pulmão, traqueia e brônquios” (Brasil, 2019)BRASIL. Uma análise da situação de saúde e das doenças e agravos crônicos: desafios e perspectivas Brasília-DF 2019. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2018.. A inatividade física é um dos fatores que contribuem para a hipertensão arterial, diabetes e obesidade cujos custos diretos atribuíveis no Brasil totalizaram R$ 3,45 bilhões (Nilson et al., 2020NILSON, E. A. F. et al. Custos atribuíveis a obesidade, hipertensão e diabetes no Sistema Único de Saúde, Brasil, 2018. Revista Panamericana de Salud Pública, Washington, DC, v. 44, e32, 2020.).

Saldiva (2018SALDIVA, P. H. N. Vida urbana e saúde: os desafios dos habitantes das metrópoles. São Paulo: Contexto, 2018. v. 1.) nos fala do “sedentarismo compulsório", consequência de um modelo de transporte individual e motorizado, da violência do trânsito e ausências de medidas que privilegiem a mobilidade ativa. Na cidade de São Paulo, 60% das viagens de carro são feitas em percursos entre 2 km e 5 km (Mobilize Brasil, 2018), distância favorável e indicada para deslocamentos ativos (a pé ou de bicicleta). Por outro lado, as populações mais pobres e periféricas têm longos percursos feitos a pé ou de bicicleta de forma compulsória por não terem alternativas de transporte público que atenda às suas demandas ou pelo fato de a renda familiar não ser suficiente para incorporar despesas com transporte. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) pré-pandemia da covid-19 mostravam que 18,1% do orçamento familiar estavam comprometidos com transporte, superando pela primeira vez o percentual comprometido com alimentação (IBGE, 2021)IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa de orçamentos familiares: 2017-2018 - perfil das despesas no Brasil: indicadores de qualidade de vida. Rio de Janeiro, 2021..

Vale refletir, entretanto, que, embora este cenário componha um panorama geral sobre a mobilidade no Brasil, as informações disponibilizadas expressam uma vertente fortemente determinista e focada no risco da estrutura de mobilidade urbana, analisando somente a superfície da questão. Serve-nos, portanto, como ponto de reflexão ao partirmos para a delimitação teórico epistemológica do trabalho.

Mobilidade urbana - construção teórico epistemológica para enfrentamentos de iniquidades

O conceito de mobilidade, até os anos 1970, era dotado de uma concepção utilitarista predominantemente focada na questão de prestação de serviços de transporte. Os principais aspectos a serem sanados pela gestão pública e engenharia de trânsito estavam focados em como corresponder a oferta de infraestruturas à procura de transporte, tanto para mercadorias como para passageiros. As respostas para essa questão deram ênfase no transporte rodoviário, priorização do transporte individual e não coletivo, esforços limitados para promover modos de transporte não motorizados e, por fim, uma separação da concepção do planejamento urbano e do transporte (Silva; Costa; Macedo, 2008SILVA, A. N. R.; SILVA COSTA, M.; MACEDO, M. H. Multiple views of sustainable urban mobility: the case of Brazil. Transport Policy, Amsterdam, v. 15, n. 6, p. 350-360, 2008.).

A partir da década de 1980, principalmente com os movimentos ambientalistas, mas também com o crescimento dos preceitos da Promoção da Saúde e justiça social, o planejamento e a gestão das cidades foram tencionados a dar respostas às crescentes iniquidades e perda de qualidade de vida nos territórios urbanos (Buss et al., 2020BUSS, P. M. et al. Promoção da saúde e qualidade de vida: uma perspectiva histórica ao longo dos últimos 40 anos (1980-2020). Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 12, p. 4723-4735, 2020. DOI: 10.1590/1413-812320202512.15902020
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).

Assim, algumas linhas teóricas e algumas organizações e instituições passaram a incorporar uma visão que considerava os preceitos do desenvolvimento sustentável, como no caso da agenda 20-30, que vai para além da logística utilitarista e passa a articular três pilares, sendo eles a proteção ambiental, a sustentabilidade econômica e a justiça social que se tornam condicionantes importantes no processo de conceituação e ação política (Ipea, 2016).

Nesse contexto aplicado ao Brasil, a Política Nacional de Promoção da Saúde atuou como dispositivo de interconexão para as agendas da saúde e da mobilidade urbana, reafirmando a importância da intersetorialidade e da interdisciplinaridade para o desenvolvimento das cidades saudáveis (Brasil, 2006)BRASIL. Política Nacional de Promoção da Saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2006.. Embora essa mudança de paradigma tenha oportunizado mudanças no agir, pensar e planejar as cidades e seus complexos funcionais, como a mobilidade urbana, nas áreas de planejamento e gestão pública e, por que não dizer também, nas atividades profissionais privadas, ainda prevalece o modelo hegemônico setorializado e determinístico, requerendo esforço intensificado de produção e compartilhamento do conhecimento interdisciplinar e intersetorial. Isso nos inspira a superar desafios, sobretudo das iniquidades e sua determinação social da saúde, às respostas apresentadas, mesmo em agendas interdisciplinares como a agenda 20 - 30, que ainda não alcançaram questões efetivamente estruturais.

Fica assim ratificada a nossa reflexão da mobilidade urbana como determinação social da saúde e a nossa crítica à insuficiência do termo determinantes sociais da saúde, que aparece desprovido do arcabouço teórico e político necessário para desenredar esse tensionamento entre a mobilidade urbana e o processo saúde-doença, sendo necessário não só uma crítica social, mas métodos mais sensíveis e capazes de desafiar a hegemonia dos campos de conhecimento que abordam os fenômenos relacionados aos temas aqui tratados.

Determinação social da saúde, uma reflexão

Antes de iniciarmos a reflexão sobre determinação social da saúde, é importante demarcar qual o conceito de saúde reivindicamos, tendo consciência de que, fosse qual fosse o conceito defendido, ele não seria categórico, estático e tão pouco a-histórico. Respeitados teóricos sobre a história da saúde, como Almeida Filho (2011ALMEIDA FILHO, N. O que é saúde? Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011.) nos oferecem farto material para compreendermos isso. Tratar a saúde como algo que parte de condições dadas, determinadas mecanicamente, sem compreensão dos complexos processos que estruturam, dão significado e significam as relações humanas e sociais, separando-as do objeto, constituiria um olhar positivista do qual não compartilhamos. Pensá-la de forma hegeliana, como algo a se constituir a partir das ideias, sem a ancoragem material e histórica que determina o seu reflexo presente, também não será o nosso caminho. Aqui trabalharemos com o conceito apresentado Juan César García, no qual saúde constitui condição de “máximo desenvolvimento das potencialidades do homem, de acordo com o grau de avanço obtido pela sociedade em um período histórico determinado” (García, 1989GARCÍA, J. C. Juan César García: pensamento social em saúde na América Latina. São Paulo: Cortez, 1989., p. 13). Veja que essa demarcação conceitual pode nos levar a uma hipótese de determinação que, em nossa interpretação, seria: ao observarmos um período histórico específico, o grau de avanço obtido pela sociedade até esse período determinaria um certo potencial social, psicológico e até biológico a ser usufruído pelo ser humano e que a saúde estaria no desenvolvimento máximo dessa potencialidade, portanto, determinada por fatores que possam restringir, limitar, validar, potencializar ou mesmo extrapolar esse “máximo”.

Aglutinamos a essa interpretação, a visão dialética entre “o que determina” e “o que é determinado”, tendo como ponto de mirada a categoria “determinação reflexiva” trabalhada pelo filósofo húngaro Lukács, ao resgatar a questão ontológica proposta por Marx e assim interpretá-la:

Na dialética materialista, na dialética da própria coisa, a articulação das tendências realmente existentes, frequentemente heterogêneas entre si, apresenta-se como solidariedade contraditória do par categorial. Quando se afastam as determinações lógicas e se volta a dar seu verdadeiro significado às determinações ontológicas, efetua-se um imenso passo à frente no sentido da concretização desse complexo relacional uno e dúplice. (Lukács, 2018LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social. São Paulo: Boitempo, 2018. v. 1., p. 415)

As determinações reflexivas nos elucidam que o que se pode e deve investigar como determinação social da saúde, embora possa conter, não está contigo na definição institucionalizada pela OMS sobre os determinantes sociais da saúde assim descrito: circunstâncias nas quais as pessoas nascem, crescem, trabalham, vivem e envelhecem, e o amplo conjunto de forças e sistemas que moldam as condições da vida cotidiana. Trata-se, de outra forma, de um paradigma complexo que articula singularidade, particularidade e universalidade e não dissocia ser humano de natureza, seguindo em movimento contínuo e cumulativo no qual o que determina também é determinado pelo que determina sem que essas relações sejam equivalentes e nem aleatórias.

Corroboramos, portanto, com parte das reflexões de Minayo (2021MINAYO, M. C. S. Social determination, no! Why? Cadernos de Saúde Pública, v. 37, n. 12, e00010721, 2021. DOI: 10.1590/0102-311X00010721
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) ao provocar-nos sobre o uso acrítico da expressão “determinação social da saúde” e suscitar uma possível inflexão conceitual a partir da obra de pensadores e teóricos contemporâneos, como o físico-filósofo Ilya Prigogine e o biólogo-filósofo Henri Atlan. Encontramos, entretanto, na obra desses autores, elementos de intersecção e não de contraposição à obra de Lukács. Nesse sentido, afirmamos que nosso pressuposto para analisar a mobilidade urbana como determinação social da saúde parte das determinações reflexivas de Lukács.

Posto isso, e entendido o conceito de saúde sobre o qual se debruça o nosso trabalho, retomamos a discussão da mobilidade como determinação social da saúde já pontuando que compreender as relações entre mobilidade urbana e o processo saúde-doença requer, também, compreender que a mobilidade urbana está diretamente relacionada ao tipo de cidade e sociedade onde ela ocorre. Isso quer dizer que nascer, morar, viver e trabalhar em uma sociedade capitalista, na qual a cidade é mercadoria e em um contexto que as políticas neoliberais têm levado, cada vez mais, a uma exacerbação da desigualdade, são componentes relevantes das determinações reflexivas.

Dentro desse complexo movimento contínuo e cumulativo, entender que o modelo de mobilidade ao qual aderimos - de forma espontânea ou compulsória - reflete “o processo pelo qual as ideias da classe dominante se tornam as ideias de todos, por assim dizer, tornam-se ideias dominantes” (Chaui, 2001CHAUI, M. S. O que é ideologia. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 2001. v. 13.). Assim, a despeito do que as estatísticas mostram sobre efeitos deletérios do modelo de mobilidade urbana hegemônico sobre a saúde da população, enfrentar esses efeitos vai muito além do processo heurístico de mapear os riscos e mitigar suas “causas”. Incorpora, entre outras questões, atuar firmemente com os princípios da universalidade, equidade e integralidade, por meio da práxis humano-social da própria promoção da saúde como norte ético, estético e político e enfrentar a pressão neoliberal de focalização e de privatização dos serviços (Mattioni et al., 2022MATTIONI, F. C. et al. Práticas de promoção da saúde como resistência e contraconduta à governamentalidade neoliberal. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 27, n. 8, p. 3273-3281, 2022.; Miranda, 2021).

Intersetorialidade, Mobilidade urbana e determinação social da saúde

A sociedade ocidental contemporânea tem na fragmentação e na superespecialização o seu modus operandi. O fundamento neoliberal da individuação que departamentaliza as estruturas e fraciona a realidade está espelhado nas nossas vidas de forma cotidiana. Justiça passa a ser emparelhada com meritocracia, atribuindo valor à competitividade e não à cooperação e à complementariedade. Subtraídos de nossas subjetividades, olhamos o mundo pelo reflexo do que supomos ser e perdemos de vista o reflexo do mundo (complexo, articulado e não linear) sobre o que de fato somos.

Sobre vários aspectos de nossas vidas, essa individuação e essa fragmentação podem ser identificadas e descritas, basta alçarmos o olhar para além do muro das ideias dominantes. Na mobilidade, por exemplo, o sonho de consumo do trabalhador (como ser individuado e universal) é o “carro próprio”. Quanto melhor a renda desse trabalhador, mais sofisticado e tecnológico passa a ser o carro dos seus sonhos, objeto de seu desejo de liberdade, por meio do qual se imagina ‘apartado e protegido do mundo lá fora, sujo, nocivo e desorganizado’. Os passageiros de um ônibus lotado às 6h da manhã também devem acalentar um sonho dessa natureza enquanto o “baú” vai aumentando a lotação a cada parada no percurso para o trabalho. E o que tem isso a ver com processo saúde-doença? Muito! A anedota do carro próprio, cortejada pelo modelo capitalista de mobilidade, é um recurso ilustrativo para a falarmos de determinação reflexiva no processo saúde doença que envolve mobilidade e saúde. Só na Região Metropolitana de São Paulo, em 2020, as emissões veiculares colocaram mais de 88 mil toneladas de monóxido de carbono no ar (Cetesb, 2022)CETESB. Emissões veiculares no estado de São Paulo 2020. São Paulo: [2013]. Disponível em: <Disponível em: https://cetesb.sp.gov.br/veicular/relatorios-e-publicacoes/ >. Acesso em: 31 ago. 2022.
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. Além disso, os quase 6 milhões de automóveis da cidade de São Paulo (IBGE, 2021)IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa de orçamentos familiares: 2017-2018 - perfil das despesas no Brasil: indicadores de qualidade de vida. Rio de Janeiro, 2021. representam quase 8 mil toneladas de aço produzido com o ferro retirado da natureza em processos de extração, como o que a Vale do Rio Doce operava em Brumadinho. A esse conjunto de impactos, soma-se o cenário já apresentado de doenças, agravos violências e mortes decorrentes do modelo hegemônico de cidade e de mobilidade. Ainda assim, na nossa individuação, o carro é o objeto de desejo e esse sonho de consumo é perseguido alheio ao complexo emaranhado de riscos e consequências subjacentes a ele.

Por essa lente, vai se explicitando a complexa multidimensionalidade e multicausalidade que reside no real. Alienados da visão do todo e socializados na lógica da individuação, somos arremessados para o consumo, com a promessa de liberdade e de felicidade, ao mesmo tempo que força destrutiva desse modelo é invisibilizada pelo pensamento dominante. E, quando crises e desastres emergem, o mesmo sistema culpabiliza o comportamento individual como estratégia diversionista que desmobiliza lutas por mudanças estruturais.

Partimos dessa ilustração para sinalizar a imprescindibilidade e, ao mesmo tempo, os desafios de intersetorializar as diferentes dimensões da mobilidade e da saúde, compreendendo a mobilidade urbana como determinação social da saúde. Akerman (2014AKERMAN, M. et al. Intersetorialidade? IntersetorialidadeS! Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 19, n. 11, p. 4291-4300, 2014.), ao sugerir um roteiro exploratório para a intersetorialidade ser definida como um modo de gestão, propõe processos sistemáticos nos quais a articulação, o planejamento e a cooperação entre diferentes setores da sociedade e diversas políticas públicas atuariam, de forma intersetorial, sobre os determinantes sociais (Akerman et al., 2014)AKERMAN, M. et al. Intersetorialidade? IntersetorialidadeS! Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 19, n. 11, p. 4291-4300, 2014.. Buscamos olhar para esse roteiro sugerido atentos ao que nos apresenta Wanderley e colaboradores:

A intersetorialidade como estratégia de gestão pública democrática para responder à setorização e à fragmentação, pressupõe decisão política, articulação entre os setores e complementariedade das ações, buscando um olhar para a totalidade das manifestações da questão social e dos cidadãos que demandam atendimento público. (Wanderley et al., 2020WANDERLEY, M. B. et al. Intersetorialidade nas Políticas Públicas. Serviço Social & Sociedade, n. 137, p. 7-13, 2020. DOI: 10.1590/0101-6628.198
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, p. 8)

Entendemos que olhar para a totalidade e possibilitar que políticas públicas atuem de forma intersetorial sobre a determinação social exige disputar com o próprio estado a universalidade, a equidade e a integralidade na decisão política, uma vez que esse estado, constitucionalmente responsável por proteger e garantir direitos aos cidadãos que demandam atendimento público, muitas vezes responde e se articula com o sistema que defende um estado mínimo e focalização das políticas públicas.

Alcançar a intersetorialidade será, portanto, necessário e indispensável para incidirmos sobre a realidade da mobilidade como determinação social da saúde. Entretanto, mesmo efetivando as reformas que a intersetorialidade possibilita, se não tivermos como horizonte a perspectiva revolucionário para a superação desse modelo hegemônico de cidade e de mobilidade, não promoveremos a saúde no conceito apresentado por Juan César García e defendido por nós neste estudo (García, 1989GARCÍA, J. C. Juan César García: pensamento social em saúde na América Latina. São Paulo: Cortez, 1989.).

Considerações finais

A mobilidade urbana, um complexo funcional das cidades, é um processo indissociável da vida humana e da vida em sociedade, sobre as quais tem implicações como determinação social da saúde. Para atuar sobre a determinação social da saúde, é necessário ter claro qual o conceito de saúde abraçamos, pois isso muito revelará sobre o conceito da “determinação” subjacente ao fenômeno analisado.

Neste estudo, o conceito de saúde por nós requisitado impõe urgência em contrapor o foco analítico que culpabiliza o indivíduo pelas consequências deletérias da mobilidade sobre a saúde. Por isso, ao nos comprometermos a analisar a mobilidade como determinação social do processo saúde-doença, percorremos uma jornada analítica orientada pela visão dialética entre o que determina e o que é determinado. Não nos parece razoável falar de determinação social sem um estudo crítico sobre “que sociedade é essa” e sem compreender, de forma ontológica, a sua constituição material e histórica.

A partir disso, caminhos possíveis para atuar efetivamente sobre a determinação social da saúde apontam para processos intersetoriais. A intersetorialidade requer decisão política, mobilização e articulação social. Não uma e depois a outra, mas as três, de forma dialética e processual. Requer também uma visão integral, sem apartar as implicações observáveis de suas relações multidimensionais.

Nesse sentido, seria possível uma apreensão da totalidade se a lente de observação fosse monotemática? Não. A setorialização do olhar fraciona e fragmenta a realidade, incorrendo no risco de, mais uma vez, ao alienar-se da realidade não fragmentada, complexa e não linear, dissimular de causa o que é apenas sintoma e, por esse viés, perpetuar as iniquidades e impossibilitar a universalidade e a integralidade na saúde.

Enfrentar as iniquidades em saúde decorrentes da mobilidade urbana passará também por aprofundar o arcabouço teórico metodológico, ampliando estudos que contraponham a visão de mundo não só da epidemiologia tradicional, mas também do fazer político, o que nos desafia a dar sequência a este estudo com a expectativa de contribuir para um trade-off, passando a mobilidade urbana a compor estratégias de saúde coletiva. Para tanto, enquanto conceito, mas também como política, a Promoção da Saúde pode ser um dispositivo chave das intersetorialidades sobre as quais a relação mobilidade e o processo saúde-doença serão mapeados, interpretados e desenredados, tendo como perspectiva um devir de justiça social. Sobretudo tendo na capilaridade/materialidade da rede assistencial do SUS (principalmente a atenção básica), e em seus atores sociais, uma oportunidade de intervenção já intersetorializada no território.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    17 Jan 2023
  • Revisado
    28 Mar 2023
  • Aceito
    31 Mar 2023
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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